43686 zanella trabalho como principio educativo

Upload: silvia-santos

Post on 08-Jul-2015

241 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO PS-GRADUAO EM EDUCAO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E HISTRIA DA EDUCAO

O TRABALHO COMO PRINCPIO EDUCATIVO DO ENSINO

JOS LUIZ ZANELLA

CAMPINAS SP, OUTUBRO DE 2003

2

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO PS-GRADUAO EM EDUCAO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E HISTRIA DA EDUCAO

O TRABALHO COMO PRINCPIO EDUCATIVO DO ENSINO

JOS LUIZ ZANELLA

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao, Faculdade de Educao, Universidade Estadual de Campinas, como requisito parcial obteno do ttulo de doutor em Educao.

Orientador: Prof. Dr. Jos Luis Sanfelice

CAMPINAS SP, OUTUBRO DE 2003

3

TERMO DE APROVAO

JOS LUIZ ZANELLA

O TRABALHO COMO PRINCPIO EDUCATIVO DO ENSINO

Tese aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Doutor no Curso de Ps-graduao em Educao, Faculdade de Educao, Universidade Estadual de Campinas, SP, pela seguinte banca examinadora:

Orientador:

Prof. Dr. Jos Luis Sanfelice Unicamp Prof. Dr. Celso Joo Ferretti UNISO Prof. Dr. Gaudncio Frigotto UFF

Prof. Dr. Luis Enrique Aguilar Unicamp Prof. Dr. Srgio Eduardo Montes Castanho Castanho Unicamp

CAMPINAS, SP, outubro de 2003

4

SUMRIO

Introduo ............................................................................................................ 001

CAPTULO I: O TRABALHO NOS CLSSICOS: RICARDO E MARX . 021 1.1. O trabalho na perspectiva liberal: Ricardo .................................................. 021 1.1.1. A Teoria do Valor - Trabalho ................................................................... 023 1.2. O trabalho em Marx ..................................................................................... 036 1.2.1. Consideraes iniciais: Pressupostos da abordagem marxiana ................ 036 1.2.2. A concretude do trabalho .......................................................................... 039 1.2.3. As metamorfoses do trabalho concreto na sociedade capitalista ............. 048 1.2.3. O trabalho concreto diante das mquinas .................................................. 057

CAPTULO II: O TRABALHO NO SCULO XX: DO FORDISMO AO PS-FORDISMO.................................................................... 067 2.1. O trabalho sob o taylorismo/fordismo ......................................................... 068 2.2. O trabalho no ps-fordismo:......................................................................... 074 2.3. A classe trabalhadora no ps-fordismo: a (no) centralidade do trabalho?.. 084

CAPTULO III: TRABALHO E CINCIA: HEGEMONIA DO TRABALHO IMATERIAL?................................................................................................... 099 3.1. Determinaes da sociedade informtica no trabalho ................................. 104 3.2. Trabalho imaterial ........................................................................................ 113

CAPTULO IV: TRABALHO E ESCOLA PBLICA ................................ 141 4.1. A formao do trabalhador nas Corporaes .............................................. 142 4.2. Da manufatura fbrica: em busca da escola para todos ........................... 150 4.3. Escola e classe social ................................................................................... 172 4.4. A escola do capital ...................................................................................... 176 4.5. A escola da classe trabalhadora .................................................................. 184

5

CAPTULO V: TRABALHO E ENSINO NA SOCIEDADE CAPITALISTA CONTEMPORNEA ................................ 191

5.1. O capital produz o professor pesquisador/ ensino reflexivo ....................... 192 5,1,1. A corrente inglesa: professor pesquisador ............................................ 194 5.1.2. A corrente americana: o ensino reflexivo ............................................. 199 5.2. A classe trabalhadora produz o ensino a partir do trabalho como princpio educativo .................................................................................................... 221

CAPTULO VI: O ENSINO DO CONCRETO ............................................ 227

6.1. Pressupostos da filosofia da prxis para o ensino do concreto.................... 227 6.2. Do concreto emprico ao concreto pensado................................................. 264 6.3. O ensino do conceito.................................................................................... 278

CONCLUSO ................................................................................................. 295 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ......................................................... 305

6

RESUMO

Este estudo tem como objetivo analisar as determinaes do trabalho e do mundo do trabalho no ensino escolar pblico. Mostra, a partir da filosofia da prxis, que a defesa da centralidade do trabalho est relacionada a defesa do ensino e da cincia ao mesmo tempo. Para tanto, a anlise busca explicitar os pressupostos terico-metodolgicos da filosofia da prxis, mostrando que a defesa do ensino do concreto como sendo o ensino do conceito, este entendido como sendo o conceito cientifico e filosfico, pressupe, para o professor, clareza ontolgica, antropolgica, epistemolgica e de prxis. A defesa do ensino a partir da defesa do trabalho, neste estudo, expressa uma primeira aproximao de crtica as tendncias de ensino denominadas de ensino reflexivo, professor pesquisador e construtivistas. Mostra que estas tendncias de ensino negam a centralidade do trabalho, ao mesmo tempo que negam o ensino da cincia na perspectiva da filosofia da prxis e articulam-se com o trabalho flexvel da reestruturao do capitalismo. So, portanto, tendncias do ensino do capital que expressam uma viso de mundo neoliberal e, na maioria dos casos, ps-moderna. A nfase da tese consiste em investigar o processo de trabalho a partir da teoria do valor, primeiramente no pensamento de Ricardo e, depois na constituio da filosofia da prxis em Marx. A pesquisa cientfico-filosfica de Marx sobre o processo de trabalho nas suas diferentes mediaes e dimenses, bem como a forma da organizao do trabalho numa determinada sociedade, crucial para a apreenso do que seja o homem como ser de trabalho e das formas que o processo de trabalho assume na sociedade capitalista. Com base em Marx, torna-se possvel a historicizao da categoria trabalho no desenvolvimento da sociedade capitalista. Na perspectiva do materialismo dialtico faz-se uma breve anlise do trabalho no sculo XX demarcando sua passagem - em processo - do fordismo ao ps-fordismo no sentido de verificar que h uma tendncia positiva de avano da tecnologia enquanto materializao das cincias nas atividades produtivas. Este avano est na tendncia de ampliao do trabalho imaterial que traz consigo exigncias de qualificao tecnolgica. Mas, estas transformaes do processo de trabalho ocorrem na lgica de desenvolvimento da sociedade capitalista. Ampliam-se as contradies entre riqueza produzida e excluso social e entre a possibilidade concreta de trabalho livre emancipador e trabalho flexvel precarizado. Permanece a alienao do trabalho e a classe que vive do trabalho v-se cada vez mais fragmentada. Estas determinaes do trabalho trazem determinaes a escola pblica atravs de diferentes mediaes. Na tica do capital, a escola pblica restringe-se a formar o trabalhador coletivo para atender as demandas do processo produtivo tal como requer a organizao do trabalho. No ps-fordismo, trata-se de formar o trabalhador polivalente. Na tica da classe trabalhadora, a escola pblica tem no trabalho concreto industrial mais desenvolvido seu princpio educativo. A formao requerida omnilateral, tecnolgica, de emancipao humana e social. A presente tese retoma e reafirma os postulados da filosofia da prxis sobre as relaes entre processo produtivo, escola e ensino para mostrar que o ensino do concreto

7

ocorre como uma atividade no e do pensamento, pela mediao do trabalho como princpio educativo. ABSTRACT

This thesis has an objective to analyse the determinations of the working and the world of working in the public school system. It shows, from the praxis philosophy, that the defense of working centrality is related to the defense of teaching and the science both at the same time. In order to do so the analysis intends to explicit the theoretical-methodological framework of the praxis philosophy. It will show that the teaching of concreteness defense is the teaching of concept, the latter considered as a scientific and philosophical concept, which assumes, to the teacher, knowledge of ontologic, anthropologic, epistemologic and praxis. The defense of teaching from the defense of working, in this thesis, states a first criticism approach to the as named reflexive teaching, researcher teacher, and constutivists trends. It also shows that these teaching trends deny the centrality of working, at the same time deny the teaching of science based on praxis philosophy perspective, besides that it is articulated with the flexible working from capitalism restructuration.These trends are, therefore, trends of capitalism teaching which states a neo liberal view of the world, and in most of the cases a pos modern view. The thesis emphasis is based on the working process investigation from a theory of the value, based mainly on Ricardo thinking, afterwards on the praxis philosophy constituition in Marx. The Marx scientific-philosophic research about the working process in its different mediations and dimensions, as well as the way of organization of working in a determined society, is fundamental to the comprehension of what means to be a human being as a working being and the ways that the process of working takes on a capitalist society. Based on Marx, it is possible the work category historicization on the capitalist society development. In the dialectic materialism perspective a brief analysis of working during the xx century is made in order to delimit the production process changing from the fordism to the pos fordism. It has been done in order to verify that there is a positive technology development trend as a science materialization on the productive activities. This advance is on the trend of non-material working development that brings technological qualification demands. However these working process transformations happen based on the capitalist society development. The contradictions between richness production and social exclusion are broader and this relation is also broader between the real possibility of a free and empowerment work and the conditions of working more flexible and precarious. The working alienation and the class which lives from these works remains and it is more and more divided. These working determinations affect the public by different mediations. Following the capitalist point of view, the public school must produce the collective worker in order to supply the productive process demands just like the working organization demands. Following the pos fordism point of view, the public school must produce a multi skilled worker. Following the working class point of view, the public school has developed its educative principles in the concrete industrial working. The formation demanded is multiple, technological and human and socially empowered.

8

This thesis review and re-states the praxis philosophy foundations about the relations between the productive process and school and teaching in order to show that teaching of concrete takes place like an activity, from and on the thinking, by the working mediation as a educative principle.

INTRODUO

A presente tese busca mostrar que, no mbito da formao de professores e do ensino, o processo de trabalho constitui-se no princpio educativo para a compreenso do real concreto, ou seja, do conceito. Em face desse pressuposto, mostra-se que a proposta do professor pesquisador/professor reflexivo, tal como se apresenta no cenrio decorrente do processo pedaggico, tem como resultado o seu contrrio: a apreenso da aparncia do fenmeno atravs de uma reflexo mecnica e que o caminho de formao do professor que compreenda a realidade em sua complexidade o da compreenso do real concreto. Este um processo de trabalho psicofsico material e imaterial com suas diferentes nfases. Da o desafio inicial de responder a questo: Por que uma tese sobre a defesa do ensino do real concreto tendo a categoria trabalho como central? A resposta1 a esta questo remete, num primeiro momento, minha histria de vida e, em seguida, em continuidade a essa mesma histria, a uma necessidade do ser professor nos dias atuais numa perspectiva histrico-crtica.21

O propsito da presente pesquisa no consiste em apresentar solues conclusivas para esta questo complexa. Trata-se, isto sim, de formular adequadamente o problema. No dizer de Saviani (1996) o que caracteriza um problema no uma questo em si cuja resposta seja desconhecida, mas uma questo cuja resposta se desconhece e se necessita conhecer, eis a um problema (p. 14). Assim, a necessidade a essncia do problema. 2 Entende-se por perspectiva histrico-crtica o posicionamento poltico coerente com a classe social a que se pertence, em nosso caso, a classe que vive de seu trabalho. E, por extenso a viso de mundo dessa classe,

A minha histria marcada por uma filosofia de vida que tem no trabalho o centro e o sentido da existncia. Trata-se de uma viso de mundo herdada de meus familiares, de origem italiana, que ao se estabelecerem na cidade de Paim Filho, RS, no incio do sculo XX, diante da necessidade de vencer a natureza, gestaram esta viso de mundo de que o valor das coisas advm do trabalho. Na educao dos filhos, por exemplo, os pais sempre enfatizavam que estes s do valor s coisas quando sabem o quanto custou para produzilas, ou seja, de que os filhos deveriam, desde pequenos, ser educados no e para o trabalho. Mas, que trabalho era esse? Era o trabalho da agricultura familiar3, que se caracterizava por ser basicamente manual, intenso, pesado e desgastante sendo os mais executados a capina, a colheita de milho, feijo e trigo e a criao de animais - , contudo era um trabalho que trazia dignidade e realizaes. Junto a essa filosofia do trabalho na famlia avs e pais , formou-se uma filosofia de valores centrados na religiosidade catlica4 no autoritarismo e na obedincia. A influncia da religio era marcante no sentido de justificar o sofrimento pelo trabalho. A autoridade se legitimava por uma hierarquia que se fundamentava na religio: Deus, a Igreja, a famlia e, nela, a autoridade do pai como extenso da autoridade de Deus. Lembrome de que meu av paterno dizia: em casa onde muitos querem mandar no se faz nada e

apresenta-se como uma filosofia, a qual teve seu mais alto grau de sistematizao com Marx e denominada, dentre tantos outros nomes, de filosofia da prxis. Sobre a opo de classe e a relao orgnica entre poltica e filosofia, assim se expressa Gramsci: Existem diversas filosofias ou concepes de mundo, e sempre se faz uma escolha entre elas. Como ocorre esta escolha? esta escolha um fato puramente intelectual, ou um fato mais complexo? E no ocorre freqentemente que entre o fato intelectual e a norma de conduta exista uma contradio? Qual ser, ento, a verdadeira concepo de mundo: a que logicamente afirmada como fato intelectual, ou a que resulta da atividade real de cada um, que est implcita na sua ao? E, j que a ao sempre uma ao poltica, no se pode dizer que a verdadeira filosofia de cada um se acha inteiramente contida na sua poltica? (Gramsci, 1999, pp. 96-97).

Agricultura familiar uma forma de trabalho do campo em que pai, me e filhos produzem e vivem de sua prpria produo. 4 Essa religiosidade catlica se caracterizava nos princpios da filosofia patrstica e escolstica. Era ntida a separao entre corpo e alma, terra e cu, sendo a terra um vale de lgrimas, e o corpo o lugar dos desejos e dos pecados. A exemplo do modo de vida da Idade Mdia, meus familiares foram educados para obedecerem s autoridades constitudas, pois essas, no caso da religio, eram as mediadoras entre os homens e Deus. Alm disso, sacrificar o corpo mediante o trabalho era uma forma de atenuar os pecados e ganhar o cu. Trabalhava-se cerca de quatorze horas dirias, e, toda a noite, em casa, rezava-se o tero. Descanso somente no domingo quando se ia missa e se confessava, na parte da manh, e, tarde, rezava-se o tero na capela.

3

2

tudo vira baguna. Havia averso democracia, ao dilogo e admirava-se o regime militar ps-64. Diante das transformaes da sociedade e da vontade de meus pais de quererem o melhor para sua prole, impunha-se o desafio de dar estudo aos filhos como caminho para a ascenso social e, ao mesmo tempo, como uma fuga do trabalho extenuante da lavoura. Estudar significava trabalhar menos e, portanto, sofrer menos, alm de ter a possibilidade de uma vida mais confortvel. Mas, tambm, havia uma conscincia muito forte de que as pessoas estudadas no eram dominadas e enganadas pelos outros. Na famlia e no meu caso, em particular, era forte a indignao pela injustia a que eram submetidos os agricultores. Ser agricultor era ser inferior, gente de segunda classe. Na cidade, ramos ridicularizados. Essa inferioridade advinha da forma como ns, agricultores, ramos explorados em nosso trabalho, pois os comerciantes, na cidade, determinavam a seu gosto o quanto pagariam por nossos produtos. Na minha infncia, indagava: por que ns, que trabalhamos bastante, ganhamos to pouco enquanto os comerciantes, que trabalham to pouco, ganham muito? Por que o mundo assim? Foi com este propsito, o de conseguir melhores condies de trabalho, que samos de casa, ainda na adolescncia, para estudar. A cidade, distante 7 Km de casa, era um outro mundo. Parando na casa de estranhos e tendo de conciliar trabalho e estudos, fomos, aos poucos, vencendo as resistncias. Na escola, no tempo do Ginsio, sofremos com o preconceito e a discriminao. O colegial, feito no incio dos anos 80 em Curitiba, foi marcado por novos desafios. O mundo da cidade grande impunha-se como algo estranho e difcil de ser superado. A convivncia com pessoas, cujo modo de vida era totalmente diferente de minha origem, a dependncia dos pais, a dificuldade de conseguir uma disciplina de estudos tinha um rendimento medocre nos estudos - e a necessidade de arrumar um emprego, alm da angstia do vestibular, faziam com que ns nos sentssemos incapazes e sem esperanas. Diante da reprovao no exame vestibular, havia, para sobreviver, somente um caminho: trabalhar. Fiz cursos no SENAC e, depois de muita luta, consegui meu primeiro emprego numa empresa de contratao de trabalhadores temporrios. L conheci de perto a

3

violncia a que so submetidas parcelas significativas de trabalhadores temporrios da cidade. Depois, trabalhando num Banco, verifiquei o drama de ver colegas serem demitidos repentinamente, sem saberem o porqu. Na Igreja, na militncia de grupos de jovens, pude conhecer a vida e o trabalho das pessoas que vivem nas favelas. A revolta diante dessa realidade e o desnimo frente falta de expectativas de vida no cenrio mundial da Guerra Fria, fizeram com que retomssemos os estudos ingressando na Faculdade de Filosofia na PUCPR. Fazer filosofia significava, num primeiro momento, tentar compreender melhor o mundo e, com isso, ter um sentido mais racional da vida. O segundo momento era uma incgnita. Poderia ser tudo, menos professor, embora o curso oferecesse licenciatura para filosofia, sociologia, histria e psicologia. Por que esta averso profisso de professor? Naquele momento, em 1984, entendia que ser professor era algo sem futuro, uma profisso inferior, desgastante, que exigia muito e dava pouco retorno. Somando-se a isso, no meu caso, considerava-me sem talento ou jeito para exercer essa profisso. Isto se justificava porque sempre tive uma personalidade tmida, insegura, de pouca conversa e que evitava, ao mximo, a exposio em pblico. Ser professor, no meu entender, era expor-se aos alunos e isso exigia atributos como o excelente domnio dos conhecimentos e de como trabalhar com as pessoas. E essas eram qualidades que julgava no ter. Concluda a Faculdade de Filosofia, em 1986 - a qual atendeu em parte aos meus objetivos, uma vez que ainda no havia definido uma profisso e, ao mesmo, tempo, ainda estava inseguro em virtude de uma inferiorizao diante dos conhecimentos da filosofia resolvi, ento, dedicar-me ao comrcio de madeiras no Mato Grosso e depois no Paran. Diante do fracasso dessa atividade, da falta de recursos e do desemprego, restou-me, como ltima alternativa de sobrevivncia, a indesejvel situao de assumir a profisso de professor. O ingresso no magistrio foi difcil. O fato de ter feito faculdade de filosofia, de ser agricultor, de militar no Sindicato dos Trabalhadores Rurais e no Partido dos Trabalhadores, numa cidade pequena, Dois Vizinhos, PR, eram traos de um perfil considerado inaceitvel para um professor, segundo as autoridades gestoras da educao

4

local. Ingressei no magistrio em todos os nveis - municipal, ensino fundamental/mdio e superior mediante concurso pblico. Vale destacar que, durante a faculdade de filosofia, adquiri aquilo que Gramsci denomina disciplina de estudos prpria que, na concepo da escola unitria, acontece j no Ensino Mdio e que se caracteriza por ser uma fase criadora ou de trabalho autnomo e independente; da escola com disciplina de estudo imposta e controlada autoritariamente [fase inicial da escola unitria], passa-se a uma fase de estudo ou de trabalho profissional na qual a autodisciplina intelectual e a autonomia moral so teoricamente ilimitadas (Gramsci, 2000 a, p. 38). Ou seja, j na faculdade, e depois dela, tinha o hbito de adquirir livros5 e de ler continuamente no por uma exigncia pragmtica, mas pelo simples fato de querer compreender a sociedade e o homem e, com isso, atuar com melhor acerto em todas as atividades. Hoje, avalio que foi graas a este hbito de estudo, feito em grande parte fora da escola, que ingressei nos concursos pblicos do magistrio e, depois, no Mestrado e Doutorado. Penso que aqui est a segunda razo do porqu desta tese: o desafio do trabalho docente numa perspectiva histrico-crtica. Pela necessidade material da vida, assumi a profisso de professor, qual me dediquei totalmente superando os preconceitos pessoais. Ser professor sempre foi, para mim, um desafio imenso. Sentia o peso da responsabilidade no sentido de oferecer o melhor ensino aos alunos. Sempre me indagava se estava agindo corretamente e sempre ficava a insatisfao de nunca estar suficientemente bem preparado. Os problemas dos alunos dificuldades de aprendizagem, conflitos etc. eram tambm considerados como problemas do professor. Apesar da formao acadmica e das leituras realizadas, tenho enfrentado, desde o incio da profisso de professor, muitas dificuldades.6 O trabalho docente, em sala de aula,Foi numa feira de livros de uma pequena escola na cidade Barra do Bugres, MT, em 1987, que conheci e adquiri o livro Escola e Democracia de Dermeval Saviani. Esse livro me situou no debate acadmico. Havia, h pouco tempo, concludo a faculdade e tinha dificuldade de transitar entre as diferentes teorias. Dentre outros livros adquiridos destaco a coleo Os Pensadores. Com muitas limitaes, tinha interesse e procurava ler, em parte, algumas das principais obras dos grandes filsofos. 6 Nosso principal desafio consistia em conciliar a participao dos alunos na relao com o conhecimento elaborado a ser ensinado. Entre o pensar dos alunos seus conceitos e os conceitos elaborados h, em sala5

5

no contexto atual, impe-se como um desafio permanente, que aumenta quando o professor comprometido com uma educao que busca a emancipao do homem concreto atravs da superao da sociedade capitalista. Destaco outra problemtica que motivou esta pesquisa. No trabalho de professor universitrio no curso de Pedagogia, na disciplina formao de professores, participamos no perodo de 1987 at o final de 2000, de um projeto de extenso denominado Vida na Roa.7 Esse projeto articula o desenvolvimento sustentvel do campo com a escola pblica do campo e, nela, a formao do professor. Chamou-me a ateno a reflexo de uma professora da terceira srie quando levou os alunos a visitarem uma propriedade e l eles constataram as diferenas entre o trabalho manual e o trabalho intelectual no interior daquela famlia de agricultores considerada modelo dentro do projeto. Diante das questes dos alunos referentes a esta problemtica, a professora deparou-se com a seguinte questo numa reunio de estudos: como destrinchar esta realidade?. Ou seja, a professora via-se sem elementos tericos para dar conta da problemtica. Conhecer no concreto com os alunos no era somente ir propriedade e registrar o que se tinha visto. Tambm no era somente fazer contas, produo de textos e maquetes sobre a atividade na propriedade. Conhecer no concreto, pressentia aquela professora sem formao acadmica, era ir alm do emprico e desvelar o funcionamento dessa realidade. E nisso a professora no conseguia avanar, apesar das atividades constantes de formao8 no desenvolvimento do projeto.de aula, uma srie de mediaes complexas que exigem do professor um preparado acadmico bem fundamentado. Como equilibrar a espontaneidade (vontade do aluno) com a autoridade (conhecimento a ser ensinado)? Como formar o hbito de estudo? Como lidar com as crianas das sries iniciais do ensino fundamental no sentido de construir nelas o hbito de estudos? Como ensinar para adolescentes que, por caractersticas da idade, so contestadores? Na linguarem dos professores: como colocar limites nos alunos? Como fazer para que o ensino do conceito elaborado seja compreendido e assumido pelos alunos? 7 O Projeto Vida na Roa o resultado de uma parceria interinstitucional de entidades: Unioeste Campus de Francisco Beltro, Assesoar Associao de Estudos, Orientao e Assistncia Rural (ONG), Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Prefeitura Municipal de Francisco Beltro e Comunidades do campo, com tempo de durao indeterminado, para atuarem no desenvolvimento de comunidades rurais de Francisco Beltro, PR. 8 A formao segue a linha da pedagogia do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (Caldart, 2000), com muita nfase formao humana no sentido da educao escolar responder s necessidades especficas dos agricultores familiares do campo. Trabalha-se com temas geradores e h uma averso aos contedos ou Pedagogia Histrico-Crtica. A formao feita com atividades pontuais conforme as demandas vindas dos professores e dos agricultores. Fazem-se muitas oficinas pedaggicas e projetos de ensino vinculados ao cotidiano. Na minha atuao nesse projeto tive muitos embates com a equipe institucional, chegando a ser inclusive marginalizado. Em um dos meus relatrios de 1999 h uma referncia a esta problemtica: Fala do

6

Quando, em 1995, ingressamos no Mestrado em Educao metodologias de ensino buscamos pesquisar o ensino no sentido de superar nossas dificuldades. Dentre as muitas abordagens sobre o ensino, chamou-me a ateno a proposta do professor reflexivo (Shn e Zeichner) e do professor pesquisador (Stenhouse e Elliott). Num primeiro momento, por no ter clareza terica, entendia que essas abordagens eram um prolongamento da proposta de ensino que tem na prxis marxiana sua articulao entre prtica e teoria. Durante a pesquisa, na elaborao da dissertao, pude verificar que a proposta do professor reflexivo/pesquisador tem um enfoque terico que se ope filosofia da prxis. A dissertao, cujo ttulo As metamorfoses da educao: o ensino reflexivo luz da filosofia da prxis, foi uma primeira aproximao para uma crtica proposta metodolgica do professor reflexivo/pesquisador. Verificamos, ento, que em nenhum momento autores do ensino reflexivo Schon (1995), Zeichner (1993), Gomes (1995), Elliott (1990), Nvoa (1995), Stenhouse (1990) fazem referncia Filosofia da Prxis. O movimento do ensino reflexivo ou do professor pesquisador pretende fazer a crtica racionalidade tcnica, mediante uma nova praxiologia com nfase na reflexo pesquisa-ao (Elliott, 1990) ou ao pensamento reflexivo (Dewey, 1953) com destaque aos fins ticos e polticos das aes (Habermas apud Gomes, 1995), sem levar em conta a filosofia da prxis. Por que a negligncia do marxismo na crtica racionalidade tcnica? A categoria da prxis marxiana no teria maior potencial de anlise que a concepo de prtica em Dewey ou a concepo de prxis aristotlica para se fazer um ensino reflexivo? O marxismo no um humanismo? Por que no a reflexo no ensino fundamentada na concepo da filosofia da prxis9? Persistiam nossas indagaes: seria possvel um ensino reflexivo humanista sem uma crtica concreta e radical ao modo de produo capitalista? Qual a concretude do modo de produo capitalista na atualidade e quais suas implicaes na escola e no ensino? DianteMarcos [prof da Assesoar e membro da equipe]: no precisa saber muito de matemtica para ensinar matemtica; contedo o que a gente faz; o contedo a gente extrai das falas dos alunos. A abordagem que faremos sobre o professor pesquisador/reflexivo, desenvolvida no captulo V, tem como finalidade apresentar os pressupostos dessa tendncia sem fazer uma anlise que incorpore por superao as contribuies da mesma.9

7

de tanta nfase prtica, ao e a esta nova praxiologia, presente na abordagem do professor reflexivo e das polticas do Banco Mundial, vemos a necessidade de uma investigao que demonstre em que consiste, de fato, o concreto e em que consiste, no mbito da escola pblica, o ensino do concreto. Entendemos que necessrio explicitar qual nossa concepo de prtica e de concreto ou, noutros termos, como concebemos o real e de que forma podemos conhec-lo verdadeiramente, para que possamos transform-lo. Embora tenhamos um volume elevado de estudos no Brasil sobre as problemticas de ensino, nas mais diferentes concepes, entendemos que esta uma questo que precisa ser retomada neste atual contexto histrico10, principalmente no interior de uma pedagogia que esteja articulada com os interesses da classe-que-vive-do-trabalho11. Situamos-nos no interior da pedagogia histrico-crtica12, tal como foi

elaborada no Brasil por Dermeval Saviani. Essa pedagogia, com seu aporte tericometodolgico no materialismo histrico dialtico, teve elevada aceitao em muitos segmentos dos professores e em Secretarias Estaduais de Educao13, no final dos anos 80 e incio dos anos 90, e, agora, tem sido relegada e at negligenciada por razovel parte desses mesmos professores e instituies de ensino. Freitas (2002) contextualiza essa problemtica da seguinte forma:

Refiro-me reestruturao produtiva do modo de produo capitalista e viso de mundo ps-moderna e neoliberal que, na escola pblica, tem produzido tendncias tericas que negam o ato de ensinar, como, por exemplo, as abordagens do construtivismo, do professor pesquisador e do ensino reflexivo. 11 A expresso classe-que-vive-do-trabalho de Ricardo Antunes (2000). Antunes verifica que, com a reestruturao produtiva do capital, a classe trabalhadora tornou-se mais complexa, fragmentada e heterognea. Perdeu-se de certa forma aquela identidade materializada no proletariado estvel de mo-de-obra praticamente manual. Antunes verifica que h uma ampliao da classe trabalhadora que constituda de trabalhadores produtivos, trabalhadores improdutivos e de trabalhadores hifenizados. Da a denominao classe-que-vive-do-trabalho para dar conta dessas metamorfoses. 12 Nesta tese o nosso posicionamento no consiste em ir contra ou a favor da Pedagogia Histrico-Crtica. Assinalamos que encontramos nessa pedagogia um sentido para o trabalho docente, primeiramente num plano pessoal e, depois, num plano mais objetivo, quando visualizamos que essa pedagogia estrutura-se a partir do trabalho como princpio educativo. Sendo assim, esta tese filia-se a essa pedagogia, incorporando consideraes da mesma que nos parecem enriquecedoras a esta perspectiva por ns assumida. 13 O Estado do Paran foi um desses exemplos de insero da pedagogia histrico-crtica como poltica educacional oficial mediante elaborao com razovel participao de segmentos de professores do Currculo Bsico da Escola Pblica do Estado do Paran na dcada de 1980.

10

8

(...) Se a dcada de 1980 representou, para os educadores, o marco da reao ao pensamento tecnicista das dcadas de 1960 e 1970, os anos 90, contraditoriamente, foram marcados tambm pela centralidade no contedo da escola (habilidade e competncias escolares), fazendo com que fossem perdidas dimenses importantes que estiveram presentes no debate dos anos 80. A nfase excessiva do que acontece na sala de aula, em detrimento da escola como um todo (...), o abandono da categoria trabalho pelas categorias da prtica, prtica reflexiva, nos estudos tericos de anlise do processo de trabalho, naquele momento histrico da abertura poltica e da democratizao da escola, recuperavam a construo dos sujeitos histricos professores como sujeitos de suas prticas. (Freitas, 2002, p. 142, grifos da autora)

A que se deve atribuir esse recuo da pedagogia histrico-crtica, enquanto movimento social, na prtica de ensino dos professores e no interior das instituies de ensino? Haveria uma relao entre a reestruturao produtiva do capitalismo e suas concepes de mundo ideologias articuladas com as novas pedagogias construtivistas e de professor reflexivo ou pesquisador, em detrimento da pedagogia histrico-crtica, que tem sua base material na classe-que-vive-do-trabalho? Ou, tambm, no haveria limites no interior da prpria pedagogia histrico-crtica, quanto aos que-fazeres, ou da questo do ensino, propriamente dito, em sala de aula? Entendo que as duas questes so pertinentes e esto articuladas. Contudo, sem desconsiderar a relao entre ensino e sociedade, delimitamos nossa pesquisa para uma investigao sobre o ensino do concreto no interior da pedagogia histrico-crtica. Esta pesquisa se justifica, no s por uma questo pessoal14, mas tambm pelas condies objetivas do contexto histrico atual, apontadas por pesquisadores que se situam no interior da pedagogia histrico-crtica.

Desde que assumi o trabalho docente em sala de aula, tenho permanentemente investigado a minha prtica de ensino. Dentre as muitas razes que me levaram a esta preocupao com o ensino destaco: o medo e a insegurana de ser professor; a necessidade profissional de oferecer um ensino emancipador; a valorizao do ensino em sala de aula como espao de desvelamento das relaes sociais e os desafios dirios do ensino. Desde 1999, quando conclui o Mestrado em Educao, venho refletindo sistematicamente sobre minha prtica pedaggica. Destaco trs textos escritos, nenhum deles publicados, uma vez que foram feitos para que pudssemos refletir com mais cuidado sobre nossa prtica: Dilemas de um professor em sala de aula na busca de um ensino reflexivo (1999); Relato de uma aula luz da metodologia do ensino reflexivo ou do professor pesquisador (2000) e Reflexes sobre uma aula que aparentemente no deu certo: desafios da profisso professor (2001).

14

9

Freitas (1995) faz a crtica didtica, no caso de Libneo, que coloca na relao de ensino-aprendizagem a mediao do saber. Em vez do saber, Freitas afirma que esta mediao deve ser feita pelo trabalho material, ficando assim constitudo o tringulo pedaggico: professor/aluno trabalho material saber. Freitas justifica que a mediao do ensino-aprendizagem pelo saber prpria da pedagogia burguesa que enfatiza mais o trabalho verbal do professor em substituio ao trabalho material. Isto porque numa sociedade de classes, as classes dominantes no se relacionam com o trabalho material, pois seus interesses esto na formao de dirigentes. De modo que, na escola, ainda segundo Freitas, prevalece os interesses dos alunos proprietrios. A escola (...) no foi feita para o aluno trabalhador. Na base disso tudo estaria a negao do trabalho material como mediador do processo ensino-aprendizagem, que, por sua vez, teria sua base material na separao entre trabalho manual e trabalho intelectual. Em oposio quele modelo pedaggico, Freitas prope a seguinte configurao para o tringulo pedaggico: aluno/professor trabalhadores trabalho material saber. Ressalta que esta nova relao, para acontecer de fato na escola, depende da superao da sociedade de classes. Mas reafirma que o trabalho material, como atividade da classe-quevive-do-trabalho, seja de fato o mediador do processo ensino-aprendizagem. Adverte que a tentativa de superar a aula de dentro da aula aprisiona a superao, convertendo o trabalho, como princpio educativo, em trabalho no-material, terico, como trabalho intelectual separado do trabalho material (p.105). Freitas, porm, no desenvolve e nem esclarece em que consistiria esse trabalho material no contexto das metamorfoses do mundo do trabalho na atual sociedade. Ele apenas aponta que o trabalho material deve ser o mediador, sem mostrar como isto poderia acontecer no ensino do concreto na sala de aula. Entendemos, portanto, que h a necessidade de retomar e explicitar esta questo. Destaco, tambm, embora com enfoque um tanto diferenciado, a advertncia de Arroyo (1998) em um artigo que se intitula Educao e Teoria Pedaggica. Reclama que os pesquisadores - GT Trabalho-Educao tm tido um dilogo tmido com os

10

profissionais da educao bsica e que h muito a fazer entre pesquisadores e professores (profissionais que fazem a educao escolar). Dentre muitas das indagaes que ele faz, destacamos: quem l nossos textos? Que prticas educativas motivam? (...); Temos repensado o trabalho como princpio educativo luz dos avanos da teoria pedaggica? (p. 140). Assim, a advertncia de Arroyo deve ser considerada na medida em que aponta para a necessidade de que a pedagogia histrico-crtica tenha que se aproximar mais dos determinantes prticos, do cho da sala de aula. Parece haver uma dificuldade de relacionar os fundamentos terico-metodolgicos da pedagogia histrico-crtica com a prtica de ensino dos professores em sala de aula. Por isso, com certa razo, afirma Arroyo:

Estamos sugerindo que no fiquemos apenas interrogando o mundo do trabalho, que no dialoguemos apenas com a produo nesse campo, que no continuemos reafirmando como um pressuposto epistemolgico que o trabalho princpio educativo. A sugesto no sentido de dar centralidade tambm pesquisa e reflexo terica no campo da educao, que de fato seja nosso objeto e no um pressuposto sempre repetido e pouco conhecido e aprofundado. Sugiro que nos reencontremos com outros profissionais que pesquisam e teorizam nesse campo trazendo nossa contribuio terica para a compreenso da educao a partir de seus estritos vnculos com o trabalho. (p. 142)

O propsito da presente pesquisa no o de somente repetir que o trabalho o princpio educativo, pois essa categoria no pode ser sempre tomada como dada, como ensina Marx, ou seja, como uma categoria fixa, imutvel e eterna (Marx, 1985). Marx, ao fazer a crtica economia poltica e a Proudhon, mostra que:

Os economistas nos explicam como se produz nestas relaes dadas, mas no nos explicam como se produzem estas relaes, isto , o movimento histrico que as engendra (...). A partir do momento em que no se persegue o movimento histrico das relaes de produo, de que as categorias so apenas a expresso terica, a partir do momento em que se quer ver nestas categorias somente idias, pensamentos espontneos, independentes das relaes reais, a partir de ento se forado a considerar o movimento da razo pura como a origem desses pensamentos. (Marx, 1985, pp. 102 e 103)

11

Sem esta constante investigao do movimento histrico do real, as categorias podem se transformar em categorias metafsicas no sentido de serem apenas o resultado de uma abstrao (categorias lgicas, formas vazias) separadas do movimento histrico. Por esta razo, justifica-se a retomada da categoria trabalho como princpio educativo e da categoria concreto para explicitar os determinismos que o movimento histrico do real vem colocando nessas categorias. As categorias esclarece Marx - so to pouco eternas quanto as relaes que exprimem. Elas so produtos histricos e transitrios. H um movimento contnuo de crescimento das foras produtivas, de destruio nas relaes sociais, de formao nas idias; de imutvel, s existe a abstrao do movimento mors immortalis (Marx, 1985, p. 106, grifos do autor). Essa discusso ser retomada para que se avance no debate sobre como o trabalho, a partir do ensino do concreto, na atual sociedade, pode ser princpio educativo em sala de aula, no sentido de desvelar o mundo humano e o mundo natural. Sendo assim, a meta da presente tese foi elaborar indicativos de uma proposta pedaggica, no interior da pedagogia histrico-crtica, com nfase nos que-fazeres em sala de aula, articulados dialeticamente com os fundamentos tericos, na perspectiva da defesa do ensino como trabalho docente, na tica da filosofia da prxis. Como eixo principal, utilizou-se o processo crescente de intelectualizao do trabalho no interior da revoluo informtica na sociedade capitalista. Aqui se coloca, a meu ver, a contribuio de Duarte (2000) a qual foi importante para defender a tese de como fazer um ensino do concreto a partir do trabalho como uma possvel contribuio pedagogia histrico-crtica. Por que a nfase nos que-fazeres? Duarte (2000) destaca que os que-fazeres no foram objetos de pesquisa da pedagogia histrico-crtica, o que ocasionou um obstculo em seu avano no Brasil. Esse obstculo seria a existncia de um hiato entre, por um lado, as contribuies que o pensamento pedaggico crtico havia produzido em reas como a Filosofia da Educao, a Histria da Educao, a Sociologia da Educao e, por outro lado, a construo de propostas pedaggicas. Da apontar a necessidade da urgente elaborao de um corpo terico mediador entre o mbito dos fundamentos filosficos, histricos e

12

sociolgicos da educao e o mbito dos estudos sobre o que-fazer da prtica educativa (p.30). Diante desse hiato da pedagogia histrico-crtica no Brasil, tem proliferado, entre um nmero crescente de professores, as diversas tendncias de construtivismos e, nestes ltimos anos, a metodologia do professor pesquisador ou do professor reflexivo. Todos estes enfoques negam a filosofia da prxis e articulam-se com o movimento de reestruturao do capital no sentido de adaptar a educao a estas novas necessidades. Como superar dialeticamente, no plano terico-metodolgico, estas tendncias, principalmente do professor pesquisador, numa perspectiva de dar conta dos que-fazeres da profisso de professor em sala de aula na tica da filosofia da prxis? Uma das formas de superar as propostas de ensino do capital, numa perspectiva histrico-crtica, seria a retomada, de forma historicizada, da categoria trabalho no sentido de explicitar o concreto na atual sociedade informtica.

Para superar este dilema no presente momento histrico, necessrio que retomemos uma categoria tambm abandonada pela rea da educao, que a categoria trabalho. Retomar a centralidade da categoria trabalho na discusso da formao do educador [em nosso caso, do ensino do concreto] significa a possibilidade concreta de armar-se teoricamente no sentido de oposio lgica que est posta pelas polticas neoliberais e pela poltica educacional atual [poltica do governo Fernando Henrique Cardoso], que a reduo do trabalho capacidade de empregabilidade ou laboridade. (Freitas, 2002, p. 160, grifos meus)

Esta tese consiste em mostrar como o capital e o trabalho produzem propostas diferenciadas de escola e de ensino e, mais especificamente, de como ensinar, em sala de aula, o concreto a partir da filosofia da prxis, com base nas metamorfoses do trabalho e do mundo do trabalho, em que s exigncias do trabalho intelectual, advindo da materializao da revoluo informtica, soma-se a necessidade da qualificao ser cada vez menos especfica e mais geral (omnilateral) (Saviani, 1994) no contexto das relaes sociais capitalistas.

13

Da a necessidade de desvelar as metamorfoses por que passa o trabalho no sentido de articular organicamente educao e trabalho no mbito do ensino escolar. Ensinar para qual trabalho? Qual trabalho pode ser tomado como princpio educativo para uma proposta de ensino do concreto a fim de produzir um professor capaz de ser um intelectual orgnico da classe-que-vive-do-trabalho na superao da sociedade capitalista? Esta tese consiste em mostrar, num primeiro momento, que o capital, aps a crise de 1970, no contexto da reestruturao produtiva, vem produzindo o ensino reflexivo (EUA) e o professor pesquisador (Inglaterra). Qual a base material do ensino reflexivo e do professor pesquisador? Como essa forma de ensino se articula com o trabalho flexvel? Em seguida, buscaremos investigar qual ensino a classe trabalhadora vem produzindo em sua histria. Trata-se de retomar os estudos de Marx e Gramsci, para explicitar que, na perspectiva da classe trabalhadora, o trabalho o princpio educativo. Em que consiste o trabalho como princpio educativo? Em que medida o trabalho psfordista, e sua dimenso de trabalho imaterial, poderia ser tomado como princpio educativo? Diante da avassaladora nfase do ensino (enquanto negao) na prtica das abordagens conservadoras e tambm das polticas oficiais, entendemos ser necessrio oporse a estas tendncias explicitando, a partir do trabalho como princpio educativo, em que consiste o ensino do concreto na perspectiva da filosofia da prxis. Que pressupostos terico-metodolgicos so necessrios para que o professor possa desenvolver o ensino do concreto? Como operacionalizar, em sala de aula, o ensino do concreto? Resumidamente, a problemtica da tese pode ser colocada nestes termos: a partir da historicizao da categoria trabalho, investigar, na perspectiva da filosofia da prxis, em que consiste o concreto materializado no trabalho na atual sociedade informtica, para, a partir desse pressuposto, defender em que consiste o ensino do concreto. O concreto, no processo ensino-aprendizagem, seria apreendido pela mediao da teoria do professor, a qual faz a ponte entre o conhecimento do aluno e o real concreto. A sntese, o novo, ler e

14

intervir na realidade, de modo que o ensino do concreto implicaria uma metodologia de trabalho pedaggico que permitiria ao aluno compreender a gnese dos conceitos e sua historicidade. Seria apreender as mediaes, determinaes e contradies e suas conseqncias na vida real. Pretende-se mostrar a relao entre centralidade do trabalho e centralidade do ensino, pois na medida em que se nega a centralidade do trabalho, tambm se pode negar a centralidade do ensino do concreto. Para tanto, faz-se necessrio romper com o ecletismo, retomando o mtodo de Marx em que ontologia, gnosiologia e lgica dialtica se articulam. A nfase na ontologia imprescindvel para a elucidao das questes epistemolgicas. As questes

epistemolgicas no se dissociam das questes ontolgico-sociais (a dialtica do ser social) (Duarte, 2000, p. 14). Portanto, tomamos o trabalho concreto como categoria ontolgica da constituio do ser homem no mundo. Assim entendemos que, elucidando as metamorfoses do trabalho e do mundo do trabalho no contexto atual, poderemos elaborar indicativos de uma proposta pedaggica o ensino do concreto que d conta dos quefazeres em sala de aula (epistemologia). Trata-se de recuperar o significado profundo da categoria trabalho na constituio histrica do ser homem que busca incessantemente humanizar-se a partir da satisfao das necessidades imediatas (satisfao dos meios imprescindveis manuteno da vida reino da necessidade) e, principalmente na satisfao das necessidades propriamente humanas (reino da liberdade).

desta dimenso ontolgica que Marx aponta o trabalho como um princpio educativo. Trata-se de um pressuposto tico-poltico de que todos os seres humanos so seres da natureza e, portanto, tm a necessidade de alimentar-se, proteger-se das intempries e criar seus meios de vida. Socializar, desde a infncia, o princpio de que a tarefa de prover a subsistncia, pelo trabalho, comum a todos os seres humanos, fundamental para no criar indivduos, ou grupos, que exploram e vivem do trabalho de outros. Na expresso de Antnio Gramsci, para no criar mamferos de luxo. Na literatura educacional esta compreenso do trabalho como princpio educativo reduzida a aspectos metodolgicos e didticos sintetizados na idia do aprender fazendo. Trata-se, pois, de uma simplificao e, ao mesmo tempo, deturpao da concepo marxista de trabalho como princpio educativo. (Frigotto, 2001, p. 41, grifos do autor)

15

na tentativa de opor-se a esta simplificao superficial do concreto como objeto do ensino em sala de aula, que tomamos a categoria trabalho no sentido ontolgico como princpio educativo para, a partir da, apontar indicativos epistemolgicos. No primeiro captulo, investigamos a categoria trabalho como se apresenta ao pensamento da economia poltica clssica de David Ricardo para, em seguida, buscarmos apreender como Marx retoma dialeticamente as contribuies de Ricardo no sentido de formar o que ficou denominado filosofia da prxis. Marx o filsofo do trabalho. Investiga com radicalidade filosfica como o trabalho parte integrante e essencial da condio humana. O ser do homem constitui-se no e a partir do trabalho. Vm da as denominaes trabalho concreto e de processo de trabalho. Marx tambm distinguir as diversas formas que o trabalho assume na histria dos homens e, principalmente, na sociedade capitalista. Distingue fora de trabalho de trabalho; trabalho concreto de trabalho abstrato, trabalho necessrio de trabalho excedente, trabalho simples de trabalho complexo, trabalho produtivo de trabalho improdutivo, trabalho manual de trabalho intelectual, trabalho vivo de trabalho morto, trabalho individual de trabalho social, bem como as formas de trabalho denominadas em domiclio, das mulheres, das crianas etc. Encontramos tambm em Marx, na obra O Capital, a explicitao da relao entre trabalho e mquinas, na qual o autor demonstra ser o trabalho vivo insubstituvel na criao do valor. No segundo captulo, esto em pauta as transformaes do mundo do trabalho no sculo XX. A finalidade desse captulo a de verificar como a sociedade capitalista se organiza e se estrutura a partir de uma determinada organizao do trabalho, que se torna hegemnica, trazendo conseqncias para todas as esferas da vida. So duas as formas de organizao do trabalho no sculo XX: o fordismo/taylorismo, que predominou do incio do sculo at os anos 70, e o ps-fordismo, tambm denominado toyotismo ou trabalho flexvel que vem se consolidando na atual sociedade informtica. A razo de proceder a este breve rastreamento das formas de organizao do trabalho, numa perspectiva histrica, tem por finalidade desvendar em que consiste a

16

tendncia atual, no interior da sociedade informtica, da intelectualizao do trabalho. O terceiro captulo busca explicitar como se constitui o trabalho intelectual ou trabalho imaterial na atual organizao do trabalho ps-fordista. Com estes trs primeiros captulos entendemos ter construdo a base de sustentao da tese: qual seja, a de explicitar os fundamentos do trabalho na produo do homem e das determinaes das diferentes organizaes do trabalho nas transformaes da sociedade capitalista. Com isto, queremos mostrar, a partir de Marx, que o concreto o objeto produzido pelos homens, e que o objeto concreto por ser trabalho nele cristalizado. Porm, esse trabalho enquanto concreto materializado no objeto, no se d a conhecer imediatamente, necessitando, para desvend-lo, das cincias enfocadas a partir da filosofia da prxis. Poderamos afirmar que o concreto o trabalho como sntese de mltiplas determinaes presente no objeto e que esse objeto de trabalho, na atual sociedade informtica, apresenta-se como sendo o trabalho industrial mais tecnolgico e informatizado. Essas so as condies objetivas, no interior das contradies da sociedade capitalista, nas quais se apresenta esse objeto enquanto fora produtiva, com maior grau de tecnologia ou de cincia. Ou seja, o objeto contm cada vez mais trabalho intelectual materializado (Saviani, 1994). Tendo presente que o trabalho industrial o princpio educativo (Gramsci), coloca-se, ento, a questo da tese: como fazer o ensino do concreto em sala de aula tendo o trabalho industrializado atual (ps-fordismo) como princpio educativo? Em que consistiria uma proposta pedaggica de ensino concreto a partir dos pressupostos da pedagogia histrico-crtica? Enfim, interessa a esta tese defender o ensino, retomando e aprofundando o que a pedagogia histrico-crtica j produziu sobre o assunto, no sentido de apontar indicativos que possam auxiliar os professores a operacionalizarem esta metodologia em sala de aula, pois entende-se que a transformao da sociedade capitalista tem, na escola pblica, uma das possibilidades concretas de se tornar fora material de uma conscincia de classe. Talvez por isso Gramsci tenha dito: a questo escolar interessa-me muitssimo.

17

Discutir a questo do ensino em sala de aula, hoje, uma das estratgias para conquistar um nmero cada vez maior de professores para o projeto da construo da sociedade socialista. Afirma Marx que o prprio educador deve ser educado levando-se em conta o contexto no qual est inserido. A mudana das estruturas da sociedade capitalista deve comear, portanto, com a mudana do prprio professor no ensino em sala de aula. Como fazer da sala de aula um espao de ensino e educao socialista? Como sair da sala de aula de tal forma instrumentalizado e organizado para, na sociedade civil, orientar cada vez mais a classe-que-vive-do-trabalho na defesa de seus interesses?

Talvez seja oportuno aproveitar a brecha na contradio da atual conjuntura neoliberal de racionalidade pragmtica e instrumental (Ianni, 2001a), para, a partir dos que-fazeres no ensino, comear a reconquistar um nmero maior de professores para se tornarem um coletivo de intelectuais orgnicos da classe-que-vive-do-trabalho. Nas Teses contra Feuerbach e em A Ideologia Alem, Marx toma sempre como referncia a prtica para a transformao dos homens e da sociedade. Nas teses contra Feuerbach, sobretudo nas teses trs e oito, Marx fala da prtica e logo em seguida acrescenta prxis. Com isso, enfatiza que o ponto de partida o de verificar como so produzidas as condies materiais de vida, para, a partir da, proceder a uma investigao reflexiva que possa apoderar-se da matria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e de perquirir a conexo ntima que h entre elas (Marx, 1999, p.28). Penso que este seja o caminho para darmos conta de apresentar indicativos metodolgicos sobre em que consiste o ensino do concreto, entendendo no ser possvel pesquisar as questes do ensino sem investigar a instituio onde ele ocorre, no interior de uma determinada sociedade. O quarto captulo evidencia que a escola pblica viabilizou-se mediante uma proposta de ensino construda por Comenius, a qual se articulava com a organizao do trabalho nas manufaturas. Comenius sistematizou um mtodo de ensino universal que tinha por base material o manual didtico. Com esse instrumento de trabalho, o professor tornouse um trabalhador alienado a exemplo do trabalhador assalariado uma vez que no havia mais necessidade do mestre na produo das manufaturas, tambm na nascente escola 18

pblica no havia mais necessidade de um professor mestre. Bastava somente um professor transmissor de conhecimentos dos manuais didticos mediante um mtodo de ensino padronizado. Essa mediao entre escola pblica e sociedade foi sendo produzida no embate da luta de classes no interior da sociedade capitalista. Ainda no quarto captulo, busca-se historicizar os momentos mais significativos do embate entre a escola pblica proposta pelo capital e a escola pblica nascida da luta da classe trabalhadora. Do lado do capital produziu-se a escola pblica universal, laica, obrigatria, gratuita e nica. Porm, esta escola pblica burguesa expressa-se muito mais como objetivo proclamado em detrimento dos objetivos reais (Saviani, 1997). Esse dilema da burguesia, sobre qual educao oferecer classe trabalhadora, tem seu embate mais significativo no contexto da Revoluo Francesa. Na segunda metade do sculo XX, a proposta de escola pblica do capital fundamenta-se na teoria do capital humano. Do lado da classe trabalhadora gestou-se historicamente a escola pblica politcnica, que tem no trabalho seu princpio educativo. Diferentemente e a partir da escola burguesa, a escola pblica da classe trabalhadora busca explicitar os objetivos reais, ou seja, os determinantes da formao da sociedade capitalista na perspectiva de superao dessa sociedade. a escola nica e desinteressada, tal como foi sistematizada por Gramsci. Da produo da escola pblica para a produo do ensino: o quinto captulo verifica que da mesma forma que se produz uma modalidade especfica de escola, tambm se produz modalidades especficas de ensino. No interior da escola, o trabalho consiste na produo do ensino, e o ensino no espao escolar trabalho no material (Marx, 1969). Dessa forma, como a escola no pode ser tomada em separado da sociedade, o ensino tambm no pode ser dissociado da escola. A questo do ensino estratgica e de fundamental importncia como trabalho no material. No basta ter uma escola progressista, faz-se necessrio, tambm, um ensino progressista. No atual momento histrico, o capital vem produzindo propostas de ensino denominadas professor pesquisador, ensino reflexivo e construtivismos, as quais negam o ato de ensinar e enfatizam a pesquisa e o aprender-a-aprender como eixos bsicos. Negam tambm a filosofia da prxis e articulam-se com a lgica do capital e a nova organizao do trabalho

19

ps-fordista. Essas propostas de ensino enfatizam a prtica numa perspectiva pragmtica e empirista clssica, em detrimento das cincias como objeto de ensino. Sua concepo de mundo liberal e neoliberal, ecltica e ps-moderna. Por outro lado, busca-se retomar e mostrar que, historicamente, a classe trabalhadora vem, atravs de seus intelectuais sobretudo Marx e Gramsci produzindo uma proposta de ensino que tem no trabalho seu princpio educativo. aqui que se coloca a problemtica da tese: diante das transformaes do mundo do trabalho passagem do fordismo para o ps-fordismo de que modo esse trabalho pode ser tomado como princpio educativo? Em que medida a categoria do real concreto, tal como Marx a formulou, pode ser um recurso metodolgico para desenvolver uma metodologia de ensino, dando conta dos que-fazeres em sala de aula, no dissociados dos pressupostos terico-metodolgicos da filosofia da prxis? As respostas a essas questes so trabalhadas no sexto captulo, no qual se busca explicitar em que consiste o concreto e como ele se produz no pensamento. Distingue-se, ainda, o concreto emprico do concreto pensado, ao mostrar que o concreto pensado o conceito e, sendo o conceito o concreto, ento esse defendido como sendo especfico do ensino escolar. Assim, ensinar ensinar o conceito. Investiga-se o que o professor precisa saber para ensinar o conceito e como se do as relaes entre professor e alunos nesse ensino. A finalidade mostrar que o especfico da escola o ensino do conceito e, para que isso acontea, necessria a mediao do trabalho vivo do professor, que, j na sua formao, pressupe um aprofundamento terico-metodolgico que, na filosofia da prxis, articule uma viso de mundo que d conta, simultaneamente, do ontolgico, do epistemolgico e da prpria prxis. Ao explicitar o conceito e o ensino do conceito, faz-se, ento, a um s tempo, a crtica s metodologias de ensino do professor pesquisador, do ensino reflexivo e dos construtivismos. Utilizou-se como referencial terico-metodolgico e como mtodo de pesquisa o materialismo histrico-dialtico, e a pesquisa bibliogrfica.

20

CAPTULO I O TRABALHO NOS CLSSICOS RICARDO E MARX

O processo de trabalho, que descrevemos em seus elementos simples e abstratos, atividade dirigida com o fim de criar valores-de-uso, de apropriar os elementos naturais s necessidades humanas; a condio necessria do intercmbio material entre o homem e a natureza; condio natural eterna da vida humana, sem depender, portanto, de qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a todas as suas formas sociais. (Marx)

No decorrer da transio da sociedade feudal para a sociedade capitalista at a consolidao dessa ltima, elegeu-se entre os clssicos da economia poltica, naquele contexto, a categoria trabalho como constituinte da riqueza. prprio do pensamento liberal econmico/poltico a tese da ascenso social mediante o trabalho individual. Aps consolidao da sociedade capitalista, j no sculo XIX, Marx tambm considera a questo do trabalho como chave para elucidar cientificamente a sociedade capitalista, avaliando-o criticamente enquanto condio bsica da existncia humana, desvelando suas dimenses ontolgicas e alienadoras no interior dessa mesma sociedade.

21

Que razes teriam Ricardo e Marx para eleger o trabalho como categoria bsica de suas teorizaes? Quais as diferenas entre Ricardo e Marx sobre a questo trabalho? Qual a concepo de trabalho em ambos os autores?

1.1. O trabalho na perspectiva liberal Ricardo15 Em que consiste o trabalho para o pensamento liberal? David Ricardo (1772-1823), desde jovem, foi operador da Bolsa de Valores de Londres e chegou a adquirir grande fortuna antes dos 30 anos (Singer, 1982)16. Certamente foi esta atividade prtica, no centro de um contexto histrico efervescente, que lhe permitiu a sistematizao de muitas teses da recente cincia econmica. Ricardo viveu na poca da Revoluo Industrial na Gr-Bretanha e da Revoluo Francesa, as quais geraram profundas transformaes econmicas, sociais, polticas e ideolgicas. A partir de Singer (1982) assim sintetizamos essas transformaes: no plano econmico e social nasce a fbrica e com ela o novo tipo de trabalhador; na agricultura nascem os cercamentos as reas coletivas tornam-se propriedades privadas e assim a agricultura torna-se capitalista (arrendamentos); a Revoluo Industrial e Agrcola arruinou e, em grande parte, eliminou as classes pr-capitalistas: o campons e o arteso independentes; em seu lugar fez surgir o proprietrio capitalista da terra, o empresrio capitalista e o trabalhador assalariado (Idem, p. XII). No plano poltico o grande marco foi a Revoluo Francesa, que eliminou o absolutismo e a servido ao mesmo tempo em que fazia do liberalismo uma fora poltica real. No plano ideolgico ocorre a separao entre Estado e Igreja dessacralizando a vida social e abrindo espao para a emancipao das cincias da revelao e da Filosofia. O esprito da poca caracterizava-se pela f na cincia e no progresso.

Iniciamos por David Ricardo no somente por se tratar de uma delimitao, mas, sobretudo, por ser este autor o representante mais significativo na sistematizao da teoria valor-trabalho na escola clssica de economia. 16 Neste trabalho, na perspectiva liberal em Ricardo, utilizaremos basicamente a sua obra Princpios da economia poltica e tributao da coleo Os economistas da Abril Cultural, 1982, cuja traduo de Paulo Henrique Ribeiro Sandroni e a apresentao de Paul Singer, alm da introduo de Piero Sraffa.

15

22

Dentre s cincias nascentes destaca-se a Economia Poltica. Ricardo busca consolidar a economia como cincia desvinculando-a definitivamente da filosofia. Supera os prticos indo alm do imediatismo dos dados e das aparncias dos fenmenos, para buscar o nexo causal entre os fatos numa perspectiva de totalidade, desvelando assim as leis da economia. Embora situando-se, em geral, em nveis inadequadamente altos de abstrao, Ricardo nos ensinou a todos como procurar, por detrs da aparncia catica da vida econmica, leis fundamentais de movimento que permitem entend-la em sua totalidade (Idem, p. XXVII). A obra Princpios de economia poltica e tributao expressa o mais alto grau de sistematizao de Ricardo. O texto composto de trinta e dois captulos relativamente curtos. Do ponto de vista do entendimento da categoria trabalho o captulo primeiro o mais significativo, pois trata do valor explicitado em sete princpios.

1.1.1. A Teoria do Valor-Trabalho

Em que consiste o valor? Como determinar o valor de um objeto? H valores diferentes? Por que Ricardo comea sua investigao pelo valor? Para responder a estas questes, Ricardo retoma Smith numa perspectiva de valorizao das contribuies daquele autor ao mesmo tempo em que o critica com o intuito de super-lo. De fato, Smith (Ricardo, 1982) havia distinguido valor de uso de valor de troca, mostrando assim os dois significados da palavra valor. O primeiro, refere-se utilidade e o segundo troca. Quanto maior for o valor de uso (utilidade) menor o valor de troca e quanto maior o valor de troca menor o valor de uso. Isso no significa que o valor de troca negue a utilidade, ao contrrio, a pressupe. Ricardo exemplifica mostrando que o ar e a gua so essenciais vida, portanto so teis, mas no possuem medida de valor de troca. O ouro, ao contrrio, possui valor de troca, embora sendo menos til vida que o ar e a gua. Por que o ouro vale mais ou tem mais valor que a gua e o ar, sendo

23

estes mais teis vida? Porque o ouro, responde Ricardo, deriva seu valor da quantidade de trabalho necessrio para produzi-lo. Fica assim estabelecido o pressuposto do trabalho como critrio fundamental do valor das mercadorias. Concordando com Smith, Ricardo estabelece a relao entre o valor e a troca: Se a quantidade de trabalho contida nas mercadorias determina o seu valor de troca, todo acrscimo nessa quantidade de trabalho deve aumentar o valor da mercadoria sobre a qual ela foi aplicada, assim como toda a diminuio deve reduzi-lo (Ricardo, 1982, p. 44). Neste ponto Ricardo polemiza com Smith sobre as (...) idias confusas que esto associadas palavra valor (Idem, p. 44). Smith acertou, segundo Ricardo, ao dizer que a fadiga e o esforo na produo de um objeto, ou seja, a quantidade de trabalho, determinam o seu valor. Mas errou ao querer estabelecer uma medida-padro fixa como critrio de troca, no caso, o trigo ou o trabalho. O valor de troca, para Smith, segundo Ricardo, no se referia quantidade de trabalho empregada na produo de cada objeto, mas quantidade que este pode comprar no mercado, como se ambas fossem expresses equivalentes e como se, em virtude de se haver tornado duas vezes mais eficiente o trabalho de um homem, podendo este produzir, portanto, o dobro da quantidade de uma mercadoria, devesse esse homem receber, em troca, o dobro da quantidade que antes recebia (ibidem, p. 45). Portanto, para Ricardo, o valor no determinado pela remunerao do trabalho, mas pela quantidade de trabalho gasto na produo da mercadoria. Assim, tanto o trigo como o ouro e o trabalho so redutveis a um denominador comum que a quantidade de trabalho gasto na produo de ambos. esta quantidade de trabalho que determina o valor daquelas mercadorias. O trabalho uma medida comum por meio da qual se pode calcular o seu valor real assim como seu valor relativo (Idem, p. 194). A citao a seguir ilustrativa de que a quantidade de trabalho o que determina, de fato, o valor de qualquer mercadoria, inclusive o do ouro e o da prata:

O ouro e a prata, como todas as outras mercadorias, somente tm valor na proporo da quantidade de trabalho necessrio para a sua produo e sua colocao no mercado. O ouro cerca de quinze vezes mais caro do que a prata, no porque exista uma grande demanda por ele ou porque a oferta de prata seja quinze vezes maior do que a de ouro,

24

mas somente porque necessria uma quantidade de trabalho quinze vezes maior para produzir uma dada quantidade daquele metal (Idem, p. 239).

Da o princpio: O valor de uma mercadoria, ou a quantidade de qualquer outra pela qual pode ser trocada depende da quantidade relativa de trabalho necessrio para sua produo, e no da maior ou menor remunerao que paga por esse trabalho (Idem, p. 43). Sobre a qualidade do trabalho em se tratando de trabalhos diferentes, como, por exemplo, o trabalho de um joalheiro versus o de um trabalhador comum diz Ricardo, no interferem no valor das mercadorias. Embora esses trabalhos sejam remunerados diferentemente e tenham uma certa especificidade, eles encontram o ajuste no mercado em termos de valor comum. O valor da mercadoria no somente o resultado do trabalho imediato. No s o trabalho aplicado diretamente s mercadorias afeta o seu valor, mas tambm o trabalho gasto em implementos, ferramentas e edifcios que contribuem para sua execuo (Idem, p. 49). Os instrumentos de trabalho o materializam, ou seja, materializam seu valor, o qual reflete no custo final da mercadoria. Ricardo entende por capital os instrumentos de trabalho (implementos, ferramentas e edifcios) porque esses so o resultado de um certo tempo de trabalho. Cita como exemplo, em concordncia com Smith, que a fabricao de uma arma por um homem primitivo j um capital, pois materializa tempo de trabalho, , portanto, valor. Assim, desde os tempos primitivos, o princpio o mesmo: a caa de um animal vale mais ou menos que outro na medida em que o valor desses animais deveria ser regulado no apenas pelo tempo e pelo trabalho necessrios sua captura, mas tambm pelo tempo e pelo trabalho necessrios produo do capital do caador: a arma, com a ajuda da qual a caa se realizava (Idem, p. 49). Em qualquer sociedade, diz Ricardo, independentemente de sua complexidade e diviso social do trabalho, todas as mercadorias sero reguladas em termos de valor pela materializao do trabalho mediato e imediato (aquele que determinado indiretamente mediante a utilizao de instrumentos). Da a diviso do trabalho no constituir um 25

problema, uma vez que o equilbrio e o ajuste ocorrem no mercado, onde as mercadorias se equivalem em valor. Atravs do exemplo da produo de meias, Ricardo nos mostra as diversas determinaes do valor dessa mercadoria mediante o tempo de trabalho gasto na histria de sua produo.

Ao estimar o valor de troca das meias, por exemplo, descobriremos que seu valor, comparado com o de outras coisas, depende da quantidade total de trabalho necessrio para fabric-las e lan-las no mercado. Primeiro, h o trabalho necessrio para cultivar a terra na qual cresce o algodo; segundo, o trabalho de levar o algodo ao lugar em que as meias so fabricadas no que se inclui o trabalho de construo do barco no qual se faz o transporte e que includo no frete dos bens -; terceiro, o trabalho do fiandeiro e do tecelo; quarto, uma parte do trabalho do engenheiro, do ferreiro, do carpinteiro que construram os prdios e a maquinaria usados na produo; quinto, o trabalho do varejista e de muitos outros que no vm ao caso mencionar. A soma de todas essas vrias espcies de trabalho determina a quantidade de outras coisas pelas quais as meias sero trocadas, enquanto a mesma considerao das vrias quantidades de trabalho utilizado nesses outros bens determinar igualmente a poro deles que se dar em troca das meias (Idem, p. 50).

O aumento ou a diminuio da totalidade desses trabalhos no processo de constituio da produo da mercadoria determinam o fundamento do valor de troca. Ou seja, o preo (valor) da mercadoria determinado por essas diferentes quantidades de trabalho. A reduo na utilizao de trabalho sempre reduz o valor relativo de uma mercadoria, seja tal reduo realizada no trabalho necessrio para produzir a prpria mercadoria, seja no trabalho necessrio para a formao do capital que contribui para sua formao (Idem, p. 50). Isto significa dizer que se o preo de uma mercadoria elevado, porque a mesma contm maior quantidade de trabalho em sua totalidade. Ricardo estabelece a relao entre valor (trabalho) e mercadoria independente do dinheiro e do salrio. O dinheiro um valor invarivel, que far a mediao entre duas mercadorias. Essa mediao ter como parmetro de avaliao a quantidade de trabalho em ambas as mercadorias. Se uma mercadoria vale mais que a outra e h a necessidade de mais dinheiro para compr-la porque esta mercadoria materializa maior quantidade de trabalho (valor). Da mesma forma, o aumento de salrio no corresponde necessariamente a um aumento relativo da mercadoria, pois seu valor permanece o mesmo, uma vez que a

26

quantidade de trabalho no se alterou. O aumento do salrio implica na reduo do lucro e no na alterao do valor relativo da mercadoria. Mas a quantidade de trabalho sofre modificaes e uma delas a utilizao de maquinaria e de capitais fixos e durveis. O princpio de que a quantidade de trabalho empregada na produo de mercadorias regula seu valor relativo consideravelmente modificado pelo emprego de maquinaria e de outros capitais fixos e durveis (Idem, p. 52). Com isso, Ricardo busca mostrar as variaes entre o que denomina capital fixo (ferramentas, mquinas e edificaes) e o capital circulante (capital empregado para sustentar o trabalho). Entre um capital e outro h graus de durabilidade e formas diferentes de quantidades de trabalho. Da combinao entre esses dois tipos de capital podem ocorrer variaes no valor relativo das mercadorias que o aumento ou a reduo do valor do trabalho (Idem, p. 53). O critrio utilizado por Ricardo para diferenciar capital fixo de capital circulante a durabilidade de cada um, a freqncia da reposio e o tempo que leva para ser consumido. Um fabricante de cerveja, cujas edificaes e maquinaria tem grande valor e so durveis, emprega uma grande parcela de capital fixo. Ao contrrio, um sapateiro, cujo capital principalmente empregado no pagamento de salrios que so gastos em alimentos e em roupas, mercadorias mais perecveis que edifcios e maquinaria, utiliza uma grande poro de seu capital como capital circulante (Idem, p. 53). Mediante exemplos, Ricardo evidencia que a quantidade de trabalho pode sofrer variaes diante do capital fixo ou do capital circulante. Quando a produo de mercadorias se d mediante a no utilizao de maquinaria e de capital fixo, ento o seu valor determinado pela quantidade de trabalho. Mas quando se trata de capital circulante um aumento nos salrios no pode deixar de afetar desigualmente mercadorias em circunstncias to diferentes (Idem, p. 53). Essa variao denominada por Ricardo de aumento no valor do trabalho, ainda que nem mais nem menos trabalho tenha sido empregado na produo (Idem, p. 54). Portanto, o aumento de salrios faz diferena quando h uma maior aplicao de capital circulante em detrimento ao capital fixo.

27

No entanto, adverte Ricardo, essa variao no valor da quantidade de trabalho no capital circulante em nada altera o princpio em que o aumento do valor-trabalho acarretar necessariamente uma diminuio dos lucros. O encarecimento do trabalho um fato e o custo desse encarecimento ter que ser rateado entre o proprietrio e os trabalhadores. De modo que mais interessante aos proprietrios investirem em capital fixo, pois assim as mercadorias teriam um custo menor. Demonstrou-se que sendo invarivel a quantidade de trabalho, o aumento do seu valor ocasionar simplesmente uma diminuio no valor de troca das mercadorias em cuja produo se emprega capital fixo; e que, quanto maior for o montante de capital fixo, maior ser essa diminuio (Idem, p. 56). Esse autor explica, ainda que na medida em que o capital fixo prepondera em uma indstria o valor das mercadorias ali produzidas ser, em caso de aumento de salrios, relativamente menor que o daquelas fabricadas em indstrias onde prepondera o capital circulante (Idem, p. 57). Sobre os salrios, Ricardo afirma que Todo aumento de salrios ou, o que a mesma coisa, toda queda nos lucros reduzir o valor relativo das mercadorias produzidas com capital de natureza durvel, e elevar proporcionalmente o valor relativo das produzidas com capital mais perecvel. Uma reduo nos salrios ter precisamente o efeito contrrio (Idem, p. 57). Enfim, a variao da quantidade de trabalho no capital circulante no pode ser negado, mas tambm no se deve atribuir muita importncia ao mesmo, porque, em ltima instncia, o valor , realmente, determinado pela quantidade de trabalho materializado na mercadoria, independente de ser capital fixo ou capital circulante. A tese do valor-trabalho na mercadoria insistentemente enfatizada. Sobre a renda das minas, assim se refere Ricardo:

Se houvesse abundncia de minas de riqueza equivalente, das quais qualquer um pudesse apropriar-se, elas no gerariam nenhuma renda. O valor de sua produo dependeria da quantidade de trabalho necessria para extrair o metal da mina e coloc-lo no mercado. (Idem, p. 75)

28

Em que consiste esta quantidade de trabalho? A quem pertence? Como paga? Ricardo no faz distino entre os termos trabalho, fora de trabalho, salrio e trabalhador, utilizando-os como sinnimos. No entanto, Ricardo tem em mente o pagamento dos salrios e estes so pagos aos trabalhadores. A este respeito, Ricardo distingue preo natural de preo de mercado:

O trabalho, como todas as outras coisas que so compradas e vendidas e cuja quantidade pode ser aumentada e diminuda, tem seu preo natural e seu preo de mercado. O preo natural de mercado aquele necessrio para permitir que os trabalhadores, em geral, subsistam e perpetuem sua descendncia, sem aumento ou diminuio. A capacidade que tem o trabalhador de sustentar a si e famlia que pode ser necessria para conservar o nmero de trabalhadores no depende da quantidade de dinheiro que este possa receber como salrio, mas da quantidade de alimentos, gneros de primeira necessidade e confortos materiais que, devido ao hbito, se tornaram para ele indispensveis e que aquele dinheiro poder comprar. O preo natural do trabalho, portanto, depende do preo dos alimentos, dos gneros de primeira necessidade e das comodidades exigidas para sustentar o trabalhador e sua famlia. Com um aumento no preo dos alimentos e dos gneros de primeira necessidade, o preo natural do trabalho aumentar. Com uma queda no preo daqueles bens, cair o preo natural do trabalho (Idem, p. 81).

Ricardo toma o preo natural como um dado a priori. natural que exista o trabalhador assalariado e o capitalista - e entre ambos h uma lei que regula suas relaes. E essa lei est fundamentada nas regras do mercado que tambm so naturais. O equilbrio, a ordem, se d na medida em que haja uma harmonia entre as partes, e essa harmonia possvel se cada uma das partes ficar em seu lugar natural. O lugar natural dos trabalhadores sempre serem trabalhadores, e isto definido pelo salrio - que nada mais que a subsistncia dos mesmos (alimentos e gneros de primeira necessidade). A lgica do raciocnio a seguinte: a mercadoria alimentos e gneros de primeira necessidade define o valor dos salrios e eles definem a margem de lucro, que limitado pelo mercado (concorrncia). Assim, o capitalista tambm tem seu lugar natural definido e regulado pelo mercado. desejo de todo capitalista transferir seus fundos de uma atividade menos lucrativa para uma mais lucrativa, o que impede o preo das mercadorias

29

de permanecer por algum tempo muito acima ou muito abaixo do preo natural (Idem, p. 79). Ricardo afirma que o preo de mercado do trabalho aquele realmente pago por este, como resultado da interao natural das propores entre a oferta e a demanda. O trabalho caro quando escasso, e barato quando abundante. Por mais que o preo de mercado do trabalho possa desviar-se do preo natural, ele tende a igualar-se a este, como ocorre com as demais mercadorias (Idem, p. 82). No entanto, o preo natural e o preo de mercado do salrio podem sofrer determinaes secundrias, tais como o aumento do capital com valor e aumento do capital sem valor, como tambm o aumento/a diminuio da populao. Capital com valor aquele que materializa maior quantidade de trabalho, e, nesse caso, o salrio teria um ligeiro aumento. J o capital com reduzido valor refere-se reduo da quantidade de trabalho em detrimento da utilizao das mquinas, o que torna o preo natural do salrio estvel. Ricardo verifica que os salrios aumentam ou diminuem devido a duas causas: 1. a oferta e a demanda de trabalhadores: 2. o preo das mercadorias nas quais os salrios so gastos (Idem, p. 83). Pensando na primeira causa, o aumento da populao, Ricardo conclui: com a populao pressionando os meios de subsistncia, os nicos remdios so ou a reduo do nmero de habitantes ou uma acumulao de capital mais rpida (Idem, p. 84). Nesse ponto, Ricardo concorda com Malthus e enftico ao dizer que no h segurana diante de uma populao densa. O aumento da populao acarreta o aumento dos bens de primeira necessidade e exigir mais trabalho para produzi-los. Mas, no entanto, os salrios no tero condies de acompanhar o preo dos bens necessrios sua subsistncia. Para no haver excesso de populao, os salrios no podem exceder muito as necessidades de subsistncia dos trabalhadores. Ricardo parte da tese que quanto maior for o poder aquisitivo dos trabalhadores, maior ser o crescimento populacional, uma vez que eles casaro e tero uma quantidade maior de filhos. Ricardo totalmente contrrio interferncia do Estado na regulamentao dos salrios, embora essa no fosse uma posio que expressasse os interesses de toda a

30

burguesia. Como todos os demais contratos, os salrios deveriam ser deixados justa e livre concorrncia do mercado, e jamais deveriam ser controlados pela interferncia da legislao (Idem, p. 87). Diante da excluso social de milhares de trabalhadores, entendida por Ricardo como um desenvolvimento natural da sociedade, o Estado Ingls institui entre os sculos XV e XVI as Leis dos Pobres. Ricardo crtica estas leis porque elas esto em desacordo com os princpios da economia: em vez de enriquecerem os pobres, elas destinam-se a empobrecer os ricos (Idem, p. 87).

uma verdade que no admite dvida, que o conforto e o bem-estar dos pobres no podem ser permanentemente assegurados sem algum interesse da parte deles ou algum esforo de parte do legislativo, para regular o aumento de seu nmero e para tornar menos freqente entre eles os casamentos prematuros e imprevidentes. A vigncia do sistema das leis dos pobres tem sido diretamente contrria a isso. Essas leis tornaram toda conteno suprflua e deram estmulo imprudncia, oferecendo-lhe parte dos salrios que deveriam caber prudncia e preservao (Idem, p. 88).

Entende Ricardo que os pobres devem tomar a iniciativa por eles mesmos na soluo de seus problemas. A regulamentao a lei torna os pobres dependentes e amplia a populao de pobres. Na medida que aumenta a demanda de pobres, a tendncia o desequilbrio com a baixa dos salrios.

A natureza do mal indica o remdio. Restringindo gradualmente a esfera de operao das leis dos pobres, transmitindo-lhes o valor da independncia e ensinando-lhes que no devem esperar a caridade casual ou sistemtica, mas apoiar-se em seu prprio esforo para manter-se, e mostrando-lhes tambm que a prudncia e a previso no so virtudes desnecessrias nem inteis, alcanaremos pouco a pouco uma condio mais segura e mais forte (Idem, p. 88).

Enfim, a pobreza problema dos pobres por se descuidarem de si mesmos: deixaram de ter iniciativa, determinao, esforo e organizao da prpria vida. E quando os problemas so da vida privada, ou seja, particular e individual, no h a necessidade de o Estado intervir.

31

O Estado tambm no pode intervir na relao lucro-salrios. Ricardo enftico na demonstrao de que o lucro s pode vir da reduo dos salrios. Salrios elevados, lucros reduzidos. Por que isso ocorre? Ricardo parece no estar preocupado em demonstrar esta questo, pois ele parte do fato de que existe um salrio pago a um trabalhador que, para viver, tem que ter alimentos e gneros de primeira necessidade garantidos, e que entre o trabalhador e o capitalista deve haver um limite natural estabelecido pelo mercado, em mdia, do que cada um deve ganhar. A citao a seguir ilustrativa dessa relao natural entre lucro, salrio e mercado:

Deve entender-se que falo dos lucros em geral. (...) O preo de mercado de uma mercadoria pode ultrapassar seu preo natural ou necessrio, se a produo for inferior ao exigido por uma demanda adicional. Porm, isso no passa de um efeito temporrio. Os elevados lucros obtidos pelo capital empregado na produo dessa mercadoria, naturalmente atrairo capital para tal atividade. Assim, to logo a soma de capital requerido seja alcanada, e to logo a quantidade de mercadorias aumente devidamente, seu preo diminuir, e os lucros da atividade se ajustaro ao nvel geral. Uma queda na taxa geral de lucros, no de forma alguma incompatvel com um aumento parcial dos lucros numa atividade particular. pela desigualdade de lucros que o capital se movimenta de uma para outra atividade. Logo, enquanto os lucros gerais esto diminuindo e colocando-se num nvel inferior, em conseqncia do aumento de salrios e da dificuldade cada vez maior de abastecer com gneros de primeira necessidade uma populao crescente, os lucros do arrendatrio podem, por um breve intervalo, permanecer acima do nvel anterior. Pode tambm acontecer que uma atividade particular do comrcio exterior ou colonial receba, por algum tempo, um estmulo extraordinrio, mas a aceitao desse fato no invalida a teoria de que os lucros dependem de salrios altos ou baixos, os salrios dependem do preo dos bens essenciais, e o preo desses bens depende principalmente do preo dos alimentos, j que a quantidade de todas as outras coisas pode aumentar quase ilimitadamente (Idem, p. 96).

Vale destacar como Ricardo desvenda a relao interna entre lucros e salrios rompendo o imediato, o superficial - no caso, os preos e lucros altos fazem parte de uma determinada conjuntura e, portanto, no so estveis para deter-se na investigao de uma estrutura, de uma totalidade que no se d no imediatismo dos fatos. Esta totalidade tem uma regularidade, uma lei, que apesar das circunstncias, a determinante, em ltima instncia, dos lucros. Trata-se do salrio pago com base restrita na manuteno do trabalhador. A taxa de lucros s pode se elevar por uma reduo dos salrios, e que estes

32

s podem cair permanentemente em conseqncia de uma queda no preo dos gneros de primeira necessidade, nos quais os salrios so gastos (Idem, p. 103). O equilbrio social e econmico depende desse princpio, ou seja, trabalhadores com salrios limitados sobrevivncia tero o nmero de filhos em conformidade com as demandas. A definio dos salrios permite a fixao de uma mdia ponderada de taxas de lucros, as quais sero definidas pelo mercado. A integrao desses fatores, sem a interveno do Estado, permitiria o desenvolvimento com harmonia. Portanto, Ricardo conclui que, inicialmente um aumento salarial no elevaria os preos das mercadorias, mas invariavelmente reduziria os lucros; e, em seguida, que, se os preos de todas as mercadorias pudessem aumentar, o efeito sobre os lucros ainda seria o mesmo, e, de fato, somente teria seu valor reduzido o meio pelo qual preos e lucros so avaliados (Idem, p. 100). Os lucros no so definidos pelo comrcio exterior e nem pelo comrcio interno:

A taxa de lucro jamais aumentada pela melhor distribuio do trabalho, pela inveno de mquinas, pela construo de estradas e de canais ou por quaisquer meios de poupar trabalho, tanto na manufatura quanto no transporte de mercadorias. Essas causas influem no preo e jamais deixam de beneficiar os consumidores, pois permitem que, com o mesmo trabalho ou com o valor do produto do mesmo trabalho, se obtenha em troca maior quantidade de mercadorias s quais se aplica o melhoramento. No entanto, no ter qualquer efeito sobre o lucro. Por outro lado, toda reduo nos salrios aumenta os lucros, mas no produz nenhum efeito no preo das mercadorias; a outra benfica apenas para os produtores, pois eles ganham mais, embora o preo dos bens permanea inalterado. No primeiro caso, os produtores ganham o mesmo que antes, mas todos os objetos nos quais empregam seus ganhos tm um valor de troca menor. (Idem, pp. 103-104)

Essa a regra bsica da economia: preos de mercadorias, lucros e salrios esto relacionados e articulados de tal forma que o ganho de um a perda do outro. A tecnologia, por exemplo, pode baixar o preo das mercadorias para os consumidores, mas estes mesmos consumidores, em se tratando de trabalhadores, tambm tero seus salrios reduzidos, pois as tecnologias tambm reduziro os alimentos e os gneros de primeira necessidade. Para o capital auferir lucro, j que suas mercadorias, por serem mais baratas, compram menos, ter necessariamente que reduzir os salrios.

33

Resultam desse processo certos determinismos que no podem ser modificados aleatoriamente. Ricardo cita como exemplo a mercadoria trabalho: a razo que o trabalho uma mercadoria que no pode ser aumentada ou diminuda vontade (Idem, p. 122). Essa relao aparece quando ele trata dos impostos sobre os salrios. Um imposto sobre os salrios no passa de um imposto sobre os lucros (Idem, p. 155), porque o

imposto eleva o salrio e conseqentemente reduz o lucro. Ricardo, alis, sempre ser reservado quanto aos impostos: O imposto, qualquer que seja sua forma, no significa nada mais do que uma escolha entre diferentes males (Idem, p. 123). Aps a apresentao de algumas teses centrais de Ricardo sobre o trabalho podemos fazer as seguintes observaes: a) Ricardo superou Smith ao mostrar que o valor da mercadoria determinado

pela quantidade de trabalho utilizado no processo de produo da mesma e no pela remunerao do trabalho como entendia aquele; b) Ricardo v o trabalho em funo da mercadoria e essa em funo do capital,

ou seja, do lucro. A sua preocupao bsica consiste em desvendar o valor da mercadoria a fim