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  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 106-137

    SOCIOLOGIAS106

    DOSSI

    Resumo

    Este artigo apresenta um modelo geral que explica o surgimento, a avaliao e o tratamento das questes do risco. Esse modelo salienta a natureza poltica e controversa do processo e foca-se na noo de incerteza como uma caracterstica fundamental de qualquer questo de risco. O artigo sugere, ainda, algumas razes sociolgicas de preocupao, que podem auxiliar na compreenso dos motivos subjacentes s controvrsias sobre o risco e seus impactos polticos.

    Palavras-chave: Risco. incerteza. vulnerabilidade.

    The emergence of risk issues1

    Abstract

    The paper presents a general framework that accounts for the emergence, as-sessment and management of risk issues. This framework stresses the contended and political nature of the process, and it focuses on the notion of uncertainty as a key characteristic of any risk issue. The paper also puts these processes into the wider context of social and state transformations, in order to suggest that they can only be

    O surgimento das questesde risco

    Olivier BOrraz*

    * Centre de Sociologie des Organisations, Sciences-Po/CNRS, Paris, France.1 Traduo Liana v. Fernandes (iL -UFRGS). E-mail: [email protected]; Reviso tcnica de Adriano Premebida.

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 106-137

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    understood as: 1) a means of politicizing new forms of vulnerability by calling unto the state for more protection and security; 2) a means of transforming governing practices, through a recourse to science-based approaches and depoliticized policy instruments.

    Keywords: Risk. Uncertainty. Regulatory state.

    1 introduo

    Nos ltimos trinta anos, houve um nmero expressivo de

    pesquisas nas cincias sociais dedicadas aos riscos am-

    bientais e sade (para uma viso geral: Bourg et al.

    2013). O fato de que esses riscos so construdos social-

    mente j amplamente reconhecido. Poucas pesquisas

    voltadas sociologia dos riscos ainda endossariam a distino entre ris-

    cos objetivos e subjetivos, ou reais e percebidos. Contudo, o conceito de

    construo social varia muito de um autor para outro (Lupton, 1999). Essa

    diversidade reflete concepes contrastantes dos processos e estruturas

    sociais. isso, por sua vez, leva pesquisadores a propor distintos instrumen-

    tos com os quais a dimenso social do risco descrita e, em alguns casos,

    representada. Pode-se ilustrar melhor este ponto com quatro abordagens

    dominantes na literatura: o paradigma psicomtrico; os estudos de cincia

    e tecnologia; os estudos culturais; e os estudos de governamentalidade.

    O paradigma psicomtrico utiliza o termo construo social para

    referir-se soma de percepes individuais (Slovic, 2000). Em uma fa-

    mosa citao, Paul Slovic afirmou que, enquanto o perigo real, o risco

    socialmente construdo, querendo dizer com isso que apenas atravs

    da lente das representaes individuais poderia um determinado perigo

    tornar-se um risco. Esse paradigma se desenvolveu em um campo de pes-

    quisa inteiramente dedicado a medir percepes de risco, com o intuito

    de alcanar no apenas uma melhor compreenso do surgimento e da

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    amplificao dos mesmos, mas tambm maior eficcia em estratgias de

    comunicao de riscos (Lfstedt e Frewer, 1998; Renn, 2008). Os estudos

    de cincia, tecnologia e sociedade (CTS) observam a construo social no

    mbito das controvrsias sociotcnicas que se desenvolvem em torno de

    determinado objeto: quando uma tecnologia passa a ser contestada, ela

    se torna um risco; ou seja, a controvrsia revela distintos pontos de vista

    e reivindicaes de conhecimento sobre a natureza do objeto, cuja soma

    o qualifica como risco (p. ex. irwin, 2001; Rip, 1987; Wynne, 1996).

    Consequentemente, esse ramo de pesquisa desenvolveu tcnicas e pro-

    cedimentos para envolver os vrios atores (stakeholders), aumentar a par-

    ticipao ou ampliar a base de conhecimento na formulao de polticas

    para alm dos estritos dados cientficos (Callon et al., 2009). Enquanto

    isso, os estudos culturais focam-se na estrutura de grupos sociais e em

    como esta determina a definio por cada grupo de um determinado por-

    tflio de risco; por exemplo, ameaas existncia e identidade do grupo

    (Douglas; Wildavsky, 1982). Nesse caso, as estruturas sociais esto amar-

    radas a uma cultura na forma de um conjunto de valores e significados.

    Os estudos de governamentalidade, por sua vez, apontam para o papel

    dos instrumentos, mtodos e mecanismos na transformao de um dado

    objeto, previamente incerto, em uma entidade mensurvel e computvel,

    isto , em um risco objetivo (Dean, 2010; Ewald, 1991; OMalley, 2004).

    Essas quatro abordagens compartilham da mesma premissa de que o

    risco no existe l fora, independente de nossas mentes, esperando ser me-

    dido (Slovic, 2000). Mas elas diferem na maneira como o risco constru-

    do. E, o mais importante, ainda que concordem em que as construes

    sociais devam ser analisadas como um processo, elas geralmente deixam

    de descrever o processo em si. Ao invs disso, tendem a dar nfase seja

    para o papel das caractersticas originais do objeto (o paradigma psico-

    mtrico), para o confronto entre distintos atores (stakeholders) (CTS), para

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    diferentes estruturas grupais (estudos culturais), ou para a importncia dos

    profissionais (governamentalidade); sugerindo, assim, respostas para por

    qu em vez de como surgem as questes de risco. Numa tentativa

    de fazer uma abordagem sinttica, Deborah Lupton afirmou: A tarefa de

    construir um objeto de risco essencialmente um processo retrico, reali-

    zado em textos especializados ou nas esferas pblicas, e geralmente envol-

    ve a construo de redes de objetos de risco heterogneos (Lupton, 1999).

    Mas, mais uma vez, aprendemos muito pouco sobre o processo real em

    si e suas dinmicas.

    Os tipos de objetos de risco cobertos por essas abordagens variam

    de questes altamente difundidas (p. ex., energia nuclear) a objetos alta-

    mente tcnicos e de pouca visibilidade (p. ex., produtos qumicos). isso,

    de certo modo, explica suas diferenas. No que segue, nosso interesse

    est voltado, principalmente, para objetos construdos na agenda poltica

    como riscos coletivos, em outras palavras, como questes de risco (Leiss,

    2001). Exemplos no faltam, desde organismos geneticamente modifica-

    dos (OGM) a radiofrequncias, resduos nucleares e amianto, para citar

    alguns. Em sua maioria, esses so riscos sade ou ambientais. Sua pro-

    eminncia na agenda de governos em toda Europa, Amrica do Norte e

    outras partes do mundo pode ser explicada em parte com a ajuda das

    abordagens mencionadas anteriormente.

    Por conseguinte, pesquisadores da percepo do risco apontaro as

    caractersticas desses objetos, particularmente a falta de familiaridade e as

    potenciais temidas consequncias, para explicar por que eles se tornaram

    objetos de risco. Mas isso no explica as origens dessas caractersticas e

    pressupe que elas sejam inerentes ao objeto. Pesquisadores de CTS enfa-

    tizaro o papel das controvrsias sociotcnicas e das diferentes reivindica-

    es de conhecimento feitas por stakeholders. Eles insistiro no fato de que

    esses objetos oferecem mltiplos pontos de vista sobre diferentes conjuntos

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    de valores, interesses e pretenses de verdade, e que essa multiplicidade

    a chave para explicar sua transformao em um risco. Mas h muitas poten-

    ciais candidatas a controvrsias sociotcnicas, ainda que, aparentemente,

    apenas um pequeno nmero suceda. Quanto abordagem da governa-

    mentalidade, esta enfrenta grandes dificuldades em lidar com a produo

    do risco, quando esse processo no est diretamente vinculado a um grupo

    profissional, conjunto de instrumentos tcnicos ou organizao.

    De forma mais geral, nenhuma das trs abordagens responde a per-

    gunta: por que alguns objetos alcanam o status de questo do risco e

    outros no? A Teoria Cultural a nica que aborda esse tema, mas custa

    de negligenciar a natureza do objeto em si. Uma vez que o importante

    entender como um dado objeto percebido como ameaa existncia

    de um grupo, qualquer coisa pode ser um risco; mas como um objeto re-

    almente alcana esse status permanece um mistrio. Alm disso, a maio-

    ria dos pesquisadores no aceita a hiptese de que qualquer coisa pode

    se tornar objeto de risco

    H, claro, algumas excees falta de interesse nos processos: Hil-

    gartner (1992), abordando a construo de objetos de risco; Wynne (1996),

    sobre polmicas ambientais; Borraz (2007a), sobre os riscos como proble-

    mas pblicos; Hood et al. (2001), sobre regimes de regulao de riscos;

    Rothstein et al. (2006) sobre colonizao de riscos; e Power (2004), sobre

    o gerenciamento de risco de todas as coisas oferecem observaes teis.

    Contudo, falta ao campo de estudos de risco uma abordagem integradora

    que fornea uma descrio geral de como uma atividade se qualifica como

    risco e de como ela gerenciada e, o mais importante, que sugira uma

    explicao de por que esses processos tornaram-se to corriqueiros atual-

    mente. De fato, enquanto a construo social de questes de risco oferece

    observaes importantes sobre como grupos sociais ou organizaes defi-

    nem os riscos, o processo em si deve tambm ser explicado, uma vez que

    o mesmo faz algo ao objeto de risco: ele constitui o risco.

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    Neste artigo, pretendemos atingir dois objetivos. O primeiro ofere-

    cer um modelo analtico que possa ser usado para explicar o surgimento

    de questes de risco. Esse modelo descreve um processo dinmico atra-

    vs do qual um determinado objeto se torna um risco na agenda poltica.

    O segundo sugerir que tal modelo pode de fato ajudar-nos a alcanar

    um melhor entendimento das causas subjacentes ao surgimento de ques-

    tes de risco. Em especial, na medida em que permite contextualizar o

    processo de surgimento, o modelo oferece percepes sobre as causas

    sociolgicas mais profundas da construo social das questes de risco.

    2 A dinmica social das questes de risco

    A maioria dos autores no campo dos estudos do risco reconhece

    que o risco no um trao inerente ou objetivo de uma atividade. O risco

    uma qualidade que vem a ser associada a uma atividade no desenvol-

    ver de um processo de contestao. Durante esse processo, incertezas

    so levantadas com relao atividade. medida que essas incertezas

    se acumulam, convertem-se em um risco. O processo de converso

    controverso, uma vez que o que est sendo contestado no so apenas os

    potenciais perigos sade ou ao meio ambiente, mas tambm as formas

    como a atividade conduzida, utilizada e controlada; como as decises

    a respeito da atividade so tomadas; como as questes de sade so tra-

    tadas. Nesse estgio, a capacidade de determinada autoridade de agir

    sobre o risco ainda no decorrente da converso de incertezas em risco;

    apenas sugere-se que algo deve ser feito para reduzi-lo.

    Um conceito essencial nesse processo de converso a incerteza.

    H tantas definies para o conceito de incerteza quanto as h para o de

    risco. Alguns autores estabelecem um delineamento claro entre os dois:

    economistas (Knight, 1921) ou pesquisadores de governamentalidade

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    (OMalley, 2004), por exemplo, distinguem risco (calculvel) de incerteza

    (incalculvel). No outro extremo, alguns acadmicos utilizam ambos sem

    distines (p. ex., Beck, 1998; Giddens, 1998). Alguns autores fazem a

    distino entre incerteza, indeterminao e ignorncia (Wynne, 1992;

    Funtowicz e Ravetz, 1992), incerteza referindo-se falta dos dados ne-

    cessrios para estabelecer um ndice de probabilidade, indeterminao

    falta de conhecimento sobre elos e redes causais, e ignorncia falta de

    conhecimento relacionado ao que no se conhece (as incgnitas desco-

    nhecidas). Essa distino til por sugerir uma variedade de formas de

    incerteza, quando especialistas geralmente tendem a focar-se somente no

    problema da calculabilidade. Contudo, ela no capta vrias outras formas

    de incerteza, notadamente as estudadas pela sociologia organizacional

    (p. ex., Crozier e Friedberg, 1977; Clarke, 1989; Schwarz e Thompson,

    1990; Power, 2007), com seu foco na dificuldade de antecipar ou dar

    sentido ao comportamento atual ou futuro de um ator. Outros autores

    diferenciam complexidade, incerteza e ambiguidade (Renn, 2008), com

    a incerteza referindo-se falta de conhecimento, enquanto ambiguidade

    remete a diferentes conjuntos de valores associados atividade de risco.

    No entanto, essa distino dificilmente se pode aplicar empiricamente,

    uma vez que, na maioria dos casos, incertezas cientficas e sociais esto

    entrelaadas, ou seja, incertezas e ambiguidades andam juntas.

    Pensamos ser til reter aqui apenas dois conceitos - risco e incerte-

    za - e adotar a definio de van Asselt da ltima como referida falta de

    conhecimento, assim como dificuldade de prever eventos, resultados

    e consequncias futuras (van Asselt, 2000). Portanto, enquanto o risco

    administrvel, a incerteza no . Administrar um objeto repleto de in-

    certezas exige o uso de tcnicas, procedimentos e instrumentos que as

    convertero em dimenses sobre as quais se pode agir. Os modelos de

    risco figuram entre essas tcnicas: referimo-nos ao conjunto de padres,

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    protocolos e diretrizes que definem como objetos de risco devem ser es-

    timados, avaliados, gerenciados, comunicados e monitorados.

    Mais precisamente, a incerteza pode ser compreendida em termos

    de conhecimento e controle.

    Conhecimento refere-se tanto aos traos cientficos e tcnicos de uma

    dada atividade (o que se conhece e o que se desconhece relacionados par-

    ticularmente a mecanismos causais) quanto a elementos de interao social

    relacionados atividade. Esses ltimos podem ser decompostos em ante-

    cipao (a possibilidade de prever o comportamento de um ator e agir de

    acordo) e confiabilidade (o grau de confiana que se tem de que um ator se

    comportar da forma como deveria ou como disse que faria). Por exemplo,

    no caso dos alimentos geneticamente modificados ou da telefonia celular,

    as incertezas esto relacionadas aos possveis efeitos dessas tecnologias

    sade ou ao meio ambiente, mas tambm ao comportamento dos produto-

    res (agroindstrias ou operadoras de telefonia celular), usurios (agricultores

    ou clientes) e controladores (servios pblicos ou agncias reguladoras) ou

    seja, aqueles indivduos, grupos ou organizaes cujas aes ou decises

    contribuem para a atividade. Se essas aes ou decises no so compre-

    ensveis ou previsveis, se elas no podem ser antecipadas com um grau

    moderado de confiana, ento a atividade pode ser interpretada como algo

    que apresenta um risco claro, desde que a incerteza traga implicaes

    para algo que um indivduo ou grupo valoriza (Rosa, 2003).

    Controle refere-se capacidade de dominar a atividade e seus

    efeitos: pode-se influenciar a atividade? Ela pode ser monitorada? Seus

    efeitos podem ser limitados? A ideia de controle permeia a maioria das

    recentes crises e escndalos ambientais e de sade na Europa. Estes tm

    sido frequentemente explicados por uma falta de controle por parte das

    autoridades pblicas sobre atividades que se mostraram perigosas. Con-

    trole, de um modo geral, est relacionado a problemas de confiana

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    (Giddens, 1990), sobretudo confiana em autoridades pblicas (Schwarz

    e Thompson, 1990; Freudenburg, 1993; Wynne, 1996). Pode-se confiar

    nesses rgos para controlar o comportamento de empresas s quais foi

    delegada certa capacidade de autorregulao? Eles possuem os recursos

    necessrios para monitorar efetivamente empresas ou indivduos envol-

    vidos em atividades de risco? Eles tm a disposio de agir, caso surja um

    problema que possa causar dificuldades sociais ou econmicas?

    Portanto, se quisermos compreender a importncia de fatores de

    risco, devemos observar no apenas as incertezas cientficas ou tcnicas e

    como elas surgem, mas tambm as incertezas sociais e polticas. sob essa

    tica que uma atividade se qualifica ou no como um risco.

    O risco tornou-se a forma de discurso pblico, pelo qual se d relevncia pblica tecnologia e inovao, delimitada em discursos institucionais tais como do governo, da mdia, jurdico e comercial, todos derivados do cientfico. Contu-do, alegaes de risco so endemicamente, e cada vez mais, contestadas (Wynne, 2002).

    possvel identificar cinco estgios principais nesse processo de qua-

    lificao. Esses estgios no so, de forma alguma, designados como fases

    metdicas pelas quais uma atividade deve passar para qualificar-se como

    risco. Eles servem para indicar os momentos chave do ciclo de vida de

    determinada questo de risco. Eles podem facilmente se sobrepor. Os

    ciclos de realimentao (feedback loops) so sempre possveis e podem

    ocorrer em qualquer ordem. O que importa ter em conta a natureza

    dinmica e controvertida de todo o processo.

    2.1 Extrao

    Para que uma atividade seja vista como portadora de risco, ela deve

    ser extrada de seu meio natural, familiar ou comum. Em outras palavras,

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    ela deve perder sua aparente noo de familiaridade e ser vista como

    anormal, inadequada, ameaadora.Embora o tema da familiaridade tenha sido muito estudado por au-

    tores que trabalham com o paradigma psicomtrico (Slovic, 2000), pou-cas obras explicaram de fato a forma como uma substncia perde sua familiaridade. Contudo, em muitos casos, a transio para o status de risco se inicia com um evento (Kasperson et al., 1988) que marca o que era, at ento, familiar ou despercebido, como sendo, subitamente, no familiar, perceptvel (por diferentes sentidos), uma fonte de questiona-mentos e, consequentemente, ansiedade. Muitas atividades de risco pas-saram muito tempo despercebidas, at que um evento atrasse ateno para elas. Geralmente, o evento introduz uma ruptura na normalidade do desenrolar de acontecimentos, uma quebra de rotina que atrai ateno.

    O evento pode assumir diversas formas: um acidente, uma catstro-fe, um movimento social, um erro organizacional, uma deciso poltica, um artigo jornalstico, etc. Qualquer que seja a natureza do evento, ele introduz uma ruptura na ordem normal das coisas: a atividade no mais vista como familiar ou sob controle, mas, pelo contrrio, como fora de controle, no familiar, ou seja, incerta. A partir de ento, outras incertezas podem ser adicionadas atividade, outras questes podem ser levan-tadas, novas dvidas podem ser expressas. Estas estaro relacionadas maneira como a atividade funciona, seus efeitos sobre a sade ou o meio ambiente, mas tambm ao comportamento de indivduos, grupos e orga-nizaes que comandam a atividade.

    Na maioria das, se no todas, questes de risco, pode-se rastrear o momento em que a atividade perde sua familiaridade e, repentinamente, torna-se uma fonte de incerteza. Embora esse estgio tenha muitas vezes sido negligenciado, ele importante, na medida em que pode servir para revelar alguns dos problemas latentes que contribuem para extrair uma atividade de seu meio habitual. De fato, raramente a atividade em si que provoca pre-

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    ocupao: pelo contrrio, outros elementos podem contribuir para que uma atividade se torne subitamente notvel e fonte de questionamentos.

    A extrao pode, tambm, reforar a responsabilidade de autorida-

    des pblicas e privadas por atrair a ateno para uma atividade, ao invs

    de simplesmente apontar, como geralmente o caso, para o papel dos

    mesmos de sempre, isto , ativistas, ONGs ou a mdia. Por exemplo, erros

    organizacionais, muito mais do que ativistas ambientais, podem contribuir

    para que uma atividade se torne repentinamente visvel (Perrow, 1984).

    vale observar, tambm, casos em que realizaram-se esforos para descrever

    a atividade como familiar ou natural: como o caso de cultivos genetica-

    mente modificados (Levidow e Marris, 2001) ou resduos nucleares (Barthe,

    2006). medida que a atividade perde sua familiaridade, esses esforos

    so revelados e amplificam o risco: ou seja, eles contribuem para a ideia de

    que nunca houve algo natural acerca dessa atividade, pelo contrrio, opera-

    dores privados tentaram, atravs de manipulaes, projetar sua tecnologia

    como fazendo parte do curso normal das coisas, elas sempre foram assim.

    Portanto, a perda da familiaridade um processo complexo pelo

    qual se pode observar a interao de diferentes variveis no momento em

    que uma atividade atravessa o limiar do familiar para o no familiar. Mui-

    to frequentemente, esse processo esteve limitado ao papel de ativistas e

    empreendedores do risco. Na verdade, entram aqui muitos outros fatores

    que precisam ser avaliados.

    2.2 Projeo

    Uma vez extrada, uma atividade pode ser projetada para um marco

    mais amplo de contestao, onde encontrar seu lugar entre outras ques-

    tes de risco e ganhar maior relevncia. A projeo o resultado de um

    processo dinmico que coloca duas ou mais organizaes em oposio

    em torno da atribuio de determinadas incertezas atividade. Enquan-

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    to algumas organizaes tentam enquadrar a atividade como um risco,

    apontando suas diversas incertezas, outras procuram demonstrar que: ela

    inofensiva; no h motivo para preocupaes; ela est sob controle e

    segura. Um risco jamais surge sem esse processo de confronto entre

    organizaes, cujas dinmicas estimulam a projeo da atividade para um

    contexto mais amplo de disputa.

    No desenrolar dessa dinmica, a atividade passa por diversas mudan-

    as. Primeiro, mais incertezas so atribudas a ela: no apenas cientficas

    ou tcnicas, mas tambm sociais, econmicas, polticas e jurdicas. Orga-

    nizaes trocam constantemente uma incerteza por outra, para defender

    suas opinies. Segundo, o risco tornado visvel: ele pode ser medido,

    cientistas intervm com evidncias, utilizam-se mecanismos para torn-

    lo perceptvel, d-se destaque s consequncias e, muitas vezes, trata-se

    de personific-las atravs de vtimas que desenvolveram problemas de

    sade. Terceiro, a atividade removida de seu contexto local original e

    torna-se um problema nacional: perde seus traos originais e torna-se

    uma atividade de risco genrica; associada a outros riscos, incorporada

    a crises precedentes e projetada como mais um caso de negligncia ou

    de interesses econmicos priorizados s custas dos interesses da sade.

    A multiplicao de protestos tem dois efeitos mais amplos. Primeira-

    mente, estimula o surgimento de organizaes do movimento social em

    escala maior do que a dos primeiros protestos locais, e essas organizaes

    passam a pressionar a insero da questo na agenda poltica nacional.

    Essas organizaes, muitas vezes, restringiro o risco a seu significado mais

    simples, deixando de lado os motivos que deram incio aos protestos lo-

    cais, vinculando-o, ao mesmo tempo, a outras questes de risco, a fim de

    sugerir um conjunto homogneo de problemas que tm a mesma origem

    e exigem o mesmo tipo de ao (tal como o princpio da precauo). De

    certa forma, ao projetar a questo como apenas outro caso de risco

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    sade ou ao meio ambiente, esses movimentos sugeriro uma nova forma

    de familiaridade: a telefonia celular compartilhar dos traos tpicos dos

    cultivos geneticamente modificados, do amianto ou da energia nuclear.

    isso tornar mais fcil, sobretudo para a mdia, apresentar a questo e,

    para o pblico, compreender imediatamente o que est sendo ameaa-

    do. Segundo, ela atrai a ateno de autoridades pblicas e agentes pri-

    vados: eles percebero os potenciais danos que uma crise causaria sua

    atividade ou sua legitimidade. Ao antecipar uma nova crise ou escndalo,

    eles se protegero com a adoo de medidas restritivas ou mecanismos

    de transferncia de culpa (Hood e Rothstein, 2001). Em alguns casos, esse

    comportamento pode, na verdade, aumentar a polmica e fornecer mais

    argumentos aos oponentes.

    Logo, a projeo um processo de politizao: a questo se torna

    poltica em sua natureza, atores a pressionam sobre a agenda pblica, h

    interesses divergentes em jogo, com debates sobre quem est no comando

    ou responsvel, quais so os benefcios da atividade, etc. Alm disso,

    medida que a atividade projetada sobre um conjunto maior de questes

    controversas, ela se insere em um marco principal que conferir um senti-

    do mais amplo para a questo em jogo: globalizao, desregulamentao,

    aquecimento global, o ritmo acelerado da cincia e da tecnologia... todas

    so possveis explicaes para o surgimento de riscos em geral, e particular-

    mente do risco dessa atividade. Retomando, isso, na verdade, confere ati-

    vidade uma nova forma de familiaridade. Em discursos pblicos e debates,

    essa familiaridade parecer quase autoevidente, com os diferentes partidos

    concordando que essas questes compartilham de caractersticas ou causas

    comuns, ou, ao menos, deveriam ser tratadas assim.

    2.3 Especializao

    Uma vez que um objeto foi qualificado como risco e encontrou

    seu lugar na agenda poltica, os agentes pblicos precisam encontrar uma

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    soluo. Aps os escndalos e crises de sade que ocorreram em toda

    Europa durante os anos 1990, tornou-se boa prtica pedir a peritos cien-

    tistas que avaliem o risco. Muitas vezes, essa consultoria ocorre em uma

    forma organizacional especfica: o departamento de vigilncia da sade.

    Mas tambm j foram organizados comits cientficos ad hoc em deter-

    minadas circunstncias.

    A convocao de especialistas sugere que a essncia do problema

    estritamente cientfica, ou seja, que a polmica pode ser resolvida no

    campo cientfico, com argumentos slidos, dados robustos... e um plano

    consistente de comunicao. Essa f na cincia para resolver as questes

    mais complexas compatvel com o objetivo de despolitizar problemas

    perversos (Rittel e Weber, 1973). Comumente usada em muitos pases,

    essa prtica tambm defendida pela Comisso Europeia e organizaes

    internacionais como a Organizao Mundial da Sade e a OCDE.

    Contudo, muitos fatores influenciam a forma como comits espe-

    cializados analisam os dados, sobretudo as incertezas relacionadas a um

    objeto especfico. Esses fatores incluem: o perfil dos especialistas (espe-

    cialmente suas disciplinas); o status do comit (independente vs. parte

    de um rgo governamental); a questo levantada pelos formuladores de

    polticas (uma simples avaliao do risco ou a formulao de recomen-

    daes de polticas); os dados examinados (estudos revisados por pares;

    resultados no revisados por pares, evidncias anedticas); a participao

    de representantes leigos ou de partes com interesses na questo (stakehol-

    ders); os princpios que embasam a avaliao do risco (anlise de custo-

    benefcio; anlise de risco-benefcio; compensao de risco; princpio da

    precauo). Os fatores tambm podem estar relacionados ao objeto em

    si, ao marco jurdico pelo qual regulado ou ao contexto em que os es-

    pecialistas devem fazer sua avaliao.

    Sendo assim, muito frequentemente, e ao contrrio da crena de

    que a cincia pode enfrentar o poder, comits especializados entram em

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 106-137

    SOCIOLOGIAS120

    desacordo. isso foi documentado em casos como o do embargo francs

    carne britnica (Setbon, 2004; Borraz et al., 2006), da rotulao de

    OGMs e da clonagem animal na Europa e nos EUA (Gaudillire e Joly,

    2006), ou da telefonia celular entre diferentes pases europeus (Borraz e

    Salomon, 2007). Em todos esses casos, pode-se observar uma tenso en-

    tre um esforo para reduzir todas as incertezas a riscos (ou ento descart-

    las como irrisrias) e outro para explor-las a fim de se obter uma viso

    mais clara de um problema complexo repleto de incgnitas.

    Na maioria dos pases europeus, desde as crises e escndalos dos

    anos 1990 e da reforma dos procedimentos de avaliao de riscos, o sa-

    ber perito tem estado firmemente em mos das cincias fsicas e da vida,

    em um processo hermtico no qual rara a presena de stakeholders, e

    s se examinam dados revisados por especialistas. O objetivo da avaliao

    de risco nesse contexto examinar somente as incertezas cientficas e

    decidir se elas apresentam risco, justificam uma abordagem de precauo

    ou se so insignificantes. Durante esse processo, todas as demais incerte-

    zas so deixadas de lado, isto , todas as que inicialmente contriburam

    para que a atividade se tornasse um risco. Esse o caso, particularmente,

    das incertezas sociais e polticas (por exemplo, a forma como a atividade

    executada, controlada ou monitorada); os motivos que levaram a po-

    pulao a protestar tambm so ignorados (por exemplo, perturbaes

    ou preocupaes estticas). Ademais, espera-se que os especialistas cien-

    tficos convertam as incertezas em riscos, mesmo quando ainda restam

    muitas incgnitas desconhecidas. A especializao, portanto, alimenta a

    controvrsia cientfica, pois cientistas e outros especialistas no includos

    no processo argumentaro que os dados esto incompletos ou que as

    interpretaes so equivocadas, a fim de sugerir a existncia de um risco

    maior do que os especialistas gostariam de admitir.

    Ainda assim, uma vez que a atividade tenha sido avaliada por espe-

    cialistas, perde-se a maioria das incertezas que a qualificavam como risco

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 106-137

    SOCIOLOGIAS 121

    e ela se torna uma questo puramente cientfica. O paradoxo que, em

    muitos casos, esse carter aumenta, ao invs de reduzir, a natureza con-

    trovertida do problema (precisamente pelas razes mencionadas anterior-

    mente). Mas, a partir de ento, a polmica tende a focar-se na cincia,

    incentivada por avaliaes divergentes dos dados disponveis, alm de

    negaes da competncia dos especialistas (que sero acusados, ou de

    trabalhar sob influncia de interesses privados, ou de serem tendencio-

    sos, ou de no terem experincia profissional). Tanto defensores quanto

    oponentes organizaro seu debate em torno de questes cientficas, de-

    senvolvendo uma polmica cientfica e deixando de lado todos os outros

    elementos que fizeram parte do surgimento do risco.

    2.4 Deciso dos riscos

    Tendo a questo perdido a maioria das incertezas que a qualifica-

    vam como um problema pblico, isso d certa liberdade aos tomadores

    de deciso. Eles basearo sua deciso na avaliao cientfica dos riscos,

    qual somaro outros aspectos que julgam dignos de considerao. Em

    muitas circunstncias, eles sero tentados a focar-se no risco institucional

    (Rothstein et al., 2006), no risco reputao (Power, 2007) ou no risco po-

    ltico (Borraz, 2008), ao invs de priorizar o risco social (Leiss, 2001). Em

    outras palavras, tomadores de deciso gerenciaro as consequncias de

    sua deciso, ao invs das causas do risco inicial. Eles tendero a transferir

    ou a evitar qualquer tipo de culpa, evitar uma nova crise ou a desestabili-

    zao de um setor econmico, e preservar sua credibilidade.

    isso pode parecer superssimplificado, mas os traumas causados por

    crises de sade, como os escndalos do sangue contaminado e dos asbes-

    tos na Frana, a crise da vaca louca no Reino Unido, Alemanha e Unio

    Europeia, crises de alimentos na Blgica, para dar apenas alguns exem-

    plos, foram profundos. Esses traumas foram sentidos tanto por agentes

    pblicos (forados a renunciar, derrotados em eleies ou julgados pela

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 106-137

    SOCIOLOGIAS122

    justia) quanto por interesses privados (com perdas substanciais em casos como o da doena da vaca louca para a indstria pecuria, assim como para varejistas). Portanto, tanto agentes pblicos quanto atores econmi-cos tendem a antecipar uma nova crise frente s crescentes evidncias de um possvel escndalo, e agir em conformidade. isso significa dar mais im-portncia aos sinais de agitao poltica e possibilidade de um novo es-cndalo do que evidncia cientfica que sugere pouco ou nenhum risco. Num contexto em que a legitimidade do Estado fora questionada durante crises precedentes, isso pode fazer sentido; embora tambm confirme, sob a tica da opinio pblica e da mdia, que a atividade questionada apresenta, de fato, um risco, ao invs de demonstrar o oposto.

    2.5 Gerenciamento dos riscos

    Nesse ponto, os muitos motivos pelos quais a atividade foi inicialmen-te contestada perderam-se pelo caminho. Mas eles no desapareceram. Depende de atores no estatais (empresas, ONGs, governos locais) geren-ciar, de fato, o risco. isto , proporcionar solues para todas as incertezas que contriburam para o surgimento do risco. Eles faro isto, envolvendo-se em aes para colocar a atividade novamente sob controle, criaro regras e nveis de responsabilizao, organizaro monitoramento, oferecero su-perviso de terceiros, etc. isso pode assumir a forma de normas e padres privados, contratos assinados entre diferentes partes ou procedimentos de garantia de qualidade. Essas aes, muitas vezes, dependem de conheci-mento especializado, particularmente do cientfico, mas tambm introdu-ziro conhecimento leigo e emprico. Embora venham a basear-se em nor-mas e regulamentos pblicos existentes, essas aes as suplementaro com regras e compromissos voltados a gerar confiana e previsibilidade entre as diferentes partes envolvidas. Quer dizer, atores no estatais encarregam-se de reduzir a incerteza vinculada atividade, envolvendo-se em comporta-mentos que produzem mais inteligibilidade e conhecimento.

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 106-137

    SOCIOLOGIAS 123

    Esse papel de atores no estatais, muitas vezes, tem passado desper-

    cebido, embora seja, de fato, muito importante para a compreenso de

    como os riscos so efetivamente gerenciados. Em especial, ajuda a enten-

    der como se negociam os acordos envolvendo segurana e a busca de re-

    sultado econmico, acordos que afetam a eficcia das solues concebidas

    (Gilbert, 2007). De certa forma, se a atividade foi inicialmente extrada de

    seu meio usual para tornar-se um risco, o efetivo gerenciamento do risco

    tenta coloc-la sob controle. Ela raramente ser vista como usual novamen-

    te, mas ao menos ser percebida como tendo incertezas limitadas.

    2.5.1 Causas sociolgicas de preocupao

    A seo anterior descreveu o processo pelo qual um objeto vem a

    ser qualificado, avaliado e gerenciado como risco. Durante esse processo,

    e especialmente na segunda (projeo) e terceira (especializao) fases,

    o objeto despojado da maioria de suas caractersticas para adquirir tra-

    os de uma questo genrica de risco expressa em linguagem cientfica.

    Particularmente, muitas das incertezas inicialmente vinculadas ao objeto,

    que contriburam para extra-lo de suas origens, so descartadas pelas or-

    ganizaes que o transferem para um quadro mais amplo de contestao

    e pelos cientistas que avaliam o risco. somente durante a ltima fase (ge-

    renciamento) que as incertezas so reintroduzidas e se tornam uma fonte

    de negociao, produo de conhecimento e estabelecimento de regras.

    Portanto, tanto o enquadramento por parte de grandes organizaes

    quanto a avaliao por especialistas cientficos tendem a substituir uma

    definio inicial, que abrange uma ampla gama de argumentos, afirma-

    es, reivindicaes, descontentamentos e demandas, por uma definio

    simplificada, que utiliza a linguagem cientfica. A polmica, ento, avana

    para questes como: que procedimentos se devem aplicar para prover

    evidncias robustas e vlidas aos formuladores de polticas? Quem so os

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 106-137

    SOCIOLOGIAS124

    legtimos produtores de conhecimento? Qual deve ser o papel dos leigos

    na produo de conhecimento ou na formao de opinio? Como se po-

    der garantir a independncia e a transparncia do processo especializa-

    do? Quo aberto deve ser o processo a diferentes tipos de conhecimento?

    Consequentemente, a polmica se torna uma questo de conhecimento.

    Contudo, como j foi sugerido, muito se perde pelo caminho, no

    que diz respeito ao real significado do objeto para diferentes indivduos,

    grupos ou organizaes. Nem todos os sentidos podem ser efetivamente

    reduzidos a uma questo de conhecimento ou expressos em linguagem

    cientfica (Wynne, 2002). Em muitas polmicas tecnolgicas, preocupa-

    es de sade ou ambientais no foram a causa inicial, nem tampouco

    a principal, de preocupao entre a maioria dos indivduos ou grupos.

    Pelo contrrio, estavam inseridas em um conjunto maior de questes,

    dvidas, receios ou reclamaes sobre esttica, valor de propriedades,

    falta de consulta aos cidados e cidads, propriedade intelectual, controle

    poltico, questes de planejamento, privacidade, etc. Ademais, por trs

    dessas questes escondiam-se preocupaes mais profundas relacionadas

    a identidade e vulnerabilidade.

    Como se pode dar sentido a esses diferentes conjuntos de reclamaes?

    2.5.2 Avanando nas asseres de conhecimento

    Se retornarmos s quatro abordagens mencionadas na introduo,

    elas proporcionam diferentes respostas. Estudiosos da percepo do risco

    iro focar-se nos motivos pelos quais indivduos consideram a tecnologia te-mvel e desconhecida. Eles podem identificar caractersticas sociais que aju-dem a diferenciar aqueles indivduos que veem o risco como sendo limita-do, daqueles que, ao contrrio, o percebem como extremo (por exemplo, o efeito do homem branco). Podem tambm estabelecer um vnculo entre as percepes de alto nvel de risco e a falta de confiana nos especialistas,

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 106-137

    SOCIOLOGIAS 125

    para fornecerem evidncias consistentes, e no governo, para oferecer pro-teo. Mas no estaro interessados nos argumentos levantados por atores diferentes, seja a favor ou contra a ideia de que uma tecnologia apresenta um risco. Diferentemente, esses argumentos constituiro o foco de interes-se dos pesquisadores em CTS. Eles descrevero como cada ator sustenta reivindicaes de conhecimento legtimas e como essas so negligenciadas pelo governo e pela indstria, que preferem focar-se na cincia para avaliar o risco. Alm disso, apresentaro a complexidade das redes sociotcnicas para indicar a existncia de mltiplos atores envolvidos com o objeto de risco. Mas, com muita frequncia, daro pouca ateno s caractersticas sociais dos distintos atores e a como essas podem ajudar a entender a natu-reza de suas reivindicaes com algumas excees (Wynne, 2002; irwin, 2001). Pesquisadores de estudos da cultura, por outro lado, se concentra-ro nesse ltimo aspecto, e mais precisamente nas estruturas de grupo, a fim de sugerir que protestos surgiro nas situaes em que um grupo de indivduos, os quais compartilham dos mesmos valores e vises de mundo, identifica uma tecnologia (e o que ela representa) como uma ameaa a sua existncia e identidade. Mas, como mencionado anteriormente, no tero em conta as reivindicaes de conhecimento, nem a forma como valores sociais se mesclam a questes cientficas. Por ltimo, estudiosos de gover-namentalidade enfatizaro a definio de um risco em potencial vinculado a uma tecnologia por especialistas e organizaes, mas tero dificuldade em processar as definies concorrentes apresentadas por ONGs e especia-listas de reas complementares.

    Portanto, nenhuma das quatro abordagens fornece uma resposta

    satisfatria. No estudo de riscos emergentes, a tarefa do socilogo no

    negar a natureza cientfica da polmica que se desenvolve em torno de

    determinado objeto, nem tampouco a validade das reivindicaes feitas

    pelos diferentes atores. Mas sim, entender dois fenmenos relacionados:

    1) como e por que os atores tendem a privilegiar a linguagem cientfica

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 106-137

    SOCIOLOGIAS126

    para expor suas reivindicaes e exigncias; 2) como essas reivindicaes

    se constituem em mltiplas camadas, entre as quais a cincia representa

    apenas um conjunto de recursos.

    Uma forma fcil de contornar isso seria simplesmente declarar que

    cientistas, como qualquer outro ator, tm seus prprios conjuntos de va-

    lores, vises de mundo e interesses, e que tarefa do socilogo revel-

    los quer dizer, colocar todos os atores no mesmo nvel, relacionando

    cada conjunto de valores a diferentes reivindicaes de conhecimento.

    Mas isso fugiria da questo central. Como Hilgartner (1992) demonstrou,

    objetos de risco so redes sociotcnicas complexas. O fato de que, em

    determinadas esferas, eles so abordados apenas em termos cientficos,

    de forma a serem mais facilmente avaliados e gerenciados, no dissolve

    a complexidade que os constitui. Quando uma questo atinge a agenda

    pblica como possvel risco de sade, e avaliada e administrada como

    tal, isso no a liberta dos mltiplos atores e grupos que, por uma ampla

    gama de motivos, mobilizaram-se em mbito local contra uma tecnologia.

    Eles ainda esto l e muitas vezes so eles que continuam a exercer pres-

    so sobre agentes pblicos locais e estatais para que tomem uma atitude.

    Esses atores utilizam a linguagem do risco, pois esta se tornou a lngua

    franca pela qual podem expor suas reivindicaes e exigncias. E essa

    linguagem que ONGs nacionais utilizam para promover suas causas, mui-

    tas vezes impermeveis s questes mais amplas no nvel local. Mas essas

    questes no deixam de existir.

    H um problema mais profundo por trs das reivindicaes e exi-

    gncias de cidados ou grupos locais com relao a uma dada tecnologia

    por razes diversas? Uma vez que se tenham identificado todos os argu-

    mentos usados para expressar alguma forma de hostilidade, possvel

    perceber algum padro ou explicao subjacente? Para muitos socilogos,

    a resposta claramente no: faz-lo seria negar qualquer forma de agn-

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 106-137

    SOCIOLOGIAS 127

    cia e sugerir que os indivduos se comportam levados por um conjunto

    maior de motivos, os quais apenas cientistas sociais podem identificar e

    compreender. Gostaramos de fazer uma afirmao distinta: recusar-se a

    levar a srio e analisar tanto as causas de preocupao quanto os motivos

    subjacentes profundamente no sociolgico. Porque isso, muitas vezes,

    equivale a adotar uma postura puramente descritiva, na qual o socilo-

    go se torna um porta-voz para indivduos: justificando suas reclamaes,

    pedindo s autoridades que levem em considerao os tipos de conhe-

    cimento que eles produzem, surpreendendo-se com a complexidade e

    riqueza de seus argumentos e processos cognitivos, mas nunca parando

    para se perguntar o que tudo isso significa (ou ento, considerando que o

    significado esteja inteiramente contido nas afirmaes e reclamaes). No

    entanto, h muitas razes para acreditar que diversas formas de protesto

    contra objetos de risco sejam tambm uma forma de apresentar reivin-

    dicaes polticas mais amplas, e que estas devem ser reconhecidas. isto

    no significa que os atores no estejam cientes dos motivos que os levam

    a agir; e sim, que as polmicas que envolvem objetos de risco tornaram-se

    um novo modo de expressar reivindicaes polticas. Em outras palavras,

    objetos de risco so inerentemente polticos: no s no sentido de que

    pedem novas formas de governana (mais abertas, mais transparentes,

    com discusso pblica dos procedimentos para regulamentar novas tec-

    nologias, por exemplo), como tambm no sentido de que indivduos e

    grupos esto desafiando o poder poltico com reivindicaes mais amplas

    quanto a como o sistema governamental deve ser organizado, como cer-

    tas necessidades devem ser abordadas, o que os cidados podem esperar

    do Estado, como as identidades devem ser definidas, etc.

    identificar essas reivindicaes polticas , em si, toda uma pauta de

    pesquisa. Como possvel acessar as diferentes ordens de motivos e cau-

    sas que constituem objetos de risco? Uma maneira seria estender sobre

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 106-137

    SOCIOLOGIAS128

    o trabalho de U. Beck para um nvel macro, e buscar coletar dados que

    apontem uma conexo entre as tendncias que ele descreve (individuali-

    zao ou a descentralizao do Estado, por exemplo) e o surgimento dos

    riscos. isso poderia fornecer dados teis, mas careceria de densidade na

    descrio, especialmente a da prpria conexo entre uma dada situao

    social ou poltica e protestos contra um objeto especfico. Gostaramos de

    sugerir outro ponto de partida, um que favorea a noo e o papel do lu-

    gar, isto , de uma localizao territorial ou fsica (uma cidade, um bairro,

    uma casa, uma escola ou um local de trabalho).

    2.5.3 O papel do lugar

    A importncia do lugar com frequncia ignorada em estudos de

    risco com exceo dos estudos de justia ambiental nos EUA (Capek,

    1993), de estigmas em percepo de risco (Pidgeon et al., 2003) ou do

    saber leigo (Brown, 1987; Wynne, 1996). No entanto, a maioria dos ris-

    cos, bem como dos processos que contribuem para o seu surgimento,

    inseparvel de um local especfico (ou de um conjunto de localizaes).

    Essa localizao importante sob diversos aspectos.

    Primeiro, pode-se encontrar em suas caractersticas algumas das

    razes para o surgimento de um risco: caractersticas fsicas ou sociode-

    mogrficas, em especial, podem ajudar a compreender por que um mo-

    vimento de protesto se inicia. A histria local tambm pode gerar pistas.

    Quer dizer, o lugar pode fornecer informaes sobre a comunidade em

    risco (Kroll-Smith e Couch, 1990). Por exemplo, no caso de plantas in-

    dustriais ou de equipamentos tecnolgicos (antenas de telefonia celular,

    p. ex.), bairros afastados, marginalizados em relao aos bairros centrais

    foram impelidos a apropriar-se desses problemas como mais um caso de

    desrespeito por parte das autoridades municipais e a mobilizar-se contra

    estas. Pequenas cidades suburbanas longe de cidades maiores tambm

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 106-137

    SOCIOLOGIAS 129

    perceberam tais instalaes como uma externalidade indesejada, em

    meio a outras atividades denunciadas como fontes de transtornos.

    Segundo, em muitos aspectos, a experincia de risco mediada

    pelo lugar. A percepo que indivduos e grupos podem ter de uma ame-

    aa inseparvel de outras caractersticas ligadas ao seu ambiente: ou

    este pode prover proteo ou, ao contrrio, pode contribuir para uma

    sensao de vulnerabilidade que, ento, encontra em uma atividade no-

    civa uma oportunidade para externar-se. Populaes que recentemente

    migraram da cidade para uma pequena comunidade rural podem sentir-

    se impotentes frente a um objeto de risco que lhes imposto, e contra

    o qual no conseguem encontrar instrumentos de proteo adequados,

    como, por exemplo, em representantes locais eleitos.

    Terceiro, algumas das incertezas que estaro vinculadas a um ob-

    jeto dizem respeito s caractersticas do lugar e de sua populao. Em

    outras palavras, para entender alguns dos problemas que venham a ser

    associados atividade contestada, importante estudar detalhadamente

    outras questes locais e, particularmente, como o lugar governado. isso,

    por sua vez, implica observar a forma como diferentes nveis do governo

    interagem, e como podem, por vezes, agir como amplificadores do risco.

    isso merece ateno especial em pases com governo descentralizado nos

    quais se desenvolve uma competio entre diferentes nveis governamen-

    tais em torno da capacidade de melhor proteger a populao.

    Quarto, o lugar oferece alguns dos recursos e razes para a ao po-

    ltica. indivduos e grupos encontraro em um local os recursos para ini-

    ciar um movimento de protesto; mas tambm associaro seu movimento

    identidade e ao sentimento comunitrio do lugar e se encarregaro de

    lutar para que estes sejam reconhecidos.

    Esses diferentes elementos podem ser observados, por exemplo, em

    reas recentemente suburbanizadas, prximas de grandes cidades, na

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 106-137

    SOCIOLOGIAS130

    Frana. Quando populaes de classes mdia e mdia-baixa deixam as

    cidades centrais para residir em um municpio suburbano, seja por opo

    ou por j no poderem arcar com os custos de viver em uma cidade gran-

    de, elas participam de um alastramento suburbano. Contudo, as caracte-

    rsticas desses novos municpios so radicalmente distintas daquelas das

    cidades antigas, especialmente em termos de estrutura social, arquitetura,

    planejamento urbano e liderana poltica. Frequentemente, nessas re-

    as recentemente urbanizadas que surgem movimentos de protesto con-

    tra o que se consideram atividades perigosas. Muitas vezes qualificados

    como movimentos Nimby2, so, na verdade, mais complexos do que isso.

    Paralelamente a movimentos mais tradicionais de classe mdia buscando

    preservar seu ambiente de atividades indesejadas (por questes estticas,

    barulho, odores, etc.), podem-se observar, tambm, movimentos desper-

    tados por grupos das classes mdia-baixa ou baixa que se engajam numa

    ao coletiva contra o que percebem ser uma externalidade indeseja-

    da da cidade grande; para construir laos sociais em uma comunidade

    recm-formada; e para lutar pela identidade da regio e por reconheci-

    mento por diferentes entidades polticas. isso j foi observado em algumas

    comunidades dos EUA, h vrias dcadas (Capek, 1993).

    Nem todos os movimentos sociais contra atividades de risco per-

    tencem a essas categorias. Mas importante reconhecer que esses mo-

    vimentos sociais dificilmente sero compreendidos, se forem isolados de

    seu contexto local. O fato de que uma atividade similar dar origem a

    movimentos protesto por todo um pas, ou mesmo em diferentes pases,

    no deve ocultar o fato de que cada movimento tambm encontra em

    seu contexto especfico tanto os recursos quanto os motivos para a ao. E

    outros estudos deveriam desvelar as similaridades entre as caractersticas

    2 Sigla para not in my backyard ( no no meu quintal). Nota da tradutora.

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. 106-137

    SOCIOLOGIAS 131

    desses locais, independentemente da tecnologia que est sendo contes-

    tada, os quais trariam mais evidncias de que o surgimento de questes

    do risco no pode ser isolado de transformaes sociais mais profundas.

    O papel do lugar importante, pois pode ajudar a compreender

    duas motivaes polticas mais amplas para a ao: a vulnerabilidade e

    a identidade.

    Uma anlise de movimentos de protesto locais contra diferentes tec-

    nologias revela que os participantes vivenciam formas de vulnerabilidade

    social ou econmica semelhante, em muitos aspectos, ao risco biogrfi-

    co analisado por Beck (Calvez, 2010). Essa vivncia pode ter base em ca-

    ractersticas objetivas (desemprego, divrcio, alto endividamento, doena,

    etc.) e percepes mais subjetivas (ausncia de estruturas tradicionais que

    ofeream proteo, reduo do estado de bem-estar social, etc.). R. Castel

    (2003) demonstrou que a vulnerabilidade social na Frana muitas vezes se

    traduziu como demanda por segurana contra o crime e a delinquncia.

    Borraz (2008) mostrou que a vulnerabilidade social tambm pode se tradu-

    zir como demanda por segurana contra riscos ambientais e de sade. Ou

    seja, na medida em que indivduos vivenciam formas de vulnerabilidade,

    tendem a transform-las em uma demanda poltica por segurana contra

    diferentes perigos e ameaas, os quais podem no estar diretamente cor-

    relacionados aos fatores responsveis pela situao de vulnerabilidade (p.

    ex., fatores econmicos e sociais), mas sobre os quais podem convocar uma

    ao poltica. Ademais, quando indivduos formam um movimento social a

    fim de pressionar agentes pblicos, eles esto, ao mesmo tempo, assumin-

    do esses problemas. Movimentos de protesto contra uma tecnologia, ao

    passo que pressionam autoridades pblicas locais e nacionais por aes de

    proteo, tambm se dedicaro a encontrar uma soluo local. Se tiverem

    sucesso, tero obtido alguma forma de controle sobre seu ambiente, redu-

    zindo assim, potencialmente, a experincia de vulnerabilidade.

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    A identidade outra motivao para a ao, especialmente em lu-

    gares onde no h qualquer forma de identidade pr-existente devido a

    transformaes polticas ou sociais recentes, em lugares que sofrem com

    estigmas sociais ou que so marginalizados do centro da cidade ou de

    alguma grande cidade. Nessas diferentes circunstncias, protestos contra

    uma tecnologia muitas vezes revitalizam conflitos mais antigos ou deman-

    das polticas por alguma forma de reconhecimento. Em reas sem uma

    identidade especfica, o protesto servir como uma base para estabelecer

    uma nova identidade e construir uma comunidade em torno da mesma.

    Esse pode ser o caso de zonas suburbanas com novas unidades de habi-

    tao construdas no que antes eram terras de produo. As antenas de

    telefonia celular, incineradores de resduos ou unidades de tratamento de

    esgotos sero percebidos como uma externalidade de uma cidade maior

    imposta a uma rea marginalizada. O protesto dar aos habitantes a opor-

    tunidade de lutar por reconhecimento dos direitos de sua regio contra a

    cidade maior. Em reas mais antigas envolvidas em lutas contra a prefei-

    tura ou contra uma cidade maior pelo reconhecimento de suas especifi-

    cidades, por falta de transporte pblico adequado, pela precariedade das

    escolas etc., protestar contra uma tecnologia oferece a oportunidade de

    enfocar uma questo altamente sensvel, a fim de transformar a relao de

    poder. Muitas vezes, os habitantes dessas reas compartilham de caracte-

    rsticas sociodemogrficas comuns que so contrastantes s dos residentes

    de zonas vizinhas ou mais centrais.

    Portanto, ao observar mais detalhadamente o papel do lugar, pode-

    se comear a identificar motivos latentes em protestos e, ao mesmo tem-

    po, obter uma melhor noo da natureza poltica das reivindicaes e

    demandas dirigidas a agentes pblicos. E, o mais importante, podemos

    demonstrar as interconexes entre reivindicaes de conhecimento e o

    conjunto mais amplo de questes apresentadas durante o processo de

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    contestao. Ao faz-lo, seremos capazes de dar maior densidade di-

    menso dos objetos de risco e ilustrar sua natureza poltica inerente.

    3 Concluso

    Neste artigo, procuramos atingir dois objetivos. O primeiro foi des-

    crever o processo que leva um objeto a ser qualificado como risco. Ao

    faz-lo, esperamos ter convencido o leitor da utilidade de tal abordagem,

    particularmente da identificao dos momentos chave no ciclo de vida

    de uma questo de risco, os quais pedem uma explorao emprica mais

    aprofundada. O segundo objetivo era conferir mais substncia dimen-

    so social desse processo.

    Ao descrever os estgios pelos quais um objeto se torna um risco,

    identificamos diversos casos crticos em que se torna possvel sondar mais

    profundamente o significado social do risco. Em especial, a extrao dos

    objetos de risco de seu ambiente familiar, natural e normal oferece a

    oportunidade de identificar processos mais profundos que partilham da

    construo do objeto de risco. isso no significa que o socilogo pode ver

    coisas para as quais os prprios atores so cegos: ao contrrio, entrevistas

    revelam de imediato que os indivduos relacionam as reclamaes em

    torno de um objeto de risco a muitas outras dimenses de seu ambiente

    social, poltico e fsico local. A contribuio do socilogo demonstrar

    que no apenas esse sempre o caso, mas tambm que se podem iden-

    tificar padres. Por sua vez, esses padres revelam a natureza poltica

    dos fatores de risco, na medida em que indivduos e grupos apresentam

    reivindicaes vinculadas falta de capacidade institucional de levar em

    considerao sua vulnerabilidade ou problemas de identidade.

    Concluir, a partir disso, que objetos de risco so simplesmente um

    pretexto, seria enganoso; assim como o seria sugerir que as autorida-

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    des pblicas deveriam focar-se nos riscos reais, conforme definidos por

    especialistas, e descartar outras reclamaes que so de natureza mais

    social. De fato, o que esse artigo afirma que autoridades pblicas

    deveriam levar a srio as questes de risco, tanto por suas reivindicaes

    de conhecimento, quanto por suas motivaes sociais e polticas latentes.

    Ademais, essas no so dimenses distintas, mas, ao contrrio, so inse-

    parveis. apenas reconhecendo essa situao que os agentes pblicos

    podero desenvolver instrumentos efetivos e legtimos no campo da ad-

    ministrao de riscos.

    Olivier Borraz diretor de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Cientfica (CNRS), Frana, junto ao Centro de Sociologia das Organizaes - Cincias Polti-cas, tendo como interesse temas sobre meio ambiente, riscos, segurana alimentar e ao pblica. [email protected]

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    Recebido em: 22/07/2013

    Aceite final: 06/01/2014