492

16
Ano 1 • nº 1 • jan-jun/2001 - 27 ÁGORA FILOSÓFICA Entfremdung e Entäusserung Paulo Meneses * Resumo: este artigo visa situar e distinguir dois termos hegelianos que se encon- tram na Fenomenologia do Espírito. Trata-se, em ambos, de uma “exteriorização na qual o que era apenas interior se faz exterior, mas com resultados opostos. Em poucas palavras, na Entfremdung (alienação), o sujeito se perde e não pode retornar sobre si mesmo: sofre um ‘desessenciamento’. Ao contrário, na Entäusserung (extrusão) ele se encontra, nela se reconhece e retorna sobre si mesmo, consigo reconciliado e enriquecido com as determinações do ser. O artigo percorre as dife- rentes passagens em que os termos aparecem, com diversos matizes, conforme a diversidade das figuras. Palavras-chave: Entfremdung (alienação), Entäusserung (extrusão), Hegelianismo, Fenomenologia do Espírito. ENTFREMDUNG THE ENTÄUSSERUNG Abstract: this paper aims to bring forward and differentiate between two Hegelian terms that are present in “Phenomenology of Spirit”. Both apply to an exteriorization in which something that was interior becomes exterior, but with opposite logical outcomes. In other words, in Entfremdung (alienation), the subjects goes astray and cannot return to itself: it suffers a loss of essence; whilst in Entäusserung (extrusion) it finds and recognizes itself in it and returns upon itself, reconciled with itself and enriched with the determinations of being. The paper discusses different segments of the book, in which the terms appear, in different nuances, according to the diversity of forms that Spirit assumes. Key-words: Enfremdung (alienation), Entäusserung (extrusion), Hegelianism, Phenomenology of Spirit. E ssa dicotomia em Hegel e mais especialmente, na Fenomenologia do Espírito, parece ser muito importante, mas, paradoxalmente, deu lugar a muito equívoco. Marx, por exemplo, confunde os dois conceitos, (ou considera que toda Entäusserung é sempre uma Entfremdung, nunca podendo haver na exteriorização uma realização do ser, mas somente um esvazia- mento). Hyppolite, por sua vez, troca um termo pelo outro e pare- ce não ver com clareza sua distinção. ___________________ * Prof. da UNICAP, Doutor em Filosofia

Upload: longoni123

Post on 16-Aug-2015

12 views

Category:

Documents


8 download

DESCRIPTION

dd

TRANSCRIPT

Ano 1 n 1 jan-jun/2001 -27GORA FILOSFICAEntfremdung e EntusserungPaulo Meneses*Resumo: este artigo visa situar e distinguir dois termos hegelianos que se encon-tram na Fenomenologia do Esprito. Trata-se, em ambos, de uma exteriorizaona qual o que era apenas interior se faz exterior, mas com resultados opostos. Empoucas palavras, na Entfremdung (alienao), o sujeito se perde e no pode retornarsobresimesmo:sofreumdesessenciamento.Aocontrrio,naEntusserung(extruso) ele se encontra, nela se reconhece e retorna sobre si mesmo, consigoreconciliado e enriquecido com as determinaes do ser. O artigo percorre as dife-rentes passagens em que os termos aparecem, com diversos matizes, conforme adiversidade das figuras. Palavras-chave: Entfremdung (alienao), Entusserung(extruso), Hegelianismo, Fenomenologia do Esprito.ENTFREMDUNG THE ENTUSSERUNGAbstract:thispaperaimstobringforwardanddifferentiatebetweentwoHegelian terms that are present in Phenomenology of Spirit. Both apply to anexteriorization in which something that was interior becomes exterior, but withoppositelogicaloutcomes.Inotherwords,in Entfremdung (alienation),thesubjectsgoesastrayandcannotreturntoitself:itsuffersalossofessence;whilst in Entusserung (extrusion) it finds and recognizes itself in it and returnsuponitself,reconciledwithitselfandenrichedwiththedeterminationsofbeing. The paper discusses different segments of the book, in which the termsappear,indifferentnuances,accordingtothediversityofformsthatSpiritassumes.Key-words:Enfremdung(alienation),Entusserung(extrusion),Hegelianism, Phenomenology of Spirit.EssadicotomiaemHegelemaisespecialmente,naFenomenologia do Esprito, parece ser muito importante, mas,paradoxalmente, deu lugar a muito equvoco. Marx, por exemplo,confunde os dois conceitos, (ou considera que toda EntusserungsempreumaEntfremdung,nuncapodendohavernaexteriorizaoumarealizaodoser,massomenteumesvazia-mento). Hyppolite, por sua vez, troca um termo pelo outro e pare-ce no ver com clareza sua distino.___________________* Prof. da UNICAP, Doutor em Filosofia28 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCODEPARTAMENTO DE FILOSOFIAEntfremdung vem de FREMD (alheio); traz a idia de ali-enar, ou de alienar-se, tornar-se estranho a si mesmo. Conota umaperda,umdesessenciamentooutrotermodeHegelquetemcerta afinidade com o primeiro.Entusserung vem de AUSSER (fora) e conota a idia deumavinda-para-fora,umsairdesi,etambmumaobjetivao,um fazer-se ser ou ser-a, ou mesmo, uma coisificao. Mas,htambmusserung(exteriorizao),que,emcertoscontex-tos,pareceteromesmosentidodeEntusserung,comoemFenomenologia do Esprito 10: Die Kraft des Geistes ist nur sogross als seine usserung; seine Tiefe, nur so tiefe als er in seinerAuslegungsichauszubreitenundsichzuverlierengetraut.(Afora do esprito s to grande quanto a sua exteriorizao; suaprofundidade s profunda, na medida em que ousa expandir-se eperder-se no seu desdobramento).Essadicotomiaumjogodeconceitos,prpriodaFenomenologia.NaFilosofiadoDireito,imperaaEntusserung. No contexto jurdico, Entusserung alienao deumbem,deumpatrimnio,que,poresseato,setornaalheioaquem dele se despossuiu, no sendo mais prprioou proprieda-de dele. Segundo Enrique Dussel, o termo foi introduzido no ale-mo por Lutero, ao traduzir a kenose de Filipenses, 2,7. Quandoa Vulgata diz que o Verbo exinanivit (eknosen) a si mesmo, Luteroescreveu entusserte.sich). Dali passou para Hegel, atravs de seusprofessores de teologia de Tbingen. (Dussel, op. cit pg. 262, n.34).Porm,hmais:segundoLabarrire,Hegel,inicialmente,notinhafixadosuaterminologia,comosevnoPrefciodaFenomenologia do Esprito 19 : An sich ist jenes Leben wohl dieungetrbte Gleichheit und Einheit mit sich selbst, der es kein ErnstmitdemAndersseinundderEntfremdungsowiemitdemberwinden dieser Entfremdung ist. (A vida de Deus , em-si,tranqila igualdade e unidade consigo mesma: no lida seriamentecom o ser-Outro e a alienao, nem tampouco com o superar dessaalienao). O autor observa (nota 3, pg. 82):Entfremdung Em sua acepolgica, esse termo conota a impossibilidade deAno 1 n 1 jan-jun/2001 -29GORA FILOSFICAum retorno, a partir de uma exterioridade radicalmente estranha,(fremd). Ao contrrio, a sada de si, que exprime a interioridadecomoexterioridade,exprime-seatravsdotermoextruso(Entusserung).Essadistinoencontra-senaexplicitaodasfiguras fenomenolgicas (ver o estudo de Joseph Gavin, intituladoEntusserung et Entfremdung dans la Phnomnologie de lEspritde Hegel em Archives de Philosophie, oct. dc. 1962, p. 555-571.AntesdepassaranlisedosdoisconceitosnaFenomenologia do Esprito, devemos ter presente, antes de tudo,que Entusserung e Entfremdungse opem como gnero e esp-cie:ou seja, toda alienao um tipo de extruso, que poderia serchamada extruso perversa, enquanto nem toda extruso alie-nao. S que aboa extruso no recebe nome que a especifi-que, denomina-se extruso sem mais; possivelmente, da procedeboapartedaconfusoentreostermos.Aalienaosupeumaextruso, gerada por ela, s que seu resultado, ou objetivao, excessivo: escapa e se perde do sujeito que o produziu. (ver #487at#491).#488Frenteaelesecomportacomosefosseummundoestranho.Oindivduonosereconhecenessasuaexteriorizao-objetivao:toma-acomoumobjetoestranho,emesmo hostil. Dela no h retorno, isto , o indivduo no chega arefazer sua unidade, reconciliar-se com esse objeto numa unidadeverdadeira. Mas a alienao pode alienar-se a si mesma, e medi-ante isso, o todo se recuperar em seu conceito (die Entfremdungwird sich selbst enfremden, und das Ganze durch sie in seine Begriffsich zurcknehmen # 491). Para no entrar em contradio comoutras afirmaes de Hegel, deve-se pr a nfase na palavra con-ceito. s no conceito que se pode recuperar, ou mesmo diria,para ns, filsofos, que vemos a totalidade do processo, e enten-demos sua dialtica; e no no mundo real do esprito alienado desi mesmo.I - EntfremdungH toda uma parte da Fenomenologia, dedicada alienaodoesprito,aqualproduzaculturadoAncienRgime:O30 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCODEPARTAMENTO DE FILOSOFIAesprito alienado de si mesmo: a cultura. O mundo produzidopor essa alienao se divide em dois: um o mundo da efetividade,ou o da alienao do esprito; o segundo, o mundo em que o esp-rito, elevando-se sobre o anterior, constri para si no ter da puraconscincia. O reino da efetividade, por sua vez, cinde-se entre opoltico e o econmico. Pela alienao poltica, constitui-se o Es-tado: pelaabdicao total da liberdade dos indivduos em favordeumsoberano,queessepodedizer:Ltat, cest moi.Pelaalienao econmica, o homem pe sua essncia na fruio dasriquezas; e o indivduo s algum, pelas honras e reconhecimen-to que recebe do soberano/Estado, e pela ostentao das riquezasqueofazemreconhecidocomofidalgoegentil-homem.Essemundo, no entanto, o mundo da cultura: por ele, o indivduo saide sua insignificncia individual e acede ao universal: ao refina-mento da bela palavra e da espirituosidade, ao reconhecimento dasociedadequeoacolheeadmira,peloprestgioqueoreilheoutorgaepelosbensquelhedoacessoaoluxoeaumavidabrilhante. Mas ali o indivduo se exala como universal e se perdecomo realizao pessoal: uma existncia de aparncias, um mun-dovirtualoudesimulacro,diramoshoje.Mas,comonotaLabarrire, acima citado, desse mundo de alienao no h retor-no. Ao buscar uma sada, o que se encontra uma alienao daalienao, ou uma alienao segunda potncia. Perde-se nummundo ainda mais vazio, ou seja, opera-se a fuga em direo aovcuo, para escapar ao esmagamento, ou sufoco, do mundo real.Poish,porassimdizer,umaleinessemundodealienao:deque tudo se constitua por cissiparidade, ou em dicotomias. (Issoparece caracterstico do vis esquizofrnico da alienao; enquanto,naextruso,aunidadeserestabelecepelareconciliaoentreosujeitoeoobjeto,oindivduoeseumundo,oconceitoeaefetividade, o interior e o exterior).AdualidadeEstado/riquezarecobriaumadualidademaisfundamental, que oscilava entre os plos do Bem e do Mal, numaalternncia em que cada uma das determinaes ocupava um dosplos.Agora, o esprito alienado da cultura, ao querer escapar deseu mundo, tambm se bifurca, produzindo duas figuras: a do puroAno 1 n 1 jan-jun/2001 -31GORA FILOSFICApensamento e a da f. # 487 Esse mundo, oposto quele aliena-o, por isso mesmo no livre dela, mas antes apenas a outraforma da alienao, que consiste precisamente em ter a conscin-ciaemdoismundosdiversos,equeabarcaaambos.Opuropensamento parece ter inspirado em Marx a alienao filosfi-ca esse pensamento, desvinculado do real (que tem parentescocomasofisticariaeopensamentoraciocinante-dequesefala no Prefcio de Fenomenologia), ao querer escapar domundoda cultura e traduzi-lo em noes, perde-se em si mesmo, e quan-to mais progride, mais se afasta da realidade do mundo. A outraevaso do mundo a F, essa figura que a religio assume nomundodacultura.Oindivduotentaescapardaalienaoean-gstia, que ali o oprimem, fugindo paraum mundo imaginrio: omundo aprazvel da F, rplica invertida do mundo real. O mundoda Ilustrao e o da Fse combatem e anatematizam com ardor,sem se darem conta de quanto se assemelham, por sua origem eobjetivo comuns. O embate histrico da Ilustrao contra a F cheio de equvocos e mal-entendidos, embora, no balano final, aIlustraovenaaF,porqueconseguecontamin-lacomseuracionalismo.H, na Fenomenologia, outras situaes em que o indivduoe o Estado se relacionam, ou mesmo, se opem, mas em que noexistepropriamenteaalienao.Vemos-la,primeiro,naEticidade,quetempormodeloidealacidadegrega.Alinopodehaveralienao,porqueoindivduoestplenamentesubmerso no compacto da substncia: sua vontade, seu projetode vida, tm identidade total com os da comunidade. Quando co-meaodistanciamento,peloespritocrticodatragdiae,maisainda, da comdia, esse mundo entra em processo de desvaneci-mento.J no Estado de Direito, que remete ao imprio romano,o indivduo no interessa por sua peculiaridade pessoal, nem temamnimaparticipaonomundopoltico:apenasumtomointercambivel, s presente como sujeito de direito bem enten-dido, de direito civil, que rege a esfera privada, onde ele se encon-tra encerrado, como num crculo de ferro. Acima de todos, est o32 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCODEPARTAMENTO DE FILOSOFIASenhor do mundo, o Imperador que se apoderou da liberdade detodos ea todos oprime com seu arbtrio fora de todatica. aopresso total, produzida pelasforas da devastao, que se vol-tam contra o prprio Senhor do mundo, fazendo dele um monstro,tipo Calgula ou Nero.A dialtica do Senhor e do escravo mais complexa. Nela,humacertaalienaodoescravoquepesuaessncianoSe-nhor,emfavordoqualrenunciaeabdicadesimesmo,anteomedo da morte. Porm a morte no acontece ela que o Senhorabsolutoeporqueavidacontinua,orelacionamentoentreosdois plos Senhor e escravo que fora estabelecido em funoda morte, torna-se ambguo e contraditrio. Na verdade, o Senhoracaba dependente do escravo, para a satisfao de suas necessida-des mais elementares e, de outro lado, o escravo, pelo trabalho, sehumaniza, e alcana um patamar de dignidade humana, acima doseu Senhor. Aqui se encontra uma situao em que parece haveruma superao (berwinden) da alienao - dessa situao da qualLabarrire dizia no haver retorno. Com efeito, o escravo encon-tra uma sada atravs do trabalho. Mas, poder-se-ia talvez obser-var que a situao inicial da alienao j entrara em declnio des-de o comeo, pois era uma reao diante da morte;mas, ao optar-se pela vida, entrou-se numa torrente que deixou a situao trau-mtica original cada vez mais para trs, e possibilitouuma sada,um atalho, ou melhor, uma mediao para esquivar-se da aliena-o inicial.Outra situao de alienao a da conscincia infeliz.Situao complexa, pois h uma alternncia entre as duas cons-cincias em que ela se cinde: uma sempre a outra, conscin-cia ao mesmo tempo duplicada e indivisa. (Fenomenologia # #207e208).Aconscinciainfelizidentifica-secomumdosplos,oploinferioreinessencialdamutabilidade:maspesua essncia no plo superior, no Imutvel. Pode-se ento di-zer que nele se aliena; que um exemplo tpico da alienaoreligiosa.Porm,asituaobemmaiscomplexaqueisso,porque na alta mstica, a alma se torna um com seu Deus; mas,sobretudo,porque o Imutvel se faz figurado e vem ao encon-Ano 1 n 1 jan-jun/2001 -33GORA FILOSFICAtro dela, que, por sua vez, pelo desejo e pelo trabalho, recuperasua essncia.Resta falar do Terror, que encerra essa segunda parte doespritoalienadodesimesmo.Emmuitosaspectos,lembraoEstado de Direito onde havia a ciso entre o Senhor e os tomosdasindividualidades,acisoentreauniversalidadeinflexvelefria de um lado, e a dureza egosta dos tomos conscientes-de-sique no so susceptveis de nenhuma mediao. No se diz queestesindivduossealienemdesimesmos,mas,quehumausurpao,atravsdaviolnciadestruidoraqueoSenhordomundo exerce contra o si de seus sbditos (# 482 , 483); eleuma potncia negativa, cujo Si puro ato de devastar,consci-ncia-de-si descomunal que se sabe como deus efetivo, cujo gozode si mesmo uma orgia colossal. Eleoperou assim, uma de-vastao no resto dos tomos conscientes-de-si, que se tornamum caos de potncias espirituais,que, (# 483) desencadeadascomo essncias elementares em selvagem orgia,se lanam umascontraasoutras,frenticasearrasadoras.Apalavra,aqui,inessencialidade (Unwesenheit), perda de sua essncia (VerlustseinesWesen),paralelaaodesessenciamento(Enwesung)deoutros textos.Nessas trs figuras (Estado de Direito, Senhor e Escravo,Liberdade absoluta e Terror), h acentuadosparalelismos. Com-pare-se, por exemplo, esse naufrgio na necessidade simples dodestino vazio, coma Morte,o Senhor absoluto, na dialtica doSenhordo Escravo, ante o qual todo o ser se dissolvia;e com aMorte,tambm onipresente no Terror - que fecha a Seo Cultu-ra, assim como o Estado de Direito conclua o Mundo tico.Essa presena da Morte ainda acentua que no se trata de aliena-o propriamente dita, em que o sujeito ou o Esprito se aliena desi mesmo, mas de um esvaziamento ou devastao, operada sobreo sujeito por uma potncia mortfera, que lhe arranca a essncia que a liberdade ou mesmo, que ameaa ou elimina suaprpriaexistncia; no caso do Terror, cortando-lhe a cabea como secortauma cabea de couve.34 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCODEPARTAMENTO DE FILOSOFIAEm suma: h diversas figuras da alienao, umas bastantecomplexas, como a da conscincia infeliz, com sua instabilidadede plos, em que o inferior, por sua vez, se identifica com o plosuperior,eaalienaodomundodacultura,queseoperaporcissiparidade, e onde se encontra uma alienao da alienao,ou uma alienao segunda potncia. Em todos os casos, a alie-nao no uma realizao do indivduo, mas um esvaziamentodesse, embora produza realidades to brilhantes como no mundodacultura.Porm,ascoisassecomplicamaindamais,quandoentra a mediao alienadora da linguagem, e nessa passagem, aEntusserung e a Entfremdung, (extruso e alienao, como tra-duzimos) se entrelaam e alternam, dificultando a distino dosdois conceitos. Abaixo, apresentamos nossa soluo, caracterizan-doalinguagemcomosendoumaextrusoe,naverdade,aexteriorizao por excelncia do Eu, mas cuja mediao operauma alienao: justamente a alienao constitutiva do mundo dacultura.Esta a caracterizao geral do mundo da cultura (# 488)O ser-a desse mundo, como tambm a efetividade da conscin-cia-de-si, descansa no movimento pelo qual a conscincia-de-siseextrusadesuapersonalidadeeassimproduzoseumundo;frente a ele se comporta como se fosse um mundo estranho, doqual devesse agora apoderar-se.V-sebem,nestetexto,comoaalienaosupeumaextruso, que se torna alienao quando o indivduo nela no sereconhece.Amorte,queaparecenasfigurasacimaestudadas,aquidesignadacomoumtipodeextrusoaextrusoessentedetodo contrria verdadeira extruso, da qual h retorno ao Si, conscincia. Vejamos: O sacrifcio do ser-a, que ocorre no ser-vio,scompletoquandochegaatmorte;masoperigosuperado da prpria morte a que se sobreviveu (ver a dialtica doSenhor e do Escravo) deixa o resduo de um determinado ser-a, ecom isso, de um particularPara-si uma opinio prpria e umaAno 1 n 1 jan-jun/2001 -35GORA FILOSFICAvontade particular. E assim se torna uma conscincia vil, sempredispostarebeliocontraopoderdoEstado.Essacontradiotem de ser suprassumida, no pela extruso do ser-a que a mor-te que no passa de uma extruso essente, qual nem a consci-nciasobrevive,poispassaaoseucontrrionoreconciliado-mas por uma extruso que retorne conscincia.[# 508] Ora,essa alienao somente se d na linguagem: por ela, como movi-mento mediatizante, como meio-termo, resulta em uma aliena-o : pois o poder-do-Estado s passa para a conscincia comohonra, mas no passa efetivamente.Vale observar que, para Hegel,o poder do Estado no , porsi mesmo, uma alienao; antes, aabsoluta Coisa mesma, a obra universal na qual enunciadaaos indivduos sua essncia. Mas o prprio do mundo da cultura que o indivduo no encontra no Estado sua individualidadecomo tal: encontra seu ser-em-si, mas no seu ser-para-si ; oumelhor encontra nele seu agir, mas como agir denegado e sub-metido obedincia. O Poder do Estado para ele a potnciaopressora.Isso acontece tanto na conscincia nobre(# 500), ou seja,noscortesosqueservemeadulamomonarcaabsoluto,noherosmo do servio da pessoa que renuncia posse e ao gozo desi mesma que age e efetiva para o poder vigente,quanto nosoutros, fora desse crculo, que vem na soberania uma algema euma opresso do ser-para-si; por isso, odeiam o soberano, s obe-decem com perfdia, e esto sempre dispostos rebelio. Tam-bm no a riqueza (a esfera ou atividade econmica) que alie-nao, mas a riqueza recebida como um favor, prmio ou outorgado soberano ou benfeitor, que s vale pela ostentao e consumoconspcuo - um gozo efmero em que os nobres e privilegiados seperdem - e que causa revolta na conscincia vil.Comoobservamosacima,essemundodaculturaodacissiparidade. Nesse ponto, a alienao poltica que se acompa-nha da alienao econmica. Aqui, em relao ao mundo econ-mico, os pontos de vista hegelianos so demasiado ideais, ou mes-36 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCODEPARTAMENTO DE FILOSOFIAmo ideolgicos.(Parece paradoxo ou ironia, caracterizar a riquezacomo uma essncia cujo esprito ser sacrificado e entregue enos albores do capitalismo, dizer que a riqueza existe como be-nefcio universal, que sua essncia necessria universal consis-te em comunicar-se a todos os singulares, em ser a doadora demil mos # 497). Seu discpulo, Marx,deu uma dimenso in-comparavelmente mais rica ao tema da alienao econmica. Amediao agora a do trabalho,cujo produto se aliena do traba-lhador e vai somar-se ao capital, que o outro plo da relao. Adissociao ainda se acentua no fetichismo da mercadoria, em queo fruto do trabalho passa, por assim dizer, por uma alienao naalienao e nos fluxos monetrios que tomaram, de maneira cres-cente, o lugar dos fluxos reais na economia capitalista.Assim, parece suficientemente caracterizada a Entfremdung(alienao) que, por um lado, constitui um esvaziamento, ou per-da de essncia, em benefcio de um ser-a outro, alheio (fremd),em que o sujeito no se reconhece, e que antes se lhe ope comoalgo adverso. Por outro lado, uma situao donde no h retor-no. Ao contrrio, ao procurar uma sada, pode incidir numa alie-nao da alienao, como numa das figuras do mundo da cultu-ra.Mas,senohretorno,propriamente,nessafigura,elatem,necessariamente, de ser ultrapassada, pois a dialtica no pra ;ser cedo ou tarde suprassumida no processo total do esprito.II EntusserungBemdiversadaEntfremdung,pontoporponto,aEntusserung. Em lugar de um desessenciamento, temos aqui umfazer-seser.Emvezdeumesvaziamento,empobrecimento,te-mos uma fora que faz o que puramente interior, exteriorizar-se,objetivar-se. E sobretudo, nessa objetivao, o sujeito se reconhe-ce e retorna para si mesmo, conhecendo-se melhor do que antes seconhecia, num enriquecimento, tanto no plano do conhecimento,quanto no da realidade.recorrente,emHegel,caracterizaraEntusserungpelafora que implica. Por isso, traduzimo-la por extruso, apesarAno 1 n 1 jan-jun/2001 -37GORA FILOSFICAde serpalavrainslita, a no ser no vocabulrio da metalurgia ouda geologia. Mas o uso metafrico no sempre uma metbasiseis allo gnos? No encontramos em nosso idioma, outro voc-bulo que transmitisse essa noo de uma exteriorizao feita comfora. (Alis, exteriorizao j corresponde a usserung, e se ne-cessitava de outra palavra para Entusserung). Criticaram severa-mente a audcia de introduzir esse termo, como tambm outros,usados em nossatraduo da Fenomenologia, mas sem conven-cerem, porque no apresentaram sugesto melhor.Citamos trs textos, que nos pareceram emblemticos, emnosso Roteiro Para ler a Fenomenologia do Esprito (Ver a 2edio p.10): note-se a presena da fora, Kraft, em todos eles.1 - Na figura da Bela Alma: # 658: Falta-lhe ( Bela Alma) a fora da extruso, a fora para fa-zer-se coisa e suportar o ser. Na transparente pureza de seusmomentosarde,infeliz,umaassim-chamadabela-alma,consu-mindo-se a si mesma e se evapora como nuvem informe que no arse dissolve2 -A fora do indivduo consiste em ... extrusar-se de seu si e pr-se assim como substncia essente objetiva. Ouem outro lugar, # 488 - O ser-a deste mundo, bem como aefetividade da conscincia-de-si, repousam no movimento em queestaseextrusadesuapersonalidade,produzindoassimoseumundo.Nesses textos, fica claro que a Entusserung requer fora,ou que ela mesma fora.Est tambm explcito seu resultado:Fazer-secoisa,Suportaroser,Pr-secomosubstnciaefetiva , Criar seu mundo. Isso : sair do puro interior para oexterior,objetivar-se,tornar-seumimediato.umprocessodoloroso, pois tem de passar pela negatividade, e mesmo, por umradical dilaceramento, alm do qual se encontra consigo mesmo.aforamgica(Zauberkraft)queotransformaemser(Fenomenologia, # 32).Outra caracterstica, que distingue ainda mais a extruso daalienao,queosujeitosereconhecenessaexteriorizao,emesmo, se conhece melhor depois dela e nela. Dali retorna sobre38 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCODEPARTAMENTO DE FILOSOFIAsi mesmo, enriquecido com as determinaes do exterior, ou daordem do ser. Comprovou o que era em si e para si nesse ser outro,e est agora consigo mesmo reconciliado.Pode-se entender isso melhor, examinando a extruso que a linguagem (# 507 e # 508 da Fenomenologia). So passagensem que alienao e extruso se alternam e incluem, como acimafoidito,tornandodifcilsuadistino.Damosainterpretaoque nos parece coerente, luz de outras passagens. [O sacrifcio de si, que ocorre no servio] uma extruso doser a, (que s na morte se completaria) uma extruso essente,e no uma extruso que retorna conscincia. Alis, tampouco aconscincia lhe sobrevive, nem em si e para si, mas passa so-mente ao seu contrrio no reconciliado. Mas a linguagem oser-a do puro Si; pela linguagem entra na existncia a singulari-dadeparasiessentedaconscinciadesi,deformaqueelapara os outros. O Eu, como este puro Eu, no est ade outramaneira:emqualqueroutraexteriorizao(usserung)estimerso em uma efetividade da qual pode retirar-se: ele refletidosobre si mesmo a partir de sua ao ... deixando jazer inanimadoum tal ser-a imperfeito, onde sempre est demasiado como de-masiado pouco. Porm a linguagem contm o ser-a em sua pu-reza; s expressa o Eu, o Eu mesmo. Esse ser-a do Eu , comoser-a, uma objetividade que contm a verdadeira natureza dele.Vemos, portanto, que a extruso da linguagem expressaoEu, na qual ele est em sua pureza: uma objetividade que con-tmsuaverdadeiranatureza.Estamos,pois,noploopostoEntfremdung, pois, no caso da alienao, uma objetividade queno expressa a verdadeira natureza do Eu, mas, antes, ondeeleno se reconhece, e que o defronta como uma potncia estranha. verdade que, nessa seo da Fenomenologia, a linguagem estnum contexto de alienao, ou seja, opera uma alienao, ao cons-tituiropodereaglriadoMonarca,dizendooqueele;mastrata-se de uma mediao em que a linguagem atua como instru-mento (ou demiurgo) da criao de ummundo.Ano 1 n 1 jan-jun/2001 -39GORA FILOSFICASeria, talvez, a ocasio de observar que, se essalinguagemconstrio Poder do Monarca absoluto, outra linguagem poderdesconstru-lo. Mais do que a linguagem do dilaceramento,queHegelencontrounoromancedeDiderot,LeneveudeRameau, ele poderia ter estudado a linguagem revolucionria dosjacobinos que desconstruiu o poder do Monarca, caracterizan-do-o como Dspota e Tirano - reduzindo a um reles criminosoesse deus (adorado pelos cortesos, que na capela de Versaillesficavam de costas para o altar e voltados para ele) e fazer que ascabeas coroadas fossem cortadas, igual de qualquer inimigoda Repblica, como simples cabeas de couve. Mas seria muitoexigir de Hegel, que passou dos entusiasmos juvenis pela revolu-o francesa, para uma forte antipatia diante do seu desenrolar-se,eterminoucaracterizando-acomopuroTerror.Deminhaparte,quando leio esses pargrafos sobre a Coisa mesma, o que meocorre, como ponto de referncia histrica, so as Revolues fran-cesaeamericana;eimaginoqueHegel,queasconheciamuitobem, no podia esquec-lasquando escreviaesta Seo.A Coisa Mesma.Parece-nos que aexposio mais clarada extruso est na Seo A Coisa Mesma da Individualidadereal em si e para si. uma dialtica rigorosa, que parte do con-ceito interior, no qual tudo parece unido e coerente; da passa obraeexteriorizao,ondesurgemcontradieseconflitosportodos os lados; e enfim, tudo suprassumido no terceiro momen-to dialtico, que restaura a unidade da conscincia eda substn-cia e que recebe o nome de Coisa Mesma. O texto muito com-plexo, de uma excepcional riqueza, at mesmo comparado ao con-junto da Fenomenologia; e como na Linguagem,tambm ter-mina - e encontra seu pleno sentido - nessa comunho de consci-ncias que Hegel chama Esprito. Pode considerar-se tambm aFilosofia da ao hegeliana, desenvolvidabem antes de Blondel.Analis-la, exigiria um longo artigo, ou mesmo, um volu-me. Vamos apenas destacar alguns textos principais. # 401:O agir, precisamente, o puro trasladar da forma do ser, aindano representado, para a forma do ser representado. # 404 : O40 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCODEPARTAMENTO DE FILOSOFIAindivduonopodesaberoqueele,antesdeseterlevadoefetividadeatravsdoagir.Sdaaoaprendeaconhecersua essncia originria.... Seja o que faa ou que lhe acontea,foi ele que fez , e isto ele: ... o traslado de si mesmo da noite dapossibilidade para o dia da presena: e pode ter esta certeza: oque vem ao seu encontro na luz do dia o que jazia adormecidona noite. Assim, o indivduo porque sabe que em sua efetividadenada pode encontrar, a no ser a unidade dela com o prprio indi-vduo, ou somente a certeza de si mesmo em sua verdade, ... ssente em si alegria. # 405: A obra a realidade que a conscin-cia se d. Nela, o indivduo para a conscincia o que em side modo que a conscincia para a qual vem a ser na obra no conscincia particular, mas sim a universal. # 406: Na obra aconscincia vem a ser para si mesma tal como em verdade, edesvanece o conceito vazio [que tinha] de si mesma.Aconscinciaretornasobresimesma,apartirdessemo-mento da pura objetividade,suprassumindo-o e elevando-se aouniversal, que sua verdade. # 409: Mas a efetividade objetiva um momento que na prpria conscincia no tem mais verdadeemsi:averdadeconsistesomentenaunidadedaconscinciacom o agir, e a obra verdadeira somente essa unidade do agir edo ser, do querer e do implementar. # 411: Por conseguinte, naCoisa Mesma, enquanto interpenetrao que se tornou objetiva daindividualidade e da objetividade mesma, veio-a-ser para a cons-cincia seu verdadeiro conceito de si, ou chegou conscincia desua substncia. (Notar o gewordenen que aparece duas vezes nessafrase. Trata-se de um processo, de um vir-a-ser: no algo en-contrado, achado por a, termos que Hegel contrape com firme-za, como Nietzsche contrapunha o que brotava das razes, coma inveno fortuita).Nas passagens acima, a extruso no est nomeada, mas estdescrita e analisada em suas caractersticas. umaobjetivaoouexteriorizaoemqueosujeitoseexprimenoqueele,naqualsereconheceeseconhecemelhordoqueemsuapurainterioridade e donde retorna a si, suprassumindo-a na unidade daindividualidadeedaobjetividade,dainterioridadeedaAno 1 n 1 jan-jun/2001 -41GORA FILOSFICAexterioridade,nouniversalounoEsprito.(#418:Essnciadetodasasessnciasouessnciaespiritual)Estamospois,nosantpodas do desessenciamento (Entwesung) da alienao, se ain-da fosse preciso insistir na diferena e oposio dos dois concei-tos.Conclusoumadasironiasdahistria:umpensadorcomoHegel,que tanto valorizou a ao humana, e que procurou entender o serhumano nas sua criaes - cultura,histria, arte, religio - quedefiniu o homem como ao, linguagem, trabalho, seja estigmati-zadocomo um pensadorabstrato e irrealista: ele que s valoriza-va o concreto e s entendia a tica e os valores como encarnadosna realidade histrica. Considerava a leitura dos jornais matutinoscomo a orao da manh do homem moderno. Parece-me que abs-tratossoseuscrticosedetratores,quenosouberamcaptaroritmodopensamentodialtico,queonicopensamentono-abstrato, pois a identidade da identidade com a no identidade,ou seja, a convergncia, ou melhor, a suprassuno dos opostosnuma unidade concreta, em que a diversidade no dispersa a uni-dade, mas a constitui e enriquece, e a unidade no anula a pletorada diversidade, mas nela se expressa e expande.AforadoEspritostograndequantosuaexteriorizao; sua profundidade s profunda na medida em queousaexpandir-seeperder-seemseudesdobramentoDieKraftdes Geistes ist nur so gross als ihre Asserung : seine Tiefe, nur sotiefealserinseineAuslegungsichauszubreitenundsichzuverlieren getraut. (Fenomenologia # 10).RefernciasTexto alemoPhnomenologie des Geistes, Ed. Suhrkamp, 1984.42 UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCODEPARTAMENTO DE FILOSOFIATraduesPortuguesa:MENESES,Paulo.FenomenologiadoEsprito.Petrpolis: Vozes 2 vols.1991 e 1992, (agora na quarta edio).-Utilizamos a numerao da traduo inglesa de Miller, que d umnmero a cada pargrafo da Fenomenologia, para facilitar as cita-es.Francesas: (HYPPOLITE, LEFREBVRE, LABARRIRE).Italiana: NEGRI.Inglesa: MILLER.Espanhola : ROCES.ComentriosMENESES, Paulo. Para ler a Fenomenologia do Esprito : rotei-ro.2. So Paulo : Loyola, 1992.HYPPOLITE, Jean. Gense et Structure de la Phnomenologie delEsprit de Hegel. Paris : Aubier-Montaigne, 1946.LABARRIRE,P.J.IntroductionuneLecturedelaPhnomenologie de lEsprit. Paris : Aubier-Montaigne, 1979._________.StructuresetMouvementDialectiquedanslaPhnomenologie de lEsprit.Paris : Aubier-Montaigne, 1968.GAVIN,Joseph.EntusserungetEntfremdungdanslaPhnomenologiedelEspritdeHegel. ArchivesdePhilosophie,Paris, p. 555-571, oct.-dc. 1962._________.WortindexzuHegelsPhnomenologiedesGeistes.Bouvier Verlag, Bonn, 1984.DUSSEL, Enrique. tica comunitria. 2. ed., Petrpolis : Vozes,1987.