419. a pesquisa em psicologia e o uso de vÁrios

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  • A PESQUISA EM PSICOLOGIA E O USO DE VRIOS INSTRUMENTOS DE INVESTIGAO

    Glucia Lorena Guedes dos Santos1 Lidiane de Oliveira Goes2

    O presente trabalho tem como objetivo discutir o uso de vrios instrumentos de investigao na pesquisa psicolgica a partir do relato da construo do campo de pesquisa de duas dissertaes de mestrado. Ambas esto fundamentadas na perspectiva de investigao qualitativa que tem como interesse investigar como as pessoas categorizam, compreendem a si mesmas e o mundo que as rodeiam. O campo de pesquisa aqui compreendido se assemelha definio de campo-tema de Peter Spink (2003, p.28) a qual corresponde a uma "rede complexa de sentidos", que vai sendo construda num constante dilogo acerca do tema. Dilogo esse "debatido", "negociado" e "arguido", situado dentro de um processo que tem tempo e lugar histricos. Participam desse processo de negociao do cotidiano da pesquisa tanto o pesquisador quanto aquele que pesquisado. A compreenso de campo presente neste trabalho abrange todas as fases da pesquisa em que uma escolha e discusso de um dado tema fazem parte do campo de pesquisa. A partir disso, defendemos a ideia de que uma escolha das ferramentas de investigao vai sendo delineada desde o momento que entramos no campo, ou seja, desde o momento que escolhemos o tema. Instrumentos de pesquisa, tais como a observao participante, a entrevista e a anlise de documentos de domnio pblico foram usados dentro de uma perspectiva de pesquisa concebida como prtica social, resultante do momento de interao entre pesquisador e pesquisados. Uma pesquisa, assim compreendida, possibilita ao pesquisador estar aberto aplicao e criao de vrios instrumentos de pesquisa adequados a uma dada realidade social, bem como possibilita uma apreenso da complexidade da mesma.

    Palavras-chave: Pesquisa psicolgica, instrumentos de pesquisa, pesquisa qualitativa

    1 Psicloga e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected]

    2 Profa. Ms. do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas. E-mail: [email protected]

  • 1. Introduo

    As duas dissertaes que pautaram a construo deste trabalho foram realizadas pelas pesquisadoras durante o Mestrado em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco e foram ambas "defendidas" em 2008.

    A pesquisa de Santos (2008) intitulada "Sobre Discursos e Prticas: a reabilitao psicossocial pelo olhar dos tcnicos de referncia de um CAPS da Regio Metropolitana do Recife" teve como objetivo geral investigar o processo de reabilitao considerando o discurso e a prtica dos tcnicos de referncia de um servio substitutivo aos hospitais psiquitricos, no caso um CAPS (Centro de Ateno Psicossocial) da Regio Metropolitana de Recife.

    O referencial terico desta dissertao foi a Psicologia Scio-Histrica, segundo a qual uma compreenso mais aprofundada dos fenmenos requer o entendimento das mudanas histricas que lhe deram origem e atualmente o circunscrevem (BOCK, GONALVES e FURTADO, 2001). Tivemos como instrumentos de pesquisa a observao, grupos focais e entrevistas. Desde o incio esta pesquisa se configurou com uma metodologia qualitativa, ou seja, muito mais focada em uma ampla explorao e leitura aprofundada dos dados do que em um nmero muito grande deles.

    J a outra dissertao, a pesquisa de Goes (2008), intitulada Os usos da nomeao mulher pescadora no cotidiano de homens e mulheres que atuam na pesca artesanal teve como objetivo analisar os usos da nomeao "mulher pescadora" no que se refere ao reconhecimento profissional do trabalho feminino e conquista de direitos no cotidiano da pesca artesanal.

    O referencial terico e metodolgico desta dissertao foram as prticas discursivas e produo de sentidos, em uma perspectiva construcionista. A metodologia foi configurada atravs da anlise de documentos de domnio pblico, de entrevistas com homens e mulheres que atuam na pesca artesanal, alm de observaes em lugares de circulao de homens e mulheres que atuavam na pesca nos bairros pesquisados.

    A partir destas informaes a respeito de nossas pesquisas muitos questionaro o que h em comum entre as duas que justifique a elaborao do presente trabalho. Contudo, ambas, partindo dos referencias terico-metodolgicos adotados, foram pesquisas qualitativas que se utilizaram de vrios instrumentos de investigao.

    Adotamos metodologias qualitativas porque acreditamos no pressuposto de que as pessoas agem segundo suas crenas, valores e percepes (ALVES, 1991) sobre si mesmas e o mundo que as rodeiam. Isto no implica que uma pesquisa realizada atravs de mtodo quantitativo no fosse capaz de apreender crenas, percepes e valores.

    pesquisa qualitativa interessa a compreenso dos fenmenos considerando a complexidade e as contradies inerentes aos mesmos. Caractersticas, tais como, a impressividade, a irregularidade, a transmutao das relaes sociais, to visveis no dia-a-dia das pessoas, so acolhidas na perspectiva qualitativa como informaes relevantes a serem analisadas ao se investigar um determinado fenmeno humano e social. O que no ocorre na perspectiva quantitativa, visto que a mesma se preocupa com as regularidades, a mensurao e a aplicao de leis e explicaes gerais aos mesmos fenmenos por estar edificada no modelo das cincias naturais (CHIZZOTTI, 1995).

    Contudo, em nossa concepo de Psicologia percebemos os sujeitos constitudos e constituintes na relao com os outros, ou seja, o indivduo se constituiria enquanto humano atravs da intermediao do mundo realizada pelas relaes com outros indivduos. Assim a produo de sentidos / significados algo fundamental em todas as esferas de vivncia. E, alm de significar, tambm experimenta este sujeito neste mundo. Seria na cultura, ento,

  • mediada por outros indivduos, que ns humanos nos tornaramos humanos (BOCK, GONALVES e FURTADO, 2002).

    Caberia ao pesquisador, ento:

    (...) O esforo analtico de ultrapassar essa aparncia (essas formas de significao) e ir em busca das determinaes (histricas e sociais), que configuram-se no plano de motivaes como sujeito, necessidades, interesses (portanto que so individuais e histricos), para chegar ao sentido atribudo / constitudo pelo sujeito (AGUIAR em BOCK, GONALVES e FURTADO, 2002, p.131).

    As prticas discursivas e produo de sentidos, ao focalizarem o seu estudo na linguagem em uso, compartilha dessa ideia em que ao mesmo tempo em que o sujeito construdo, tambm ele constri o seu contexto social.

    O aspecto da linguagem performtico (como as pessoas falam, categorizam, nomeiam a si e ao mundo) abordado por esse referencial terico-metodolgico destaca o interesse do mesmo nas prticas cotidianas onde a linguagem atua como ao social.

    As categorias, como nomeaes, como prticas profissionais, por exemplo, so configuraes sociais que dizem respeito s formas como as pessoas lidam com as situaes do cotidiano.

    J a Psicologia Scio-Histrica foi constituda com base nos trabalhos de Vygotsky (1896 1934), Leontiev (1903 1979) e Luria (1902 1977). Estes pesquisadores russos tinham a inteno de analisar os conhecimentos em psicologia atravs da filosofia materialista dialtica de Karl Marx (1818 1883) e Friedrich Engels (1820 1895) (Bock, Gonalves & Furtado, 2001).

    Teramos, ento, como noes bsicas para a pesquisa pautada na Psicologia Scio-Histrica a historicidade e a cultura de uma determinada sociedade na qual se desenrola o fenmeno estudado, tendo como prerrogativas buscar entender esse objeto de estudo em sua totalidade (social, histrica, cultural), alm de acompanhar o movimento e a transformao contnua dos fenmenos e compreender que as mudanas pelas quais eles passam qualitativa e ocorre atravs do acmulo de elementos qualitativos, que so contraditrios e se revelam e se constituem enquanto tal na relao com o mundo, o que os levam a se transformarem (BOCK in BOCK, GONALVES e FURTADO, 2001).

    Faremos, agora, uma breve explanao da noo de campo de acordo com Peter Spink (2003) por entendermos que ela oferece elementos para pensar e discutir o uso de variados instrumentos de investigao e como isto emerge no contato com o campo.

    2. O campo de pesquisa

    De acordo com Peter Spink (2003) o campo de pesquisa em Psicologia Social, comumente, entendido como um lugar em que o pesquisador se desloca para coletar dados. O que para o mesmo autor esta prtica est relacionada perspectiva adotada pela antropologia tradicional na qual:

    (...) a pesquisa de campo se referia observao e interao com as pessoas 'no seu habitat natural', no lugar especfico da ao fora das paredes do laboratrio. Era um campo que existia num lugar e quando o pesquisador no estava no lugar, tambm no estava no campo. O campo portanto era onde o pesquisador ia para fazer seus estudos (o.p., p. 21).

  • Encontramos tal perspectiva presente na literatura acadmica, principalmente a que corresponde pesquisa social. O campo descrito em termos espaciais, circunscrito pelo pesquisador de acordo com as suas concepes tericas acerca do objeto de investigao. Como consequncia dessa forma de entender o campo, observamos na mesma literatura uma lista de maneiras, cuidados na aproximao do campo; e uma descrio do como o pesquisador deve proceder ao aplicar determinados instrumentos de pesquisa. O que pode favorecer uma compreenso do social como algo esttico, passvel aplicao de tcnicas.

    No presente trabalho a perspectiva de campo se assemelha definio de campo-tema de Peter Spink (2003, p.28) a qual corresponde a uma "rede complexa de sentidos", que vai sendo construda num constante dilogo acerca do tema. Dilogo esse, segundo o mesmo autor, "debatido", "negociado" e "arguido", situado dentro de um processo que tem tempo e lugar histricos .

    Ao iniciarmos as nossas pesquisas de mestrado, nos deparamos com o tema, quer seja o referente nomeao mulher pescadora quer seja o que se refere reabilitao psicossocial na conjuntura atual da reforma psiquitrica no Brasil, e, assim, fomos nos aproximando de pessoas, eventos, lugares, etc., que nos do informaes acerca da temtica de nosso interesse. Cada fonte de informao traz consigo sentidos e/ou significados que so comunicados na relao pesquisador-pesquisado. Ambos expressam suas motivaes, experincias, preocupaes, etc., associadas direta ou indiretamente ao tema de pesquisa investigado.

    Nesse processo comunicativo, pesquisador e pesquisado vo construindo tambm sentidos e significados da prtica de pesquisa. Nessa construo a pesquisa surge como prtica social em que todo o seu processo de elaborao e execuo negociado entre os seus atores.

    Participam desse processo de negociao do cotidiano da pesquisa tanto o pesquisador quanto aquele que pesquisado. A compreenso de campo presente neste trabalho abrange todas as fases da pesquisa em que uma escolha e discusso de um dado tema fazem parte do campo de pesquisa. A partir disso defendemos a ideia de que uma escolha das ferramentas de investigao foi sendo delineada desde o momento em que entramos no campo, ou seja, desde o momento que escolhemos o tema.

    3. A escolha de instrumentos de investigao e a configurao do campo de nossas dissertaes

    3.1 O campo da reabilitao psicossocial

    O interesse pelo tema da reabilitao psicossocial, na conjuntura atual de reforma psiquitrica em nosso pas, foi despertado ainda na graduao, quando a pesquisadora entrou em contato com textos do socilogo canadense Erving Goffman (1922 - 1982), com visitas realizadas concomitantemente ao maior hospital psiquitrico da cidade do Recife.

    Goffman, de 1956 de 1955, fez uma pesquisa de campo nas enfermarias de um hospital psiquitrico norte-americano, que contava com 7.000 internos. Deste trabalho resultaram livros como "Manicmios, prises e conventos" (1961) e "Estigma" (1963).

    importante frisar que entre uma disciplina da graduao, em 2001, e a seleo do Mestrado, em 2005, houve a aprovao do Projeto de Lei nmero 10.216 que, entre outras coisas, prev uma desativao gradativa dos hospitais psiquitricos e a criao de servios substitutivos para oferecer tratamentos na rea de sade mental.

    A partir dessas informaes e com as discusses e questionamentos levantados durante as aulas de disciplinas do Mestrado e reunies de orientao, o projeto mudou para poder abarcar esta nova realidade surgida com o "desmantelamento" dos manicmios e a criao de servios substitutivos.

  • Assim, o objeto de estudo passou a ser o processo de reabilitao psicossocial junto equipe de profissionais em servios substitutivos aos hospitais psiquitricos, especificamente os Centros de Ateno Psicossocial (CAPS).

    A opo pelo CAPS deu-se porque este o servio de atendimento em sade mental que possui o maior nmero de unidades criadas e em funcionamento por todo o Brasil, segundo dados do Ministrio da Sade (www.saude.gov.br). E a escolha pela reabilitao psicossocial foi ocasionada por ela ser um dos "pilares" da reforma psiquitrica, em oposio institucionalizao psiquitrica em hospitais, anteriormente tida como o paradigma de atendimento aos doentes mentais.

    A fim de conhecer a organizao e o funcionamento do CAPS, a pesquisa de mestrado contou, inicialmente, com a realizao de observaes no centro de ateno psicossocial escolhido para a pesquisa num centro de ateno psicossocial na regio metropolitana do Recife. As observaes permitiram a visualizao do comportamento dos profissionais dos CAPS em seu contexto temporal-espacial de atuao, alm de nos permitir observar como se d o funcionamento deste servio substitutivo na prtica (ALVES-MAZZOTTI; GERWANDSZNAJDER, 2004).

    Desta forma, o uso da observao foi de extrema importncia porque permitiu uma compreenso acerca do funcionamento de um centro de ateno psicossocial e das relaes estabelecidas entre a clientela, seus familiares e os profissionais em sade mental.

    Os principais temas que guiaram as observaes foram a estrutura fsica do local, a rotina dos usurios e dos tcnicos de referncia, a atuao dos profissionais enquanto tcnicos de referncia, as atividades teraputicas, o posicionamento assumido pelos tcnicos de referncia com relao aos usurios, os encaminhamentos realizados pelos tcnicos de referncia em equipe e a questo da rede em sade mental.

    Estas observaes sempre foram acompanhadas de conversas informais que serviam para esclarecimentos, com o objetivo de se compreender melhor o significado das aes observadas. As observaes foram registradas em um dirio de campo, o que facilitou a anlise dos dados.

    Aps as observaes foi realizado um grupo focal com estes profissionais para se discutir a reabilitao psicossocial no contexto da reforma psiquitrica brasileira e do servio substitutivo no qual eles atuam. A escolha pelo grupo focal se deu porque ele apresenta elementos de discusso em grupo, mas tendo um foco, no caso a reabilitao psicossocial, o que permitiu identificar aspectos, tanto individuais quanto grupais, acerca do atendimento/ateno que os profissionais tcnicos de referncia empregam no CAPS no sentido de promoo do processo de reabilitao psicossocial (ROMERO in SCARPARO, 2000).

    O grupo focal uma tcnica de coleta de dados que empregada quando se deseja identificar opinies, sentimentos e formas de entender a realidade por parte de um grupo que a constitui. Assim, algumas perguntas previamente elaboradas norteiam a discusso, que facilitada pelo pesquisador, e acompanhadas por um auxiliar observador que tambm pode intervir no grupo a partir de comentrios advindos de suas observaes.

    importante alm destas perguntas e questes previamente elaboradas, que os grupos focais sejam audiogravados ou filmados para posteriores anlises, porque a quantidade de dados levantada durante um encontro muito grande para que sejam registradas apenas atravs de anotaes do facilitador e do auxiliar.

    Um dos critrios para a constituio de um grupo focal que os sujeitos tenham fortes elos de identificao. No nosso caso, o grupo foi constitudo por seis tcnicos de referncia - TR de um centro de ateno psicossocial que conta com 14 TRs, o que se configurou como o ponto em comum essencial para a formao do grupo. E, mais, como esses TR j trabalham

  • em equipe no servio substitutivo podemos dizer que o nosso grupo focal foi uma amostra significativa deste grupo maior.

    Os sujeitos que constituram o grupo foram voluntrios. Assim, o critrio para eles participarem foi a vontade. Foi realizado apenas um grupo focal porque ele foi suficiente para responder s questes.

    Segundo Gondim (2002), o grupo focal para a coleta de dados em pesquisas qualitativas ocuparia uma posio intermediria entre a observao e as entrevistas. Sendo assim, com a anlise do grupo focal ficaram algumas questes em aberto que foram aprofundadas com a realizao de duas entrevistas, com dois dos tcnicos participantes do grupo focal.

    Os diversos tipos de entrevistas so os instrumentos mais utilizados para a obteno de dados em pesquisas qualitativas (GEWANDSZNAJDER; ALVES-MAZZOTTI, 2004). Optamos pela entrevista semi-estrutura porque tnhamos um roteiro prvio, elaborado para aprofundar questes acerca da reabilitao psicossocial surgidas durante as observaes e o grupo focal que precisavam ser contempladas no momento do encontro entre a pesquisadora e o TR voluntrio.

    3.2. O campo da nomeao mulher pescadora

    O contato com o tema de pesquisa e, principalmente, com a populao pesqueira foi a partir do ano de 2004, ainda na graduao de Psicologia, a partir da pesquisa Mobilizao Social: Participao dos Pescadores e Pescadoras na Organizao das Colnias1, que a nomeao mulher pescadora despertou a minha curiosidade.

    A nomeao mulher pescadora tinha em determinados contextos, como nas conferncias estaduais e nacionais realizadas pela SEAP/PR, era mais comum de ser ouvida do que nas entidades representativas da categoria dos profissionais do setor pesqueiro.

    Numa entidade representativa da classe dos pescadores, a Colnia de Pescadores e Marisqueiras Z-16 Mesquita Braga, ao me referir s mulheres como pescadora fui interrompida e corrigida, pois para o secretrio daquela colnia no havia pescadoras e sim marisqueiras. Pois, a pescadora, era aquela mulher, cuja atividade de pesca estava voltada captura de peixes em alto-mar e, a marisqueira, a que realizava a coleta de mariscos na Lagoa Munda.

    O uso da nomeao mulher pescadora e a presena desta na colnia anteriormente referida se torna inexistente, visto que, geralmente, nas localidades pesqueiras a pesca em alto-mar realizada pelos homens (ESCALLIER, 1999; MOTTA-MAES, 1999; MANESCHY, 1995; WOORTMANN, 1992).

    Em outubro de 2004, ao participar do 1 Encontro das Pescadoras e Aquicultoras do Estado de Alagoas, organizado pela SEAP/PR, a nomeao pescadora surge numa faixa de saudao dirigida s mulheres a seguinte inscrio: A FEPEAL sada todas as pescadoras do Estado de Alagoas. Diante disso a pesquisadora responsvel pela pesquisa, a qual eu estava vinculada, questionou sobre a inscrio na faixa ao presidente da Federao de Pescadores do Estado de Alagoas (FEPEAL). Este lhe respondeu que as mulheres, no momento atual, so pescadoras e no mais marisqueiras.

    Esses acontecimentos apontaram para duas suposies. A primeira indicava que o uso da nomeao mulher pescadora era algo recente. E em segundo que esta se referia a todas as mulheres que atuavam no setor pesqueiro.

    Vrios questionamentos surgiram a partir de situaes como as descritas anteriormente. Esses giraram em torno do papel das mulheres nas localidades pesqueiras, das relaes existentes entre homens e mulheres no que se refere atividade pesqueira, bem como, sobre o que se considerava como pesca e como profissional deste setor. Tais inquietaes comearam, no ano de 2006, a ser consideradas como foco de investigao da pesquisa de mestrado.

  • Em contato com a literatura sobre o trabalho das mulheres no setor pesqueiro, durante o mestrado, as temticas traziam a discusso acerca da participao das mulheres, direta e indiretamente, na economia pesqueira; a presena de uma distino entre o trabalho masculino e o feminino nas localidades pesqueiras e; a invisibilidade das atividades realizadas pelas mulheres em localidades, cuja tradio a da atividade pesqueira.

    Nos textos que mencionavam a invisibilidade do trabalho das mulheres nas localidades pesqueiras, chamou ateno o fato das pesquisas considerarem que os estudos acadmicos contribuam para a legitimao dessa invisibilidade, ao assumir o discurso pblico sem questionar acerca da atuao das mulheres nessas localidades. Com isso, alm de subsidiar a compreenso acerca do trabalho das mulheres no setor pesqueiro, a literatura acadmica passou a ser considerada como fonte de informao sobre o uso da nomeao mulher pescadora.

    Outra possibilidade que a literatura permitiu foi considerar a legislao sobre a atividade pesqueira e os relatrios das conferncias e encontros realizados pela SEAP/PR como material de anlise, uma vez que esses materiais reportavam a pocas distintas da historia do setor pesqueiro e dos atores sociais a ele pertencentes. O que permitiu mapear a emergncia da nomeao mulher pescadora ao longo do tempo. O instrumento de investigao usado para atingir esse objetivo foi o denominado como anlise de documentos de domnio pblico.

    Os documentos de domnio pblico correspondem aos materiais de circulao e de aceso livre que tm por finalidade serem divulgados. Eles so produtos em tempo e componentes significativos do cotidiano; complementam, completam e competem com a narrativa e a memria (SPINK, P. 1999: 126). Como registros documentais, possibilitaram identificar o sentido e o contexto histrico-cultural o qual a nomeao era usada, bem como, forneceram elementos para entender as consequncias desse uso.

    Em contato com mulheres e homens da pesca artesanal, a definio de pescador vigente no Art. 26, do Decreto lei n 221, de 28 de fevereiro de 1967, cujo texto diz: Pescador profissional aquele que, matriculado na repartio competente segundo as leis e regulamentos em vigor, faz da pesca sua profisso ou meio principal de vida (BRASIL, 1967), era contraditria ao que alguns moradores, nos bairros pesquisados, definiam como pesca e, consequentemente, sobre quem poderia ser ou no o pescador, a pescadora e a marisqueira.

    Como os documentos de domnio pblico, as pessoas possuam verses distintas que estavam relacionadas ao seu processo de socializao pelo qual elas aprenderam sobre a atividade pesqueira e aos espaos que frequentavam.

    A partir dessa constatao os sentidos que cada uma das pessoas tinha sobre o universo da pesca se tornavam relevantes para identificar os usos da nomeao no dia-a-dia de homens e mulheres que praticavam atividades de pesca nos bairros pesquisados. A entrevista semi-estruturada e a observao participante vo ser os dois instrumentos de pesquisa utilizados com essa finalidade.

    A escolha pela entrevista do tipo semi-estruturada ocorreu devido ao fato desta permitir, segundo Shea, citado por Nunes (2002), a construo e a elaborao de perguntas conforme o dilogo estabelecido com as pessoas. Esse tipo de entrevista tanto tinha um roteiro com temas acerca das nomeaes e atividades de homens e mulheres no setor pesqueiro; como um intuito de proporcionar um espao de conversao entre pesquisador e pesquisado no qual ambos pudessem construir um conhecimento acerca da nomeao mulher pescadora e at da situao de pesquisa.

    A escolha dos participantes desta pesquisa consistiu, inicialmente, na identificao de algumas pessoas que realizavam atividades pesqueiras, denominadas informantes-chave que, posteriormente indicaram outras. Estas, por sua vez, tambm indicaram outras e assim,

  • sucessivamente, at que as informaes fossem suficientes para a pesquisa. Essa tcnica conhecida como Bola de Neve(ALVES, 1991, p. 61) e permitiu driblar dificuldades referentes identificao das pescadoras, visto que, geralmente, as mulheres nas comunidades pesqueiras no so e nem se reconhecem como pescadoras (ESCALLIER, 1999; MOTTA-MAES, 1999; MANESCHY, 1995; WOORTMANN, 1992).

    A observao teve como foco a participao poltica, as atividades pesqueiras realizadas pelas mulheres e o acesso a direitos destas. Essas informaes foram geradas a partir de observaes nas seguintes localidades: na colnia de pescadores no bairro do Trapiche da Barra em Macei-AL, no anexo casa da presidente da Associao de Maricultores Anjos do Mar.

    Esses locais foram escolhidos devido circulao de homens e mulheres, visto que esto associados concesso de algum direito social, ao cadastro profissional do setor esqueiro. Alm disso, so espaos que a comunidade usa para reunies as mais diversas, cursos, reforo infantil e posto de atendimento para a equipe do Programa Sade da Famlia (PSF) no caso do bairro de Ipioca.

    Vale destacar que esse conjunto de instrumentos foi configurado num processo interno e externo de reflexes e aes, impulsionado pelo tema, pelos lugares e pelas pessoas que circulavam nesses. Consequentemente, o campo foi se configurando numa negociao entre esses elementos, bem como, ele prprio produziu elementos que deram um rumo para a realizao da pesquisa acerca do uso da nomeao mulher pescadora.

    4. Concluses

    De acordo com Aguiar (in Bock, Gonalves & Furtado, 2002, p. 139):

    S ao levar em conta a realidade social poderemos explicar um movimento que individual e ao mesmo tempo social/histrico. Nossa tarefa consiste, portanto, em apreender a forma como nossos sujeitos configuram o social, um movimento que sem dvida individual, nico e ao mesmo tempo histrico e social.

    Por isso, nossas pesquisas realizadas atravs de mltiplos instrumentos de investigao advindos das pesquisas qualitativas. E, como os instrumentos so formas de levar os sujeitos a construrem uma fala acerca de nosso objeto de pesquisa, decidimos utilizar estas tcnicas porque elas permitem obter uma variedade de dados acerca do nosso objeto de pesquisa e do contexto no qual ele se desenvolve. Esta fala no uma mera resposta s perguntas, ela uma construo histrica acerca do objeto pesquisado (op cit). Por isso, os instrumentos aqui utilizados so percebidos como um momento de comunicao entre as pesquisadoras e os pesquisados.

    Para a pesquisa em Psicologia Social a utilizao de vrios instrumentos de investigao proporciona uma apreenso da complexidade da realidade que um determinado fenmeno apresenta. importante considerar que o pesquisador est implicado, diretamente, na configurao deste fenmeno, assim como os tcnicos de referncia do CAPS na Regio Metropolitana do Recife, as mulheres e homens que atuam na pesca artesanal em Macei.

  • 5. Referncias

    ALVES, Alda Judith. O planejamento de pesquisas qualitativas em educao. Caderno de Pesquisa. So Paulo, maio de 1991. p. 53-61

    ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. & GEWANDSZNAJDER, Fernando. O mtodo nas cincias naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. 2 ed. So Paulo: Pioneira, 2004. 203 p. BOCK, Ana Mercs Bahia; GONALVES, Maria da Graa Marchina e FURTADO, Odair. (Orgs.). Psicologia scio-histrica: uma perspectiva crtica em psicologia. 2 ed. So Paulo: Cortez, 2002.

    BRASIL, Decreto lei n 221, de 28 de fevereiro de 1967. Dispe sobre a proteo e estmulos pesca e d outras providncias. Dirio Oficial da Unio. Braslia, 1967. Disponvel em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil/Decreto-Lei/Del0221.htm>, Acesso em: 18 out. 2009.

    CHIZZOTTI, Antonio. Da pesquisa qualitativa. In: _____ Pesquisa em cincias humanas e sociais. So Paulo: Cortez, 1995, p. 77-87.

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    MANESCHY, Maria Cristina. A mulher est se afastando da pesca? Continuidade e mudana no papel da mulher na manuteno domstica entre famlias de pescadores no litoral do Par. Boletim do Museu Paraense Emlio Goeldi, ser. Antropologia Vol. 11, n 2, p.145-166, Belm, 1995.

    MOTTA-MAES, Maria Anglica. Pesca de homem/peixe de mulher (?):repensando gnero na literatura acadmica sobre comunidades pesqueiras no Brasi. Etnogrfica, vol. III, n. 2, p.

  • 377-399, 1999. Disponvel em: . Acesso em: 16 jun. 2006.

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