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Page 1: 47480616

Tiragem: 41267

País: Portugal

Period.: Semanal

Âmbito: Informação Geral

Pág: 38

Cores: Cor

Área: 25,83 x 31,55 cm²

Corte: 1 de 2ID: 47480616 03-05-2013 | Ípsilonassociação que essas populações

fizeram deste mundo antigo à

pobreza e até à sua destruição e

substituição por sinais de

“progresso”.

Ainda assim a pergunta do

regime de Salazar não ficou pelo

caminho. Não existia obviamente

uma casa portuguesa, existiam

sim variadas e complexas

respostas ao meio, determinadas

pelas contingências de vida das

populações. Existia variedade,

complexidade e adequação, uma

associação que o mundo

contemporâneo e a arquitectura

em particular teria muita

dificuldade em concretizar.

O Inquérito à Arquitectura

Regional é hoje uma viagem no

tempo que nos permite ir a

determinados lugares antes de

uma certa entropia se ter

instalado. Essa viagem dá-nos

através das fotografias a

atmosfera, a temperatura dos

materiais, a maneira como a luz

se comportava, dá-nos uma ideia

da paisagem construída sem a

perturbação de alguns elementos

mais recentes cuja presença hoje

temos dificuldade em

compreender. Pode dar também

uma suposta imagem de

harmonia entre o Homem e meio.

Essa ideia de harmonia contudo

provinha das condições de vida

da população, arredadas do que

seria de esperar para os meados

do século XX. Ainda assim até

hoje é possível encontrar estas

fotografias em publicações sobre

arquitectura contemporânea

erudita, que resgatam do

inquérito, legitimamente, um

fascínio pela intemporalidade da

arquitectura vernacular e pela

referida adequação desta à

paisagem.

Hoje pouco se pode visitar dos

aglomerados registados no

Inquérito, salvo raras excepções.

A noção de progresso que

dominou Portugal desde o final

da década de 1960 favoreceu a

sua transformação quase

completa ao ponto do

irreconhecível. O trabalho de

Duarte Belo confirma este facto

quando fotografa, de modo

sistemático, os aglomerados

urbanos, mas revela uma

paisagem menos transformada

onde não existem aldeias ou

cidades. A grande excepção vai

para os lugares que acolheram as

barragens. As paisagens de

Duarte Belo deixam adivinhar um

território que sobreviveu intacto

pelo sua condição de abandono.

O Inquérito à Arquitectura do

Século XX, lançado pela Ordem

dos Arquitectos, coordenado pela

investigadora Ana Tostões, da

qual fiz parte enquanto

coordenador de uma equipa, não

partiu para o terreno à procura

da confirmação de uma tese –

estava, como o trabalho de

Duarte Belo, disponível para

registar o que não conhecia

previamente. Neste sentido em

pouco se assemelha ao Inquérito

à Arquitectura Regional, já que se

Está em exibição na galeria da

Fundação EDP do Porto a

exposição Território Comum

construída a partir do conjunto

de fotografias que integraram a

investigação do Inquérito à

Arquitectura Regional

Portuguesa. Este material foi, nas

últimas décadas, amplamente

divulgado no meio da

arquitectura, mas a exposição,

comissariada por Sérgio Mah,

permite hoje alargar o público

deste património gerado pelos

arquitectos que percorreram

Portugal entre 1955 e 1957. A

exposição é também um

pretexto, nesta crónica, para

revisitar dois trabalhos

complementares, o Inquérito à

Arquitectura Portuguesa do

Século XX (IAP20) e o trabalho do

arquitecto e fotógrafo Duarte

Belo, que publicou em 2011 o

livro Portugal. Luz e Sombra,

também este uma viagem, desta

vez como um palimpsesto gerado

sobre o trabalho fotográfico do

geógrafo Orlando Ribeiro.

Embora o Inquérito à

Arquitectura Regional Portuguesa

seja uma referência da disciplina

a partir do final da década de

1950 (e em particular a partir da

sua publicação em 1961), que

coincide com a crítica

internacional ao Movimento

Moderno, a sua acção de

questionar o processo de

transformação do território não

estava isolada. Entre 1930 e 1940

engenheiros agrónomos do

Instituto Superior de Agronomia

conduziram um Inquérito à

Habitação Rural, trabalho que foi

recentemente reeditado e que

inevitavelmente aborda a

arquitectura portuguesa. O

escrutínio ao meio provinha de

várias disciplinas e olhares.

Em comum encontramos uma

abordagem à “casa portuguesa”,

tema que estimulou uma relação

tensa entre os vários meios

disciplinares e o regime. Mas o

Estado Novo não estava isolado

no desejo de inquirir o seu país à

procura de uma e só uma

identidade. Regimes como o de

Mussolini também apoiaram este

tipo de investigação (o livro

Architettura Rurale Italiana, de

1936, é o melhor exemplo), na

expectativa de poder construir

uma retórica nacionalista apoiada

numa forma perene de expressão

do homem no território – a

arquitectura.

Para uma pergunta algo

primária como a da existência

fundadora de uma casa

portuguesa, como aquela

elaborada pelo Estado Novo, que

justificava o investimento no

Inquérito, os arquitectos

encontraram uma resposta mais

profunda e revelaram a

complexidade que está na base de

tudo o que possui significado

cultural. Não encontraram uma

casa encontraram várias,

distintas de norte a sul.

Encontraram formas de

arquitectura tão diversas como os

espigueiros que se elevam do solo

e as açoteias do Algarve que

rematam as vilas piscatórias.

Fixaram o território num período

de rápida transformação, de

alteração de paradigmas,

permitindo que hoje possamos

ter acesso, numa viagem no

tempo, a esses lugares. Foi

possível registar a paisagem e a

arquitectura popular de um país

que estava a acabar – pela

concentração das populações no

litoral, pela emigração, pela

explosão da actividade da

construção civil na década de

1960, pelo desejo de urbanidade

dos habitantes que ficaram, pela

Arquitectura: interrogar os inquéritos

Não deixa de ser surpreendente que o velho Inquérito sobre a arquitectura popular, hoje passível de um olhar lacónico sobre um passado já distante, continue a alimentar o debate e a merecer vários pontos de vista, enquanto que este outro, sobre o mundo contemporâneo, continue por se expor à complexidade das interpretações do presente

Do mesmo modo que nos anos 1950 vários

arquitectos olharam para um arquitectura

em vias de desaparecimento, entre 2003

e 2004 novas gerações partiram em viagem

para ver o que a arquitectura erudita

do século XX tinha operado no território.

Convidado Ricardo Carvalho*Op

iniã

o

Capela de Nossa Senhora de Guadalupe, Vila do Bispo - Arquivo Orlando Ribeiro e Arquivo Duarte Belo

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Tiragem: 41267

País: Portugal

Period.: Semanal

Âmbito: Informação Geral

Pág: 39

Cores: Cor

Área: 10,31 x 31,97 cm²

Corte: 2 de 2ID: 47480616 03-05-2013 | Ípsilon

inevitavelmente, porque como

manifestação cultural que

também é manifesta-se de um

modo complexo e em vários

estratos.

O olhar retrospectivo de um

Inquérito não serve apenas

propósitos de investigadores.

Como o Inquérito à Arquitectura

do Século XX pretendeu-se

partilhar o trabalho colectivo de

uma comunidade. Comunidade

essa que, provavelmente, antes

da realização destes trabalhos

não estava atenta ao seu valor e

eventual relevância fora da vida

quotidiana. O Inquérito sobre o

século XX não teve ainda uma

exposição à sua altura. Nem um

catálogo. Há centenas de

fotografias em arquivo à espera

de uma exposição que as revelem

como merecem.

Não deixa de ser surpreendente

que o velho Inquérito sobre a

arquitectura popular, hoje

passível de um olhar lacónico

sobre um passado já distante,

continue a alimentar o debate e a

merecer vários pontos de vista,

enquanto que este outro, sobre o

mundo contemporâneo, continue

por se expor à complexidade das

interpretações do presente. Será

esta apenas mais uma

manifestação do medo da não

inscrição que o filósofo José Gil

refere no livro de 2004 Portugal

Hoje. O Medo de Existir?

*Ricardo Carvalho é arquitecto, professor universitário, curador e critico de arquitectura

realizou num país em democracia

e, nesse período, capaz de

recorrer a apoios europeus para

projectos de investigação. Do

mesmo modo que nos anos 1950

vários arquitectos se ocuparam

em olhar para um arquitectura

em vias de desaparecimento,

entre 2003 e 2004, novas

gerações partiram em viagem (em

brigadas) para ver o que a

arquitectura erudita do século XX

tinha operado no território.

Muitas das obras registadas são

de autores desconhecidos, muitas

outras foram amplamente

publicadas dentro e fora de

Portugal. Muitas obras não irão

permanecer, outras estão

profundamente alteradas e o seu

significado original difícil de

descodificar. Mas aquilo que

emerge desse trabalho é um

conjunto de obras qualificadas

em estão dispersas por todas as

décadas do século XX.

São sedes do Banco de

Portugal, estações de Caminho-

de-Ferro, fábricas, escolas,

tribunais, barragens, bairros,

casas, universidades,

monumentos, entre muitos

outros programas. Este foi o

século que procurou romper com

uma ideia de tradição e que

depois se reconciliou com a

mesma - e o Inquérito à

Arquitectura Regional Portuguesa

foi disso sinal. Foi o século que

hesitou em afirmar se o projecto

da modernidade estava em aberto

ou se estava já superado. A

arquitectura reflectiu tudo isso,

Fotografia de Orlando Ribeiro de 1944/ fotografia de Duarte Belo. Idanha-a-Nova