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A PERSONALIDADE DO J UIZ E A CONDUÇÃO DO PROCESSO

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A PERSONALIDADE DO JUIZ E ACONDUÇÃO DO PROCESSO

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ANTOIN ABOU KHALIL

A PERSONALIDADE DO JUIZ E ACONDUÇÃO DO PROCESSO

Advogado em São Paulo. Sócio do Fleitlich, Rocha e Khalil Advogados Associados. Graduou-se emAdministração de Empresas pela EAESP/FGV e em Direito, pela Faculdade de

Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). Mestre e doutorando em Filosofia eTeoria Geral do Direito pela FDUSP.

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EDITORA LTDA.

Rua Jaguaribe, 571CEP 01224-001São Paulo, SP — BrasilFone (11) 2167-1101www.ltr.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índice para catálogo sistemático:

Todos os direitos reservados

Produção Gráfica e Editoração Eletrônica: R. P. TIEZZIProjeto de Capa: FABRICIA VALECKImpressão: DIGITAL PAGESetembro, 2012

R

Khalil, Antoin Abou

A personalidade do juiz e a condução do processo / AntoinAbou Khalil. — São Paulo : LTr, 2012.

Bibliografia

1. Direito — Filosofia 2. Direito — Teoria 3. Juízes — Aspectospsicológicos 4. Personalidade 5. Processo decisório judicial 6. Psicologiaforense 7. Psicologia junguiana 8. Tipologia (Psicologia) I. Título.

12-08208 CDU-347.962:15

1. Juízes : Conduta : Aspectos psicológicos 347.962:15

Versão impressa - LTr 4589.8 - ISBN 978-85-361-2239-7

Versão digital - LTr 7412.2 - ISBN 978-85-361-2294-6

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AGRADECIMENTOS

Como nenhum empreendimento é fruto do trabalho de um únicoindivíduo, cumpre agradecer a muitas pessoas, especialmente:

A Pedro Colaneri Abi-Eçab, pelo incentivo certo, na hora certa, sinaldistintivo dos grandes amigos;

A Maria Luiza Sant’Anna do Amaral, nossa “Liza”, pelo apoio técnico,sem o qual este trabalho não teria sido possível;

Aos magistrados Isabella, Mirtes, Judith, Émerson, Eustáquio e Evandro,que me acolheram com generosidade e afeto, franqueando-me o caminho deacesso aos bastidores de sua atuação profissional. Por dever de ofício, para omundo hão de continuar anônimos, mas seus nomes seguirão comigo vidaafora, gravados em meu coração;

Aos professores doutores Anna Mathilde Pacheco e Chaves, LauraVillares de Freitas e Marion Rauscher Gallbach, pelo inestimável auxílioacadêmico, contribuindo com instrução, sugestões e críticas;

A meus sócios, Luiz Carlos Waisman Fleitlich e Roberto da Silva Rocha,em nome de quem prestigio todos os meus colegas de trabalho, sem os quaiseu não teria tido o equilíbrio necessário para dedicar tempo à pesquisa;

A Aldacy, Naty e Otavio, pelas muitas horas de atenção e convívio queviram ser sacrificadas;

Por fim, à professora doutora Lídia Reis de Almeida Prado, pela pacienteorientação, marcada pela sensibilidade que lhe é peculiar e pela precisãocientífica. Não apenas me permitiu sonhar, mas também sonhou comigo; nãoapenas me apontou o caminho, mas o trilhou a meu lado; não apenas mefalou da importância do equilíbrio das funções para uma vida plena de sentido,como foi, em seu trabalho de orientação, exemplo disso. Se algum méritoresultou dessa empreitada, forçoso é dividi-lo com ela.

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SUMÁRIO

PREFÁCIO .................................................................................................................. 11

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 21

PARTE IA TEORIA DOS TIPOS

CAPÍTULO 1 — A TEORIA DOS TIPOS PSICOLÓGICOS DE CARL GUSTAV JUNG ......... 31

1. INTRODUÇÃO À TEORIA DOS TIPOS ........................................................................... 31

2. CONCEITOS FUNDAMENTAIS .................................................................................... 39

3. AS DUAS ATITUDES: INTROVERSÃO (I) E EXTROVERSÃO (E) ....................................... 40

4. AS QUATRO FUNÇÕES ............................................................................................. 50

4.1. A DICOTOMIA DAS FUNÇÕES PERCEPTIVAS: SENSAÇÃO (S) E INTUIÇÃO (N) ........ 54

4.1.1. SENSAÇÃO (S) ..................................................................................... 54

4.1.2. INTUIÇÃO (N) ..................................................................................... 57

4.2. A DICOTOMIA DAS FUNÇÕES JUDICATIVAS: PENSAMENTO (T) E SENTIMENTO (F) . 60

4.2.1. PENSAMENTO (T) ................................................................................ 60

4.2.2. SENTIMENTO (F) .................................................................................. 64

4.3. SOBRE AS FUNÇÕES AUXILIARES ....................................................................... 71

4.4. A IMPORTÂNCIA DA FUNÇÃO INFERIOR NO PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO ........... 74

CAPÍTULO 2 — A CONTRIBUIÇÃO DE MYERS-BRIGGS ............................................. 80

1. HISTÓRICO ............................................................................................................ 80

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2. A DICOTOMIA DOS PARES DE FUNÇÕES QUANTO À SUA NATUREZA: TIPOS PERCEPTIVOS

(P) E JUDICATIVOS (J) ............................................................................................. 82

CAPÍTULO 3 — CONTRIBUIÇÕES DA TIPOLOGIA JUNGUIANA AO DIREITO ................ 89

1. RELAÇÕES DE PENSAMENTO E SENTIMENTO COM A NOÇÃO DE JUSTIÇA ...................... 89

2. A DINÂMICA DAS FUNÇÕES E O OFÍCIO DE BEM JULGAR .......................................... 103

3. UMA POSSÍVEL SÍNTESE: A TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO DE MIGUEL REALE . 108

PARTE IIUMA POSSÍVEL APLICAÇÃO PRÁTICA DA TEORIA DOS TIPOS

CAPÍTULO 4 — ANÁLISE DO PERFIL TIPOLÓGICO DE SEIS MAGISTRADOS DO TRI-BUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO ................................................. 115

1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 115

2. ENTREVISTA COM “ISABELLA” .............................................................................. 117

2.1. ANÁLISE DO PERFIL TIPOLÓGICO DE “ISABELLA” ............................................ 124

2.1.1. MATERIAL COLHIDO NO CURSO DAS AUDIÊNCIAS ................................. 131

3. ENTREVISTA COM “EUSTÁQUIO” ........................................................................... 133

3.1. ANÁLISE DO PERFIL TIPOLÓGICO DE “EUSTÁQUIO” ......................................... 149

3.1.1. MATERIAL COLHIDO NO CURSO DAS AUDIÊNCIAS ................................. 162

4. ENTREVISTA COM “JUDITH” .................................................................................. 164

4.1. ANÁLISE DO PERFIL TIPOLÓGICO DE “JUDITH”................................................ 174

4.1.1. MATERIAL COLHIDO NO CURSO DE UMA AUDIÊNCIA............................. 185

5. ENTREVISTA COM “MIRTES” ................................................................................. 186

5.1. ANÁLISE DO PERFIL TIPOLÓGICO DE “MIRTES” ............................................... 201

6. ENTREVISTA COM “EVANDRO” ............................................................................. 214

6.1. ANÁLISE DO PERFIL TIPOLÓGICO DE “EVANDRO” ........................................... 231

7. ENTREVISTA COM “ÉMERSON” .............................................................................. 245

7.1. ANÁLISE DO PERFIL TIPOLÓGICO DE “ÉMERSON” ............................................ 269

CONCLUSÃO ............................................................................................................ 281

GLOSSÁRIO .............................................................................................................. 291

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JURÍDICO ................................................................................................................. 291

PSICOLÓGICO ........................................................................................................... 294

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 297

GERAL E INTERDISCIPLINAR ...................................................................................... 297

DIREITO ................................................................................................................... 297

PSICOLOGIA ............................................................................................................. 299

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PREFÁCIO

A grande importância conferida à racionalidade e à concepção cartesianado conhecimento, como únicos detentores da verdade, ainda é uma caracte-rística da nossa cultura. Esse apego, extrapolado para as ciências humanas,trouxe uma dificuldade no entendimento do mundo. Isso porque, emboranão haja dúvida de que o raciocínio analítico propiciou, num determinadomomento histórico, a evolução do pensamento científico, também não existecontestação sobre o fato de ter essa evolução acarretado uma fragmentaçãodo conhecimento.

Do ponto de vista epistemológico, a divisão do saber em disciplinasfunda-se na primazia da razão. Embora salientada no século XVII, por Des-cartes, tal primazia teve suas raízes bem antes, na Renascença. Mas o homemrenascentista, cujo exemplo típico é Leonardo da Vinci, ainda conseguia, comoacontecia com os filósofos da Antiguidade, transitar de modo concomitantepor muitos ramos do conhecimento. Sabemos que Leonardo foi pintor,escultor, engenheiro, arquiteto, escritor, além de conhecedor de Anatomia,Física, Botânica e Matemática.

Essa fragmentação do conhecimento exacerbou-se no Iluminismoeuropeu, sistema de pensamento que floresceu a partir do século XVIII, espe-cialmente na França, na Inglaterra e na Alemanha. Houve, então, a consagraçãodas leis físicas no lugar dos dogmas da fé e da ciência em substituição aoscânones religiosos. Seu lema, segundo Kant, era “ousem saber”.

Como o Iluminismo enaltecia o respeito e o culto ao homem, dentro deuma concepção de mundo inteiramente racional, surgiu como um ideário deprogresso e de liberdade. Em sua luta contínua contra as religiões e assuperstições, promoveu um saber fundado na experiência e na utilização dométodo científico.

O universalismo iluminista, junto com a exaltação da ideia de poder doser humano, constituiu o germe da igualdade de direitos entre os cidadãos,mesmo os não pertencentes às classes dominantes (clero e nobreza).

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O Iluminismo traz, assim, não só a confiança no homem como sujeito dopróprio destino, destituído de toda irracionalidade, mas também a ênfase noprincípio da liberdade. Claro que esses princípios universais ainda são, tantona gênese do seu reconhecimento como hoje em dia, bastante abstratos. Mas,mesmo assim, foram capazes de influir na conquista coletiva por uma condiçãomais igualitária entre os indivíduos e na ruptura relativa de algumas dasimensas desigualdades sociais, numa atitude de fraternidade.

O mais poderoso de todos os instrumentos para a divulgação do ideárioiluminista foi a elaboração, durante vinte anos, da Enciclopédia, ou DictionnaireRaisonné des Sciences, des Arts et des Métiers, dirigida por D’Alembert e porDiderot. Essa publicação prosseguiu por vinte anos, até 1772, ano em que o17º volume encerrou a obra inteira, tendo consistido numa tentativa de síntesedo conhecimento. Enfatizava as artes mecânicas e o saber pragmático, semprecom um caráter secular, acabando por tornar-se padrão de publicação paratodas as futuras obras congêneres. A excelência de seus 139 colaboradoresfez da Enciclopédia o acontecimento editorial e intelectual do século. Entre osautores estavam Montesquieu (Leis), Helvetius (Matemática), Lamarck(Botânica), Rousseau (Música) e Voltaire (verbetes sobre História, Elegância,Espírito e Imaginação).

Pode-se formular a hipótese de que estariam presentes, na Enciclopédia,apesar do saber generalista de seus célebres colaboradores, traços da culturafragmentada e das especializações típicas do nosso tempo.

Um século depois, a respeito dos especialistas, Ortega y Gasset afirmouque deram origem ao império das massas, cuja barbárie seria a causa maisimediata da desmoralização europeia.(1)

Hoje, com uma complexidade do conhecimento nunca antes ocorrida, éimpensável que uma pessoa possa ser, como os sábios de outrora, detentorade uma sabedoria universal. Mas isso não justifica que os “especialistas empartes” sejam ignorantes em relação ao todo.

E mais: o fenômeno do conhecimento compartimentado pode ser enca-rado como símbolo da fragmentação da realidade e do surgimento de umainteligência esquizofrênica, que impede uma apreensão abrangente do mundo.(2)

O que a interdisciplinaridade procura resgatar é o “saber com sabor” deque fala Fernando Pessoa, e, ao mesmo tempo, propiciar o contato com osvalores, esquecidos durante o processo de fragmentação das disciplinas.Devido à importância de suas propostas, a interdisciplinaridade vem sendoconsiderada como a mais recente tendência da teoria do conhecimento.

(1) GASSET, Ortega y. A rebelião das massas. 1. ed. Tradução de Marylene Pinto Michael. São Paulo:Martins Fontes, p. 21.(2) A esse respeito, cf. PRADO, Lídia Reis de Almeida. O juiz e a emoção. Campinas: Millennium, 2004.

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Para o surgimento da tendência interdisciplinar, ocorrida na Europa,grande foi a influência da obra de Thomas Kuhn e das novas teorias surgidasnas ciências físico-matemáticas e nas ciências humanas no século XX. De fato,tanto o pensamento de Kuhn quanto essas teorias abalaram princípioscientíficos aceitos como inquestionáveis e, por decorrência, trouxeram novasindagações para a Filosofia da Ciência, em especial sobre a verdade e o sabercompartimentado.

Thomas Kuhn foi professor de Filosofia e História da Ciência do Massa-chusetts Institute of Technology (MIT), em Boston, e ficou mundialmentereconhecido pelo livro A Estrutura das Revoluções Científicas, publicado em1963. Nessa obra, o referido autor, ao criticar a tradição positivista, acentuaque na ciência da natureza, como em qualquer outro setor do conhecimento,não é possível adotar-se uma linguagem atemporal, absoluta e verdadeira.Para ele, a ciência não se desenvolve cumulativamente, mas por saltos, provo-cados por fatores externos, como os históricos, psicológicos e sociológicos,estranhos à estrita racionalidade científica.

O autor defende a ideia da ciência como uma sequência de paradigmas(conjunto de princípios, visões de mundo) em desenvolvimento, porintermédio de fases de ruptura e reconstrução de conhecimento.(3)

Mas a mais importante contribuição de Kuhn para a interdisciplinaridadefoi o fato de aceitar a subjetividade nas ciências — mesmo nas físico-mate-máticas — e, principalmente, a de refutar a neutralidade e a objetividade docientista, dogmas herdados do Iluminismo e do Positivismo.

No século XX, a racionalidade sofreu um forte abalo devido aos novosconceitos ocorridos quer no campo das ciências físico-matemáticas, quer nodas ciências humanas. O primeiro veio da Física da Luz — Óptica —, aodemonstrar que a luz tanto pode ser explicada por ondas luminosas quantopor partículas descontínuas. Essa descoberta estremeceu o princípio doterceiro excluído. A Física Quântica, ao evidenciar que não é possível explicaras causas pelas quais os átomos se movimentam, nem a sua direção e velo-cidade, nem os efeitos por eles produzidos, ameaçou o princípio da razãosuficiente, que persistiu apenas para os fenômenos macroscópicos, surgindopara os hipermicroscópicos um novo princípio, o da indeterminação.

A teoria da relatividade comprovou que as leis da natureza dependemda posição ocupada pelo observador. Esse fato atingiu o princípio físicosegundo o qual tais leis existem por si mesmas, sendo necessárias e universais,não dependendo do sujeito do conhecimento.

O conceito de ideologia, trazido por Marx, veio mostrar que teorias cien-tíficas ou filosóficas, aparentemente verdadeiras, escondiam uma realidade

(3) GIOVANA, Borrador. A filosofia americana: conversações. São Paulo: Unesp, 2003. p. 27.

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— social, econômica ou política —, resultando num conhecimento errôneo,ou ao menos questionável, por causa de um condicionamento perturbadorda objetividade científica (nesse condicionamento insere-se o da classesocial).(4)

Assim, a razão, longe de objetivar a busca da verdade, poderia consistirnum recurso para escamoteá-la.

Finalmente, a noção de inconsciente, formulada por Freud, revelou quea razão é menos poderosa do que se supunha, pois a consciência é, em grandeparte, dirigida e controlada por forças profundas e desconhecidas. Essa noçãopôs em dúvida a crença dos racionalistas e empiristas, segundo a qual averdade habita a consciência.(5)

Essas novas concepções trouxeram a necessidade de relativizar a rigidezda razão e da universalidade de suas leis nos diferentes ramos do conheci-mento, o que também é um preceito dos estudos interdisciplinares quesurgiram na França e na Itália, a partir de 1970. Entre os teóricos do assunto,destacam-se Piaget, Bastide, Gusdorf e Morin.

Poderia falar sobre esses célebres autores europeus, mas penso ser melhordestacar dois adeptos do movimento da interdisciplinaridade no Brasil, HiltonJapiassu e Ivani Fazenda, reconhecidos internacionalmente.

Hilton Japiassu, professor de Epistemologia e História das Ciências naUniversidade Federal do Rio de Janeiro, discorrendo sobre a interdisciplina-ridade, afirma ter ela rompido com o racionalismo exacerbado, pois expressa,além de uma visão de homem (como um ser integrado à vida), a importânciado conhecimento relacionado com o “todo”. Essa importância começa a serreconhecida — assim como ocorre com o resgate do subjetivismo — comopeça essencial na construção do saber. A propósito, assim ponderou Japiassu,o primeiro brasileiro a publicar sobre o assunto:

O que estamos querendo dizer é que a ciência, por mais que elabore umdiscurso racional e objetivo, jamais poderá estar inteiramente desvin-culada de suas origens religiosas, místicas, alquimistas ou subjetivas.(6)

No livro Interdisciplinaridade e Patologia do Saber, que aborda as principaisquestões relativas ao tema, escrito a partir de sua tese de doutorado defendidaem Grenoble, França, o autor traz uma exaustiva reflexão sobre a metodologiainterdisciplinar. Essa obra, concluída em 1976, foi prefaciada por Gusdorf,um dos mais notáveis teóricos da interdisciplinaridade na Europa, autor, na

(4) CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1995. p. 63.(5) CHAUÍ, Marilena. Idem.(6) JAPIASSU, Hilton. Desistir do pensar? Nem pensar! Criando o sentido da vida num mundo funcional einstrumental. São Paulo: Letras e Letras, 2001. p. 53.

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década de 1960, do livro La Parole e de um “Projeto Interdisciplinar para asCiências Humanas”, patrocinado pela UNESCO.(7)

Colocando o saber interdisciplinar no contexto das pesquisas orientadas,Japiassu conclui que ele constitui instrumento de reorganização do meio cien-tífico, pois esse conhecimento toma de empréstimo às diferentes disciplinasos respectivos esquemas conceituais de análise, submete-os a comparação e ajulgamento e, por fim, promove uma mútua integração.(8)

Em seu livro As Paixões da Ciência(9), Japiassu encara a ciência apenascomo uma certa experiência da razão, e acentua o caráter provisório dequalquer modelo explicativo. É que, para ele, a verdade absoluta é somenteuma projeção idealizada. E, ainda segundo seu ponto de vista, nos últimostempos, juntamente com a interdisciplinaridade, vem se impondo um estilode pensamento caracterizado por uma profunda desconfiança daracionalidade instrumental, em que os fins justificam os meios, característicado pensamento científico tradicional.(10)

De acordo com Japiassu, se a visão do Iluminismo trazia em seu bojo aformação ética dos indivíduos — pois atribuía à ciência uma finalidadetambém pedagógica —, os institutos de pesquisa do nosso tempo, bem comoa formação acadêmica contemporânea, afastam-se de quaisquer questões valo-rativas. Em outras palavras: a tecnologia implica, apenas, transmutar o saberem bens economicamente úteis. A esse respeito, ensina ainda o autor:

O racionalismo das Luzes ainda é bastante humanista: associa sincretica-mente o respeito e o culto do homem (ser livre, sujeito do universo) e aideologia de um mundo totalmente racional. Por isso, apresenta-se comouma ideologia da emancipação e do progresso.

[...] Contudo, esse racionalismo só permanece emancipatório enquantose mantém vinculado ao humanismo (unindo amor da humanidade,paixão pela justiça, pela liberdade, pela igualdade). Uma vez abando-nadas as ideias humanistas, a racionalização começa a devorar a Razão.E os homens deixam de ser concebidos como indivíduos livres ou sujeitos.Passam a obedecer à aparente racionalidade do Estado, da Burocracia edo Mercado.(11)

(7) Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 30.(8) Op. cit., p. 5.(9) As paixões da ciência. São Paulo: Letras e Letras, 1991.(10) Também para Weber, a ciência não é neutra do ponto de vista valorativo, pois o autor afirma que“nenhuma ciência é absolutamente isenta de pré-condições”. Apud BURSZYRYN, Marcel. Ciência, técnicae sustentabilidade. São Paulo: UNESCO, 2001.(11) JAPIASSU, Hilton. A crise da razão no Ocidente. Disponível em: <www.editoraeletronica.net> Acessoem: 5.4.2008.

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E é justamente para o entendimento deste mundo, vazio de valores, quesurgiu a interdisciplinaridade, que, como já ressaltei, é considerada a maisrecente tendência da teoria do conhecimento.

Ivani Fazenda, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas de Inter-disciplinaridade da PUC-SP, assim como Japiassu, tem, no Brasil, umaimportante teoria sobre a interdisciplinaridade.

No livro Interdisciplinaridade, História, Teoria e Pesquisa, a autora trazuma revisão histórico-crítica do tema e resume os principais estudos sobre oassunto, realizados por Piaget, Bastide, Gusdorf e Morin, dentre outros.Apresenta também as conclusões sobre o conceito de interdisciplinaridade aque chegaram esses autores, traçando os contornos das características de umtrabalho interdisciplinar. São as seguintes:

a. o trabalho interdisciplinar acarreta a utilização de outras formas doconhecimento que não apenas o racional;

b. possibilita a diminuição da distância teórica entre as disciplinas, bemcomo uma articulação que permita o diálogo entre elas;

c. estimula a pesquisa coletiva dos membros da Universidade;

d. torna possível um estreitamento das relações existentes entre aUniversidade e a sociedade;

e. constrói teorias a partir da linha de abordagem (teórico-prática) decada pesquisador.

Assim, o que se designa por interdisciplinaridade é uma conduta intelectualque ultrapassa os hábitos e os programas de ensino estabelecidos. Em resumo:a atitude interdisciplinar não seria apenas resultado de uma simples síntese,mas de sínteses imaginativas e ousadas.(12)

Para Ivani Fazenda, a interdisciplinaridade serve para “dar visibilidadee movimento ao talento escondido que existe em cada um de nós”. Uma dasformas de mobilizar esse talento oculto seria ensinar pessoas a formularperguntas adequadas, recebendo delas respostas criativas. Em outros termos,propõe que sejam abordados problemas profundos de maneira simples.Segundo ela, na abordagem interdisciplinar, não é suficiente que um trabalhoseja de bom conteúdo. É preciso ser belo. “Uma coisa bela não precisa serexplicada, ela nos toca no seu sentido maior, no sentido de existir.”(13)

No Brasil, há trabalhos interdisciplinares na área jurídica, como os desen-volvidos por Luís A. Warat, que escreve sobre Semiologia Jurídica, PauloSérgio Pinheiro, que inter-relaciona Ciência Política e Direito, Tercio Sampaio

(12) FAZENDA, Ivani. Interdisciplinaridade, história, teoria e pesquisa. São Paulo: Papirus, 1995. p. 17.(13) Ibidem, p. 24.

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Ferraz Jr., com escritos sobre Linguagem Jurídica, além de Goffredo da SilvaTelles Jr., com o Direito Quântico, e os de minha própria autoria, nos quais medebruço sobre a influência da emoção nas decisões judiciais.

Para atender a uma necessidade interna de estudar o Direito a partir deuma perspectiva interdisciplinar, a qual assisti nascer, o autor da presenteobra, Antoin Abou Khalil, contribui para essa bibliografia com uma importanteabordagem: a da atividade jurisdicional, a partir do instrumental teórico deCarl Gustav Jung, um dos mais expressivos autores da Psicologia do Incons-ciente. Mais especificamente, escolhe um importante aspecto — injustamentenão muito explorado — de tal teoria, o dos tipos psicológicos, fato que sóvaloriza este livro. E, a partir de uma cuidadosa análise desses tipos, deixaevidente a influência que eles exercem sobre toda a atividade jurisdicional,desde a apreensão dos fatos até a prolação de sentença, sem deixar de incluiroutras condutas do magistrado na condução do processo.

Os profissionais do Direito exercem uma atividade importantíssima paraa vida individual e a social e, como qualquer pessoa, não estão a salvo dasinfluências de fatores subjetivos nesse desempenho.

Devido a esse fato, é inconcebível que os estudos jurídicos se orientempor critérios apenas formais de elaboração, sem quaisquer considerações pelossubsídios valiosos vindos das ciências ditas “humanas”, como a Psicologia, aAntropologia, a Literatura e o Cinema, por exemplo.

Essa troca de informações, cópulas metodológicas entre vários ramosdo saber, propicia não só o recurso a outras instâncias do psiquismo, diferentesda racionalidade — com resultados mais criativos —, mas também o incre-mento da capacidade crítica dos que desempenham a atividade jurídica.

Por isso, considero este trabalho, que alia a investigação teórica à pesquisaqualitativa, um antídoto contra a alienante “ciência em migalhas”(14), tambémexistente no universo jurídico, pois promove não só a junção do conhecimentode dois ramos do conhecimento, Filosofia do Direito e Psicologia Analítica,mas também tem a ousadia e a criatividade, para usar a expressão de IvaniFazenda, de alargar os horizontes de ambas. Isso tudo, sem se esquecer detrazer a beleza dos poemas de Alberto Caeiro, que percorrem toda a obra.Por essa iniciativa, está de parabéns o autor!

Lídia Reis de Almeida PradoMestre e doutora em Direito. Professora da Universidade de São Paulo

e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Procuradora da Prefeitura e psicóloga.

(14) Cf. JAPIASSU, Hilton. Op. cit., p. 25.

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DEVANEIO

Quando olho para um céu estrelado, sei que o céu que vejo é diferentedaquele que se abre para o astrônomo. Além da lua, eu vejo apenas pontosluminosos. Ele enxerga estrelas das mais diversas idades e espécies, planetas,satélites, meteoros e uma série de outras coisas que sequer consigo nominar etampouco imaginar, pois a ignorância impõe limites à mente humana: é umaescuridão, e na escuridão pouco ou nada se vê, ficando um campo aberto paraa fantasia. É verdade que todo saber foi algum dia fantasia, e talvez em certosentido ainda o seja. Mas o sábio entende bem os dizeres de Sócrates, queatravessaram séculos: “Tudo o que sei é que nada sei”, e com isso em menteconsegue manter vivo o processo de aprendizado — eterno como a ignorância.

Talvez o astrônomo até se ria dos exemplos acima dados, expressos emlinguagem “leiga”. Porque cada ciência desenvolveu uma linguagem própriapara dar conta da extensão dos fenômenos que foram por ela sendo destrin-chados. Com isso, ao mesmo tempo em que se alcançou maior profundidadee melhor comunicação entre seus membros, dificultou-se o acesso dos nãoiniciados a essa comunidade. Assim, cada disciplina vai se isolando e pare-cendo um desafio impossível para quem não trilhou seus caminhos desde osbancos da faculdade. Nesse momento, apenas fatores “irracionais” podemlevar o sujeito a enfrentar o desafio. Por isso, a “irracionalidade”, diria eu,também faz parte das grandes conquistas científicas. Mais que isso: está emsuas raízes. Assim não fosse, o astronauta jamais arriscaria sua vida numaastronave, rumo ao espaço sideral, sem que ninguém o tivesse feito antes,apenas com base em demonstrações matemáticas ou em testes com animais.Essa empreitada pode até parecer inteiramente racional, mas no fundo não é.

Sabemos que a Filosofia é a mãe de todas as ciências. Mais importantedo que os conceitos que se foram acumulando ao longo do tempo, fruto dotrabalho de muitas mentes, é a própria atitude filosófica. Antes dela, nadahavia; sem ela ficaremos estagnados e sequer saberemos fazer bom uso doque já foi conquistado. Tal atitude é de permanente espanto diante da vida e,para ser contemplada, às vezes algumas fronteiras disciplinares precisam seflexibilizar, lembrando sua artificialidade à luz da complexidade dos

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fenômenos. Com o avanço da civilização, esse espanto foi a chama que deuorigem aos vários ramos do saber, chama que, paradoxalmente, parece estarameaçada justamente por eles, na medida em que a fragmentação tambémtem uma faceta limitadora. O homem que se dedica ao estudo de uma partedo organismo — por exemplo, o olho — não pode deixar de ter em mente aperspectiva do todo. Isso pode não ser possível no momento em que estuda oolho, mas deve integrar seus esforços para além dele. Caso contrário deixaráde enxergar o próprio homem — do qual o olho é mera parte.

Ao fim disso tudo, alguém poderia dizer: “Mas o astrônomo jamais veráa beleza de um céu estrelado. Apenas verá estrelas, planetas, satélites,meteoros. Eu não veria beleza nisso!”. Sim, é possível. Mas, também é precisoque se diga que o astrônomo, quando se voltou ao estudo dos fenômenoscelestes, não fez uma prévia ponderação racional a respeito. Ele simplesmenteseguiu seus impulsos naturais. E talvez a razão seja o menos determinantedos fatores da Natureza, e, quem sabe, de tudo o mais que move a vida. Porisso os poetas são importantes, para nos lembrar, sempre, de que:

Todas as opiniões que há sobre a naturezaNunca fizeram crescer uma erva ou nascer uma flor.Toda a sabedoria a respeito das cousasNunca foi cousa em que pudesse pegar, como nas cousas;Se a ciência quer ser verdadeira,Que ciência mais verdadeira que a das cousas sem ciência?

Fecho os olhos e a terra dura sobre que me deitoTem uma realidade tão real que até as minhas costas a sentem,Não preciso de raciocínio onde tenho espáduas.

Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquerpensamento,Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade.Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada,Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada.Assim tudo o que existe, simplesmente existe.O resto é uma espécie de sono que temos,Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença.

O espelho reflete certo; não erra porque não pensa.Pensar é essencialmente errar. Errar é essencialmente estar cego e surdo.

(Alberto Caeiro)(*)

(*) PESSOA, Fernando. Obra e poética em prosa. In: Poemas inconjuntos. Porto: Lello & Irmão, 1986. v. 1,pp. 792, 793 e 798.

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INTRODUÇÃO

Via de regra as partes se digladiam apenas externamente, procurando falhasna armadura individual do adversário. Geralmente esta luta é de poucavalia. Bem mais valioso seria se a disputa fosse transferida para o campopsicológico, lugar donde se origina em primeira instância. Esta trans-ferência logo mostraria que há atitudes psicológicas de diferentes espécies,cada qual com direito à existência, ainda que esta existência leve à formu-lação de teorias incompatíveis. [...] Verdadeira compreensão, a meu ver,só é possível quando for aceita a diversidade das premissas psicológicas.

Carl G. Jung(1)

Desde que me iniciei no exercício da advocacia, a maior parte de meusesforços profissionais tem sido canalizada para a área contenciosa, de modoque o resultado de meu trabalho costuma passar pelo crivo das decisõesjudiciais.

Muito cedo percebi que a interferência de fatores psicológicos era deter-minante na maneira como cada magistrado conduzia o processo e o levava atermo. Nos bancos da faculdade de Direito, somos ensinados a ver o trabalhodo juiz sob a perspectiva exclusiva da aplicação da lei ao caso concreto, mo-mento em que dela se extrai algum dos diversos sentidos possíveis.

O leigo em Direito não imagina a pluridiversidade de sentidos da normalegal; o profissional do Direito, porém, aprende a destrinchá-los, e para issolhe são dadas inúmeras ferramentas. Sabe que a interpretação pode sergramatical, histórica, dogmática, sistemática, teleológica, etc.(2)

Não aprende, porém, que a diversidade das decisões judiciais não decorreapenas dos vários sentidos possíveis da lei. Até porque, antes de aplicá-la,

(1) Tipos psicológicos (CW VI). Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 453,§ 922.(2) STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2003. pp. 108-110.

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cabe ao juiz perceber os fatos que se apresentam à sua frente, e a experiênciademonstra que o modo como estes são percebidos, ou não, muitas vezes temmais peso para o deslinde do caso do que o sentido que se dá à lei, porque nosentido da lei pode o juiz intervir; nos fatos, não.

A vivência forense, portanto, obriga o profissional do Direito a notar aexistência de fatores de grande relevância para o destino de um litígio. Nãosendo fatores propriamente jurídicos, esse profissional normalmente nãodispõe de instrumentos adequados para compreendê-los. Seria preciso buscá--los junto a outras disciplinas, sendo uma delas a Psicologia.

Richard Posner, jurista norte-americano e magistrado de segundainstância, em recente trabalho a respeito do que leva os juízes a decidir deuma forma ou de outra, reconhece que, quando os juízes não conseguem seapoiar em posições já claramente definidas pelo ordenamento jurídico, sejado ponto de vista legal, seja jurisprudencial, boa parte deles se deixa guiarpela análise das consequências de suas decisões. No entanto, diz o autor,mesmo que tenham orientação pragmática, fica uma questão: ao avaliar asconsequências da decisão, que fatores levam o magistrado a dar pesosdiferentes a umas e outras? Segundo Posner, esse sopesamento é resultadoda interação de fatores pessoais e, nesse momento, a lógica desempenha umpapel limitado, especialmente na fase de apelação, sendo poucos os estudos a respeitoda influência de aspectos psicológicos na conduta do juiz. Diz, ainda, que asmotivações e os fatores de pressão que agem sobre os juízes, e o resultadodisso em sua atuação profissional, são ignorados, como se os juízes fossemcomputadores, e não seres humanos intelectualmente limitados navegandoem mares de incerteza.(3)

Estudos mais recentes vêm incorporando à discussão o problema doslimites do racionalismo e a relevante influência de aspectos inconscientes notrabalho do julgador, destacando-se, no Brasil, além dos trabalhos de LídiaReis de Almeida Prado, os de José Renato Nalini e David Zimerman.

José Renato Nalini, antes de considerações sobre o mérito de seu trabalhocientífico, traz uma qualidade preciosa: é magistrado de carreira. Tal cir-cunstância lhe confere a vantagem de dispor, de maneira direta, da “matéria--prima” de suas reflexões. Seu trabalho vem se focando nos aspectos subjetivosdo magistrado: sua personalidade, seu caráter, sua motivação, e os reflexosdisso em sua conduta perante as partes do processo, operadores do Direito esociedade, além, claro, do próprio processo decisório. Graças a isso, ganhourelevância, em seu pensamento, o procedimento de recrutamento e seleçãodos magistrados.

David Zimerman é médico psiquiatra, com formação em Psicanálise.Tem trabalhos a respeito do reflexo de elementos psicopatológicos no

(3) How judges think. Cambridge: Harvard University, 2008. pp. 369-377.

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comportamento dos juízes. Para isso, traça uma espécie de “tipologia”, inte-ressante, mas de aplicação restrita, pois não aborda aspectos do que se usachamar “normalidade”.

Lídia Reis de Almeida Prado, graças à sua dupla formação (Direito ePsicologia), aponta as importantes contribuições de conceitos da PsicologiaAnalítica (trabalha particularmente o do arquétipo da anima) para a com-preensão do ato decisório judicial. A autora resgata a importância do senti-mento no trabalho do juiz, ressaltando lições de juristas clássicos, porém poucoestudados entre nós, como Recaséns Siches, Joaquim Dualde e Jerome Frank.(4)

No entanto, se por um momento, simplesmente se ignorava a forma deatuação de mecanismos psicológicos no processo decisório, e, noutro mo-mento, passou-se a tratar da importância destes, não se constata, até onde setem ciência, o estudo dos padrões normais de atuação da personalidade dosmagistrados na forma de perceber, sentir, pensar e, consequentemente, de secomportar em face dos agentes e dos elementos integrantes do processojudicial. Neste ponto é que se colhe preciosa contribuição dos estudos de CarlGustav Jung a respeito dos tipos psicológicos, que ora me proponho a trazerpara a cena jurídica.

Em vez de buscar saber se os juízes primeiro decidem, para depois buscarno ordenamento jurídico a fundamentação de suas decisões, ou, pelo contrário,deixam para decidir após analisar o que informa o ordenamento jurídico arespeito da questão apresentada — hipóteses essas capazes de dividir emdois grupos de opinião a maioria dos juristas —, o modelo de tipos psicológicosnos permitiria aceitar a coexistência de ambas as hipóteses. Ou seja: permite--nos perceber que o mundo, na verdade, não só alberga ambos os tipos demagistrados, como também revela muitos outros matizes de enormerelevância.

O estudo dos tipos, ao mesmo tempo em que oferece uma importantechave de leitura da realidade, traz ínsita uma armadilha. A armadilha não édo modelo tal como postulado: ela está vinculada exclusivamente a seuaplicador. É que, como estabelece “padrões” classificatórios, tendemos avisualizá-lo de modo estático, quando, na verdade, ele é bastante dinâmico.Os tipos definem meras tendências no modo de ser dos indivíduos. Essastendências são de fato observáveis, e é possível reuni-las em grupos. Porém,há nuances que decorrem seja da interação dos diversos aspectos da dinâmicapsíquica de cada um, seja da percepção do próprio observador.(5)

(4) O juiz e a emoção: aspectos da lógica da decisão judicial. 5. ed. Campinas: Millennium, 2003.pp. 14-19.(5) Ainda na fase de elaboração de sua teoria, Jung havia se dado conta disso, conforme demonstra emcarta escrita a um de seus colaboradores: “Quando o problema do tipo é discutido por pessoas de doistipos opostos, a maior parte da discussão consiste de mal-entendidos e declarações contraditórias. A lin-guagem aqui revela a sua incrível incapacidade de fornecer as sutis nuances indispensáveis à compreensão.

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Publicada em 1921, a teoria formulada em Tipos psicológicos não tardou ater uso inadequado, pois parece ser “típico” do ser humano o desconforto emlidar com o imponderável, sendo fácil cair na arapuca de enxergar na tipologiauma forma de eliminá-lo de nossas relações interpessoais. A esse respeito,observa uma das mais distintas biógrafas de Jung:

Ao que parece, poucas pessoas leram o livro como Jung queria.Depois que a obra passou por diversas impressões em várias línguas,ele se sentiu obrigado a abordar os “lamentáveis mal-entendidos”que transformaram o livro em “nada além de um jogo de salãoinfantil”. Queixou-se de que até na profissão médica sua tipologiaera usada para encaixar pacientes no sistema e dar-lhes os “conse-lhos” correspondentes. Insistiu que sua tipologia, de forma alguma,significava “colar rótulos em pessoas à primeira vista” nem era “umsistema de fisiognomonia, nem antropológico, mas uma maneiracrítica de lidar com a organização e a delimitação dos processospsíquicos que podem se mostrar típicos”.(6)

Feita, portanto, esta ressalva, assevera-se que a importância do temaconsiste no fato de trazer para a cena jurídica a consciência de que, emboracada ser humano possa se deixar conduzir por mecanismos inconscientes(esse passo já foi dado, graças ao trabalho de autores como os acima citados),existe a possibilidade de definir alguns padrões, mecanismos típicos, aos quaisestará vinculada sua percepção de mundo (passo a ser dado no âmbito destetrabalho). Em se tratando de magistrados, isso terá relação direta com a formacomo se portarão em face das pessoas que os cercam e, sobretudo, como sedelineará o seu processo decisório.

Agora, cabem algumas palavras a respeito de interdisciplinaridade.

Em obra de imensa repercussão no mundo jurídico, capaz de gerarpolêmica até os dias de hoje, mais de meio século passado de sua primeiraedição (1934), Hans Kelsen procurou expurgar da teoria jurídica o que seriaalheio ao Direito. Intitulando-a Teoria Pura do Direito, escreve logo no primeirocapítulo:

Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, istosignifica que ela se propõe garantir um conhecimento apenasdirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto nãopertença ao seu objeto, tudo quanto se não possa, rigorosamente,determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar

Cada signo verbal pode designar significado e contrassignificado sempre que tenha de cobrir pontos devista psicológicos”. Carta de Jung a Hans Schmidt, de 4.9.1915, citada por Deirdre Bair em Jung, umabiografia. Tradução de Helena Londres. São Paulo: Globo, 2006. v. I, p. 363.(6) BAIR, Deirdre. Op. cit., v. I, pp. 372-373.

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a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esseé o seu princípio metodológico fundamental. [...] De um modo intei-ramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com apsicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusãopode porventura explicar-se pelo fato de estas ciências se referirema objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com oDireito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimentodo Direito em face destas disciplinas, fá-lo, não por ignorar ou, muitomenos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sin-cretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídicae dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto.(7)

Desde então, a proposta de purismo metodológico apresentada porKelsen tem servido para alimentar muitos radicalismos, e, cumpre registrar,algumas injustiças lhe têm sido feitas, seja por quem ostenta sua “bandeira”,seja por quem a combate.(8)

Do extrato acima colacionado, nota-se que em momento algum ele falade um “Direito” puro: o purismo é buscado na “teoria”, na tentativa de seconstruir uma “ciência jurídica”. Kelsen não ignora e tampouco nega a conexãoexistente entre o Direito e as outras áreas de conhecimento ou metodologiasde análise. Pelo contrário, reconhece-a explicitamente: “Esta confusão podeporventura explicar-se pelo fato de estas ciências se referirem a objetos queindubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito”.

O problema que procuramos apontar, de forma singela neste espaço, éque a proposta de Kelsen, evidentemente desvirtuada, levou muitos a pensarser possível separar “teoria” de “prática”. A rigor, isso até é possível, mas emteoria! Um paralelo ao ora afirmado seria pretender reduzir a química,enquanto fenômeno natural, ao estudo dos elementos da tabela periódica.Conhecer as características de cada átomo tem, sem dúvida, interesse prático,mas não se consegue prescindir de outras modalidades de conhecimento —da Física, por exemplo —, no momento de analisar um fenômeno químico.

Que cada área deva se manter preservada, atuando nos limites de suametodologia, não há dúvida; mas que se perceba a premência da interaçãoentre elas para melhor entender a expressão concreta de um fenômeno jurídico.Não se trata, portanto, de sustentar que a teoria dos tipos psicológicos devaser objeto de estudo do Direito, e tampouco que dele faça parte, no sentido decompor sua identidade.

O que se sustenta é que o fenômeno jurídico, para ser bem compreendido,não pode ficar alheio à matriz de sentidos que se abre à consciência humana

(7) KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1984. pp. 17-18.(8) Neste sentido, ver: BOBBIO, Norberto. Estrutura e função na teoria do direito de Kelsen. In: Daestrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007. pp. 182-183.

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a partir do desenvolvimento de inúmeras outras disciplinas. Bem aceita, peloDireito, a colaboração da Sociologia, da Ciência Política e da História, porque não aceitar, com maior amplitude do que se tem hoje, a da Psicologia?Bastante oportunas, neste ponto, revelam-se as lições de Lídia Prado:(9)

Para o entendimento desse mundo, agora vazio de valores, novasabordagens procuram superar o antagonismo entre conhecimentoe objeto a ser conhecido. A interdisciplinaridade é um importanteinstrumento dessa superação, por não separar o saber técnico (queacarreta o progresso científico da nossa era) do mundo ao qual esseconhecimento se destina.

Assim, a interdisciplinaridade é considerada como a mais recentetendência da teoria do conhecimento, decorrência obrigatória da moder-nidade, possibilitando que, na produção do saber, não se incida nem no radicalcientificismo formalista (objetivismo), nem no humanismo exagerado(subjetivismo). Tal saber se caracteriza por ser obtido a partir da predisposiçãopara um encontro entre diferentes pontos de vista (diferentes consciências),o que pode levar, criativamente, à transformação da realidade.

[...] a interdisciplinaridade enfatiza o homem enquanto ser social(que vive numa sociedade tecnologicamente desenvolvida), dotadode afetividade (que se relaciona com sua realidade interna) e comoutros seres do meio em que vive. Possibilita, assim, a superaçãode um tipo de saber feito de especializações formais, o saber emmigalhas,(10) o saber sem sabor,(11) que provoca a perda da visão datotalidade. Conforme a concepção sistêmica, até mesmo nas ciênciasda natureza (como nos mostram, por exemplo, as conquistas daFísica moderna), inexiste distinção entre parte e todo, porque cadasistema é simultaneamente todo e parte, dependendo do ponto dereferência.(12)

Embora tomemos como paradigma o trabalho de Jung a respeito datipologia, existem muitos outros modelos teóricos. Veremos, aliás, que aobservação de padrões humanos de conduta é tema que desperta a atenção

(9) Op. cit., pp. 8-9.(10) Lídia Prado informa que a expressão é de Hilton Japiassu, renomado autor e um dos pioneiros noestudo da interdisciplinaridade (dentro e fora de nosso país), e aparece em várias passagens de toda asua obra.(11) A autora também chama nossa atenção para a aproximação etimológica dos termos: “saber e sabortêm a mesma raiz. Alberto Caeiro (Fernando Pessoa), no último verso de O guardador de rebanhos, assimliga os dois termos: ‘Comer um fruto é saber-lhe o sentido’”.(12) A respeito dessa ideia, esclarece Lídia: a propósito, leia-se CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. SãoPaulo: Cultrix, 1986. p. 21, “para quem as moléculas são todos em relação a seus átomos, mas são partesem relação às organelas que venham formar; igualmente, elas se portam em relação às células, as célulasem relação ao tecido, o tecido em relação aos órgãos e assim por diante”.

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dos homens desde tempos imemoriais, a ponto de encontrarmos uma distinçãoentre temperamentos junto aos gregos. No entanto, com o surgimento daPsicologia, esse estudo passou a ganhar contornos próprios, incorporandoconceitos desta disciplina.

As lições de Jung serão enriquecidas com as importantes contribuiçõesde pensadores junguianos, como Marie-Louise von Franz, James Hillman eNise da Silveira, bem como de pessoas que deram à teoria dos tipos psicoló-gicos uma aplicação prática de dimensões não imaginadas por seu criador.Refiro-me ao trabalho de Isabel Briggs Myers e Katharine Cook Briggs, cria-doras do MBTI, instrumento de aferição de tipos mais utilizado em todo omundo.

Veremos que a principal preocupação de Jung no momento em queformulou sua tipologia era de natureza epistemológica. Não estava tãointeressado em identificar padrões de conduta, embora isso decorra inevita-velmente de suas observações. O importante era demonstrar que diferentessubjetividades implicam diferentes pensares, e, portanto, matrizes diversas deprodução teórica (científica). Em verdadeira cópula interdisciplinar, podemostrazer tais reflexões para o Direito, bastando inserir a figura do juiz onde sefala de subjetividade. A evidência do que decorre daí dispensa maioreselucubrações. Aliás, conforme nos mostra Lídia Prado, isso vem sendopercebido de longa data por alguns juristas, tendo faltado maiores iniciativasno sentido de um trabalho que apenas se pode fazer interdisciplinarmente.Escreve a referida autora:

Como Siches, o autor [Jerome Frank] entende que os juízes usam aintuição ou sentimento na escolha das premissas que embasarão asentença. Todavia, não esquece a importância do fato de que asnormas, os princípios jurídicos nelas contidos, os precedentes juris-prudenciais, os valores gerais contribuem para a formação dessasintuições. E, diante da questão da escolha entre diferentes princípiosigualmente válidos, tem primacial importância a personalidade domagistrado.(13)

Registre-se que tanto Siches (1903-1977) quanto Frank (1889-1957),autores de importantes obras jusfilosóficas, publicaram seus trabalhos há maisde meio século. Como pudemos verificar acima, pela citação de Posner, aindahoje se denuncia o vácuo deixado pela ausência da Psicologia no Direito.

Tendo em vista a importância do senso de justiça para a realização doDireito, e por conta de diferentes perspectivas teóricas em torno do tema (ados “jusnaturalistas” e dos “juspositivistas”, por exemplo(14)), observaremos

(13) Op. cit., p. 19.(14) Vale lembrar que, embora os termos “jusnaturalismo” e “juspositivismo” atravessem os séculos, elesapresentam tonalidades diferentes, dependendo do momento histórico e do pensador que os postula,

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como isso se conforma à luz da tipologia, e, num segundo momento, de quemodo o tridimensionalismo jurídico, de Miguel Reale, pode vir a representaruma feliz síntese e ponto de acoplamento da leitura feita por cada disciplina.

Uma segunda parte do trabalho, de caráter “prático”, consiste na trans-crição e análise de entrevistas feitas junto a seis magistrados do Tribunal deJustiça do Estado de São Paulo, cujos tipos psicológicos são sugeridos a partirdas condutas e visões de mundo por eles expressas. Nesta parte, procureidemonstrar quão enriquecedora pode ser a interface entre o Direito e aPsicologia, necessária para uma melhor compreensão, dentre outras coisas,do fenômeno de produção das decisões judiciais.

Por fim, cumpre dizer que, embora a tipologia possa servir de ferramentapara maior compreensão do trabalho dos juízes, tão importante quanto issoseria o próprio magistrado valer-se dela como possível via para o autoco-nhecimento e, a partir daí, investir no necessário movimento de ampliaçãoda consciência, conditio sine qua non para agregar não apenas qualidade aoseu trabalho, mas sobretudo à forma como se faz humano no mundo.

podendo, por exemplo, o “direito natural” estar fundado na natureza das coisas (Platão e Aristóteles), emDeus, enquanto conformador da razão humana (Santo Tomás, Grócio), ou na razão propriamente dita(Leibniz, Rousseau). Mesmo a relação entre ambos muda com o tempo, havendo maior ou menor hierarquiae antagonismo. De qualquer maneira, independentemente das diferenças de concepção, alguns traçosdistintivos são sempre encontrados, de modo a ainda justificar a dicotomia, caracterizando-se o direitonatural pela universalidade, imutabilidade (num mesmo período histórico) e origem (não é posto por umainstância de poder), enquanto o direito positivo é particular, mutável e promulgado por uma vontadealheia à de seu destinatário. Tercio Sampaio Ferraz Jr. lembra-nos de que, embora tenha guardado suaimportância como objeto da Filosofia do Direito, tal dicotomia enfraqueceu-se operacionalmente porconta da positivação dos direitos que são considerados fundamentais. Fontes consultadas: 1) BOBBIO,Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995; 2) HESPANHA,António Manuel. Cultura jurídica europeia — síntese de um milênio. 3. ed. Portugal: Europa-América,2003 (1997); 3) FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito (técnica, decisão, dominação).2. ed. São Paulo: Atlas, 1995.

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PARTE I

A TEORIA DOS TIPOS

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A TEORIA DOS TIPOS PSICOLÓGICOS DE

CARL GUSTAV JUNG

1. INTRODUÇÃO À TEORIA DOS TIPOS

A tipologia psicológica não tem a finalidade, em si bastante inútil, de dividiras pessoas em categorias, mas significa antes uma psicologia crítica quepossibilite uma investigação e ordenação metódica dos materiais empíricosrelacionados à psique. É, antes de tudo, instrumento crítico para o pesqui-sador em psicologia que precisa de certos pontos de vista e diretrizes paraordenar a profusão quase caótica das experiências individuais.

Carl G. Jung(1)

O senso de discriminação do homem certamente faz parte de seu processocivilizatório. Tal fato é refletido tanto no surgimento e no aprimoramento dalinguagem quanto na especialização do saber, gerando as diversas ramifi-cações do conhecimento e a criação de novas “ciências”. Graças a essacapacidade discriminatória, data de antigos tempos e diferentes culturas aobservação de padrões de conduta entre os indivíduos.

José Jorge de Morais Zacharias, autor brasileiro junguiano, lembra, porexemplo, a introdução do calendário lunar pelo imperador Huang Ti, naChina, no ano de 2637 a.C. Nesse sentido, ensina:

Esse calendário incluía uma antiga lenda em que um Senhor Buda(não o Sidarta Gautama), antes de despedir-se do mundo, convocoutodos os animais para que viessem à sua presença. Vieram somentedoze animais, e foram chegando na seguinte ordem: rato, boi, tigre,

CAPÍTULO 1

(1) Tipos..., Anexo: Tipologia psicológica, p. 509, § 1057.

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coelho, dragão, serpente, cavalo, carneiro, macaco, galo, cão e javali.Como recompensa por terem vindo, ele lhes deu o domínio sobrecada um dos doze anos de um ciclo. Assim, quem nascesse no anodo rato teria traços de personalidade próprios do animal simbólicodo seu ano. Dizem os chineses que o animal do seu ano de nasci-mento é o animal que se esconde em seu coração.(2)

Dificilmente encontraríamos uma pessoa que jamais tivesse ouvido falarnos signos do Zodíaco, e ao menos em algumas das características atribuídasa cada um. Ainda de acordo com Zacharias, “os signos do Zodíaco são classi-ficados segundo os elementos constituintes da matéria — terra, ar, água efogo —, havendo três signos para cada elemento. O elemento ao qual o signode uma pessoa pertence também influencia bastante os traços de perso-nalidade que ela irá demonstrar”.(3)

A ideia dos quatro elementos é observada também na Grécia antiga, ondeserão postulados pelo grego Hipócrates, considerado o pai da medicina.Conforme ensina Simone Clapier-Valladon, “a doutrina dos quatro humoresde Hipócrates (460-370 a.C.) é uma tipologia que se vincula à divisão quater-nária da cosmogonia de Empédocles e descreve quatro temperamentos”, aseguir elencados:

• À terra quente e úmida, Hipócrates faz corresponder o sangue,humor responsável pelo temperamento sanguíneo. O sanguíneo éde estatura média, musculoso, de rosto corado, frequentementegalhofeiro e de voz forte; é impulsivo, ativo, suporta mal ascontrariedades.

• Ao ar frio e seco corresponde a bílis negra, responsável pelotemperamento melancólico ou nervoso. O nervoso é um indivíduolongilíneo, pouco musculoso, no qual domina a vida interior e aintelectual.

• Ao fogo, quente e seco, corresponde a bílis amarela, que produz otemperamento colérico ou bilioso. Esse temperamento é o doindivíduo ativo, combativo, rápido, organizador metódico, que podeser violento ou sectário.

• À água, indicação de umidade, corresponde a linfa ou fleuma,que se reflete no temperamento do fleumático. Este é um indivíduocorpulento, com tendência à obesidade, lento, calmo, pouco emotivo,perseverante e fatalista.(4)

(2) Entendendo os tipos humanos. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2006. p. 8.(3) Entendendo os tipos humanos, pp. 9-10.(4) As teorias da personalidade. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988. pp. 43-44.

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Cláudio Galeno (129-199), também médico, valer-se-á desta ideia e aampliará, até encontrar 13 possíveis combinações de humores.(5) Da classi-ficação hipocrática, que, a despeito de críticas, teve o mérito de durar 1800anos, Jung chama a atenção para o foco dado ao comportamento emocionalda pessoa, o que, segundo ele, revelaria o destaque do aspecto afetivo nocomportamento humano em geral.(6)

Ao longo do século XX, com o desenvolvimento da Psicologia, muitosoutros sistemas de classificação dos tipos humanos foram propostos, tendoprevalecido, porém, até os dias de hoje, o de Carl Gustav Jung.(7)

Conforme relata Deirdre Bair, em excelente biografia, “quando Jungpublicou Tipos psicológicos, em 1921, Freud (1856-1939) foi um dos primeiros aler — e a rejeitá-lo como ‘a obra de um esnobe e místico, nenhuma ideia nova[...] Não há grande dano a se esperar deste lado’”.(8) O teor de tal comentáriorevela a postura defensiva do mestre em relação àquele que quiçá chegou aser considerado o mais promissor de seus “discípulos”. A principal objeçãolevantada por Freud em relação à obra de Jung era a de que este ainda estavainsistindo, como fizera desde a publicação de Símbolos da Transformação, em1912, que não poderia haver “verdade objetiva” na Psicologia, por causa das“diferenças pessoais na constituição do observador”.(9)

A obra de Freud é monumental, e grande parte dela deve-se ao apuradosenso de observação de seu criador no que tange ao mundo que o cercava.Não seria razoável crer que tivesse escapado ao gênio a percepção de“padrões” de comportamento em pessoas que por tantos anos estiveramsujeitas ao crivo de sua análise. E, de fato, Freud notou a existência de padrões.No entanto, sua descrição destes revela o quanto a percepção desse autor estavanaturalmente vinculada a todo o arcabouço teórico por ele já construído, demodo que ganhou ênfase um certo determinismo das fases do desen-volvimento psicossexual.

Neste sentido, Freud postulou basicamente a existência de quatro fases:oral, anal, fálica e genital, interpondo-se entre as três primeiras e a quarta ochamado “período de latência”. A fixação de vivências havidas em cada umadas três primeiras fases do desenvolvimento psíquico — ou, em linguagemfreudiana, psicossexual — seria de certo modo determinante para a presençade certos traços de comportamento no indivíduo adulto. Assim, experiênciasmarcantes do período de amamentação dariam origem ao “caráter oral”; doperíodo de controle das necessidades fisiológicas, ao “caráter anal”, e as doperíodo de resolução do chamado “complexo de Édipo” estariam por trás do

(5) CLAPIER-VALLADON, Simone. As teorias da personalidade, p. 44.(6) Tipos ..., Anexo: Tipos psicológicos, pp. 470-471, §§ 951/952.(7) PASQUALI, Luiz. Os tipos humanos. Petrópolis: Vozes, 2003. pp. 16-19.(8) BAIR, Deirdre. Op. cit., v. 1, p. 371.

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“caráter fálico” — cada qual com características próprias. E não é por acasoque na Psicanálise fala-se em “caráter”, palavra que se origina do gregokharasséin ou kharakter, significando, respectivamente, gravação e marca.(10)

Por sua vez, conforme veremos mais apuradamente no curso destetrabalho, na tipologia junguiana postula-se a existência de tendências naturais,inatas, independentemente da experiência do sujeito, a despeito dainterferência que essa experiência possa trazer às tendências inatas.(11)

Em fase mais avançada de sua produção científica, Freud empreenderáum esforço específico, voltado à formulação de uma tipologia. Resultado dissoserá um pequeno artigo, de não mais que quatro páginas, intitulado Tiposlibidinais.(12) Publicado em 1931, esse trabalho não passa, na verdade, de umbreve esboço de como seria o tipo humano sob uma perspectiva psicanalítica,diante da prevalência de uma das instâncias do “aparelho psíquico” (ego,superego e id), conforme por ele formuladas. O predomínio do ego confor-maria o tipo narcísico; o predomínio do superego levaria ao tipo obsessivo, e odo id estaria por trás do tipo erótico.

Contudo, depois dessas poucas páginas, Freud não retomou o tema, oque pode ser interpretado como sinal da pouca importância que atribuiu aele.

Carl G. Jung (1875-1961) nasceu em Kesswil, pequena localidade da Suíçaalemã. Era filho de Johann Paul Achilles Jung (1842-1896) e Emilie Preiswerk(1848-1923).(13) Seu pai era pastor protestante, porém sem grande expressãoem sua comunidade. No ano de 1900, após formar-se em medicina, Jungdecidiu especializar-se em psiquiatria, tendo, para tanto, conseguido umavaga num dos mais renomados centros psiquiátricos então existentes, oHospital e Clínica Universitária Psiquiátrica Cantonal de Zurique, maisconhecido como Hospital Mental Burghölzli, onde ficaria até 1909.(14)

A primeira década de sua vida profissional foi suficiente para lhe darrenome internacional como psiquiatra e pesquisador, tendo tido granderepercussão seus experimentos com associação de palavras, por meio dosquais consolidava o postulado da existência do inconsciente e, mais que isso,uma técnica de acesso a seus conteúdos. Não tardou para que se iniciasse

(9) BAIR, Deirdre. Idem.(10) REIS, Alberto O. Advincula. Teorias da personalidade em Sigmund Freud. In: Teorias da personalidadeem Freud, Reich e Jung. São Paulo: Pedagógica e Universitária, 1984. p. 24.(11) Tipos ..., p. 318, § 625.(12) FREUD, Sigmund. Tipos libidinais. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas deSigmund Freud (ESB). v. XXI, pp. 225-228.(13) BAIR, Deirdre. Op. cit., v. 1, pp. 30-35.(14) BAIR, Deirdre. Op. cit., v. 1, pp. 83 e 210.

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intenso relacionamento com Freud, que logo vislumbrou no médico suíço otão desejado herdeiro para a nascente escola da Psicanálise.

Por conta disso, quando fundado um jornal cujo intuito era contribuirpara divulgar os conceitos da Psicanálise — o Jahrbuch —, Jung foi seu editor(15);e quando, em 1910, em Nuremberg, foi fundada a Internationale Psychoa-nalytische Vereinigung (IPV), mais tarde denominada InternationalPsychoanalytical Association (IPA), também por influência de Freud, Jung foieleito seu primeiro presidente, e reeleito em 1911.

A amizade entre os dois pesquisadores floresceu e foi cultivada em meioa uma fértil correspondência, em que debatiam aspectos teóricos, trocavamideias sobre seus pacientes e tratavam da divulgação da nova ciência. Noentanto, ao mesmo tempo em que avançavam na formulação de novosconceitos a respeito da constituição e do funcionamento da psique, as diferençasentre os dois homens foram se evidenciando, até atingir seu ápice no ano de1912. A essa altura, toda a chancela que Freud havia dado a Jung como porta--voz privilegiado dos postulados da Psicanálise, o suíço transformaria agoraem grave ameaça.

Escreve Bair: “Quando o ano de 1912 começou, o ‘dueto’ Freud-Jung aserviço da psicanálise passou a ser um ‘duelo’”.(16) É que nesse ano a discor-dância entre ambos no plano teórico ficou indisfarçável após a publicação,por Jung, de Metamorfoses e Símbolos da Libido, posteriormente intituladoSímbolos da Transformação. Basicamente Jung pôs em cheque a tese, tão cara aocriador da Psicanálise, da primazia da sexualidade na economia libidinal.(17)

Passava, portanto, a representar um sério risco à divulgação do arcabouçopsicanalítico concebido por Freud.

Assim, o mesmo empenho demonstrado por Freud para alçar Jung aotopo do grupo que se esforçava em gestar a nova ciência foi feito, a partir deentão, no sentido contrário, de isolá-lo.(18)

Embora profundamente consternado com a reação de Freud, Jungmanteve-se fiel a seus postulados e, afastado de um sem número de atividadesvinculadas à divulgação da Psicanálise, pôde reservar mais espaço ao desen-volvimento de conceitos próprios, cujo conjunto em pouco tempo receberia onome de Psicologia Analítica.(19)

Mas o que isso tem a ver com nosso trabalho? É que o profundo respeitoque Jung nutria por Freud e pelo mérito de sua obra fê-lo pensar sobre a

(15) BAIR, Deirdre. Op. cit., v. 1, p. 283.(16) BAIR, Deirdre. Op. cit., v. 1, pp. 180, 277, 309.(17) BAIR, Deirdre. Op. cit., v. 1, pp. 276-277. A este respeito, ver também JUNG, Carl G. Memórias,sonhos, reflexões. Tradução de Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. pp. 202-204.(18) BAIR, Deirdre. Op. cit., v. 1, p. 287.(19) BAIR, Deirdre. Op. cit., v. 1, p. 319.

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incompatibilidade de suas percepções de mundo. Nas palavras dopróprio Jung:

Uma pergunta desempenhou um grande papel na gênese desta obra[Tipos Psicológicos]: em que eu me distinguia de Freud? E de Adler?Que diferenças havia entre as nossas concepções? Refletindo sobreisso deparei com o problema dos tipos. É o tipo que precisa e limitade antemão os julgamentos do homem. O livro sobre os tipospsicológicos trata principalmente do confronto do indivíduo com omundo, das suas relações com os homens e coisas. Nele descrevoos diferentes aspectos da consciência, as possibilidades de suaatitude em relação ao mundo. [...] Meu livro sobre os tipos psico-lógicos conclui que todo julgamento de um homem é limitado peloseu tipo de personalidade e que toda maneira de ver é relativa.(20)

A obra de Jung a respeito dos tipos psicológicos, fruto de muitos anos detrabalho, veio a público em 1921, marcando o fim de um longo período derecolhimento e também praticamente de um jejum editorial, atribuído ao seutraumático rompimento com Freud.(21)

A respeito da gênese da obra, um alentado estudo da personalidadehumana, escreve Jung:

Este livro é fruto de quase vinte anos de trabalho no campo dapsicologia prática. Foi surgindo aos poucos no plano mental: àsvezes, das inúmeras impressões e experiências que obtive na práxispsiquiátrica e no tratamento de doenças nervosas; outras vezes, dorelacionamento com pessoas de todas as camadas sociais; de dis-cussões pessoais com amigos e inimigos e, finalmente, da crítica àsminhas próprias idiossincrasias psicológicas.(22)

Consistindo num “exame da personalidade na tentativa de explicar deque modo o inconsciente opera em pessoas diferentes”(23), a teoria dos tiposfaz jus à autointitulação de Jung como empirista(24), por estar estreitamentevinculada à observação da forma de ser dos indivíduos. Como explica Bair,“o ponto de partida de Jung eram insights nascidos no contato com seuspacientes e aplicados à história, começando com o pensamento clássico,

(20) Memórias..., pp. 246-247.(21) SILVEIRA, Nise da. Jung: vida e obra. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. pp. 16-17.(22) Tipos ..., p. 17 (sem paragrafação).(23) BAIR, Deirdre. Op. cit., v. 1, p. 331.(24) “A minha [filosofia] era meramente o ponto de vista empírico. Não pretendia conhecer tudo, queriaapenas fazer a experiência do mundo para ver o que as coisas são”, e, mais adiante: “Não tenho teoriasobre a origem da psique. Tomo os fenômenos tal como são, tento descrevê-los e classificá-los, e a minhaterminologia é empírica, tal como a terminologia da botânica ou da zoologia”. In: MCGUIRE, William;HULL, R. F. C. Entrevistas e encontros. São Paulo: Cultrix, 1982. pp. 236-237.

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passando pela sociedade medieval e o romantismo, e terminando com o quequalificava como época contemporânea exemplificada pelo filósofo WilliamJames e as obras de Carl Spitteler, Friedrich Schiller e Goethe”.(25) A este roltambém pode ser acrescentado o trabalho de Nietzsche, de cuja obra Jung sesentiu à vontade para extrair conclusões a respeito da personalidade dofilósofo, que teria traços típicos de um intuitivo introvertido.(26)

Cabe esclarecer que Jung jamais apresentou sua teoria dos tipos comoalgo absolutamente inovador. No entanto, o suíço inovou ao traduzir em“linguagem psicológica” o que já se sabia a respeito dos “tipos humanos” e,impossível não reconhecer, ao contribuir para o aprofundamento do tema,que municiou com os conceitos da Psicologia Analítica, tais como o de que apsique possui uma dinâmica compensatória(27), importante para que seentenda, entre outras coisas, a relação entre funções principal e inferior, e aindaa relevância desta relação para o chamado processo de individuação, conformeveremos oportunamente.

A nosso ver, o mais notável nesse empreendimento teórico, de baseempírica, é que boa parte do objeto da observação não é somente o comporta-mento propriamente dito, mas também o perfil da elaboração intelectual (interna),que, segundo Jung, seria igualmente expressão do padrão de personalidade(tipo psicológico) de cada pensador. Ora, a repercussão disso no campo daepistemologia é evidente e pode-se dizer que a preocupação em demonstrá--lo foi central na empreitada do gênio suíço, conforme, aliás, depreende-sede suas próprias palavras:

O início de minha carreira se deu em linhas inteiramente freudianas;fui até considerado como seu melhor discípulo. Estive em ótimostermos com ele até a hora em que concluí que algumas coisas eramsimbólicas. Aí Freud não concordou e identificou seu método coma teoria e a teoria com o método. Isto é impossível; não se podejamais identificar método com ciência [...].

Não obstante, tenho plena consciência dos méritos de Freud e nãotenho intenção alguma de diminuí-los. Sei, inclusive, que o que ele

(25) Op. cit., v. 1, p. 331.(26) “O fato de Nietzsche enfatizar, por um lado, a função psicológica da intuição e, por outro, a funçãoda sensação e do instinto, é característico de sua própria psicologia pessoal. Deve-se reconhecê-lo comointuitivo, com tendência para o lado introvertido. Em favor da primeira, fala sua arte de produçãoeminentemente intuitivo-artística, da qual é característica a obra O Nascimento da Tragédia e ainda maiscaracterística sua obra principal Assim falou Zaratustra. [...] Sua falta de moderação racional e concisãoapontam-no como tipo intuitivo em geral. Nestas circunstâncias não surpreende que, em sua primeiraobra, dê proeminência inconsciente à sua psicologia pessoal. Isto é bem próprio da atitude intuitiva quepercebe o exterior através do interior, mesmo às custas da realidade.” Tipos ..., p. 147, § 225.(27) “[...] considero a atividade do inconsciente como equilibração da unilateralidade da atitude geral,causada pela função da consciência” (In: Tipos..., p. 399, § 774).

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diz se adapta a uma grande parte das pessoas, e é possível afirmarque tais pessoas têm exatamente o tipo de psicologia que eledescreve. Adler, cujo ponto de vista era completamente diverso,também tem um grande número de seguidores, e estou convencidode que muitos têm uma psicologia adleriana. Também tenho os meus— não tão numerosos quanto os de Freud — eles são pessoas quetêm presumivelmente a minha psicologia. Chego a considerar minhacontribuição como minha própria confissão subjetiva. É a minhapessoa que está nisso, meu preconceito que me leva a ver os fatosde minha própria maneira. Mas espero que Freud e Adler façam omesmo e confessem que suas ideias representam pontos de vistasubjetivos. Desde que admitamos nosso preconceito estaremosrealmente contribuindo para uma psicologia objetiva.(28)

Vemos, portanto, que a aparente impossibilidade de conciliar os pontosde vista de Freud e Adler levou Jung a perceber com grande clareza o vínculoexistente entre a produção intelectual e o universo subjetivo que a gerou,com consequências imensas para a Filosofia da Ciência, talvez ainda malexploradas. Segundo Jung, analisado o mundo a partir da perspectivapsicológica de cada tipo, resultariam daí tantos pontos de vista teoricamentepossíveis quantos fossem os tipos, fato que torna “a crítica dos pressupostospsicológicos, quando da formação de qualquer teoria (...) uma necessidadeimperiosa”.(29)

Tal postulado abre as portas para o que Jung chamou de “psicologiacrítica”, que nada mais representa do que a consciência de que a Psicologiadesenvolvida por Freud traz, necessariamente, as marcas de sua persona-lidade, de seus preconceitos, e assim por diante. Neste cenário, não há “ver-dades” possíveis, num sentido neutro, objetivo, absoluto. Paradoxalmente,quanto mais consciência se tiver dessa relatividade, mais objetividade serápossível alcançar.

Podemos extrair daí a conclusão de que a busca de uma “verdade” nãopoderá jamais deixar de ser um empreendimento coletivo, cujos resultadossão inapreensíveis, também, por um único indivíduo, e justamente por contade suas idiossincrasias. Ao mesmo tempo, quanto mais tolerância houver emrelação às diferenças, mais produtiva tenderá a ser a empreitada científicaconsiderada como um todo:

(28) Fundamentos de psicologia analítica (CW XVIII/1). 12. ed. Tradução de Araceli Elman. Petrópolis:Vozes, p. 116, §§ 274/275. “Quarta Conferência”.(29) A prática da psicoterapia (CW XVI/1). 10. ed. Tradução de Maria Luiza Appy. Petrópolis: Vozes,2007. p. 109, § 236. No mesmo sentido: A natureza da psique (CW VIII/2). 5. ed. Tradução de Pe. DomMateus Ramalho Rocha, OSB. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 61, § 260, onde se lê: “Uma crítica destaespécie seria de imenso valor não só para o círculo mais estreito da psicologia, como também para ocírculo mais vasto das ciências em geral”.

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[...] cada teoria sobre os processos psíquicos deve admitir que elamesma é válida como um processo psíquico, como expressão deum tipo da psicologia humana, existente e com direito à existência.Unicamente dessas descrições típicas provêm os materiais cujacooperação [grifo no original] torna possível uma síntese maior.(30)

Quando nos deparamos com a teoria junguiana dos tipos psicológicos,nela reconhecemos uma possível ferramenta de análise das influências dopsiquismo do juiz em sua produção jurídica. Longe de cair num psicologismo,fato é que, parafraseando Jung, não gostaríamos de perder jamais esta novaperspectiva, que não apenas fornece meios para otimizar nossos esforçosenquanto profissionais do Direito, mas também abre campo para a produçãode um Direito mais crítico.

2. CONCEITOS FUNDAMENTAIS

As quatro funções são algo como os quatro pontos cardeais, tão arbitráriase tão indispensáveis quanto estes. Não importa que os pontos cardeaissejam deslocados alguns graus para a esquerda ou para a direita, ou querecebam outros nomes. É apenas questão de convenção e compreensão.

Mas, uma coisa devo confessar: não gostaria de perder nunca mais estabússola em minhas viagens de descobertas. Não só devido ao fato muitonatural e humano de que cada qual ama suas ideias, mas devido ao fatoobjetivo de que, com isso, temos um sistema de medida e orientação quetorna possível o que nos faltou por muito tempo: uma psicologia crítica.

Carl G. Jung(31)

A teoria dos tipos psicológicos, resultado do esforço de Jung visando àcompreensão das diferenças entre as pessoas, levou muitos anos para serdesenvolvida, tendo sido, conforme vimos, fundamental todo um trabalhoempírico de observação. Sempre muito perspicaz em seus empreendimentosteóricos, Jung não deixou de reconhecer a complexidade de um trabalho dessanatureza, tendo em vista as nuanças existentes entre as pessoas, em partedevidas à atuação de “uma tendência especial a compensar a unilateralidade”do tipo, “gerando caracteres ou tipos secundários que apresentam umaconformação extremamente difícil de elucidar, tão difícil que seria preferívelnegar a existência dos tipos e acreditar nas diferenças individuais”.(32)

(30) Tipos..., p. 458, § 930.(31) Tipos psicológicos: conferência pronunciada no encontro de médicos de doentes mentais, Zurique,1928 — íntegra, na qualidade de Anexo, a edição brasileira da obra Tipos psicológicos, cit., pp. 497-498,§§ 1029/1030.(32) Tipos..., p. 20, § 3.

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