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4 Supremo Tribunal Federal e Poder Moderador 4.1 O STF entre o passivismo e o ativismo: uma aparente revisão de rumos O estudo sobre os conceitos de poder constituinte e de política demonstrou o equívoco de se entender os poderes constituídos como protagonistas do processo de atualização do princípio da igualdade. Isto não implica em ignorar a fundamental importância das instituições para este processo, mas em fazer lembrar que elas foram idealizadas como instrumentos para atuação do poder constituinte, como espaços em que a desunião maquiaveliana possa emergir, reconduzindo os sujeitos - e suas singularidades – ao palco político, ao núcleo das imponderáveis cenas de conflito que revelam desigualdades tidas por naturais. A democracia encontra-se vinculada à idéia de incessante construção do bem comum como processo que demanda, portanto, constante mutatio. Se assim o é, impõe-se redobrado zelo ao arquitetar instituições em cujo âmbito a lógica igualitária deverá se chocar com a lógica policial, sob o risco da mutação se ver desvirtuada como mecanismo para concentrar em poucas mãos o processo de tomada de decisões públicas. Ademais, as instituições apresentam contradições internas, pois, a par de se revelarem formas de expressão do poder constituinte que as instituiu, é contra este poder constituinte que o poder constituído se lança na tentativa de captura e domesticação. Isto já se faz suficiente para que seja afastada qualquer possibilidade de se conceber um poder moderador como meio de solucionar esta tensão. As investidas neste sentido prestaram-se a escamotear os projetos de dominação nelas implícitos. Estas considerações são de vital importância para a análise do comportamento do Supremo Tribunal Federal após a Constituição de 1988. Conforme destacado no segundo capítulo, a teoria do poder neutro serviu como instrumento para estruturação e execução das contra-revoluções francesa e norte- americana que consolidaram o liberalismo como modelo hegemônico no século XIX, em resposta às revoluções democráticas naqueles países. No que toca ao

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4 Supremo Tribunal Federal e Poder Moderador

4.1 O STF entre o passivismo e o ativismo: uma aparente revisão de

rumos

O estudo sobre os conceitos de poder constituinte e de política demonstrou o

equívoco de se entender os poderes constituídos como protagonistas do processo

de atualização do princípio da igualdade. Isto não implica em ignorar a

fundamental importância das instituições para este processo, mas em fazer

lembrar que elas foram idealizadas como instrumentos para atuação do poder

constituinte, como espaços em que a desunião maquiaveliana possa emergir,

reconduzindo os sujeitos - e suas singularidades – ao palco político, ao núcleo das

imponderáveis cenas de conflito que revelam desigualdades tidas por naturais. A

democracia encontra-se vinculada à idéia de incessante construção do bem

comum como processo que demanda, portanto, constante mutatio. Se assim o é,

impõe-se redobrado zelo ao arquitetar instituições em cujo âmbito a lógica

igualitária deverá se chocar com a lógica policial, sob o risco da mutação se ver

desvirtuada como mecanismo para concentrar em poucas mãos o processo de

tomada de decisões públicas. Ademais, as instituições apresentam contradições

internas, pois, a par de se revelarem formas de expressão do poder constituinte

que as instituiu, é contra este poder constituinte que o poder constituído se lança

na tentativa de captura e domesticação. Isto já se faz suficiente para que seja

afastada qualquer possibilidade de se conceber um poder moderador como meio

de solucionar esta tensão. As investidas neste sentido prestaram-se a escamotear

os projetos de dominação nelas implícitos.

Estas considerações são de vital importância para a análise do

comportamento do Supremo Tribunal Federal após a Constituição de 1988.

Conforme destacado no segundo capítulo, a teoria do poder neutro serviu como

instrumento para estruturação e execução das contra-revoluções francesa e norte-

americana que consolidaram o liberalismo como modelo hegemônico no século

XIX, em resposta às revoluções democráticas naqueles países. No que toca ao

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Brasil, o primeiro arcabouço institucional de nação independente foi gestado pela

teoria do poder moderador. Se ele atravessa o regime imperial como instituição

oficial, tem seus efeitos reproduzidos oficiosamente pela política dos Estados e é

utilizada como discurso legitimador do golpe de 64. Não parece constituir

extrapolação desarrazoada questionar se após o processo de redemocratização

ainda subsistem laivos de poder moderador na atuação das instituições brasileira.

Os traços da cultura política de um país não são automaticamente apagados pela

mera edição de uma nova constituição.

De saída, dois pontos merecem ser mencionados. O primeiro refere-se à

gênese do STF e sua idealização, à época, como herdeiro das funções do Poder

Moderador do Império. No processo de elaboração da Constituição de 1891

suscitou-se estruturar o STF como instituição que, tal qual a Suprema Corte

americana, mediasse os conflitos e temperasse os excessos democráticos,

funcionando como condensador e decifrador da soberania nacional; o oráculo

detentor do poder transcendente de decifrar a vontade soberana de um povo ou de

uma nação. Fabio Leite explicita que a inexistência da previsão do Poder

Moderador pela Constituição de 1891 procurou ser suprida pela atribuição do

papel de guardião da Constituição ao Supremo Tribunal Federal.422 A corte fora

concebida, assim, para atuar como intermediário entre o povo e o governo, em

uma função de mediação e moderação da democracia que Montesquieu atribuíra à

nobreza no governo misto monárquico. A constituição material da recém

instituída república brasileira, no entanto, induziu Campos Sales à adoção da

política dos Estados como substituto funcional do Poder Moderador para operar

uma mudança conservadora e consolidar a oligarquia no poder.

Uma ressalva se faz indispensável: não se pretende afirmar que o Supremo,

em sua versão atual, constitui-se a consagração de um projeto imaginado pelos

constituintes de 1891. Basta, para afastar esse equívoco, ressaltar a diferença no

422“[...] a atribuição que conferiria maior destaque ao Supremo Tribunal Federal no novo regime refere-se à guarda da Constituição. De fato, o texto de 1891, sob a forte influência do direito norte-americano, trouxe à organização constitucional do País o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos pelo Poder Judiciário, que representava a chave da organização política, fosse pela influência do Direito Público francês e inglês, não conheceu o controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário. A Constituição de 1891 que, ao contrário, não abrigava um Poder Moderador e foi elaborada sob inspiração do direito constitucional norte-americano, reservou ao Supremo Tribunal Federal um papel de destaque no que se refere à guarda da Constituição [...]”. LEITE. Fábio Carvalho. Op. cit., p. 136.

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trato do controle de constitucionalidade nos distintos momentos. Trata-se, no

entanto, de reconhecer que o ideal moderador que informava a Suprema Corte

norte-americana se fez presente na gênese do Supremo Tribunal Federal. Curioso

anotar, ainda, que a adoção do controle de constitucionalidade concentrado pelo

texto de 1988, diversamente do ocorrido em 1891, confere mais poder e, portanto,

mais condições para a atuação do Supremo como equivalente funcional do poder

moderador. Isto não implica em afirmar, e esta ressalva nunca é assaz, que o

controle concentrado seja a raiz dos problemas analisados neste trabalho, nem

mesmo que por conta de sua previsão não haja o que ser feito para evitar uma

atuação desmesurada do Supremo. Nem o sectarismo, tampouco o determinismo,

deve conduzir o debate sobre o tema. Impõe-se antes de tudo, diante da

importância e poder que revela este instrumento de verificação da conformidade

constitucional dos atos dos poderes constituídos, pesquisar mecanismos que

reconduzam este controle ao sujeito do poder constituinte, em atenção ao alerta

maquiaveliano de que as armas servem ao povo e não ao príncipe.

O segundo ponto refere-se à acuidade com que Vitor Nunes Leal expõe a

função conservadora das cortes superiores no sistema de freios e contrapesos com

que opera a separação dos poderes no modelo burguês. Ressaltando a função

histórica de guardiã dos direitos de propriedade desempenhada pela Suprema

Corte norte-americana, pontua o autor:

Se, eventualmente, as massas populares (adversas à burguesia, ou com pretensões contrárias aos direitos da burguesia) viessem a formar maioria em uma das casas do parlamento, restaria o obstáculo representado pela outra [...] Se apesar disso, as reivindicações populares atravessassem as duas casas e não suscitassem o veto presidencial, ficando em condições de serem transformadas em leis, esta lei não poderia atingir os direitos fundamentais da burguesia [...] Se passasse na lei algum contrabando, para violar esses preceitos constitucionais, ali estaria, de alcatéia, a Côrte Suprema, que foi dotada de prerrogativa de negar qualidade às lei inconstitucionais. E a atitude da Côrte, que construiu essa doutrina, tem sido, notoriamente conservadora.423

Instituidor de uma ordem policial menos deletéria que a absolutista, o

liberalismo utilizou com habilidade o arranjo institucional fundado na separação

de poderes e representação para afastar o demos das decisões sobre o bem comum.

Este objetivo reforça o quanto já concluído ao fim do estudo do conceito de

423 LEAL, Vitor Nunes. A divisão do poder no quadro da burguesia, In: Cinco estudos. Rio de Janeiro: FGV, 1955, pp. 107-108.

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política em Rancière: liberalismo e democracia não aparecem em uma relação de

causa e efeito; a democracia não emerge como resultado do refinamento do

Estado liberal, e sim como resultado das lutas por igualdade que afrontam este

modelo. A tentativa dos liberais de fazer coincidir democracia e liberalismo pela

interseção que ambas apresentam na defesa dos direitos individuais revela apenas

um simulacro de democracia, fantasia que o conteúdo individualizante do

liberalismo se reveste para legitimar-se. João Almino classifica esta aparência

democrática de “democracia defensiva”, na medida em que o modelo liberal

organiza uma série de barreiras defensivas, restringido a própria democracia.424

Em seu trabalho Poder constituinte e poder popular, José Afonso da Silva

demonstra como os procedimentos constituintes dos quais redundaram as

anteriores constituições brasileiras frustraram a efetiva participação popular tanto

em sua forma direta, como representativa.425 Nestes episódios o poder popular

confrontou-se com o poder imperial, o poder oligárquico e o poder militar, fatores

reais de poder que definiram o conteúdo das constituições brasileiras, usurpando

“a vontade constituinte do povo”.426 A Constituinte de 1987-1988, pontua o autor,

424Ao comentar o risco que a mobilização da classe operária em torno do Partido Comunista representava para a oligarquia nacional após a derrocada do Estado-Novo, João Almino salienta o grau de restrição do direito de liberdade a que foram expostos os movimentos sindicais, por obra dos oligarcas auto-intitulados democratas: “Pelo temor dos movimentos sindicais e dos comunistas, passa-se, assim, da defesa dos direitos individuais, entendidos como o direito de manifestação, de associação pacífica e o direito de propriedade, à justificação, pela necessidade de defesa destes mesmos direitos, das restrições às liberdades democráticas. [...] A liberdade e a democracia são, portanto, idealizadas para permitir que ‘em sua defesa’, possa se exercer o autoritarismo. É necessário utilizar todos os meios para evitar que desordeiros venham ameaçá-las, através de ideologias exógenas e da agitação nos sindicatos.” ALMINO, João. Os democratas autoritários, pp. 201-202. Como expõe Almino em outra passagem, o ingresso da classe trabalhadora no cenário político fizera temer aqueles que propuseram a abertura do Estado-Novo, quais fossem, “os liberais identificados com a burguesia, desejosos de realizar a democratização pelo ‘alto’ e sem a participação popular.” Ibidem, p. 64. 425“Mesmo nos momentos em que o povo participou do processo do poder, a organização do procedimento constituinte tem escamoteado a sua vontade. Seus mandatários não lhe são fiéis, apropriam-se do comando que exercem por delegação, usurpam-lhe a soberania.” SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a constituição. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 87. 426Ibidem, p. 87. As Constituições de 1824,1937, 1967 e 1969 foram impostas pelos donos do poder da ocasião, pelo que sequer se pode falar em desnaturação de uma vontade popular jamais expressa, ainda que indiretamente por representantes. Quanto à Constituição de 1891, José Afonso da Silva destaca seu caráter eminentemente oligárquico e coronelístico, vez que, conquanto não mais censitário, o sistema eleitoral era a descoberto, imperando o voto de cabresto; o Congresso eleito em 1890 era, assim, composto por militares e membros da aristocracia rural travestidos de “profissionais liberais”. Ibidem, 95. O caráter classista-representativo da Assembléia Constituinte instala em 1933, na perspectiva de José Afonso da Silva, determina um procedimento constituinte desajustado ao poder popular; em suas palavras, organizaram-se “modos de representação para atuar na Constituinte, independentes, portanto, do próprio querer do poder constituinte do povo.” Ibidem, 99. Por fim, o autor explicita que apenas a vinte dias das eleições para deputados e

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decorreu de intenso debate em torno convocação de uma assembléia com aquele

fim.427 Conquanto a convocação da assembléia implicou em uma deformação no

procedimento constituinte, José Afonso da Silva enumera as características que o

levaram a possibilitar o engenho de uma constituição democrática: o Congresso

Constituinte foi eleito de forma livre e democrática428; sua composição ideológica

era mais bem distribuída do que as Constituintes anteriores429 e a metodologia

adotada previu audiências públicas e participação popular no processo de

elaboração.430

Não que o poder popular não tenha sido confrontado; o foi em larga escala

pelo que o autor denomina de poder corporativo, atuando em forma de lobby

perante os representantes constituintes.431 Este tenso confronto é esmiuçado por

Adriano Pilatti em sua obra A Constituinte de 1987-1988. Conforme demonstra o

autor, o processo constituinte foi marcado pelo embate entre setores progressistas

e conservadores. A Assembléia Constituinte se fez cenário em que o dissenso, em

sentido oposto ao quanto pretendido pelos conservadores encastelados no

poder432, atuou como lógica condutora:

A Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988 (ANC) foi palco de grandes conflitos de interesse e opinião que haviam permanecido latentes, irresolutos ou

senadores restou estabelecido que os mesmos comporiam uma Assembléia Constituinte, de forma que, não houve tempo para que se estabelecesse um amplo debate sobre a forma e conteúdo da vindoura constituição: “a constituinte não foi debatida, não houve preparo adequado para que ela tivesse representatividade popular correspondente à paisagem social do país.” Ibidem, p.102. 427“Os debates pela convocação do poder constituinte originário ganharam as ruas, coisa rara no constitucionalismo brasileiro. Fizeram-se congressos, círculos de estudos, seminários, por todo o país, tendo como tema central a Constituinte ou o conteúdo da futura constituição.” Ibidem, p. 108. 428 Eleições livres e democráticas, “enquanto o possam ser, num sistema eleitoral que favorece em demasia o poder econômico”, ressalva José Afonso da Silva. Ibidem, 109. 429“[...] segundo pesquisa do jornal Folha de S.Paulo deu a seguinte classificação: direita 12%; centro-direita, 24%; centro, 32%; centro-esquerda, 23%; esquerda 9%. Esta pesquisa, tendo em vista o funcionamento da Constituinte, aproximava-se bastante da realidade.” Ibidem, 109. 430 “Foram apresentadas cento e vinte e duas emendas populares num total de doze milhões de assinaturas.” Ibidem, p. 109. 431Ibidem, p. 110. 432O presidente José Sarney, ao propor emenda à Constituição pela qual o Congresso deveria se reunir com poderes constituintes em 1987 atendeu aos interesses conservadores, frustrando as pretensões progressistas. Conforme ressalta Adriano Pilatti: “O caráter congressual da futura Constituinte e a criação da ‘Comissão Arinos’ foram questionados pelas esquerdas e por entidades civis e religiosas que haviam desempenhado importante papel na resistência ao regime militar a partir dos anos 1970 [...] Os chamados ‘progressistas’ defendiam uma ‘Constituinte Exclusiva’, a ser eleita fora dos quadros institucionais e das regras eleitorais estabelecidos para a representação ordinária, que faziam do Congresso Nacional uma instituição estruturalmente vocacionada para o conservadorismo, potencialmente controlada pelos grupos oligárquicos tradicionais da política brasileira.” PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo. Rio de Janeiro: Lumen Juris e PUC-Rio, 2008, p. 21.

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agravados, durante os anos de repressão. [...] Ali aconteceu um processo decisório caracterizado pelo dissenso, pela intensa e permanente mobilização de atores coletivos internos e externos, por votações altamente polarizadoras e, ao mesmo tempo – sobretudo em sua fase final -, por uma atividade igualmente intensa e incessante de busca de acordos entre as lideranças das diferentes forças em choque.433

As peculiaridades do procedimento constituinte434 permitiram que desta

desunião se lograsse conferir viés mais progressista ao texto constitucional. Este

pendor progressista pode ser identificado na ampliação da legitimação para

propositura da ação direta de inconstitucionalidade. Deve-se atentar, em especial,

para a inclusão das confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito

nacional dentre os entes legitimados àquela propositura (CF, art. 103, IX). Esta

medida insere os trabalhadores no centro da discussão sobre a pertinência da

produção da lei civil. Além de minimizar os efeitos transcendentes da

representação legislativa, tal medida possibilita a emergência do poder

constituinte através do confronto de sua lógica própria, igualitária, com a lógica

policial dos poderes constituídos. Tal mecanismo de mobilização do poder

constituinte seria esterilizado pela atuação termidoriana do Supremo Tribunal

Federal.

Se o processo constituinte mostrou-se fértil ao desenhar o modelo do

controle de constitucionalidade como mecanismo de permanência do poder

político da multidão, não logrou êxito em engendrar um arranjo que mantivesse

sob a custódia da comunidade a atuação da instituição perante a qual aqueles

instrumentos deveriam ser manejados. Assim, a despeito da possibilidade de

imputação de crime de responsabilidade aos seus ministros (CF, art. 52, II), o

arranjo institucional sob o qual se erigiu o Supremo Tribunal Federal abriu o

flanco para que a corte atuasse à revelia dos interesses populares.435 O STF restou

433PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988, p.1. 434Adriano Pilatti enumera as peculiaridades do procedimento constituinte que possibilitaram a inserção de conteúdos da agenda progressista no texto constitucional de 1988: “Em primeiro lugar, o reconhecimento – trivial em política ordinária, mas não necessariamente em política extraordinária - da possibilidade de expressão e ação das lideranças partidárias [...] Em segundo lugar, o impacto das reivindicações de participação efetiva e visível no processo decisório, postulada por centenas de constituintes do chamado baixo clero [...] Em terceiro lugar, a reação, posterior à elaboração regimental e interna à bancada do partido majoritário, à concentração de poderes enfeixados nas mãos do presidente do PMDB [...] tal reação produziu uma surpreendente vitória do progressista Mário Covas na disputa da Liderança do PMDB, com os votos do baixo clero moderado e conservador de sua bancada.” Ibidem, p. 312. 435Ao ressaltar o grau de ilegitimidade do Supremo Tribunal Federal, Francisco Gérson Marques de Lima comenta: “[...] percebe-se que a ilegitimidade do STF se manifesta em três instâncias: a)

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estruturado com onze membros detentores de mandato vitalício, com competência

para exercer função de guardião da Constituição, cujo acesso se dá pela indicação

do Presidente da República, convalidado pelo Senado (CF, arts. 101 e 102).

Ressalte-se ainda, que os ministros egressos da ditadura militar foram mantidos na

composição do STF. Não se pode, entretanto, atribuir apenas a este fato, de forma

determinista, a ocorrência de bloqueios a democracia.436 Imprescindível, assim,

não apenas identificar o modo pelo qual o Supremo Tribunal Federal foi erigido

pela Constituição de 1988, mas, principalmente, analisar os caminhos trilhados

pela corte a partir de então. É preciso lançar luzes sobre a efetiva atuação daquele

tribunal para identificar eventuais reminiscências de arraigadas práticas

aristocráticas, de cunho eminentemente conservador.

Antes, porém, pertinente questionar se a atuação do STF sofreu alteração de

rumo a partir do momento em que passou a ser integrado apenas por membros

cujo acesso se deu sob as regras da nova Constituição. Conforme referido,

ministros provenientes do regime ditatorial compuseram o STF mesmo após a

no ingresso de seus membros no órgão, pois não há a menor participação popular; b) no exercício da jurisdição, mediante proliferação de decisões distanciadas da população; e c) na impossibilidade de controle eficaz de seus atos pela sociedade [...] Estas instâncias indissociáveis conformam o teste da (i)legitimidade do Judiciário e de suas decisões. O STF não consegue passar por elas satisfatoriamente” LIMA, Francisco Gérson Marques de. O STF na crise institucional brasileira: estudos de casos: abordagem interdisciplinar de sociologia constitucional. São Paulo: Malheiros, 2009; p. 117. De acordo com o autor, a arquitetura institucional do STF distingue-se por sua feição pouco democrática: “[...] influência [do povo] nessa Corte é quase nenhuma, pois não participa do processo de nomeação nem pode demitir ou concorrer para o impeachment do Ministro. Enfim, não dispõe de controle nenhum sobre o Tribunal. Vale dizer: a vontade popular representa um nada para a referida Corte.” Ibidem, p. 118. 436O equívoco da interpretação determinista é comprovado pelo exemplo norte-americano. Nos Estados Unidos, como destaca Vitor Nunes Leal, apesar do sistema paralisante do checks and balances, os momentos de mudança encontraram homens públicos que, à margem do aparato institucional, souberam promover a coesão nacional. O autor aponta como as mudanças econômicas e sociais ocorridas nos Estados Unidos impediam seu retorno ao modelo do século XIX, no qual a Suprema Corte atuava desabridamente para conter os avanços democráticos. Neste sentido, Vitor Nunes Leal ressalta as palavras de Laski: “os debates da política norte-americana na próxima geração se concentrarão sobre o ritmo e o quantum da reforma que a classe proprietária esteja disposta a conceder ou se veja obrigada a aceitar”. LEAL, Vitor Nunes. A divisão dos poderes no quadro político da burguesia, p. 111. Ainda sobre o mesmo tema, João Mangabeira nos traz o relato da profunda revolta que o comportamento antidemocrático da Suprema Corte causou na sociedade norte-americana no início do século passado. Como reação, iniciou-se intenso debate sobre instauração do recall para ministros daquela corte. O aviso foi bem assimilado, como pontua o autor: “[...] seria interessante examinar as decisões da Suprema Côrte deante da questão social; e sobretudo o variar de seus arestos, sob a pressão do ambiente aquecido, pela indignação popular [...] É que vários Estados introduziram nas suas Constituições o recall dos juízes. Roosevelt, Bryan, Borah, Le Follete não cessavam de bradar contra a atitude da Suprema Côrte. Nos centros operários era enorme a agitação [...] Foi ao rugir dessas ventanias que a Suprema Côrte virou de prôa, buscando lentamente as aguas tranquillas.” MANGABEIRA, João. Em torna da Constituição, pp. 123-124.

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edição da Constituição de 1988.437 Tal fato é apontado como um dos motivos a

explicar a passividade que a corte demonstrara para concretização de direitos

constitucionais, principalmente os sociais e os vinculados a distribuição igualitária

de poder.438 A recente tendência do Tribunal orienta-se, em sentido diverso,

marcada por atuação mais ativa com anunciada pretensão de concretizar os

comandos constitucionais, a despeito da inércia dos demais poderes.439 Um olhar

menos atento sobre o fenômeno induz a crer que este ativismo judicial indica a

correção de rota do tribunal, agora afeito às suas responsabilidades democráticas.

Por esta perspectiva, a passividade do Supremo corresponderia ao seu período

conservador, resquício da ditadura que a contaminava, ao passo que o ativismo

estaria necessariamente atrelado à sua guinada democrática. Tal correspondência,

contudo, não é imperativa.440 Analisando o conteúdo do ativismo praticado pelo

STF, percebe-se que a alternância na forma não reflete necessariamente o

compromisso com a democracia que a Constituição demanda. Longe de se

apresentarem necessariamente como dois momentos - e movimentos - que se

contrapõem imobilismo e ativismo, não raro, integram o mesmo propósito na

437Eis o rol de ministros de Supremo que transitaram da ditadura à democracia: José Carlos Moreira Alves (indicado por Ernesto Geisel, nomeado em 1975 e aposentado em 2003); José Néri da Silveira (indicado por João Figueiredo, nomeado em 1981 e aposentado em 2002), Sydney Sanches (indicado por João Figueiredo, nomeado em 1984 e aposentado em 2003); José Francisco Rezek (indicado por João Figueiredo, nomeado em 1983 e exonerado a pedido em 1990); Aldir Guimarães Passarinho (indicado por João Figueiredo, nomeado em 1982 e aposentado em 1991); Luiz Octavio Pires e Albuquerque Gallotti Luiz (indicado por João Figueiredo, nomeado em 1984 e aposentado em 2000). Deixou de se elencar os ministros Djaci Alves Falcão, Oscar Dias Correia e Luiz Rafael Mayer pelo fato de terem se aposentado poucos meses após a edição da Constituição de 1988. Fonte: STF. Disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfComposicaoMinistroApresentacao/anexo/linha_sucessoria_tabela_180310.pdf.>. Acesso em 03 mar. 2010. 438Direitos sobre a distribuição de poder devem ser compreendidos como aqueles que permitem a maior participação política do cidadão, inclusive pela presunção igualitária dos direitos sociais. Dentre tantos, põem ser citados o direito à greve, o direito a desafiar a constitucionalidade dos atos ou omissões dos poderes constituídos e o direito de se ter cumprida função social da propriedade rural e urbana. 439O que aqui denominamos passividade judicial é tratado por Luís Roberto Barroso como auto-contenção judicial, em contraposição à idéia de ativismo. Nas palavras do autor: “A idéia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. [...] O oposto do ativismo é a auto-contenção judicial, conduta pela qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes.” Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. BARROSO, Luís Roberto. Disponível em <http://www.oab.org.br/oabeditora/users/revista/1235066670174218181901.pdf> Acesso em 26 fev. 2010, pp. 6-7. 440Barroso alerta para os riscos do mau uso do ativismo judicial, vez que, na qualidade de instrumento, pode ter seu uso desvirtuado: “Os riscos da judicialização e, sobretudo, do ativismo envolvem a legitimidade democrática, a politização da justiça e a falta de capacidade institucional do Judiciário para decidir determinadas matérias”. Ibidem, p. 17.

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atuação do Supremo: domesticar a democracia, ditando-lhe ritmo, conteúdo e

alcance. O guardião já se compreende como senhor.

Corroborando o quanto acima alegado Francisco Gérson Marques de Lima,

em seu trabalho O STF na crise institucional brasileira, observa a existência de

uma linha de continuidade na atuação do tribunal no sentido de desnaturar seu

caráter social. O autor não desconsidera a influência da alteração de composição

da corte com a saída dos ministros egressos do regime militar, responsáveis por

impedir, no primeiro momento, a concretização da Constituição441. No entanto,

ressalta que esta mudança não se refletiu em uma atuação do STF à altura das

demandas democratizantes do texto constitucional:

Mesmo depois do governo FHC, a composição do STF continuou sendo predominantemente conservadora. Supunha-se que o governo seguinte (Lula) nomeasse, p. ex., Ministros com feição trabalhista, social, de vanguarda; mas, no entanto, não foi isto que se consolidou [...] o tecnicismo e outros valores têm prevalecido, na maioria dos votos [...] Esperava-se que este quadro fosse mudar sensivelmente, na gestão presidencial de Lula [...] Mas apesar de todos os ministros nomeados no governo Lula, a jurisprudência do STF mudou apenas pontual e lentamente.442

A distensão lenta para uma democracia defensiva, fenômeno bem captado

pelo autor, é agora capitaneado pelo Supremo, seja através de atuação contida,

seja por seu maior ativismo. Conforme destaca Sérgio Sérvulo da Cunha, a elite

conservadora, derrotada em pontos cruciais na Constituinte, não pretendia a

aplicação da Constituição de 1988:

O grande sonho da elite conservadora brasileira é o de uma Carta semelhante à que tivemos no Império. Entretanto, esta só foi possível porque no Brasil inexistia povo. A emergência de povo é a nossa novidade no século XX, marcado, em razão disso, pela busca do Estado democrático de Direito.443

Mediante abrangente estudo de casos Francisco Gérson Marques de Lima

demonstra os caminhos percorridos nas três últimas décadas pelo STF, a

comprovar seu distanciamento do ideal democrático no trato de temas de

441 “[...] a Corte brasileira, encarregada de interpretar uma Constituição completamente diferente da anterior, permaneceu compostas por juristas nomeados no crédito do regime militar, com a mentalidade dos quartéis.” LIMA, Francisco Gérson M. de. O Supremo Tribunal Federal na crise institucional: estudos de casos: abordagem interdisciplinar de Sociologia Jurídica. São Paulo: Malheiros, 2009; p.178. 442Ibidem, pp. 306-307. 443CUNHA. Sérgio Sérvulo da. Dez anos de Constituição. Disponível em < http://www.servulo.com.br/pdf/Dez.pdf >. Acesso em 02 mar. 2010, p. 1.

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acentuada relevância444. Pela perspectiva do autor, a feição liberal que tem

marcado a atuação do STF encontra-se em descompasso com o conteúdo de uma

Constituição eminentemente social, a exigir uma interpretação correlata.445 Se

assim o é, o STF está a proceder, pelo alto, desnaturação do caráter democrático e

social da Constituição brasileira. É neste mesmo sentido que Boaventura de Sousa

Santos denuncia a ocorrência de uma contra-revolução jurídica em alguns países

latino-americanos, colocando o Brasil sob atenta observação. Em recente artigo

publicado no jornal Folha de S.Paulo, o autor explica sua concepção sobre este

fenômeno:

Entendo por contrarrevolução jurídica uma forma de ativismo judiciário conservador que consiste em neutralizar, por via judicial, muito dos avanços democráticos que foram conquistados ao longo das duas últimas décadas pela via política, quase sempre a partir de novas Constituições.446

Trata-se de uma definição em tudo semelhante ao quanto discorrido nos

capítulos antecedentes. Em breve parágrafo Boaventura sintetiza o caráter contra-

majoritário, antidemocrático das contra-revoluções e o papel desempenhado pelas

cortes supremas nestas ocasiões. A arguta observação do pensador lusitano se

expressa na identificação de uma espécie de ativismo judicial como fenômeno

que, a par de empunhar a bandeira da concretização dos comandos

constitucionais, o faz com viés eminentemente conservador dos ideais liberais.

444Na fase de auto-contenção do STF pode-se elencar decisões marcantes no bloqueio à democracia e ocultação da política: a) restrição ao uso das ações diretas de inconstitucionalidade por interpretação restritiva do art. 103, CF, que excluiu estudantes, camponeses e trabalhadores em geral do embate político, ao decretar a ilegitimidade da União Nacional de Estudantes (UNE), da Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT) para propositura da ação. Ibidem, pp. 501-503; c) não suspensão da proibição de concessão de medidas liminares, cautelares e tutelas antecipadas contra o poder público, expressa na Medida Provisória 173/90. Ibidem, pp. 325-326. Em sua fase ativista o STF seguiu a mesma toada, moldando a democracia à sua feição e à revelia do poder constituinte. Nesta mais recente fase inserem-se: a) o avanço contra atuação republicana da Polícia Federal, do Ministério Público e do primeiro grau de jurisdição da Justiça Federal, em decorrência das denúncias e medidas judiciais decorrentes da Operação Satiagraha da Polícia Federal. Ibidem, pp.619-626; b) a verticalização das alianças partidárias; c) a decisão sobre a fidelidade partidária; d) o flagrante caso de invasão de competência em que se constituíram as ressalvas determinadas na decisão do caso Raposa Serra do Sol; e) a declaração de mutação constituição que inverteu o sentido do art. 52, X, da Constituição Federal, menos pelo conteúdo da medida em si, mais pelo desprezo ao procedimento para reformar a Constituição, a demonstrar a materialização da bizantina fórmula: a Constituição é o que o Supremo diz que ela tenha que ser. 445“A CF/1988 tem uma característica marcante, que a distingue de outras Constituições: ela é uma Constituição social. Seus valores supremos são os direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça.” LIMA, Francisco Gérson Marques de. O STF na crise institucional brasileira, pp. 47-48. 446SANTOS, Boaventura de Sousa. A contrarrevolução jurídica in Folha de S.Paulo, 04 de dezembro de 2009.

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Boaventura cuida, ainda, de frisar a complexidade do momento vivido, ao

apresentar as nuances deste fenômeno. De saída, retira-lhe qualquer viés

conspiratório ou de atuação em bloco do poder judiciário, atentando para o modo

sutil como se desenvolve o ativismo conservador:

A contrarrevolução jurídica não abrange todo o sistema judicial, sendo contrariada, quando possível, por setores progressistas. Não é um movimento concertado, muito menos uma conspiração. É um entendimento tácito entre elites político-econômicas e judiciais, criado a partir de decisões judiciais concretas, em que as primeiras entendem ler sinais de que as segundas as encorajam a ser mais ativas, sinais que, por sua vez, colocam os setores judiciais progressistas em posição defensiva. Cobre um vasto leque de temas que têm em comum referirem-se a conflitos individuais diretamente vinculados a conflitos coletivos sobre a distribuição de poder e de recursos na sociedade, sobre concepções de democracia [...]447

O alerta de Boaventura de Sousa Santos, ao apontar indícios de gestação de

uma contra-revolução jurídica no Brasil, é especialmente caro para o

desenvolvimento deste trabalho. Primeiro por indicar caminhos para compreender

os possíveis rumos que o ativismo judicial pode tomar. Não se trata de condenar,

de pronto, a atuação do poder judiciário incensando seu retorno à mera condição

de cumpridor da letra fria da lei, reprodutor de formalidades legais, a boca da lei

como queria Montesquieu. Neste sentido, ao referir-se ao caráter polissêmico que

pode ser atribuído ao termo judicialização da política, Francisco de Guimaraens

salienta que não há razões para inquiná-lo como ilegítimo, caso seja

compreendido apenas como “um movimento contínuo e progressivo de ampliação

da participação do poder judiciário na promoção e na concretização dos direitos

fundamentais”. Desenvolve o autor:

Este tipo de judicialização é mais do que natural em um país que, ao abandonar o autoritarismo, se viu diante do desafio de estabelecer, mediante os mais variados mecanismos – inclusive judiciais – o cumprimento daquilo que a nova Constituição estabeleceu em favor dos cidadãos. Ao deixar de ser crime a mobilização social e

447SANTOS, Boaventura de Sousa. A contrarrevolução jurídica. Boaventura considera que no Brasil não resta claro que tal fenômeno esteja plenamente consolidado. Segundo o autor, “há apenas sinais nalguns casos perturbadores, noutros que revelam que está tudo em aberto.” Dentre outros, Boaventura ressalta: pendência nos tribunais de ações requerendo anulação de políticas que garantem a educação superior a grupos sociais dela excluídos; anulação de turmas especiais para os filhos assentados da reforma agrária; reação de setores oligárquicos contra direitos dos indígenas e quilombolas que se valem de medidas judiciais para dificultar a ratificação de novas reservas e para restringir drasticamente, perante o STF, o conceito de quilombo; criminalização dos movimentos sociais, inclusive com pedido judicial de dissolução do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra; pendência no STF de argüição de preceito fundamental proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil que considere inaplicável o art. 1° da Lei de Anistia aos crimes de tortura, assassinato e desaparecimento de corpos praticados por agentes da repressão política ao longo da ditadura militar.

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ao se determinar uma extensa lista de direitos fundamentais, outro não poderia ser o efeito, senão o aumento contínuo das demandas judiciais.448

No entanto, se não é o caso de condenar a atuação do Poder Judiciário para

concretização da Constituição, tampouco se trata de admitir que qualquer tipo de

atuação, pela mera demonstração de força daquele poder, seja resposta para os

problemas de concretização dos comandos constitucionais. Boaventura ressalta

que o ativismo judicial pode ter viés eminentemente conservador, contrário à

competência que a Constituição atribui ao Supremo. O neoconstitucionalismo,

teoria que prega a concessão de maiores poderes aos tribunais, conquanto esteja

preocupado em conferir arsenal para concretização dos princípios constitucionais,

não produziu respostas eficazes para conter o risco de os tribunais superiores

tomarem de assalto o poder constituinte, reescrevendo a Constituição ao seu

talante.449 A questão não pode resumir-se ao apelo à maturidade da corte,

eventualmente obtida com o passar do tempo; o problema reside na própria forma

pela qual este tribunal se estrutura e sua solução passa pelo aprimoramento de

mecanismos institucionais que coloquem a atuação do Supremo sob o controle da

comunidade; mecanismos institucionais que atrelem e reconduzam o controle de

constitucionalidade a uma concreta manifestação do poder constituinte.

448 GUIMARAENS, Francisco de. Judicialização da política. Mimeo. A partir do original do presente texto, o autor extraiu elementos para publicação do artigo O judiciário brasileiro e a fidelidade partidária: retorno à Emenda n° 1/69, ao qual se fará referência posteriormente. 449De fato, como observa Luís Roberto Barroso, o neoconstitucionalismo, lançando mão de uma nova interpretação constitucional, possibilitou um salto qualitativo na concretização dos comandos constitucionais pelo poder judiciário. A interpretação jurídica tradicional, bem pontua o autor, não dá conta de manejar um ordenamento constitucional marcado pelo reconhecimento da normatividade dos princípios que a integram. Esta nova interpretação constitucional, por sua vez, leva em consideração a possibilidade de colisões entre normas constitucionais, elegendo a ponderação como técnica mais apropriada para alcançar a concretização dos valores constitucionalmente eleitos. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547&p=1>. Acesso em 02 fev. 2010. No entanto, nenhum mecanismo de hermenêutica, por si só, é capaz de evitar que o Supremo preencha a textura aberta dos princípios constitucionais ao seu bel prazer. Assim, o interessante modelo de controle da legitimidade e racionalidade das decisões judiciais proposto pelo neoconstitucionalismo, em relação à realidade institucional em que se insere o Supremo, é reduzido a mero apelo às consciências dos ministros que compõem a corte. Aliás, parece ser esta a única solução apontada pela doutrina brasileira. Em sua obra Mutação constitucional Uadi Lammêgo Bulos, explicita sua fórmula para que os intérpretes da Constituição, tal qual a corte suprema, não abusem de sua competência constitucional: “[...] as mudanças constitucionais não encontram limites em seu exercício. A única limitação que pode existir – mas de natureza subjetiva, e até mesmo, psicológica – seria a consciência do intérprete de não extrapolar a forma plasmada na letra dos preceptivos supremos do Estado, através de interpretações deformadoras dos princípios fundamentais que embasam o Documento Maior.” BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 91. De fato, a previsão de julgamento de ministros do Supremo em caso de crime de responsabilidade (art. 52, II, CF) parece não escrita. Na partilha do sensível, aqueles seres são enxergados como irresponsáveis por seus atos.

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A denúncia de Boaventura de Sousa Santos contra um ativismo judicial

conservador que, a despeito de se legitimar como concretizador da Constituição

desnatura seu conteúdo, traz à tona a atuação desabrida do STF no sentido de

capturar e filtrar sob sua lente peculiar o conteúdo da Constituição. Em resumo, é

contra o assalto ao poder constituinte pelas altas cortes de justiça que Boaventura

se insurge. A associação que o pensador português faz entre ativismo judicial

conservador e contra-revolução jurídica instiga, ainda, o questionamento sobre a

reminiscência da cultura do poder moderador nas práticas das instituições

nacionais. Conforme restou demonstrado, as contra-revoluções norte-americana e

francesa tiveram a teoria do poder moderador como peça central de sua

legitimação e desenvolvimento, e mais: é em torno do ideal moderador da

democracia que se erige a ordem policial-administrativa do Brasil Império e se

conduzem os ataques oligárquicos deflagrados na República Velha e pela ditadura

militar.

No trato das decisões do Supremo um último, mas não menos relevante

detalhe deve ser ressaltado. É comum vincular o processo decisório das cortes à

técnica jurídica. A atribuição de caráter eminentemente jurídico às constituições

conduz à conclusão de que as cortes de justiça possuem instrumentos

interpretativos mais adequados para filtrar o etéreo espírito do poder constituinte

veiculado no texto constitucional. Conquanto Luís Roberto Barroso ressalve que

nos tempos atuais não se ouse mais invocar a neutralidade do STF, o apelo ao uso

da melhor técnica não raro se apresenta como argumento para demonstrar o

caráter asséptico das decisões de seus ministros. A estreita ligação entre o elogio

ao argumento técnico, a pretensão de legitimação pela neutralidade e a doutrina

do poder neutro é descortinada por Carl Schmitt:

No século XIX tornam-se grandezas neutras primeiro o monarca e depois o Estado, e aqui, na doutrina liberal do pouvoir neutre e do stato neutrale, se ratifica um capítulo de teologia política, no qual o processo de neutralização encontra suas fórmulas clássicas, porque agora ele também apanhou o decisivo, o poder político [...] A crença na técnica, hoje espalhada, baseia sua evidencia apenas no fato de que se poderia crer ter encontrado na técnica o solo absoluta e definitivamente neutro. Pois aparentemente não existe nada mais neutro do que a técnica [...] Em comparação com as questões teológicas, metafísicas, morais e mesmo econômicas, sobre as quais se pode lutar eternamente, os problemas puramente técnicos

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possuem algo de agradavelmente objetivo; eles conhecem soluções que parecem evidentes [...]450

Vê-se, portanto, como a legitimação pela melhor técnica pode atuar como

substituto funcional da legitimação pela neutralidade. Nas questões de cunho

eminentemente político decididas no âmbito jurídico, quem se legitima ostentando

apenas o critério técnico pretende, ainda que se manifeste em sentido diverso,

emitir uma mensagem de atuação neutra. Assim, ainda que as decisões dos

tribunais obedecessem apenas a critérios técnicos – o que, à evidencia, não pode

ocorrer –, esta técnica jurídica revestiria retoricamente de neutralidade um tomar

parte nas questões públicas que oscila entre a concretização progressista da

constituição e mitigação da democracia. A tentativa de valer-se da técnica para

ocultar a preferência por uma democracia-defensiva resta, portanto, frustrada; tal

subterfúgio não resiste à demonstração do caráter instrumental da técnica por

Schmitt:

[...] a neutralidade da técnica é algo diferente da neutralidade de todas as outras esferas até agora. A técnica é sempre somente instrumento e arma, e justamente porque ela serve a qualquer um, ela não é neutra. Da imanência da técnica não brota nenhuma decisão humana espiritual, e menos ainda uma em favor da neutralidade. Toda espécie de cultura, cada povo e cada religião, cada guerra e cada paz pode se servir da técnica como arma [...] A decisão sobre liberdade e servidão não está na técnica enquanto técnica. Ela pode ser revolucionária e reacionária, servir à liberdade e à opressão, à centralização e à descentralização.451

Assim, a maior legitimidade do STF não se vincula automaticamente ao

aprimoramento da técnica manejada. Não se conferirá caráter democrático ao STF

tratando-se apenas de refinar a técnica jurídica adotada. Importa analisar, como

diagnóstico, os multifacetados aspectos que rondam a atuação conservadora da

referida corte de justiça, para, só então, propor eventuais correções em seu arranjo

institucional. A proposta deste trabalho se resume à análise de apenas um destes

aspectos, qual seja, as correspondências entre a atuação do Supremo e as

características que marcam a teoria e a prática do poder moderador no Brasil. É

preciso avançar, portanto, nesta tarefa.

450SCHMITT, Carl. O conceito do político, p. 115. 451Ibidem, p. 116.

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4.2 Reminiscências do Poder Moderador

Pesquisar traços de correspondência funcional entre a atuação do Supremo

Tribunal Federal e as formas pelas quais a teoria poder moderador foram postas

em marcha nas experiências norte-americana, francesa e brasileira, demanda

identificar características que se agregaram a esta cultura política no decorrer de

suas emergências. Ao longo do segundo capítulo foram apresentados os aspectos

que servirão de parâmetro nesta análise. Para além dos fatores peculiares que

marcam cada momento histórico, o caráter contra-majoritário decorrente do

objetivo de moderar a democracia faz-se ponto comum de convergência. Talvez o

termo contra-igualitário expresse melhor esse caráter. Isto porque é o princípio da

igualdade que verdadeiramente informa a democracia, e é contra ele que o poder

moderador – e seus equivalente funcionais – se voltam em todos os momentos

aqui estudados.

É preciso ressaltar, portanto, o equívoco embutido no discurso de que a

proteção dos direitos de uma dada minoria demanda moderação da democracia.

Coisa diversa, no entanto, apresenta-se proteger privilégios de uma minoria,

perpetuando o estado de desigualdade na distribuição material da influência sobre

as decisões públicas. Este amor pela conservação do status quo refuta a idéia

maquiaveliana de mutação pela desunião, procurando esterilizar a política ao

restringi-la aos membros dos poderes constituídos.

Na França e nos Estados Unidos a teoria do poder neutro foi manejada para

conservar a hegemonia da elite burguesa liberal. Transposta para a realidade

brasileira, ela irá manifestar-se em função das demandas peculiares que a nossa

elite oligárquica necessitará suprir no intuito de manter-se no comando do Estado.

Renato Lessa confere prestimosa lição ao apontar os contornos que este fenômeno

adquiriu no Império brasileiro e na República Velha, após o governo de Campos

Sales. O Poder Moderador ali se destaca pela verticalização política e pela

condução do processo eleitoral. Por esta, procura-se engendrar artifícios para

canalizar o resultado eleitoral, moldando-a à feição dos donos do poder; por

aquela, alija-se grande parte da população da participação do jogo político,

estabelecendo-se relação rígida e vertical de mando e obediência por conta da qual

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os cidadãos não reconhecem nas instituições o espaço público em que possam

veicular suas demandas.

A estas características irá se somar, conforme anteriormente visto, o uso

discursivo do Poder Moderador como legitimador da concentração de poder. Ele

se apresenta com maior força como preparativo para o golpe militar-empresarial

de 1964 através de uma retórica da moralidade que tinha por objetivo legitimar as

Forças Armadas como interventora da democracia para salvar a própria

democracia.452

Em resumo, eis os aspectos que podem ser associados à emergência de

práticas equivalentes ao poder moderador: a) o bloqueio à democracia; b) o temor

da emergência do conflito, a opor a lógica igualitária à ordem oligárquica; c) a

ocultação da política, no sentido que Rancière lhe confere; d) a verticalização

das decisões públicas e a conseqüente exclusão do demos do processo de tomada

de decisões sobre o bem comum; e) a condução do processo eleitoral a moldar,

ao seu gosto, a feição do sistema representativo; e f) o uso retórico da

moralidade a legitimar concentração de poder.

Tais elementos permitirão que se analise a atuação do Supremo Tribunal

Federal em sua missão de guardião da Constituição e se identifique pontuais

resquícios de correspondência com o que se fez da teoria do Poder Moderador no

Brasil. Os casos que aparentam evidenciar mais claramente tais reminiscências

constituem-se objeto de análise. No primeiro momento, tratar-se-á da decisão do

STF que impôs interpretação restritiva à legitimidade das centrais sindicais para

ingressar com ação direta de inconstitucionalidade; em seqüência será analisada a

posição adotada pelo Supremo perante o caso da verticalização das coligações

partidárias e, por fim, impõe-se verificar o que representou o entendimento da

corte sobre a questão da fidelidade partidária.

452A expressão é inspirada na análise em que Maria Vitória Benevides apresenta o estrito vínculo entre militares e oligarcas-liberais, demonstrando como a retórica liberal udenista convivia com sua prática golpista. Explicita a autora: “[...] será exatamente a contradição entre a retórica e prática que permitirá identificar, no udenismo, a incrível capacidade de para justificar o golpismo, o apela à intervenção militar, a contestação dos resultados eleitorais, em nome do liberalismo. Tratava-se, enfim, de violar a democracia para melhor salvá-la.” BENEVIDES, Maria Vitória. A UDN e o udenismo, p. 242.

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4.2.1 Trabalhador não pode fazer política

A inclusão das confederações sindicais e entidades de classe de âmbito

nacional entre o rol dos legitimados para ingressar com ação direta de

inconstitucionalidade (art. 103, IX, CF) é índice do viés democrático da

Constituição de 1988, resultado do processo constituinte marcado pelo embate

entre conservadores e progressistas. Procurou-se, à evidência, incluir o

trabalhador como sujeito que toma parte nas decisões sobre a lei comum do país.

Ressalta-se sua importância pela atribuição de legitimidade a um sujeito não

identitário e pela confirmação da ação direta de inconstitucionalidade como

instrumento de controle de poder. Tais afirmações demandam aprofundamento.

Em relação à legitimação para o ingresso com ação direta de

inconstitucionalidade, o histórico constitucional brasileiro revela que o seu

manejo esteve adstrito a órgãos estatais, ainda que eventualmente imbuídos na

defesa da sociedade. A inclusão de setores da sociedade, como partidos políticos

(art. 103, VIII, CF) e a Ordem dos Advogados do Brasil (art. 103, VII, CF), neste

estreito rol, por si, já revela alentadora abertura para um maior debate sobre

legitimidade das leis produzidas no país.

No entanto, a despeito da sua acentuada importância e utilidade, estes

setores da sociedade permanecem vinculados a determinada identidade específica.

Isto diz muito quando se está a tratar de democracia e política na concepção

adotada neste trabalho. A possibilidade de atuação daqueles agentes estatais ou

segmentos recortados da sociedade, classicamente apontados como dela

representativos, não promove arrombamentos na lógica policial que distribui

prévia e naturalmente corpos, lugares e funções na comunidade. Com efeito, os

agentes do Estado, a Ordem dos Advogados e os partidos políticos sempre foram

reconhecidos como naturais defensores do interesse público, corresponda isto à

realidade ou não.

Coisa totalmente diversa se passa quando se tenta trazer os trabalhadores

para o centro do debate sobre a coisa comum. Aqui o escândalo se faz nota

distintiva: a Constituição de 1988 reconhece os trabalhadores como sujeitos que

devem participar da deliberação de políticas que afetam suas vidas e torna

evidente a presença de um sujeito a ocupar um local para o qual tradicionalmente

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não era destinado. Altera-se, assim, a distribuição dos corpos e lugares

consolidada pela ordem policial. Distribuição que tradicionalmente demarcou a

fábrica, o canteiro de obra e o roçado, como únicos lugares cabíveis ao

trabalhador, lugares esses em que se travariam relações eminentemente privadas

entre patrão e empregado. Neste sentido, convém relembrar Rancière:

É, por exemplo, uma lei de polícia que faz tradicionalmente do lugar de trabalho um espaço privado não regido pelo pelos modos do ver e dizer próprios do que se chama espaço público, onde o ter parcela do trabalhador é estritamente definido pela remuneração de seu trabalho.453

Assim, identificar aquele complexo de instituições estatais e setores

definidos da sociedade como democracia corresponde a negar-se o erro na

contagem do demos, a admitir que todas as partes tomam parte no governo,

eliminando a necessidade da política. Esta redução identitária dos supostos

sujeitos políticos, na perspectiva de Rancière, corresponde a uma idéia restritiva

de democracia:

[...] não é uma democracia que encontrou no jogo das energias sociais a verdade das formas institucionais. É um modo de identificação entre os dispositivos institucionais e a disposição das partes e das parcelas da sociedade apta a fazer desaparecer o sujeito e o agir próprio da democracia.454

Como afirma o pensador francês, mais do que um sujeito, são modos de

subjetivação que produzem novas instâncias e capacidades de enunciação, até

então não observadas como índice de igualdade pela ordem constituída.455 Este

sujeito da democracia, portanto, não está dado como ente imutável, muito menos

como um povo real, que poderia ser identificado na reunião de suas partes, e se

contraporia ao povo ideal dos textos legais.456 Rancière associa a democracia à

instituição de “sujeitos flutuantes que transtornam toda representação de lugares e

das parcelas”457; sujeitos da política não reduzidos a uma parcela identificável,

“nem agentes do dispositivo do Estado, nem partes definidas da sociedade.” 458

453RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, p. 42. 454Ibidem, p. 105. 455 “Por subjetivação vamos entender a produção, por uma série de atos, de uma instância e de uma capacidade de enunciação que não eram identificáveis num campo de experiência dado, cuja identificação portanto caminha a par com a reconfiguração do campo da experiência.” Ibidem, p. 47. 456O que há, afirma o autor, é “um lugar de inscrição do poder do povo e lugares onde esse poder é considerado sem efeito” em decorrência do que a lógica policial se recusa a ver como igual. RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, pp. 94-95. 457 Ibidem, p. 103. 458 Ibidem, p. 103.

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Possibilitar a este sujeito constituinte meios de emergir nas instituições, tornando

evidente a tensão entre poder constituinte e poderes constituídos, faz-se essencial

para manutenção da vitalidade do regime democrático. Na forma exposta por

Negri:

[...] qualificar constitucional e juridicamente o poder constituinte não será simplesmente produzir normas constitucionais e estruturar poderes constituídos, mas sobretudo ordenar o poder constituinte enquanto sujeito, regular a política democrática.459

Nesta perspectiva, o processo constituinte de 1987-1988, e o efetivo embate

político que nele se travou, apresentou-se uma experiência de subjetivação

produtora de uma nova instância de enunciação em que sujeitos até então não

contados como parte do demos passam a influenciar diretamente nas decisões

públicas. A constituição gestada deste processo reconhece o trabalhador como

sujeito capaz de arrostar leis que conspirem contra o teor social em si impresso.

Um sujeito que encampa litígios políticos ao confrontar demandas igualitárias a

uma lógica policial que procura conservar cada um em seu devido lugar. Este

sujeito peculiar se apresenta apto a fazê-lo, justamente por conta de seu caráter

não-identitário. De fato, não se pode identificar o trabalhador pela etnia, sexo,

idade e o que o valha. Ele sequer pode ser apresentado como um conjunto de

profissões ou ofícios que o identifique e, portanto, exclua outros não identificados.

É sujeito flutuante, poroso, que permite imponderáveis agenciamentos em

intercâmbios coletivos que se constituem para depois se reagruparem; sujeito que

pode estruturar-se rizomaticamente como expressão da multidão.

A questão, no entanto, não se apresenta tão simples. A associação acima

exposta, entre trabalhador e sujeito não-identitário não é natural nem automática;

ela decorre da percepção de que “trabalhador” constitui-se uma classe que se

subjetiva no embate com uma outra classe que se beneficia do trabalho alheio. O

trabalhador, nesta perspectiva, não se resume ao empregado com carteira assinada

que eventualmente participe de sindicato; a este conceito podem se agregar

imponderáveis singularidades, desde empregados informais, autônomos,

camponeses que plantam para subsistência, até mesmo desempregados que

funcionariam como massa trabalhadora de reserva.

459 NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 7.

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Se aquela associação não é imediata, impõe que se analise o teor do

comando constitucional que teria conferido abertura à atuação em rede desta

classe. Pela redação do art. 103, IX, CF, legitimam-se a deflagrar ação direta de

inconstitucionalidade a confederação sindical ou a entidade de classe de âmbito

nacional. De plano, a Constituição, ao referir-se a confederações sindicais,

encerrou o trabalhador em um conceito jurídico identitário por associá-lo,

necessariamente, a um determinado ofício. Trabalhador, para efeito deste primeiro

termo, é só aquele que se reúne em sindicatos de categorias específicas. De fato,

não se pode afirmar que o texto constitucional, por meio desta primeira figura –

confederações sindicais – permitia a participação do trabalhador na polis, na

qualidade de sujeito não–identitário.

Em sentido diverso, ao legitimar as entidades de classe de âmbito nacional,

a Constituição de 1988 adotou um conceito aberto que permite imponderáveis

agenciamentos. Com efeito, não há que se falar aqui em conceito jurídico

identitário a predefinir os protagonistas desta atuação. Não foi à toa que a atuação

moderadora do Supremo voltou sua artilharia justamente para conferir caráter

identitário às entidades de classe de âmbito nacional. A previsão do art. 103, IX,

2ª figura, CF (entidade de classe de âmbito nacional) aparece, assim, como

contribuição para solucionar o desafio da permanência do poder constituinte a que

Negri se refere.460 Nas palavras do autor:

O problema do poder constituinte torna-se então o problema da construção de um modelo constitucional que mantenha a capacidade formadora do próprio poder constituinte e, portanto, o problema da identificação de uma potência subjetiva adequada a esta tarefa.461

Tal qual o fizera a plebe romana ao instituir os seus tribunos, procurou-se

ativar o poder constituinte no âmbito de uma instituição julgadora, através da

previsão dos trabalhadores como protagonistas da cidadania, e não meros

coadjuvantes que aparentam compor uma cena em que não deviam estar, ou pior,

em que só precisam estar para dar maior credibilidade à desenvoltura dos atores

principais. Poder constituinte não apenas como lembrança, como espectro que

legitima retoricamente a condução das decisões da comunidade pelos poderes

460 “Em suma, o poder constituinte deve de algum modo ser mantido, para evitar que sua eliminação leve consigo o próprio sentido do sistema jurídico e a referência democrática que lhe deve qualificar o horizonte.” Ibidem, p. 11. 461 NEGRI, Antonio. O poder constituinte,, p. 42.

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constituídos, mas como litígio político que permite a atualização do princípio da

igualdade, o retorno ao princípio que rege a democracia. Litígio político que se

diferencia “de todo conflito de interesses entre partes constituídas da população, já

que é um conflito sobre a própria contagem das partes.”462 O escândalo resume-se

a isso: o trabalhador, agora, faz política e o erro da contagem se faz aparente, a

parcela dos sem-parcela se revela ao encenar o conflito político em um palco de

linhagem aristocrática.

A este importante aspecto soma-se, conforme restou pontuado, a

confirmação da ação direta de inconstitucionalidade como instrumento de controle

de poder. Se, por um lado, ele revelou-se dispositivo acessível à sociedade como

meio de controlar atos do legislativo e executivo, por outro, seu caráter

instrumental permitiu seu desvirtuamento para práticas menos nobres. Este

debate, no entanto, demanda que se conheça o que foi feito pelo Supremo

Tribunal Federal no trato da questão ora analisada. A investida do tribunal contra

este direito constitucional revelou-se mais um capítulo da reação oligárquica

contra a Constituição de 1988. Seu estudo se torna imprescindível para destacar

como, por vezes, a atuação do STF tem se aproximado à de correspondente

funcional do Poder Moderador em seu papel contra-revolucionário.

Em 1990 a Central Única dos Trabalhadores (CUT), na qualidade de central

sindical (entidade de classe de âmbito nacional), ingressou com ADIn nº 271-6463,

requerendo que fosse declarada a inconstitucionalidade da instrução normativa n°

09 do Ministro do Trabalho e Previdência Social. O mérito da questão não chegou

a ser analisado. A ação foi abortada na sua origem reconhecida que foi, por

maioria, a ilegitimidade ativa da CUT para ingressar com ação direta de

inconstitucionalidade. O argumento central da decisão extintiva resumia-se ao fato

de que a CUT não representava nenhuma classe específica, vez que congregava os

462 Ibidem, p. 105. 463 Em todos os estudos de casos procedeu-se à análise do inteiro teor dos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior Eleitoral. Diante deste fato, de pouca valia consistiria utilizar como fonte de referência as datas de publicação das decisões em Diário Oficial, nos quais se obteria acesso apenas à ementa de cada voto. Preferiu-se, assim, utilizar como fonte de referência o sítio em que se encontram disponíveis o inteiro teor dos votos. Assim, na primeira referência a um voto será indicado o nome do tribunal, o número do julgado, o nome do relator, a data do julgamento, seguido pela informação sobre o autor do voto, a disponibilidade do inteiro teor no portal de jurisprudência do tribunal e, por fim, a data de acesso. Nas demais referências ao mesmo voto serão registrados apenas o número do julgado, seguido da indicação do ministro que o proferiu.

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trabalhadores em geral, não podendo, portanto, ser enquadrada no conceito de

entidade de classe de âmbito nacional. O voto do relator, Min. Moreira Alves, é

expresso nesse sentido:

Como se vê, trata-se, em verdade, de pessoa jurídica que é constituída por entes sindicais ou não (assim, associações profissionais, associações pré-sindicais e associações de categorias sem sindicatos) representativos de quaisquer categorias profissionais de trabalhadores, uma vez que visa a representar os trabalhadores em geral, consoante o disposto no artigo 10 de seus Estatutos [...] Sendo constituída por pessoas jurídicas de natureza vária, e que representam categorias profissionais diversas, não se enquadra ela na expressão “entidade de classe de âmbito nacional” a que alude o art. 103, da Constituição, contrapondo-as às confederações sindicais, porquanto não é uma entidade que congregue os integrantes de uma determinada atividade ou categoria profissional ou econômica, e que portanto, represente, em âmbito nacional, uma classe [...]464

Acompanhado pela maioria de seus pares – divergiram do voto apenas os

ministros Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio de Mello – o relator firmou a

posição do STF: não existe a classe dos trabalhadores. O que se enxerga, portanto,

são apenas funções, profissões cindidas reduzidas às identidades que seus ofícios

lhe atribuem. As centrais sindicais, diz o Supremo, são meras representantes da

não-classe dos trabalhadores. A cena litigiosa que aí se instala é eminentemente

política; ela revela a coexistência de dois mundos do sensível convivendo em um

mesmo mundo: para o Supremo, “trabalhador” não é profissão, e, portanto, as

centrais que congregam trabalhadores de forma geral são ilegítimas para

propositura da ação direta de inconstitucionalidade; para as centrais, em sentido

oposto, “trabalhador” não se resume a uma função, e as entidades de classes de

âmbito nacional mediante as quais se agencia não se identificam com corporações

de ofícios que protegem apenas benefícios de determinadas categorias.

A possibilidade de existência de diferenciados e múltiplos agenciamentos,

implícita na figura da entidade de classe de âmbito nacional, pareceu rondar o

Supremo como uma ameaça. O voto do ministro relator transparece o temor pelo

imponderável, pois, “além de não serem elas uma espécie de confederação, podem

as centrais multiplicarem-se com base no princípio da liberdade de associação, o

464 Supremo Tribunal Federal. ADIn nº 271-6; Julgamento em: 24 set. 1994; Rel. Min. Moreira Alves; Voto Min. Moreira Alves. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=346279>. Acesso em: 26 fev. 2010.

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que, aliás, hoje ocorre, com a existência de algumas centrais sindicais de

trabalhadores.”465

O desentendimento diante das formas opostas de se compreender o que

significa “trabalhador” traz à lembrança o embate ocorrido em 1832 entre o

revolucionário francês Auguste Blanqui e o presidente do tribunal que o julgava.

O fato é narrado por Rancière em O desentendimento: em resposta ao

questionamento sobre sua profissão, Blanqui se dirige ao presidente do tribunal

declarando-se “proletário”. O presidente replica: “Isso não é profissão”, ao que o

revolucionário Blanqui contrapõe: “É a profissão de trinta milhões de franceses

que vivem de seu trabalho e que são privados de seus direitos políticos”, levando

o juiz presidente a permitir que o escrivão anotasse a profissão anunciada.466 Após

o relato, Rancière observa:

Nessas duas réplicas pode-se resumir todo o conflito entre a política e a polícia. Tudo aí se liga à dupla acepção de uma mesma palavra, profissão. Para o promotor, encarnando a lógica policial, profissão significa ofício: a atividade que situa um corpo em seu lugar e em sua função. Ora, esta claro que proletário não significa nenhum ofício [...] Mas, como político revolucionário, Blanqui dá à mesma confissão, uma declaração de pertencimento a um coletivo. Só que esse coletivo tem uma natureza bem peculiar [...] não é de forma alguma identificável a um grupo social.467

O Supremo, entretanto, pela maioria de seus membros, reduziu o conceito

de classe à reunião de pessoas do mesmo ofício. Conforme visto ao longo do

primeiro capítulo, existem infinitos modos de se agruparem pessoas por

características que as identifiquem sem que, necessariamente, este agrupamento

constitua uma classe. Se tais agrupamentos se formam independentemente da

existência de uma situação litigiosa, as classes, a seu tempo, se constituem no

conflito, emergem com a política e sua lógica de desunião, não são amontoados de

seres reduzidos a uma mesma identidade. Esta trilha é percorrida pelo Min.

Sepúlveda Pertence em seu voto divergente:

465 ADIn nº 271-6, Voto Min. Moreira Alves. 466 RANCIÉRE, Jacques. O desentendimento, p. 49. Ao ressaltar o paralelo entre os dois eventos, Adriano Pilatti destaca o maior grau de reacionarismo da maioria dos membros do STF, pois o tribunal “ficou aquém da compreensão do presidente do tribunal francês que julgou em 1832 o revolucionário Auguste Blanqui e, após relutar, autorizou o escrivão a registrar a declaração do réu de que era proletário ao ser perguntado sobre a sua profissão [...]” PILATTI, Adriano. “A plebe multitudinária e a constituição de seus tribunos na sociedade global”. In: Direito, Estado e Sociedade, n° 34, janeiro-junho 2009, pp. 6-17. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica – Departamento de Direito, 2007, p. 15. 467 RANCIÉRE, Jacques. O desentendimento, pp. 49-50.

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O que resta saber é se as centrais sindicais – sendo associações licitamente constituídas por entidades sindicais e associações profissionais de trabalhadores de qualquer categoria –, serão, elas própria “entidades de classe de âmbito nacional”, para legitimar-se à ação direta, concorrentemente às confederações sindicais [...] Que o sistema sindical brasileiro se desdobre compulsoriamente pelos diversos subsistemas confederativos, setorizados, cada um deles, à base de um determinado compartimento setorial, demarcado por categoria ou grupo de categorias profissionais ou econômicas similares ou conexas, é um fato. Isso, porém, data vênia, não apaga a evidência de que, sobre tais subdivisões, sobrepaire a summa divisio determinada pelo sistema de produção capitalista, isto é, a repartição fundamental dos agentes econômicos entre os trabalhadores, de um lado – ou seja, todos os que vivem, mediante relação de emprego ou não, da colocação profissional de sua força de trabalho a serviço de outrem -, e, de lado oposto, os que, remunerando-o, se beneficiam do trabalho alheio, postos à disposição dos seus fins, econômicos ou não. Não me convenço, data vênia, de que, na sociedade capitalista, aos trabalhadores em geral se possa negar a qualificação de classe, a maior delas.468

Sepúlveda conta o “trabalhador” como classe e, portanto, o faz apto a

ingressar com a ação direta de inconstitucionalidade, reafirmando o comando

constitucional: o trabalhador faz política. Se o litígio posto em evidência gravita,

antes de tudo, em torno da contagem que se faz das partes, o voto de Sepúlveda

desnuda o flagrante erro na contagem do demos perpetrado pelo Supremo; para

este, não existe o trabalhador, existem apenas ofícios, atividades pulverizadas,

cujos exercentes ocupam um lugar próprio, uma função específica que os

identifica.

O voto de Sepúlveda revela, ainda, as possibilidades que se abririam para os

trabalhadores reunirem-se na defesa de interesses comuns:

Do mesmo modo, entendo eu, que, assim como ao trabalhador se faculta, paralelamente à sindicalização, a constituição de associações profissionais, às entidades sindicais não se pode negar liberdade de associar-se para a coordenação da defesa de interesses comuns, independentemente de sua integração paralela no sistema confederativo [...] Superar, em função dos interesses globais da classe-matriz dos trabalhadores, a subdivisão em categorias é a razão de ser das centrais sindicais [...] Com efeito, ao contrário do que se impôs à organização dos sindicatos, às associações de qualquer grau nada autoriza circunscrever compulsoriamente a uma base limitada a determinada categoria econômica ou profissional: aos associados, pessoas físicas ou jurídicas, incluídas as entidades sindicais, é que incumbe demarcar livremente o âmbito do agrupamento social a congregar. 469

468 ADIn nº 271-6, Voto Min. Sepúlveda Pertence. 469 Idem.

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As conseqüências que daí derivam não são irrelevantes. A decisão do

Supremo fecha os caminhos abertos pela Constituição para que um sujeito não-

identitário conduza litígios políticos. O trabalhador não figura na ação direta de

inconstitucionalidade na qualidade desse sujeito não-identitário, e sim como um

ser identificado, a partir de um lugar predeterminado, uma função já definida na

partilha do sensível, representado por uma associação que congregue apenas

idênticos. A ele, agora, para efeito de propositura de ação direta de

inconstitucionalidade, só é permitido reunir-se a estas iguais identidades,

restringindo a potência do sujeito multitudinário.

Muito distante de constituir-se em mero debate formalista, tão caro ao

bacharelismo brasileiro, desta rígida – e naturalizada - distribuição dos lugares e

funções deflui conseqüência concreta e de singular importância: é o caráter

identitário que o Supremo atribui às confederações sindicais e às associações de

classe de âmbito nacional que está por trás do fundamento para que se restrinja

ainda mais a atuação política do trabalhador. O argumento é simples: se

trabalhador se resume àquele que ocupa um função, se o ter parcela do

trabalhador é estritamente definido pela remuneração de seu trabalho, sua

legitimidade política restringe-se a apontar inconstitucionalidade apenas das

normas que tratam exclusivamente sobre sua categorial profissional. Por meio

deste recurso interpretativo, a que se costumou chamar de pertinência temática, o

Supremo inovou na ordem constitucional, criando um critério objetivo para o

ingresso com a ação direta de inconstitucionalidade.

A Constituição de 1988 não impôs restrições sobre temas que poderiam ser

veiculados na ação direta, revelando condição de paridade entre os legitimados.

Em relação às confederações sindicais e entidades de classe de âmbito nacional

esta previsão permitiu, portanto, que os trabalhadores levassem ao Supremo suas

discordâncias a respeitos de qualquer tema cuja delimitação pelo executivo ou

legislativo pudesse ser inquinada de inconstitucional. Aos trabalhadores, agora,

caberia tomar parte no debate sobre planos econômicos, políticas públicas ou

qualquer outro tema caro à comunidade. Restou evidente a tentativa de a

Constituição engendrar um arranjo institucional em que o poder constituinte

pudesse emergir perenemente.

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A criatividade jurisprudencial da corte suprema, no entanto, tratou de operar

reformas no texto constitucional, ao largo do processo formal ali previsto. Passou,

neste desiderato, a conferir tratamento desigual aos diversos legitimados do art.

103, CF, dividido-os em legitimados universais e especiais. Por esta interpretação

restritiva, apenas aqueles primeiros poderiam requerer a declaração de

inconstitucionalidade de norma que veiculasse qualquer tipo de conteúdo. Os

legitimados especiais, por sua vez, poderiam argüir a inconstitucionalidade apenas

das leis cujo conteúdo se referisse aos fins institucionais que o Supremo

entendesse afeto aos interesses que correspondesses à sua atividade funcional

imediata. Destinadas a esta condição de sub-legitimados, as confederações

sindicais e entidades de classe foram proibidas de manejar ação direta de

inconstitucionalidade contra normas que não dissessem respeito às questões

laborais a que estivessem vinculadas. Os motivos desta restrição podem ser lidos

no julgado da ADIn n° 1.114-DF:

Na hipótese de confederações sindicais, não há razão para deixar de aplicar o critério da pertinência [...] já que, de modo relevante, destaca-se a circunstancia de que tais órgãos, assim como as entidades de classe de âmbito nacional, representam interesses nitidamente privados, sem a conotação de uma generalidade que os habilite a uma inserção sem limites no domínio do controle de constitucionalidade. Em ambas as hipóteses, o fator de coesão relaciona-se diretamente a um interesse particular, que se reflete nos fins estatutários de cada uma dessas entidades [...]470

Por meio de reforma via interpretação judicial, o Supremo alterou

significativamente o sentido do texto constitucional: onde antes se lia amplitude,

passou-se a ler restrição. 471 Não deixa de ser curioso que a corte tenha apontado

como fundamento para criação da pertinência temática, o fato de aqueles

legitimados defenderem interesses nitidamente privados, sem a conotação de uma

generalidade que os habilite a uma inserção sem limites no domínio do controle

de constitucionalidade, quando ele próprio, Supremo, barrou o acesso das centrais

sindicais justamente sob o argumento de que representava de forma geral os 470 Supremo Tribunal Federal. ADIn nº 1.114-DF ; Julgamento em: 31 out. 1994; Rel. Min. Ilmar Galvão; Voto Min. Ilmar Galvão. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=346830>. Acesso em: 27 fev. 2010. 471 Adriano Pilatti destaca o que representou a interpretação do tribunal: “Só os ingênuos se espantaram ao ver o STF restringir absurdamente tal prerrogativa, através de um critério descabido de ‘pertinência temática’ entre as finalidades associativas das entidades e o conteúdo dos atos normativos por elas suscetíveis de questionamento [...] Deste modo, a atuação dos entes sindicais foi draconianamente restringida ao questionamento dos atos que tratassem apenas dos interesses corporativos dos trabalhadores, negando-lhes o exercício da representação plena da cidadania dos trabalhadores neste âmbito.” PILATTI, Adriano. A plebe multitudinária, pp. 14-15.

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trabalhadores. Não há como fugir da genialidade interpretativa do Supremo: seja

como for, os trabalhadores pecam, ou por excesso de generalidade representativa

das centrais ou pela restrição temática ao defender direitos identitários,

corporativos, descuidando da generalidade que os habilitasse a uma inserção sem

limites no domínio do controle de constitucionalidade. Eis, portanto, a saga

através da qual se dissolve um sujeito político constitucionalmente erigido, pela

obra da interpretação distorcida de um poder constituído.

Ao absurdo ainda se reservariam alguns passos, recentes passos, que não

apenas demonstram o traço moderador da democracia que acompanha o Supremo

desde seu período auto-contido à sua fase ativista, como revela que o processo de

ataque contra as entidades de classe mantém-se vívido. Em sua obra Jurisdição

constitucional, após reconhecer as dificuldades que cercam as interpretações

restritivas contra a atuação das entidades de classe472, o ministro Gilmar Mendes

advoga cortar o mal pela raiz, ao indagar sobre a conveniência de se manter as

entidades de classe de âmbito nacional dentre o rol de legitimados a propor ação

direta de inconstitucionalidade. Talvez resida aí o prenúncio de – mais uma -

oracular mutação constitucional:

[...] o debate sobre o direito de propositura das entidades de classe, no âmbito do controle abstrato, não se deve situar no plano de uma interpretação mais ou menos restritiva sobre a conceituação legal e jurisprudencial dessas organizações. Deve-se indagar, isto sim, se o modelo concebido pelo constituinte de 1988 há de ser preservado ou se seria oportuno cogitar-se da própria reformulação desse modelo de ampla legitimação, com a supressão do direito de propor ação direta por parte das entidades.473

E o que se inicia como um ataque contra as entidades de classe, rapidamente

se estende também às confederações sindicais:

[...] teremos de constatar que, em vez de contribuir para maior efetividade do controle abstrato, o exercício do direito de propositura da ação direta por esses

472 Mendes discorre especificamente sobre a dificuldade de o Supremo definir o conceito de entidade de classe, bem como, da impropriedade de se impor a pertinência temática como condição em um processo de natureza objetiva: “O esforço que o Tribunal desenvolve para restringir o direito de propositura dessas entidades não o isenta de dificuldades, levando-o, às vezes, a reconhecer a legitimidade de determinada organização, para negá-la num segundo momento. [...] Mais problemática ainda se afigura a exigência de que haja uma relação de pertinência entre o objeto da ação e a atividade de representação da entidade de classe ou da confederação sindical. Cuida-se de inequívoca restrição de direito de propositura, que, em se tratando de processo de natureza objetiva, dificilmente poderia ser formulada até mesmo por legislador ordinário”. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999; pp. 142-145 473Ibidem; pp. 144-145.

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entes [confederações sindicais e entidades de classe] tem servido para tumultuar ainda mais a já problemática situação do Supremo Tribunal Federal no que concerne à sobrecarga de trabalhos estatísticos. [...] A outorga de ampla legitimação aos partidos políticos com representação no Congresso Nacional, aos Governadores de Estado, às Mesas das Assembléias Legislativa, à Ordem dos Advogados do Brasil, ao Procurador-Geral da República, dentre outros, já seria suficiente para colocar o nosso sistema entre os mais benevolentes e liberais [...] Também de uma perspectiva rigorosamente prática, pode-se afirmar que dificilmente alguma questão relevante deixará de ser suscitada pó r um desses órgãos [...] É legítimo concluir, portanto, que o legislador constituinte não cometeria nenhum ato censurável de deixasse de contemplar as confederações sindicais e entidades de classe de âmbito nacional dentre os detentores de direito de propositura da ação direta de inconstitucionalidade.474

A proximidade entre a atuação do Supremo e as práticas do Poder

Moderador já se anunciam vivamente neste caso. O que se observa por este

cenário aproxima-se do que Renato Lessa traçou como uma das vertentes da

função do Poder Moderador no Brasil – e que aparecem de forma semelhante nos

processos contra-revolucionários norte-americano e francês. Trata-se da criação

de mecanismos que mantenham grande contingente da população excluída da

polis e que dissocie de forma mais clara possível o plano político do social. Se

assim deve ser, qualquer forma de igualdade política que possa conduzir a

maiores níveis de igualdade social deve ser arrostada como prenúncio de uma

ditadura da maioria. Por vezes se utilizam dos textos constitucionais para

consolidar o estado de desigualdade; por outras, quando a constituição apresenta

viés democrático, procuram minar-lhe as forças pela atuação moderadora dos

poderes constituídos. Este parece ser o caso. Com efeito, conforme anteriormente

tratado, a edição da Constituição de 1988 teve por força motriz não apenas a

reconquista da liberdade, como sua deliberada intenção de imbricá-la à igualdade.

Não é gratuita, portanto, muito menos fruto de mero romantismo principiológico,

a profunda preocupação com que o tema da igualdade é tratado por aquela

Constituição.

O que ali se imprime decorre da memória de séculos de profunda

desigualdade social, racial, econômica; desigualdades estas oriundas, em grande

parte, da desigualdade política – desigualdade no tomar parte do governo da coisa

comum. 1988 representa a voz de uma comunidade farta da exclusão, deste

reincidente bloqueio à cidadania que teve o Poder Moderador e seus equivalentes

funcionais como artífices e executores em prol da conservação do poder 474MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional, pp. 146-149.

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oligárquico que se escandaliza a cada presunção igualitária posta em debate como

decorrência dos comandos da atual Constituição. Trata-se de uma comunidade

que constitui uma nova ordem a partir da eleição da igualdade como seu princípio

reitor. Por isso, pode-se anotar, sem constrangimentos, seu caráter democrático. É

contra ele que o reacionarismo oligárquico se volta, e para isto precisa retorcer o

texto original da Constituição. Os procedimentos de ataque são vários, vide os

desvirtuamentos produzidos a título de emendas constitucionais.

Todos eles, de alguma forma, procuram moderar o viés democrático da

Constituição de 1988, com uma nada desprezível ressalva: no Parlamento, ao

menos, permite-se a alternância de poder pelo voto popular e exige-se a

obediência a uma forma rígida e objetiva para emendar o texto constitucional.

Estes mecanismos de controle permitem, a despeito de todos os problemas que

cercam as eleições, que se devolva aos cidadãos o direito de corrigir rotas

desviantes do projeto igualitário veiculado na Constituição. Ao Supremo Tribunal

Federal nada disso é imposto. Sua suposta atuação técnica, a vitaliciedade de seus

ministros, a previsão de imputação de crime de responsabilidade como única

forma de controle sobre seus atos – instrumento que carece ser mais utilizado, é

certo, mas que devolve o controle a outra instância de poder constituído (art. 52,

II, CF) -, tudo isso confere uma espécie de salvo-conduto para o Supremo agir

sobre a Constituição, conferindo-lhe feição conservadora. Com efeito, nada

remete mais ao Poder Moderador do que a ausência – ou frouxos dispositivos - de

controle sobre seus atos. Assim, para além do bloqueio à emergência do poder

constituinte por mecanismos extra-constitucionais, a ausência de controle social

sobre o Supremo o aproxima um pouco mais da condição de correspondente

funcional do Poder Moderador.

Impõe-se retornar ao início deste ponto. Ali se anunciou a importância do

trabalhador como sujeito da política, bem como, ressaltou-se o uso da ação direta

de inconstitucionalidade como instrumento de controle. O primeiro aspecto restou

analisado; demonstrou-se como o aprisionamento daquele sujeito político pela

interpretação restritiva do Supremo fez, deste, correspondente funcional do Poder

Moderador, em sua função de criar obstáculos à inserção dos trabalhadores

brasileiros como partes que tomam parte na decisão sobre o comum. O tribunal,

em verdade, neste ponto, foi mais além: em seu papel de moderador da

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democracia, não apenas bloqueou o acesso dos trabalhadores na polis; em

verdade, a corte suprema escorraçou os trabalhadores do debate político nacional,

rebaixando-os à condição de sub-legitimados, aptos a tratar apenas do que diz

respeito aos seus individualizados ofícios.

Em relação ao controle, a ação direta de inconstitucionalidade estendeu o rol

de legitimados, potencializando o controle social sobre atos do legislativo e

executivo. Pareceu, no entanto, pôr muita fé no poder judiciário ao prever frouxo

controle sobre o mesmo. De fato, o tratamento conferido aos trabalhadores pelo

Supremo na análise da matéria relativa à legitimidade para propositura da ação

direta de inconstitucionalidade demonstrou claramente quem detinha o comando

daquele instrumento de controle.

À necessária e indispensável função de dispositivo de controle social, o

Supremo Tribunal Federal agregou uma nova atribuição à ação direta de

inconstitucionalidade: a de traduzir a Constituição ao seu feitio. Para efeito do

controle dos atos do legislativo e do executivo a Constituição é o que Supremo

quiser que ela seja. Este aspecto aproxima a atuação do Supremo Tribunal Federal

não apenas à experiência da Suprema Corte norte-americana no papel de Poder

Moderador, como também se liga à feição que este poder adquiriu no Brasil. Com

efeito, o Poder Moderador, em sua forma institucional no Império ou por

intermédio de seus equivalentes funcionais republicanos, primou por disciplinar

os demais poderes ditando, por cima, os rumos nacionais.

Por certo, como visto, cada momento histórico em que afloraram

reminiscências do Poder Moderador é marcado por especificidades nas

correlações de forças políticas e sociais que as tornam peculiares, impedindo que

se atribua linearidade ou exata identificação entre tais episódios. O presente

quadrante, por exemplo, distingue-se pelo efetivo compromisso constitucional

com a igualdade, associado à inclusão do povo na polis como variável que

desequilibra a equação oligárquica de poder. Nesse ambiente, averso à tradição da

democracia sem povo, a reação contra eventuais emergências do Poder

Moderador tendem a torná-las mais esporádicas, ou, talvez, apenas mais sutis. A

atuação do Supremo no sentido de restringir a cidadania dos trabalhadores,

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moderando, assim, a democracia, é apenas mais um indício da dimensão desta

tarefa.

4.2.2 Verticalização das coligações partidárias

Em decisão proferida no ano de 2002, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE),

provocado por consulta realizada no ano anterior pelo Partido Democrático

Trabalhista (PDT), pronunciou-se pela obrigatoriedade da verticalização das

coligações partidárias. A Consulta n° 715, TSE, foi assim formulada:

Pode um determinado partido político (partido A) celebrar coligações, para eleições de Presidente da República, com alguns outros partidos (partido B, C e D) e, ao mesmo tempo, celebrar coligações com terceiros partidos (E, F e G, que também possuem candidato à Presidência da República) visando à eleição de Governador de Estado da Federação?475

A resposta do TSE foi negativa, esclarecendo que partidos que se

coligassem para a eleição de Presidente da República estariam proibidos de

realizar coligações na esfera estadual com outros partidos que lançassem

candidato àquele cargo. A resposta à referida consulta alterou radicalmente o

posicionamento do tribunal em relação ao adotado nas eleições presidenciais de

1994 e 1998. Nessas duas eleições, partidos aliados em âmbito nacional poderiam

se aliar regionalmente a adversários na corrida presidencial, desde que tais

coligações regionais não se dessem com partidos diferentes para eleições

majoritárias e proporcionais dentro da própria circunscrição regional.

Este entendimento, até então pacífico, decorria do quanto determinado pelo

caput do art. 6° da lei n° 8.713/93 e, posteriormente, no caput do art. 6° da lei n°

9.540/97.476 Ambas as leis determinam que a congruência entre coligações se

restrinja às eleições majoritárias e proporcionais dentro de uma mesma

475 Tribunal Superior Eleitoral. Consulta n° 715; Julgamento em: 26 fev. 2002; Rel. Min. Jacy Garcia Vieira; Disponível em: <hhttp://www.tse.gov.br/internet/jurisprudencia/index.htm>. Acesso em: 08 fev. 2010. 476Art. 6°- É facultado aos partidos políticos celebrar coligações para eleição majoritária, eleição proporcional ou ambas, desde que elas não sejam diferentes dentro da mesma circunscrição. (Lei n° 8713 de 30 de setembro de 1993, publicada no D.O.U de 1°.10.1993). Art. 6º - É facultado aos partidos políticos, dentro da mesma circunscrição, celebrar coligações para eleição majoritária, proporcional, ou para ambas, podendo, neste último caso, formar-se mais de uma coligação para a eleição proporcional dentre os partidos que integram a coligação para o pleito majoritário. (Lei n° 9.504 de 30 de setembro de 1997, publicada no D.O.U de 1°.10.1997).

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circunscrição. O que se deveria entender pelo termo “mesma circunscrição”?

Observado o regime de disputa eleitoral da federação brasileira pode-se apontar

para a existência própria e independente das circunscrições regionais e nacional.

Esta se refere à eleição para Presidente da República, ao passo que aquelas se

subdividem em eleições a cargos federais (senadores e deputados federais) e

estaduais (governadores e deputados estaduais). Em respeito à forma federativa do

Estado brasileiro as eleições de circunscrição regional se decidem pelos votos

obtidos em cada Estado da Federação, independentemente do quanto observado

nos demais e em atenção às peculiaridades de cada ente federativo. A

independência entre as circunscrições pode, ainda, ser medida pela

desnecessidade de realização de eleições nacionais e regionais em mesma data, a

provar que as coligações nos diversos âmbitos podem ser costuradas de formas

distintas.477 Ademais, veja-se que as coligações para eleições em âmbito nacional

e estadual não precisam ser replicadas dois anos após, quando da ocorrência das

eleições municipais, a comprovar, mais uma vez, a independência entre

circunscrições na forma adotada pelas leis acima referidas.

A Resolução nº 14002/93 do TSE, que dispôs instruções para a escolha e

registro dos candidatos às eleições majoritárias e proporcionais de 1994, pela

redação do caput e § 1° do art. 8°, evidenciou o respeito ao quanto disciplinado na

lei eleitoral:

Art. 8° - É facultado aos partidos políticos celebrar coligações à eleição majoritária, à eleição proporcional, ou a ambas (Lei n° 8.713/93, art. 6°, caput). § 1° - É vedado ao partido político celebrar coligações, dentro do mesmo estado, com partidos diversos daqueles integrantes do grupo coligado originariamente (Lei n° 8.713/93, art. 6°, caput).478

Assim, nas eleições de 1994 e 1998 a restrição imposta pelas leis 8713/93 e

9504/97, respectivamente, foi aplicada apenas ao plano regional, gerando reflexos

nas disputas de âmbito federal e estadual (senadores, deputados federais,

governadores e deputados estaduais). No plano nacional, as coligações realizadas

em torno da disputa presidencial poderiam não apenas deixar de ser replicadas nos 477Como expõe Francisco de Guimaraens: “As eleições estaduais e nacionais são diferentes, apenas ocorrem no mesmo dia. Tanto isso é verdade, que já aconteceram em períodos distintos, sob a égide da Constituição de 1988. É só lembrar que em 1989 se realizou a eleição para presidente e em 1990 para governador.” GUIMARAENS, Francisco de. Judicialização da política, p. 3. 478Tribunal Superior Eleitoral. Disponível em: <http://www.tse.gov.br/sadJudSjur/pesquisa/actionBRSSearch.do?toc=true&docIndex=0&httpSessionName=brsstateSJUT4465425&sectionServer=TSE>. Acesso em: 06 fev. 2010.

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Estados, como partidos unidos para disputa presidencial poderiam realizar

alianças estaduais com partidos em posição adversária na disputa presidencial.

Em valiosa pesquisa sobre a atuação do Poder Judiciário no âmbito da

competição política no Brasil, Vitor Marchetti apresenta quadro comparativo entre

as alianças que se formaram em torno dos candidatos à Presidência da República e

o comportamento dos partidos políticos nas eleições estaduais. O autor demonstra

quais os partidos mais compuseram no âmbito estadual com adversários da

disputa presidencial. Ao fazê-lo, nos permite identificar quais as agremiações

partidárias que mais conseguiram realizar coligações nas eleições estaduais, a

despeito do que se passava na eleição nacional. Tais dados informam muito a

respeito da estratégia e da força aglutinadora de cada partido nos diferentes

momentos eleitorais.

Para efeito de comparação, tome-se como exemplo as duas coligações que

representavam as maiores forças político-partidárias no contexto de cada eleição.

Em 1994, a disputa pelo cargo presidencial polarizou-se entre Fernando Henrique

Cardoso - candidato pela coligação nacional entre PSDB, PFL e PTB - e Luís

Inácio Lula da Silva - candidato pela coligação entre PT, PSB, PCdoB, PPS, PV e

PSTU.479 Dentre os componentes destas coligações, convém analisar os partidos

que possuíam maior densidade no cenário eleitoral: PSDB, PFL e PT.480 O estudo

de Vitor Marchetti compara o número de Estados em que os partidos participaram

das eleições majoritárias para governador481 e o número de Estados onde eles se

aliaram a um partido adversário nas eleições presidenciais. Da relação entre estas

duas variáveis extrai-se o índice de incongruência da cada partido. Assim, no

processo eleitoral de 1994, dos 23 Estados em que o PSDB participou das

eleições, em 16 deles o partido aliou-se a um adversário à Presidência da

479À disputa concorriam, ainda, Orestes Quércia pela coligação entre PMDB e PSD; Enéas pelo PRONA; Brizola pelo PDT, Esperidião Amin pelo PPR, Carlos Gomes pelo PRN e Hernani Fortuna pelo PSC. 480Para uma análise completa sobre as alianças partidárias para eleições de governador em relação às coligações entabuladas pelos partidos para a disputa presidencial nos pleitos de 1994 e 1998 vide MARCHETTI, Vitor. Poder judiciário e competição política no Brasil: uma análise das decisões do TSE e do STF sobre as regras eleitorais. Tese para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais: Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2008; pp. 54 e 57. 481Conforme ressalva o autor, foi considerada “participação nas eleições majoritárias quando o partido lançou candidatos para governador, vice-governador ou quando integrou a coligação de um candidato a governador” Ibidem, p. 54.

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República, haurindo índice de incongruência de 69,5%. O PFL, por sua vez,

alcançou índice de 72,7%, vez que se aliou a adversários nacionais em 16 dos 22

Estados em que participou das eleições majoritárias. Por fim, o PT formou

alianças com partidos adversários na corrida presidencial em 05 Estados dentre os

25 nos quais participou das majoritárias, atingindo índice de incongruência de

20%.482

Nas eleições de 1998 os referidos partidos se posicionaram de forma

semelhante na competição pelo cargo de presidente. O PSDB e o PFL

compunham uma coligação juntamente com PPB, PTB e PSD, ao passo que o PT

concorria coligado ao PDT, PSB, PCdoB e PCB. Os três partidos continuavam

representando as maiores forças dentre das referidas coligações e se apresentaram

como os efetivos concorrentes à presidência. Neste ano PSDB, PFL e PT

apresentaram os seguintes índices de incongruência: PSDB, 88,4% (em 26

Estados nos quais participou das majoritárias, o fez aliando-se a adversários à

presidência em 23); PFL, 80,7% (relação entre 21 alianças estaduais

incongruentes para 26 Estados em que participou das majoritárias) e PT, 59,2%

(de 27 participações em majoritárias estaduais, 16 se deram por alianças

incongruentes).483

Conforme exposto por Vitor Marchetti, tais dados comprovam que os

partidos, diante de realidades políticas diversas nos cenários nacional e regional,

trabalharam com estratégias igualmente distintas, atentas às características

peculiares de cada Estado.484 No entanto, o que se apresenta mais interessante é a

inflexão da estratégia adotada pelo PT nas eleições de 1998. Se em 1994 o PT

apresentava-se como exceção aos altos índices de incongruência, o pleito de 1998

encontra um partido adepto à realização mais ampla de coligações estaduais.

Reticente quanto à realização de alianças – vide a recusa ao apoio do PMDB no

segundo turno das eleições presidenciais de 1989 – o PT parecia ter compreendido

482Em 1994, os demais partidos que lançaram participaram de coligação para eleições presidenciais apresentaram os seguintes índices de incongruência: PMDB, 78,2%; PTB, 83,3%; PSD, 68,4%; PDT, 66,6%; PSB, 45,4%; PCdoB, 57,1%; PPS, 50,0%; Prona, 7,6%; PV, 52,6%; PSTU, 0%; PPR, 77,7%; PSC, 61,5% e PRN, 40%. Ibidem, p. 54. 483Eis os índices de incongruência observados nas eleições de 1998: PPB, 88%; PTB, 81,4%; PSD, 100%; PDT, 83,3%; PSB, 86,9%; PCdoB, 73%; PCB, 57,1%; PPS, 90,0%; PL, 91,3%; PAN, 100%; Prona, 33,3%; PMN, 83,3%; PV, 82,6%; PSTU, 0%; PTdoB, 94,7%; PSDC, 75%; PTN, 100%; PSC, 86,3% e PSN, 60%. Ibidem, p. 57. 484Ibidem, pp. 54-55.

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a lógica que regia a competição eleitoral. As coligações regionais não apenas

permitiam a eventual participação em um governo estadual, como conferiam

maior capilaridade aos partidos que possuíam candidatos à Presidência da

República; a formação de palanques nos Estados permitia maior visibilidade aos

presidenciáveis, além do nada desprezível componente do tempo de propaganda

eleitoral em rádio e televisão. As coligações permitiam, ainda, composições

regionais em que um partido cedia espaço na disputa majoritária para governador

em troca de indicar candidato para o Senado. A realização de coligações regionais

apresentava-se, assim, como peça chave para vitória nas eleições para a

presidência da República e o PT, a partir de 1998, demonstrara estar disposto a

adotar esta tática. O que se prenunciava, neste sentido, para as eleições de 2002

não pode ser observado diante da obrigatoriedade da verticalização imposta pelo

TSE, e tacitamente ratificada pelo STF, conforme será visto.

De início, o estudo do presente caso demanda que se demonstre a assertiva

que qualifica o TSE como um apêndice eleitoral do STF. Por disposição do art.

119 da Constituição de 1988, o TSE é composto por sete membros, dos quais, três

oriundos do STF, dois oriundos do STJ e dois advogados nomeados pelo

presidente da república após formação de lista sêxtupla pelo Supremo. Resta

evidente, portanto, a incidência do STF sobre o TSE, uma vez que cinco dos sete

juízes deste decorrem direta ou indiretamente daquele. Não se constituiria exagero

apresentar o TSE, portanto, como um prolongamento do STF, o braço eleitoral da

corte suprema e por ela conduzida. Neste mesmo sentido, atento ao modo de

acesso de seus ministros, Vitor Marchetti classifica o TSE como “um órgão do

STF para matérias eleitorais.”485 A afirmativa se confirma pelos efeitos concretos

que decorem deste arranjo institucional, conforme destaca o autor:

[...] não há registro de nenhuma decisão do TSE que, ao ser levada ao STF, tenha sido reformada. Na maior parte das vezes, o Supremo nem mesmo conhece do recurso por entender que a interpretação do TSE é a última palavra em matéria eleitoral. E, quando o STF decide sobre um tema acerca do qual já recebeu interpretação do TSE, não há divergência entre suas decisões.486

Assim, a verificação de reminiscências de poder moderador na atuação

daquele tribunal eleitoral constitui-se, antes de tudo, uma análise sobre a atuação

485MARCHETTI, Vitor. Poder judiciário e competição política no Brasil, p. 41. 486Ibidem, p. 43.

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do próprio Supremo. Ademais, nos dois casos que envolvem matéria eleitoral

tratados neste trabalho – verticalização das coligações e fidelidade partidária –

coube ao STF determinar, diretamente, o resultado final da questão. Demonstrada

a relação orgânica entre STF e TSE, pode-se ingressar na análise dos motivos que

ensejaram a imposição da obrigatoriedade de verticalização de coligações

partidárias, e os fundamentos jurídicos utilizados para sustentar esta decisão.

A corte eleitoral que decidiu pela verticalização das coligações partidárias

era assim composta: a) Sepúlveda Pertence, Nelson Jobim e Ellen Gracie, na

qualidade de membros oriundos do STF487; b) Sálvio de Figueiredo Teixeira e

Jacy Garcia Vieira, oriundos do STJ488; e c) Fernando Neves e Luiz Carlos

Madeira, advogados escolhidos pelo presidente dentre a lista sêxtupla elaborada

pelo STF489. A Consulta n° 715/02 foi respondida negativamente por cinco votos

a dois. Votaram pela obrigatoriedade da verticalização das coligações os ministros

Nelson Jobim, Ellen Gracie, Fernando Neves, Luiz Carlos Madeira e Jacy Garcia

Vieira; manifestaram-se pela manutenção das regras que conduziram as

coligações nas eleições anteriores os ministros Sepúlveda Pertence e Sálvio de

Figueiredo Teixeira. A matéria jurídica invocada gravitava em torno da

interpretação do alcance da expressão “mesma circunscrição” contida no art. 6°

das leis das eleições (9405/97)490 e do caráter nacional dos partidos políticos491,

487José Paulo Sepúlveda Pertence, nomeado pelo presidente José Sarney em 1989; Nelson Azevedo Jobim, nomeado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 1997; Ellen Gracie Northfleet, nomeada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 2000. 488Sálvio de Figueiredo Teixeira, nomeado pelo presidente José Sarney em 1989; Jacy Garcia Vieira, nomeado Ministro do Tribunal Federal de Recurso em setembro de 1988, passando a integrar o STJ após a Constituição de 1988. 489Fernando Neves, nomeado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 2000; e Luiz Carlos Madeira, nomeado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 2001. 490Quanto a este tema, representativo o debate entre os ministros Nelson Jobim e Sepúlveda Pertence. Nelson Jobim expôs em seu voto: “Pergunto: o que significa a lei ter facultado a celebração de coligações somente dentro da mesma circunscrição e, a contrario sensu, ter proibido fora da mesma circunscrição? Poder-se-ia iniciar respondendo que é impossível a realização de coligações fora da mesma circunscrição. Nessa hipótese, a expressão ‘dentro da mesma circunscrição seria inútil’. É regra da hermenêutica que a lei não tem expressões inúteis. Essa proibição só faz sentido se – e somente se – ela disser respeito às relações entre as coligações nacionais e as estaduais.” Consulta n° 715, TSE; Voto Min. Nelson Jobim. Em sentido diverso, Sepúlveda Pertence fundamentou: “‘Circunscrição’, aí, não é entidade geográfica: é jurídica. A cada esfera de eleição – e só para o efeito – corresponde uma circunscrição. A circunstância de a eleição presidencial – que tem por circunscrição todo o país -, realizar-se na mesma data das eleições federais e estaduais na circunscrição de cada Estado (L. 9.504/97, art. 1°, parág. único, I) é acidental e não afeta a independência jurídica das respectivas circunscrições [...].” Consulta n° 715, TSE; Voto Min. Sepúlveda Pertence. 491No que toca ao caráter nacional dos partidos políticos Nelson Jobim destaca: “Admitir coligações estaduais assimétricas com a decisão nacional é se opor ao ‘CARÁTER NACIONAL’ e à

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exigido pelo art. 17, §1°, da Constituição de 1988. Aos fins propostos por esta

pesquisa, no entanto, realça a importância de um ponto específico do debate entre

os ministros, referente à pertinência da profunda intervenção dos tribunais

superiores no cenário político-partidário nacional. Sepúlveda Pertence posicionou

sua inquietude a respeito do tema:

O juízo de conveniência, confiado ao TSE, tem por objeto a expedição ou não da instrução, e não de seu conteúdo. Este, destinado à execução do Código – e, obviamente, a todo o bloco da ordem jurídica eleitoral -, está subordinado à Constituição e à lei. É verdade - além de explicitar o que repute implícito na legislação eleitoral, viabilizando a sua aplicação uniforme – pode o Tribunal colmatar-lhe lacunas técnicas, na medida das necessidades de operacionalização do sistema gizado pela Constituição e pela lei. Óbvio, entretanto, que não pode as corrigir, substituindo pela de seus juízes a opção do legislar: por isso, não cabe ao TSE suprir lacunas aparentes da Constituição ou da lei, vale dizer, o “silêncio eloqüente” de uma ou de outra.492

Ao fim de seu voto, o ministro retoma o tema e condena a interpretação

voluntarista que impôs a simetria entre coligações partidárias em diversas

circunscrições eleitorais:

Com todas as vênias, constitui um resíduo autoritário – frontalmente incompatível com a clara opção constitucional pela autonomia dos partidos -, tentar impor – por lei ou pela interpretação voluntarista dela – um grau preordenado de maior ou menor centralização política a todos eles, às agremiações de quadro ou de massa, às formadas em torno de um líder nacional carismático como às constituídas pela “federação” de lideranças regionais [...] De qualquer sorte, tenho dúvidas sobre se da decisão ora tomada não resulta, em nome da “nacionalização dos partidos”, a perda da transparência do processo eleitoral, estimulando dissimulações de toda a ordem.493

Em posição oposta, Nelson Jobim aponta para a missão do TSE no sentido

de, atuando proativamente, promover o aperfeiçoamento do sistema eleitoral e

auxiliar no processo de reforma política:

‘AÇÃO DE CARÁTER NACIONAL’, que a Constituição e a lei impõem aos partidos.” Consulta n° 715, TSE; Voto Min. Nelson Jobim. Sepúlveda Pertence, ao seu turno, rebate: “Ao que me parece evidente na legislação eleitoral ordinária, há os que contraponham a norma constitucional que impõe aos partidos o ‘caráter nacional’ [...] Não me convenço que o preceito – cujo significado histórico foi apenas o de proscrever a criação de agremiações partidárias locais, a exemplo da Primeira República -, baste para levar à inconstitucionalidade da legislação. O ‘caráter nacional’ não torna imperativo para todo e qualquer partido a adoção de uma estrutura politicamente centralizada: pelo contrario, a mesma Constituição assegura a cada um deles ‘autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento’.” Consulta n° 715, TSE; Voto Min. Sepúlveda Pertence. 492Consulta n° 715, TSE; Voto Min. Sepúlveda Pertence. 493Idem.

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[...] o objetivo é os partidos servirem aos interesses da nação e do eleitorado, e não, exclusivamente, aos interesses e conveniências eleitorais de seus integrantes. A reforma política que se discute no Congresso Nacional caminha no sentido do fortalecimento partidário.494

O referido debate se estenderia para o âmbito do Supremo Tribunal Federal.

A reação à imposição judicial da verticalização se deu pelo ajuizamento de duas

ações diretas de inconstitucionalidade (ADIn). A ADIn n° 2.626-7 foi proposta

pelo PT, PCdoB, PL, PSB e PPS, ao passo que a ADIn n° 2.628 foi deflagrada

pelo PFL. As demandas tinham explicação evidente: o PFL se utilizara largamente

da estratégia de realizar alianças incongruentes nos diversos Estados; o PT, por

sua vez, parecia ter aprendido as regras do jogo, procurando movimentar-se de

acordo com tais regras. Causou espécie a inércia do PSDB; partido dotado de altos

índices de incongruência nas eleições de 1994 e 1998 parecia preferir, para as

eleições de 2002, a neutralização desta estratégia.495

Ambas as ações pleiteavam a declaração da inconstitucionalidade do § 1°,

do art. 4°, da Instrução n° 55, aprovada pela Resolução 20.993 de 26 de fevereiro

de 2002, originário do TSE. O referido comando, que constava da instrução para

as eleições daquele ano, determinava a aplicação do entendimento esposado pela

corte eleitoral na Resolução n° 21.002 que respondeu à Consulta n° 715. Eis a

norma imputada como inconstitucional:

Art. 4° ... §1° Os partidos políticos que lançarem, isoladamente ou em coligação, candidato à eleição de Presidente da República não poderão formar coligações para eleições para governador/a de Estados e do Distrito Federal, senador/a, deputado/a federal e deputado/a estadual ou distrital, com partido que tenha, isoladamente ou em aliança diversa, lançado candidato/a à eleição presidencial (Lei n° 9.504/97, art. 6°, caput, Consulta n° 715, de 26.2.02).

Os partidos signatários das ações alegaram ofensa aos artigos 5°, II e LIV;

16; 17, §1°; 22, I e 48, caput. Dentre os fundamentos do pedido destacavam-se o 494Consulta n° 715, TSE; Voto Min. Nelson Jobim. 495Este fato levou a que se suscitassem dúvidas sobre a real intenção que animara a decisão do TSE, formado quase que em sua integralidade por ministros indicados pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Pairavam suspeitas de tentativa de beneficiar o candidato do PSDB. O PT, com efeito, revelara ter abandonado sua pretensão purista demonstrada nas eleições presidenciais de 1989. Seu crescente índice de incongruência indicava disposição para realização de maior arco de alianças que em anteriores eleições. A verticalização parecia, assim, talhada para evitar que PT constituísse ampla gama de coligações no âmbito nacional, o que aumentaria sobremaneira, inclusive pelo acréscimo em tempo de propaganda eleitoral, a visibilidade de seu candidato à Presidência da República. A inércia do PSDB, recorrente adepto das coligações incongruentes, diante da decisão do TSE reforçava a suspeita inicial. As proporções desta desconfiança não se restringiram às naturais trocas de acusações entre partidos adversários.

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reconhecimento da inovação normativa da medida do TSE, sua incompatibilidade

com a autonomia dos partidos e a alegação de que, ainda que fosse considerada

constitucional, a nova regra só poderia ser aplicada às eleições seguintes em

respeito ao princípio da anualidade. De fato, o TSE, mediante interpretação

conforme os seus desígnios, alterara completamente o sentido do art. 6° da lei n°

9.504/97. Mesmo ante tal evidência o STF pronunciou-se pelo não conhecimento

das ações sob o argumento técnico de não caber, por meio de ação direta de

inconstitucionalidade, questionamento da constitucionalidade de mera resolução

que não configuraria texto legal. A técnica processual da corte suprema prestou-se

a evitar que o confronto fosse reaberto. O STF ratificara tacitamente a reforma

política procedida pelo TSE, confraternizando, assim, com a decisão do tribunal

que atua como sua extensão eleitoral.

A decisão não contou com folgada adesão: por sete votos a quatro o STF

recusou-se a ingressar no mérito da questão. A minoria, esposando entendimento

que a decisão do TSE realizara verdadeira inovação legislativa a legitimar o

manejo da ADIn, compôs-se pelos ministros Sepúlveda Pertence, Sydney

Sanches, Ilmar Galvão e Marco Aurélio. O voto do relator, Min. Sydney Sanches,

é lapidar neste sentido. Manifestando-se pelo conhecimento das ações, o relator

prosseguiu na análise do mérito. Em seu voto, Sanches traz à baila os pontos

debatidos por ocasião da Consulta n° 715, TSE. Aponta para o caráter de lei nova

que se revestiu o ato do TSE, ressaltando a necessidade de respeito ao principio da

anualidade496; reconhece ofensa do TSE à autonomia dos partidos497; e refuta o

argumento de que a instrução do TSE tratara apenas de reproduzir o comando da

simetria das coligações nacionais no plano regional, já supostamente exposto na

496“O ato normativo impugnado, ao fixar regra inteiramente nova, altera abruptamente o processo eleitora, valendo-se de meio impróprio e fora do prazo estabelecido pelo art. 16 da Constituição Federal [...] O princípio da anualidade aplicado ao processo eleitoral é relevante e basilar para da democracia.” Supremo Tribunal Federal. ADIn nº 2626-7; Julgamento em: 18 abr. 2004; Rel. Min. Sydney Sanches; Voto Min. Sydney Sanches. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266863>. Acesso em: 10 fev. 2010. 497“A autonomia é total, respeitada a circunscrição definida no CE. Não cabe ao TSE, data venia, interferir nas decisões dos Partidos Políticos por manifesta agressão à Constituição Federal, em especial por não existir qualquer norma legal nesse sentido, o que configura, repetimos, a sua caracterização como ato normativo autônomo.” Idem.

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expressão “mesma circunscrição” que integra o art. 6°, caput, da lei n°

9.540.97.498

Volta à tona a preocupação com o fato dos tribunais superiores pretenderem

moldar o processo eleitoral à margem do disposto na Constituição e na legislação

eleitoral ordinária. Sidney Sanches expõe, assim como o fizera Sepúlveda

Pertence na Consulta n° 715, sua irresignação com o papel que a corte eleitoral

pretendeu se atribuir. Assim expôs o ministro relator:

[...] o Tribunal Superior Eleitoral, exacerbando de seu poder de expedir instruções, invadiu competência legislativa da União [...] o Tribunal Superior Eleitoral não pode formular norma que o Poder Legislativo, no exercício de seu regular poder normativo, não tenha estabelecido [...] Mesmo quando provocado, não cabe ao Judiciário a modificação ou elaboração da lei mediante ato normativo, sob pena de exorbitar de suas atribuições e agredir a Carta Maior [...]499

Sanches demonstrou particular preocupação com a atuação do TSE no

sentido de deflagrar e conduzir uma reforma política por vias extra-

constitucionais:

[...] O T.S.E., no exercício do poder-dever de baixar Instruções, ainda que com os mais nobres propósitos, acabou por introduzir, no processo eleitoral deste ano, norma inteiramente nova, de modo a incidir em violação ao disposto nos artigos 22, I, 48, “caput” (competência do Poder Legislativo) e 16 da C.F. (princípio da anualidade). Aliás, o Exmo. Sr. Presidente da República, a mais alta autoridade da Nação, quando tomou conhecimento da norma em questão, chegou a dizer,no exterior, segundo a Imprensa: “começou a reforma política no Brasil”. Reforma que, tão esperada e desejada, deveria, obviamente, ter tido curso no Congresso Nacional – e não no Tribunal Superior Eleitoral -, por mais respeitável que seja aquela corte [...]500

Em seu voto na ADIn n° 2626-7, Nelson Jobim refutou a acusação de que o

TSE teria se desviado de sua competência constitucionalmente definida, criando

nova regra:

No caso concreto o Tribunal interpretou dispositivo de lei eleitoral. Não há falácia nenhuma. Há, isto sim, a afirmação de interpretação de uma lei e não aquilo que foi citado no parecer, ou seja, a referência exclusiva à norma de natureza autônoma e não secundária.

498“A necessidade de tratamento local diferenciado decorre do imperioso reconhecimento que nosso país, com dimensões continentais, possui diversidade e especificidade regionais, que não podem ser engessadas pela legislação federal! não é outro o sentido (respeito à realidade local), nem outro o pressuposto (gradação simétrica) de fazer constar na lei a expressão em exame.” Idem. 499ADIn nº 2626-7. Voto Min. Sydney Sanches. 500Idem.

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O TSE fez o que tinha de fazer e nos limites do que poderia fazer: respondeu à Consulta com base na Lei Eleitoral. E mais: o fez em tempo juridicamente hábil.501

O ministro Ilmar Galvão, no entanto, expôs seu inconformismo com o fato

do TSE, sob a justificativa de sanar vícios do sistema eleitoral brasileiro, ter se

imiscuído nas atribuições legislativas, criando nova obrigação não contida na

Constituição ou lei eleitoral:

Se o Poder Legislativo não pode mudar a lei um ano antes, muito menos o Poder Judiciário poderá baixar normas, inovando, dentro do período de um ano. Não pode. Veja, V. Exa., estou raciocinando em termos de que houve inovação. Em havendo, não podia, por causa do principio da legalidade e, também, da anualidade [...] Ora, se houvesse a vinculação de cima para baixo, o candidato, no Estado, para se registrar, teria que apresentar uma certidão do que aconteceu na área federal. A lei não exige isso. O pedido de registro teria que ser instruído com essa certidão, comprovando que não existe coligação do partido, na área federal, com nenhum outro, ou, então, que houve coligação com tal partido, não havendo incompatibilidade. Se a lei não fez isso, não é possível que a Justiça Eleitoral o faça.502

Restou claro ao final dos embates no STF e no TSE que, longe de se

constituir em debate eminentemente jurídico, a consulta submetida ao TSE foi

tratada como possibilidade da corte eleitoral – e posteriormente o Supremo –

conferir sentido novo ao texto constitucional e reescrever a legislação eleitoral,

caso entendesse necessário corrigir comportamentos que julgava desviados da

conduta reta a que os partidos políticos deveriam se submeter, a despeito da

inexistência de comando constitucional naquele sentido.

O mosaico que compunha o cenário eleitoral da federação brasileira por

conta das inúmeras nuances regionais revelava a necessidade e pertinência de

coligações nacionais e regionais assimétricas. De qualquer sorte, parecia ingênuo

acreditar que uma norma travestida de decisão judicial pudesse transformar a

cultura eleitoral do país de forma imediata, pondo termo a uma alegada falta de

coerência partidária e consistência ideológica das agremiações. Contudo,

conforme pontua Francisco de Guimaraens, seria desconfiar da inteligência dos

ministros imaginar que não previram a inocuidade da medida quanto aos

501 ADIn n° 2626-7. Voto Min. Nelson Jobim. O princípio da anualidade que rege a eficácia de normas de caráter eleitoral é que, em tempo hábil, demonstra o equívoco da categórica e infeliz assertiva de Nelson Jobim. 502ADIn n° 2626-7. Voto Min. Ilmar Galvão.

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resultados anunciados.503 Nesta mesma esteira de pensamento, Vitor Marchetti

destaca que, pela experiência de seus membros no trato com questões eleitorais,

não se pode afirmar que não detinham clara perspectiva do impacto que a

imposição da verticalização produziria sobre a disputa político-partidária.504 Se a

medida se anunciava inócua para os fins supostamente pretendidos, qual, portanto,

os motivos que regeram a atuação da corte naquele sentido?

Em um primeiro momento, resta evidente a pretensão do STF, por ato

próprio ou por meio de seu apêndice, o TSE, de moldar o processo de

concorrência eleitoral a despeito do quanto previsto na Constituição. A sutileza

deste artifício se revela no movimento que STF e TSE desenvolvem nesta tarefa

de conferir à Constituição um sentido material diverso do que o expresso em seu

texto. Não se observa, em momento algum, contestação frontal à legislação

eleitoral ou à Constituição. O movimento é sinuoso; trata-se de contornar os

comandos constitucionais enquanto se alega estar apenas a interpretá-la em busca

de seu real teor.

A proximidade com a feição que o Poder Moderador adquire no Brasil é

posta à mostra. Evidencia-se a tentativa de compor um modelo extra-

constitucional de condução do processo eleitoral, no qual as cortes superiores

funcionam como centro convergente da soberania nacional. Se na República

503No que toca à pretensão de evitar que os partidos fizessem coligações diversas, atendendo às múltiplas realidades locais, Francisco de Guimaraens explicita: “A medida foi por água abaixo do ponto de vista prático por dois motivos. Primeiro, porque os partidos que não formalizaram alianças nacionalmente estavam liberados para fazer qualquer tipo de aliança regional. Foi o caso, por exemplo, do PMDB. Segundo, porque a exigência da realidade, o ser da política, derrubou a formalidade jurídica, o dever-ser normativista. Partidos como o PSDB e PT que, no plano nacional, são inimigos intestinos, na Bahia, por exemplo, sempre firmaram pactos, mesmo que informalmente, contra o carlismo. Não há verticalização que dê jeito nessas injunções que a realidade política impõe ao mundo da abstração jurídico-normativa.” GUIMARAENS, Francisco de. A judicialização da política, p. 3. 504O autor demonstra, ainda, que a verticalização não apenas se mostrou inócua, como, em verdade, aprofundou o viés regionalista dos partidos políticos, afastando-os mais do caráter nacional que TSE e STF afirmaram poder imprimir com suas decisões: “Desde já, podemos afirmar o seguinte: a nova regra, ao invés de nacionalizar os partidos, acabou reforçando os regionalismos de nosso sistema político. A tendência dos partidos foi abandonar formalmente a disputa nacional, construindo nos Estados plataformas informais para os candidatos à Presidência.” MARCHETTI, Vitor. Poder judiciário e competição política no Brasil, p. 79. Isto diz muito, ainda, a respeito do caráter oligárquico da medida. De fato, verificou-se a redução na possibilidade de ampla competição eleitoral, índice da democracia, pois como expõe Wanderley Guilherme dos Santos: “Sustento que será mais democrático o sistema que oferecer maior competição partidária; de maneira oposta, são oligárquicas as propostas que redundem em subtrair graus de liberdade ao eleitor, em sua escolha de partidos e candidatos.” SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Regresso: máscaras institucionais do liberalismo oligárquico. Rio de Janeiro: Opera Nostra, 1994, p. 41.

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Velha dependia-se da interpretação da comissão de verificação de poderes para se

definir os destinos dos candidatos, a jurisdição constitucional aparece aqui

desvirtuada, utilizada pelo STF e TSE para redefinir regras do sistema

representativo brasileiro. A verticalização das coligações partidárias, destaca

Guimaraens, inscreve-se na tradição moderadora do governo misto, no qual o

poder judiciário representa a aristocracia.505

O objetivo de tornar-se ator político ativo do processo eleitoral é destacado,

também, por Vitor Marchetti. Como demonstra o autor, STF e TSE não se

limitaram a reagir a uma eventual omissão do parlamento que estivesse negando

eficácia à Constituição, desmentindo, portanto, a tese de que o ativismo judicial

decorreria necessariamente da inércia dos poderes executivo e legislativo em

cumprir suas funções constitucionalmente postas. Como expõe Marchetti, a

interpretação conferida ao caso da verticalização para além de uma interpretação

possível revelou uma interpretação escolhida para atender ao fim de alterar o

comportamento político-partidário.506 A função oracular que STF e TSE se

atribuíram constitui-se derivação do pensamento constitucionalista que entende o

poder constituinte como força que deve imperiosamente manifestar-se mediada

por uma instância de poder transcendente. É o mesmo pensamento que imputa aos

poderes constituídos a primazia do atuar político, e que confere pouca valia ao

modo pelo qual a comunidade escolhe organizar-se.

A atuação do STF e do TSE revelou correspondência com funções que o

Poder Moderador desenvolveu no Brasil não apenas pela pretensão de moldar o

modelo de competição eleitoral. A identificação do discurso que procurou

legitimar essa postura é revelador de como nossas instituições parecem estar

atreladas ao passado marcantemente influenciado pelos ideais da teoria do poder

505“O poder judiciário faz parte de um regime de governo misto ou moderado em que há um órgão de representação da monarquia, o executivo, um da democracia, o legislativo, e um da aristocracia, o judiciário [...] Em suma, o judiciário é parte de uma estrutura política em que, ao menos em tese, se busca a moderar as tendências tirânicas da monarquia, de um lado, e a vontade de mudança acelerada da democracia, de outro.” GUIMARAENS, Francisco de. A judicialização da política, p. 2. 506“[...] por não estar diante de uma questão completamente nova o TSE acabou formando um entendimento diferente daquele que adotou no passado. Se fosse a primeira vez que o tribunal estivesse diante da questão, poderíamos argumentar que a interpretação dada talvez fosse a única possível. Mas não parece ser esse o caso. Mais do que a interpretação possível, essa decisão revelava uma interpretação desejada, escolhida. Definida com o objetivo de alterar o comportamento político-partidário.” MARCHETTI, Vitor. Poder judiciário e competição política no Brasil, p. 66.

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neutro. O apelo à moralidade como característica que eleva uma classe ou

instituição ao patamar de chave do sistema político, conforme visto, integra a

teoria de Montesquieu e foi retoricamente utilizado no Brasil para alçar as Forças

Armadas à função de Poder Moderador, pronto a arrostar a ameaça comunista que

as igualitárias reformas de base do governo João Goulart representariam. No caso

sob análise, a retórica moralista emergiu do tom salvacionista de que ministros do

STF e TSE se valeram para apresentar sua intervenção como solução para conferir

caráter nacional aos partidos políticos, pondo fim à propalada incoerência

partidária. A cruzada moralizadora conferia àqueles tribunais atributos para

definir, por cima, ao largo do debate público com a sociedade e do embate de

forças no Congresso Federal, as regras que deveriam moldar o processo eleitoral.

Neste sentido, reveladores os trechos de votos favoráveis à verticalização das

alianças partidárias.

No âmbito da Consulta n° 715, Nelson Jobim defendeu uma espécie de

atuação pedagógica do TSE, a corrigir as desviadas práticas dos partidos políticos

que impediam sua estabilização como força nacional. Através de sua decisão o

ministro indicava pretender sanar os vícios históricos de nossa república e, assim,

moralizar o sistema eleitoral:

A condição do ‘CARÁTER NACIONAL’, tanto da Constituição como da lei, é incompatível com coligações híbridas, que não respeitem o paradigma nacional. Esse é o caminho para o fortalecimento dos partidos, como instrumentos da democracia brasileira. É essa a opção do sistema legal brasileiro, que luta contra os vícios regionalistas que vêm do início da República.

Não deixa de ser irônico que Nelson Jobim se refira aos vícios regionalistas

da Velha República em uma decisão que, ao fim e ao cabo, representou

justamente o retorno da tentativa de se moldar verticalmente o processo eleitoral,

conduzindo-o a partir de um centro de poder e nos moldes, por ele, julgado mais

apropriado.507 Seu voto na ADI 2626-7 representa a continuidade da cruzada pela

moralização do sistema eleitoral brasileiro:

507Consulta n° 715, TSE; Voto Min. Nelson Jobim. Não apenas irônica como, para dizer o mínimo, incompleta. A política dos Estados de Campos Sales não se traduzia na simples regionalização do poder policial e administrativo. Como bem demonstra Vitor Nunes Leal em seu excepcional Coronelismo, enxada e voto, o sistema complexo de interdependência entre o poder central e o poder regional fazia a mítica do chefe local se arrefecer sobremaneira diante da real dependência que nutria frente ao governo central.

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Leio a conclusão de SCOTT P. MAINWARING, Professor pela Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, após longa pesquisa no país: “A rigor, os partidos nacionais são federações de partidos estaduais [...] A maioria das decisões mais importantes é tomada pelas organizações partidárias estaduais e as organizações nacionais não têm muito poder sobre as primeiras.” [...] É exatamente esse vício de toda a legislação brasileira [...] O Brasil tem que deixar de merecer o epíteto de GIOVANNI SARTORI: “Il Breasile è il paradiso terrestre di coloro Che teorizzano l’anti-partitismo.” Ou seja, a crônica internacional traz, claramente, dizendo que o Brasil é exatamente o grande paraíso terrestre daquilo que a doutrina e a ciência política chama do “anti-partitismo”, no que diz respeito à conduta dos partidos políticos.508

Ilmar Galvão, em sentido diverso, ressaltara que os eventuais vícios do

sistema representativo nacional não poderiam servir de pretexto para a atuação

extra-constitucional dos tribunais que analisaram a questão da verticalização:

O eminente Ministro Nelson Jobim deixou claro o propósito quando defendeu a resolução, dizendo que se tratava de um meio de combater o vício da federalização dos Partidos. Mas a lei não quis assim. Na verdade houve uma reforma do sistema político brasileiro.509

O uso retórico da moralidade no debate sobre a verticalização das

coligações partidárias não passou despercebido dos estudiosos do tema. Francisco

de Guimaraens ressalta que a decisão foi prolatada em meio a um “apelo

midiático quase ensurdecedor de moralização e coerência das alianças

partidárias.”510 Conforme já ressaltado, os ministros entusiastas desta medida

possuíam evidente clarividência sobre sua inocuidade. As decisões do STF e TSE,

prossegue o autor em sua análise, cumpriram, em verdade, o roteiro de construir

para o poder judiciário a imagem de guardião da moralidade política:

Esta não foi uma decisão tomada para surtir efeito do ponto de vista jurídico. Sua função era exatamente a de angariar apoio na mídia, que há muito clama por coerência partidária e moral política. Sabedores de que a decisão padeceria, em grande medida, de eficácia, o que efetivamente desejavam era trazer para o judiciário o papel de guardião último de uma moralidade política que nós, o povo, e eles, os representantes, não mais detínhamos em nossas mãos, visto que votamos em coligações incoerentes e eles se locupletam dessa nossa ausência de rigor político.511

508Adin n° 2626-7; voto Min. Nelson Jobim. 509Adin n° 2626-7; voto Min. Ilmar Galvão. 510GUIMARAENS, Francisco de. A judicialização da política, p. 3. A pressão midiática exacerbou-se ao ponto de Sepúlveda Pertence, em seu voto na Consulta n° 715/02, TSE, ter feito expressa menção aos riscos de um julgamento sob pressão: “[...] não pode o TSE se deixar envolver na polêmica, que vem agitando homens públicos e jornalistas políticos sobre se seria ou não conveniente que se viesse a impor a simetria ou a coerência entre as coligações [...] antes é preciso saber se o problema já encontra solução unívoca na legislação eleitoral.” 511 Ibidem, p.3.

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A correspondência com o Poder Moderador evidencia-se mais uma vez,

agora pela atribuição de uma característica apresentada como inerente à

instituição e que a qualifica como chave política do sistema, como interprete mais

qualificado da soberania popular. O monopólio da moralidade é compreendido

como título que legitima a (auto)imputação de competência para reformar o

sistema eleitoral a uma instituição pretensamente despreocupada com o resultado

da competição político-partidária. Nesta interpretação cabe mais uma vez ao

Poder Moderador a tarefa de proteger o povo de sua própria loucura ou

infantilidade, moderando a democracia. A estultice popular se revelaria agora pela

aceitação à regra imoral do jogo eleitoral incoerente. O caráter pedagógico das

decisões de STF e TSE permitiria, assim, incutir o compromisso moral nas

condutas dos partidos e na escolha dos eleitores. É o que se infere da afirmação da

ministra Ellen Gracie sobre o teor didático imposto pela decisão do TSE sobre a

simetria das alianças partidárias:

[...] ao cidadão-eleitor, esta interpretação sinaliza no sentido da coerência partidária e no da consistência ideológica das agremiações e das alianças que se venham a formar, com inegável aperfeiçoamento do sistema político-partidário.512

Para além deste processo civilizatório procedido à margem da Constituição,

os cidadãos brasileiros, atentos às peculiaridades de sua região, tiveram limitada

sua possibilidade de tomar parte na escolha de governos que mais se

aproximassem de uma representatividade já combalida pelo seu caráter

transcendente. A recomendação de Espinosa, no sentido de que se deixe o povo

exercer o poder para melhor praticar este exercício, é solenemente

(deliberadamente?) ignorada. A fórmula do escorreito exercício da cidadania é

engendrada, empacotada e entregue pronta pelo Supremo ao “cidadão-eleitor”.

Sob outra ótica, Vitor Marchetti também aponta a preponderância do

elemento moral na decisão sobre a verticalização das coligações partidárias. O

autor parte do estudo realizado por Cícero Araújo que, em seu artigo Entre o

Estado e a revolução desenvolve os conceitos de plebeísmo e civismo. Este se

refere a um modelo ideal que atrela o bem comum à participação política calcada

na exigência de excelência moral dos participantes. Aquele, por sua vez, associa-

se à concepção democrática de ampliação da participação popular na construção

512 Consulta n° 715/02, voto Ellen Gracie.

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da lei civil.513 Na perspectiva de Cícero Araújo, pontua Marchetti, os regimes

democráticos podem conviver com o plebeísmo e o civismo, desde que o primeiro

se sobreponha e subordine o segundo, sob pena de restringir-se a “soberania da

vontade popular”.514 No caso da verticalização das coligações partidárias, como se

extrai do trabalho de Marchetti, o STF e TSE procuraram reformar o sistema da

competição político-partidária, imbuídos pela noção de civismo515, impregnada

por uma pretensão de excelência moral ditada por aqueles tribunais, configurando

um risco de decréscimo democrático.

Em resumo: a tentativa de reestruturar o sistema de disputa eleitoral, à

margem do quanto previsto na Constituição, e o uso retórico do monopólio da

moralidade aparecem, no presente caso, como características que aproximam a

atuação do STF e TSE da função que o Poder Moderador adquiriu no Brasil, em

detrimento da consolidação de práticas efetivamente democráticas no país. Estas

mesmas correspondências seriam observadas no célebre caso em que os referidos

tribunais impuseram o regime de fidelidade partidária.

4.2.3 Fidelidade partidária

Mediante a Consulta n° 1.398/07 proposta perante o TSE, o DEM (PFL)

questionou se o mandato eleitoral pertencia aos partidos políticos ou aos

candidatos eleitos a ele filiados. A consulta pode ser resumida na questão posta à

corte eleitoral:

Os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda?516

513“[o civismo] deve ser entendido como um ideal de excelência na participação política que carrega a exigência de uma excelência moral e ética para a defesa do interesse público […] [o plebeísmo] pressupõe a ampliação da participação política do demos, o que geraria a necessidade de representação da vontade popular através da especialização e profissionalização da atividade política.” MARCHETTI, Vitor. Poder judiciário e competição política no Brasil, p. 211. 514 ARAÚJO, Cícero. Entre o Estado e a revolução. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.17, n. 49, pp. 39-54 apud MARCHETTI, Vitor. Poder judiciário e competição política no Brasil, pp. 211-212. 515MARCHETTI, Vitor. Poder judiciário e competição política no Brasil, pp. 212 e 215. 516Tribunal Superior Eleitoral. Consulta n° 1.398; Julgamento em: 27 mar. 2007; Rel. Min. Francisco Cesar Asfor Rocha; Disponível a partir de: <http://www.tse.gov.br/internet/jurisprudencia/index.htm>. Acesso em: 02 mar. 2010.

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Em votação quase unânime o TSE manifestou-se no sentido de que os

mandatos pertenciam aos partidos pelos quais os candidatos foram eleitos. O voto

divergente veio pela pena do ministro Marcelo Ribeiro que atentara para a

impossibilidade de punição de parlamentares eleitos fora das hipóteses já

dispostas na Constituição e legislação eleitoral. Munidos pela resposta TSE,

DEM, PPS e PSDB requereram à Mesa da Câmara dos Deputados a imediata

adesão ao resultado da consulta com intuito de recuperar vagas de parlamentares

que tinham deixado suas legendas após as eleições de 2006. O oportunismo do

pedido era flagrante. De fato, como ressaltam Francisco de Guimaraens e Vitor

Marchetti, os referidos partidos aproveitaram-se em grande escala da infidelidade

partidária ao longo dos dois governos de Fernando Henrique Cardoso.517 Alterada

a correlação de forças partidárias com as eleições de Lula em 2002 e 2006 o que

se fazia prática contumaz naqueles partidos, passou a ser atacado como intolerante

inconstitucionalidade.

Diante da negativa da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, os partidos

ingressaram com respectivos mandados de segurança perante o STF, alegando que

a mesa diretora negara aplicação de direito líquido e certo garantido pela resposta

do TSE à Consulta n° 1.398/07. Na análise dos mandados de segurança, o STF

confirmou a decisão do TSE, introduzindo a fidelidade partidária no sistema de

representação partidária brasileiro. No entanto, por ter submetido a decisão à

modulação temporal, o tribunal negou a segurança aos impetrantes. A decisão

valeria apenas para os casos ocorridos após a resposta do TSE à Consulta n°

1.398/07.

As nuances desta votação serão visitadas mais adiante. Convém, neste

momento, chamar atenção para o protagonismo do STF neste episódio. O que se

apresenta como peculiar no caso reside no fato de que o próprio tribunal tratou de

517 “É preciso lembrar que os partidos descontentes – PSDB, DEM e PPS -, que provocaram o judiciário neste caso, foram, no passado recente, muitíssimo beneficiados pela infidelidade. O PPS, por exemplo, possui apenas um deputado que pertencia à legenda desde sua fundação. Já o PSDB deu um salto na composição de sua bancada de 63 deputados federais eleitos em outubro de 1994 para 97 deputados federais filiados ao PSDB em junho de 1997. Um notável crescimento de mais de 50% em pouco menos de três anos.” GUIMARAENS, Francisco de. Judicialização da política, p. 6. Neste mesmo sentido, Marchetti expõe: “Durante o primeiro ano do governo Fernando Henrique (PSDB), seu partido aumentou sua bancada em 30 deputados, o equivalente a 47,6% dos eleitos [...] O maior partido da base desse governo, o PFL, recebeu 22 novos deputados, aumentando em 25% sua bancada.” MARCHETTI, Vitor. Poder judiciário e competição política no Brasil, p. 167.

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criar ambiente propício à deflagração da Consulta n° 1.398/07 perante o TSE,

burlando o princípio da inércia que informa a atividade judicante. O projeto de

reforma política gestado no STF iniciou-se antes mesmo de realizada a Consulta

n° 1.398/07 perante o TSE, servindo, inclusive, de incentivo, inspiração e base

teórica para sua deflagração pelo DEM. A iniciativa de trazer à tona a questão da

fidelidade partidária partira do STF meses antes da realização da referida consulta,

no âmbito do julgamento da ADIn n° 1.351-3/06 em que se discutia a

constitucionalidade da cláusula de barreira. Conquanto não integrasse objeto da

causa sob julgamento, alguns ministros resolveram se antecipar ao debate da

reforma política que deveria ocorrer no Congresso Nacional. O voluntarismo

político a que Sepúlveda Pertence se referira quando de sua irresignação contra a

imposição judicial da verticalização atingiu, aqui, patamares vertiginosos. O tema

foi pinçado por Gilmar Mendes em meio ao seu voto sobre a constitucionalidade

da cláusula de barreira:

Recentemente, o país mergulhou numa das maiores crises éticas e políticas de sua história republicana, crise esta que revelou algumas das graves mazelas do sistema político-partidário brasileiro, e que torna imperiosa a sua imediata revisão [...] A crise tornou, porém, evidente, para todos, a necessidade de que sejam revistas as atuais regras quanto à fidelidade partidária.518

A inexistência de comando constitucional que previsse a perda de mandato

por infidelidade partidária não parecia constituir maior empecilho:

Em outros termos, estamos desafiados a repensar o atual modelo a partir da própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Devemos refletir, inclusive, sobre a conseqüência da mudança da legenda por aqueles que obtiveram o mandato no sistema no sistema proporcional o que constitui, sem sombra de dúvidas, uma clara à violação à vontade do eleitor [...] Assim, ressalvadas situações específicas decorrentes de ruptura de compromissos

518 Supremo Tribunal Federal. ADIn nº 1.351; Julgamento em: 07 dez. 2006; Rel. Min. Marco Aurélio; Voto Min. Gilmar Mendes. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=414316 >. Acesso em: 07 mar. 2010. Interessante ressaltar a posição de Wanderley Guilherme dos Santos que, em sentido oposto ao senso comum, afirma que o sistema representativo brasileiro move-se, sim, por uma lógica de fidelidade partidária: “Em primeiro lugar, quem muda de sigla não muda necessariamente de partido, de opinião. Os parlamentares que fundaram o P-Sol não mudaram de partido, obviamente, nem de opinião, mas de sigla. [...] Já o quadro demonstrativo das carreiras dos deputados federais eleitos pelo ex-PFL, em 2006, revela a consistência das diversas trocas de siglas, quase sempre da mesma inclinação partidária. Qual a diferença de opinião entre o antigo PL e o antigo PFL? Ou o antigo PPB? Vários representantes foram da Arena, do PDS, do PFL e agora são do DEM. Outros saíram do PMDB, foram para o PFL e voltaram ao PMDB [...]” WANDERLEY, Guilherme dos. Arrogância, usurpação e tirania do Supremo. 2007.

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programáticos por parte da agremiação ou outra situação de igual significado, o abandono da legenda, a meu ver, deve dar ensejo à perda do mandato.519

A pretensão de imiscuir-se na competição político-partidária não cessara

com o caso da verticalização e, neste caso, de forma semelhante o Supremo o faria

fundado na suposta superioridade moral inerente à cúpula do Poder Judiciário. As

correspondências com o Poder Moderador apresentadas na atuação do STF e TSE

na questão da verticalização voltariam, portanto, a se manifestar no trato

conferido pelas cortes ao tema da fidelidade partidária. Se naquele primeiro

momento a sutileza conduziu a ação daqueles tribunais, preocupados em não

deixar transparecer que procediam a uma reforma política por vias extra-

constitucionais, aqui, o STF e o TSE escancaram despudoradamente a pretensão

de atuar como chave da organização política do país.

A conclamação de Gilmar Mendes para que os partidos descontentes com a

infidelidade partidária ingressassem com medidas judiciais tornou-se patente com

a expressa antecipação de seu entendimento. A atitude do ministro foi decisiva

para que se rompesse a inércia decorrente da consolidação, pelo próprio Supremo,

da tese que permitia a migração parlamentar. Tal entendimento foi firmado no ano

de 1989, a partir do julgamento do mandado de segurança (MS) n° 20.927/89. Ali

restou expresso que, diante da inexistência de empecilho legal para mudança de

partido ao longo do mandato, não se poderia punir parlamentar que assim

procedesse. É o que se extrai da leitura da ementa do julgado:

Em que pese o princípio da representação proporcional e a representação parlamentar federal por intermédio dos partidos políticos, não perde a condição de suplente o candidato diplomado pela Justiça Eleitoral que, posteriormente, se desvincula do partido ou aliança partidária pelo qual se elegeu. A inaplicabilidade do princípio da fidelidade partidária aos parlamentares empossados se estende, no silencia da Constituição e da lei, aos respectivos suplentes.520

519 ADIn nº 1.351; Voto Min. Gilmar Mendes. À antecipação de entendimento de Gilmar Mendes, conclamando o Supremo a capitanear uma reforma política, Marco Aurélio agregou seu posicionamento, ao ressaltar que em seu voto sinalizara para a necessidade de obediência à fidelidade de propósitos pelos partidos: “No voto, pelo menos sinalizo, quando me refiro que o casamento não admite divórcio, a fidelidade, que, para mim, é fidelidade a propósitos.” ADIn nº 1.351; Min. Marco Aurélio. 520 Supremo Tribunal Federal. MS nº 20.927; Julgamento em: 11 out. 1989; Rel. Min. Moreira Alves; Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=85369>. Acesso em: 13 mar. 2010.

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Diante da consolidação deste entendimento, os partidos políticos não

voltaram a suscitar dúvidas sobre a constitucionalidade da migração partidária.

Fez-se necessário que o Supremo comunicasse expressamente sua disposição por

deflagrar uma reforma política para que a inércia fosse rompida. A sinalização foi

devidamente compreendida pelos partidos de oposição que, à época, já não se

beneficiavam da infidelidade partidária como outrora ocorrera quando integravam

a situação. Foi neste contexto que o DEM, meses após, ingressou com a Consulta

n° 1.398/07 perante o TSE. Por meio dos mandados de segurança deflagrados pelo

PPS (MS n° 26.602-3/07), PSDM (MS n° 26.603-2/07) e DEM (MS n° 26.604 -

/07) a matéria retornaria ao local onde foi gestada. Ao fim dos debates, ratificou-

se o entendimento do TSE. Naquela oportunidade, os integrantes do TSE oriundos

do Supremo já haviam votado pela imposição da fidelidade partidária em reposta

à Consulta n° 1.398/07. No âmbito do STF, no entanto, pode se observar

divergências. Os ministros Joaquim Barbosa, Eros Grau e Ricardo Lewandowski

votaram contra a aplicação da interpretação que criava a regra da fidelidade

partidária. Os demais membros da corte chancelaram a decisão do TSE,

divergindo apenas quanto ao momento a partir do qual a disposição deveria ter

eficácia.

A pertinência da aplicação da fidelidade partidária, sua importância ou não

para o fortalecimento da democracia, não se insere no objeto da presente pesquisa.

O que se busca demonstrar é que a captura do debate e monopólio desta decisão

pelo STF o aproxima das feições que a teoria do poder moderador assumiu no

Brasil.521 A correspondência decorre da verificação de um modelo calcado no

processo de forja do sistema representativo que exclui a participação popular na

tomada de decisões públicas, a despeito de pretender se legitimar pelo discurso da

necessidade de tutela da vontade popular. Tal prática, constitucionalizada pela

Constituição de 1824, necessitou ser conduzida, na República Velha, na sombra

da extra-constitucionalidade, como demonstrado por Renato Lessa. O risco de o

521 Sob outra perspectiva, mas igualmente preocupado com a forma de que o STF se valeu para aprofundar seu protagonismo nas questões político-partidárias, Vitor Marchetti explicita: “Não se trata aqui de avaliar os benefícios da fidelidade partidária nos termos que foram colocados. O Supremo provocou os partidos sinalizando que recepcionaria a demanda. O principal partido de oposição aceitou a provocação e provocou o TSE, que por sua vez se orientou conforme a sinalização do STF. Essa decisão representa de maneira mais bem definida a migração do debate parlamentar para as instâncias judiciais.” MARCHETTI, Vitor. Poder judiciário e competição política no Brasil, p. 186.

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STF trilhar por semelhante caviloso caminho pareceu guiar os votos dos ministros

que recusaram solidariedade à reforma política promovida pelo tribunal. Para

estes ministros a decisão do TSE correspondeu à inaceitável criação de hipótese

de perda de mandato parlamentar pelo Judiciário, à margem, portanto, da

competência constitucionalmente posta ao Congresso Nacional. Todas estas

questões encontram-se postas, ainda que implicitamente, nos votos vencidos sobre

a matéria.

O ministro Eros Grau, relator do MS n° 26.602-3/07, destacou o risco de o

STF pretender moldar a feição do sistema eleitoral ao criar nova hipótese

(extra)constitucional para perda de mandato parlamentar:

Resulta bem nítido, aliás, o desígnio nutrido pelo impetrante, no sentido de que o Supremo Tribunal Federal crie, por via oblíqua, hipótese de perda de mandato parlamentar não prevista no texto constitucional. Pretende transformar este Tribunal em legislador, trilhando a estreita via do mandado de segurança [...] Estamos aqui para dizer ao impetrante se há ou não o direito de obter a perda do mandato do deputado que cancelou a sua inscrição e se transferiu para o outro partido. Pouco importam os eufemismos, preservar ou não. O que importa é a conseqüência derradeira, é a perda do mandato. Como isso não está expresso no elenco do art. 55, eu poderia dizer de outro modo: é a cassação do mandato de modo sumário.522

Ante o argumento exposto por Eros Grau, coube à corrente majoritária do

STF, favorável a imposição judicial da fidelidade partidária, tergiversar. O

tribunal não estaria a discutir a perda de mandato do parlamentar trânsfuga;

debatia-se, apenas, a que caberia o mandato parlamentar. O contorcionismo

interpretativo resta bem representado pelo voto exarado pelo ministro Celso de

Mello na qualidade de relator do MS n° 26.603-1/07:

O direito vindicado pelos partidos políticos afetados por atos de infidelidade partidária não nasce nem surge da resposta que o TSE deu à consulta que lhe foi submetida, mas representa emanação direta do próprio texto da Constituição, que a esse mesmo direito confere realidade e dá suporte legitimador [...] Não se trata, portanto, de impor ao parlamentar infiel, a sanção de perda de mandato, porque de punição não se trata [...] E a razão é simples. É que a Constituição protege o mandato parlamentar. A taxatividade do rol inscrito em seu art. 55, que define em “numerus clausus” as hipóteses de perda do mandato, em caráter punitivo, representa verdadeira cláusula de tutela constitucional a preservar a própria integridade jurídica do mandato legislativo. Por isso mesmo, não há mais

522 Supremo Tribunal Federal. MS nº 26.602-3/DF; Julgamento em: 04 out. 2010; Rel. Min. Eros Grau; Voto Min. Eros Grau. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=555539>. Acesso em: 09 mar. 2010.

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que se aludir à cassação do mandato representativo por ato de infidelidade partidária.523

A tipificação da infidelidade partidária como nova modalidade de ilícito

político era, no entanto, evidente. Pouco importavam os eufemismos, conforme

salientara Eros Grau. Gilmar Mendes fora enfático em seu voto: “o abandono da

legenda, a meu ver, deve dar ensejo à perda do mandato”524. Ademais, a

preocupação com o direito de defesa dos parlamentares, caso o partido do qual

saiu requeresse o seu mandato, permeou os debates em plenário - o que corrobora

o caráter punitivo da medida - e resultou na determinação para que o TSE

expedisse resolução que disciplinasse o exercício do referido direito. Ao fazê-lo

por meio da Resolução n° 22.610/07, ressalta Marchetti, o TSE pôs fim à eventual

dúvida sobre o caráter punitivo da decisão do Supremo: “O Tribunal Superior

Eleitoral [...] na observância do que decidiu o Supremo Tribunal Federal nos

mandatos de segurança n° 22.602, 22.603 e 22.604, resolve disciplinar o processo

de perda de cargo eletivo, bem como de justificação de desfiliação partidária nos

termos seguinte [...]”. Evidencia-se, portanto, a correção da leitura do caso a que

procedeu Francisco de Guimaraens quando afirmou que “o STF criou norma

jurídica nova e, o que é pior, norma de cunho punitivo, que estabelece a

tipificação de um ilícito político sancionado com a perda de mandato.”525

Eros Grau procurou, ainda, ressaltar que não se tratava do debate entre a

pertinência ou não de se adotar, no âmbito de uma reforma política, a fidelidade

partidária. O fato é que não caberia ao Supremo capitanear tal reforma, devendo

recolher-se ao papel de guardião da Constituição. Ao evidenciar que a atuação dos

ministros da corte não poderia descambar para um voluntarismo que os levasse a

substituir os comandos constitucionais por seus ideais particulares, Eros Grau

pontuou:

Não vejo como, na qualidade de guardião da Constituição, este Tribunal conceder a segurança. Não vejo também como transformarmos o mandado de segurança em ação declaratória para o feito de, obter dictum ou não, dizer aquilo que eu gostaria de dizer enquanto cidadão, que a fidelidade partidária é conveniente etc. Não, essa não é a nossa tarefa aqui.

523 Supremo Tribunal Federal. MS nº 26.603-1/DF; Julgamento em: 04 out. 2010; Rel. Min. Celso de Mello; Voto Min. Celso de Mello. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=570121>. Acesso em: 09 mar. 2010. 524 Vide nota 98. 525 GUIMARAENS, Francisco de. A judicialização da política, p. 5.

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Estou inteiramente convicto de que, infelizmente --- digo-o agora como cidadão --, o instituto da fidelidade partidária não foi contemplado a este ponto. E eu devo cumprir a Constituição. Meu compromisso é com a Constituição. Não posso ir além do que ela me autoriza ir, porque só tenho legitimidade para me manter dentro dos seus limites, interpretando-a nos limites do texto.526

À constatação da flagrante substituição dos parâmetros constitucionais por

concepções pessoais dos ministros do STF deve ser conferida especial atenção. É

no Império que a atuação do guardião da Constituição confunde-se

desabridamente com o conteúdo personalista da vontade do detentor da função

moderadora; o Imperador desenha ao sabor de sua conveniência a composição da

câmara de representantes, manejando os atributos da competência constitucional

que lhe foram atribuídos. Há que se ter cuidado, é certo, com comparações entre

períodos diferentes, regidos por realidades díspares. Neste sentido, apresentar a

atuação do STF em patamar semelhante ao desenvolvido pelo detentor do Poder

Moderador ao longo do Império constituir-se-ia voluntarismo mais intenso do que

o demonstrado pela corte suprema no julgamento da fidelidade partidária. No

entanto, não se deve descurar das sutis correspondências entre o atuar do STF e os

aspectos que caracterizaram a presença do poder moderador no país, seja como

instituição formal do Império, na forma de correspondente funcional pela política

dos governadores ou mesmo, como discurso legitimador para concentração de

poder.

Se, através de decisões do calado da verticalização e da fidelidade partidária

o Supremo não teria condições de definir de forma ampla a seleção dos

representantes eleitos por voto popular – característica da função moderadora

exercida pelo Imperador e, após, pela política dos governadores -, não deixa de se

demonstrar que o tribunal procurou influenciar a modelagem de um sistema

eleitoral que, para além do previsto na Constituição, era fruto de uma concepção

peculiar de seus ministros. Vitor Marchetti frisa o cerne da questão:

Não se trata de avaliar a conveniência ou não da fidelidade partidária nos termos em que foi colocada, e como vimos não há consenso na literatura sobre o assunto. O problema, a nosso ver, é que a medida não representou um avanço do tema no debate parlamentar, mas um avanço maior do Judiciário nos temas da competição política [...] há uma sólida disposição da cúpula do Judiciário em tratar dos temas que organizam essa competição.527

526 MS nº 26.602-3; Voto Min. Eros Grau. 527 MARCHETTI, Vitor. Poder judiciário e competição política no Brasil, p. 200.

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O movimento do STF nessa direção revela sua condição de parte na disputa

pelo exercício do poder, a transmudar em anedota sua propalada atribuição de

amortecer conflitos entre os demais poderes, moderando-os. O problema, no

entanto, transborda da mera disputa entre os poderes constituídos; o mais grave se

revela quando se observa que este embate tem por prêmio o espólio de um poder

constituinte que o constitucionalismo garante restar adormecido com a edição do

texto constitucional. Eis que, conforme demonstra Negri, o poder constituinte

procura se reinventar a cada instante, em razão de os ataques dos poderes

constituídos, em última instância, serem desferidos contra os imponderáveis

sujeitos constituintes. Se a representação parlamentar, por si, já padece deste mal,

a situação torna-se mais sensível quando a cúpula do Judiciário, ostentando déficit

de representatividade democrática, se arroga a reinventar a Constituição.

Esta tensão entre poder constituinte e poder constituído insinuou-se no voto

do ministro Joaquim Barbosa. Causou-lhe estranheza o modo pelo qual a resposta

do TSE à Consulta n° 1.398/07 alçou os partidos políticos à centralidade do

sistema eleitoral, relegando o eleitor ao segundo plano:

[...] o argumento colhido pelo TSE coloca o partido político como o elemento central, incontrastável, de toda a nossa organização política. Faz dos partidos políticos a fonte derradeira de toda a legitimidade democrática em nosso país. Esse argumento faz, a meu ver, a mais absoluta abstração daquele que, em realidade, encarna a soberania – o povo. E isso ficou claro nos debates ocorridos ontem e hoje, nos quais praticamente não se falou do povo, do eleitor [...] Para exercer esse poder de que é titular, o povo se serve dessa instituição importantíssima [...] que são os partidos políticos. Mas isso não significa que ele, povo, renuncie, em nome do partido, à sua condição de depositário derradeira da soberania.528

E continua neste mesmo sentido:

[...] tenho dificuldades em admitir que no nosso sistema constitucional o centro de gravidade, ou seja, a fonte de legitimidade de todo o poder esteja nos Partidos Políticos, como decidiu o Tribunal Superior Eleitoral. Não vejo como admitir, no Brasil, a existência dessa “PARTIDOCRACIA” a que fez alusão o Ministro César Asfor Rocha em seu voto no TSE [...] ao fazer uma opção por essa PARTIDOCRACIA, supostamente no intuito de proteger a vontade do eleitor, o que faz o Tribunal Superior Eleitoral foi alijar completamente o eleitor do processo de manifestação da sua vontade soberana. Tornou-o irrelevante, pois importantes passaram a ser apenas os partidos políticos.529

528 MS nº 26.602-3; Voto Min. Joaquim Barbosa. 529 Ibidem.

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Joaquim Barbosa, por fim, destaca que o espaço da manifestação da vontade

popular não se restringe aos partidos; não raro, ela prescinde de mediadores e

emerge dos mais variados agenciamentos no seio da comunidade:

[...] eu me pergunto se essa apregoada preeminência dos partidos políticos como instituições arregimentadoras exclusivas da vontade popular encontra eco na realidade da sociedade moderna em que vivemos, sociedade de massas, conectada planetariamente, com múltiplas formas de expressão da vontade dos mais diversos segmentos sociais. Tenho as minhas dúvidas, e neste sentido, lembro do papel crescentemente importante desempenhado nos dias atuais por organizações tais como as organizações não-governamentais. Tive o privilégio de assistir nos Estados Unidos da América há cerca de sete ou oito anos o papel decisivo que uma organização espontânea [...] teve nos desfecho do processo de impeachment. 530

A referência de Joaquim Barbosa aos agenciamentos espontâneos entre

sujeitos para o exercício do poder perde-se em meio à corrente majoritária do

Supremo, para a qual os partidos políticos aparecem como mediador natural deste

processo. Assim como ocorrera na imposição da verticalização, o entendimento

do Supremo reserva aos cidadãos um não lugar na participação das decisões

públicas. No caso sob análise, diante da ausência de norma constitucional

proibitiva da migração partidária, caberia apenas ao eleitor o papel de julgar o ato

do candidato que se transfere para outra legenda. Após atentar para o deficit de

representatividade popular dos ministros do STF, Francisco de Guimaraens

adverte neste sentido:

Cidadãos de toga não nos representam. Não cabe a eles decidir sobre a perda de mandato quando não se atribui aos mesmos tal competência explícita e irrefutavelmente. Na dúvida, a abstenção do judiciário em tal assunto é fundamental para a permanência do regime democrático. Não que a fidelidade seja um mal ou um bem, mas punições fundadas na infidelidade devem estar explicitamente estabelecidas na Constituição Federal ou em lei que regulamente a matéria [...] O dono dos mandatos somos nós e, conseqüentemente, é nosso o poder de julgar, pelas urnas, condutas de mandatários que não estiverem precisamente tipificadas na ordem jurídica vigente.531

A lembrança do povo como detentor do mandato é fundamental para

compreensão do que representou a decisão do Supremo. Conforme demonstrado

por Renato Lessa, a exclusão da população no processo de decisão sobre as coisas

que lhes são comuns constitui um dos aspectos que caracterizaram a função do

poder moderador no Brasil. O estudo sobre as contra-revoluções americana e

530 MS nº 26.602-3; Voto Min. Joaquim Barbosa. 531 GUIMARAENS, Francisco de. Judicialização da política, p. 6-7.

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francesa revelou, por sua vez, como a teoria do poder neutro foi utilizada como

mecanismo de contenção da participação popular na condução das questões

públicas daquelas nações. Em sentido semelhante ao exposto por Guimaraens,

Wanderley Guilherme dos Santos ressalta o papel do eleitorado como juiz final

dos parlamentares que trocam de legenda e alerta para o desprezo que o Supremo

relegou ao eleitor:

Não se perguntou aos eleitores, aliás, algo essencial: se consideram indispensável alguma mudança nas regras da vida política. Os comentaristas debatem qual o fórum apropriado para a elaboração da reforma, o tipo de sistema eleitoral, as cláusulas a atender para que um partido conquiste lugar no parlamento, os modos de financiamento das campanhas, mas nenhum admitiu a possibilidade de que o eleitorado discorde da própria idéia de reforma. [...] Se os atuais reformistas estão convencidos de que expressam o sentimento da população devem expor o tema a plebiscito. Na realidade, a decisão do STF constitui, antes de tudo, um seqüestro do direito de os governados se pronunciarem a propósito dos andaimes da vida política.532

Se a fidelidade partidária representa a solução para os males do sistema

representativo nacional que se deixe à comunidade o papel de debater e propor

sua constitucionalização. Ao Supremo não foi conferida competência

constitucional para criar novas formas de perda de mandato, para além das

explicitamente previstas no art. 55, CF.533 Não há representação argumentativa

que legitime tamanho avanço sobre o poder constituinte. O risco em se admitir o

STF como inventor da Constituição pela produção legislativa de novos comandos

constitucionais, foi bem sintetizado por Eros Grau, em seu voto no âmbito do MS

n° 26.604-0/07:

532 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Arrogância, usurpação e tirania do Supremo, 2007. 533 Como afirma Guimaraens, em artigo no qual demonstra a inconsistência dos argumentos do Supremo para impor a regra de fidelidade partidária: “O art. 55 da Constituição Federal, que regula o assunto, em momento algum deixa transparecer a idéia de que é possível decretar perda de mandato de um candidato infiel. O TSE, com a confirmação do STF, criou norma jurídica nova e, o que é pior, norma de cunho punitivo, que estabelece a tipificação de um ilícito político sancionado com a perda de mandato. Do ponto de vista do Estado de Direito tal tipificação tortuosamente construída é uma verdadeira teratologia jurídica. No entanto, o sofisma reinou no TSE e no STF. Os ministros insistiram não se tratar de hipótese de ato ilícito. Para driblar o art. 55, os ministros dos tribunais em questão afirmaram que a troca de partido é ato lícito e, portanto, não se trata de uma sanção a perda do mandato. Só se fosse considerado ato ilícito que deveria ser incluída tal hipótese por emenda à constituição na ordem constitucional brasileira. Na medida em que vigora no Brasil a liberdade de associação partidária, trocar de partido não é ato ilícito. Por não ser ato ilícito, essa hipótese não precisaria constar de um dispositivo que só trata de atos ilícitos. Em suma, o judiciário brasileiro acaba de criar uma nova categoria: sanção política sem ilícito político.” GUIMARAENS, Francisco de. O judiciário brasileiro e a fidelidade partidária: retorno à Emenda n° 1/69? Disponível em < http://cedes.iuperj.br/PDF/07outubro/fidelidadepartidaria.pdf>. Acesso em 22 mar. 2010, p. 3.

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Temo muito pelos direitos e garantias individuais. Temo que, amanhã ou depois, recomecemos a interpretar a Constituição no sentido de que o habeas corpus só seja dado em determinadas condições. E, quem sabe, até mesmo a redistribuição das vagas de deputado federal, segundo critérios efetivamente proporcionais, em relação a cada Estado, o que certamente inverteria a representatividade dos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. No entanto, isso fica por conta da lassidão na interpretação da Constituição.534

O que autoriza o STF, no abuso do exercício de sua atribuição de guardião,

a se compreender sujeito da política que reinventa a Constituição aproxima-o um

pouco mais dos atributos que conferem ao Poder Moderador o caráter de chave do

sistema político. Se o apelo moral se fez presente no debate em torno da

verticalização, no caso da fidelidade partidária ele revelou-se não apenas o fio

condutor do debate, como a manifesta causa pela qual o STF e TSE deveriam

passar a considerar a migração partidária como causa para perda de mandato

parlamentar.

Conforme pontua Vítor Marchetti, a espontânea conclamação de Gilmar

Mendes para que o Supremo revisse as regras quanto à fidelidade partidária

ocorreu após o denominado escândalo do “mensalão”. A consternação do ministro

Gilmar Mendes transbordou em constatação categórica: “o país mergulhou numa

das maiores crises éticas e políticas de sua história republicana”535. Por muito

pouco o ministro não decretara a submersão do país no “mar de lama” a que o

consternado udenista Carlos Lacerda se referira ao tratar do governo Getúlio

Vargas. A dantesca crise, sentencia Gilmar Mendes, tornara imperiosa a revisão

das “graves mazelas do sistema político-partidário brasileiro”536. Em seu apelo

por mudanças moralizadoras, Gilmar Mendes dirige-se ostensivamente aos seus

pares. Cabe ao Supremo moralizar o sistema político-partidário brasileiro ainda

534 Supremo Tribunal Federal. MS nº 26.604-0/DF; Julgamento em: 04 out. 2010; Rel. Carmem Lúcia; Voto Min. Eros Grau. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=552057>. Acesso em: 09 mar. 2010. Wanderley Guilherme dos Santos retrata esta auto-compreensão do STF como artífice da Constituição: “O ministro Celso Mello, relator na matéria sobre a legítima propriedade do mandato, reagiu à notícia de que a Câmara estaria estudando anistiar os possíveis cassados com a seguinte afirmação: ‘É absolutamente inadmissível qualquer ensaio de resistência por parte de qualquer órgão estatal a uma decisão judicial, especialmente quando proferida pela mais alta corte de Justiça do país. Não há nenhum tribunal superior ao Supremo Tribunal Federal. Trata-se da corte suprema em matéria de jurisdição constitucional. Quem tem o monopólio da última palavra é o Supremo e ninguém mais’. (‘O Estado de S. Paulo’, 5/10/2007, pág. A5). Data vênia, é menos verdade. Quem tem o monopólio e pode tudo é o povo soberano, inclusive cortar cabeças quando houver conflito insanável entre ele, povo, e os governantes. Foi o liberal John Locke quem sugeriu o remédio.” WANDERLEY, Guilherme dos. Arrogância, usurpação e tirania do Supremo, p. 2. 535 Vide nota 97. 536 Idem.

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que, para tanto, seja obrigado a legislar, revisando as regras que regiam a

fidelidade partidária.537 O pendor do Supremo por assumir a função legislativa é

filtrado por Vitor Marchetti:

É importante destacar que Mendes defendeu uma alteração nas “atuais regras quanto à fidelidade partidária.” Dessa forma, reformar a jurisprudência do Supremo seria ir além de uma nova interpretação, ou melhor, seria alterar a interpretação para que fosse possível o estabelecimento de uma nova regra para conter o fluxo migratório.538

Uma nova regra constitucional, registre-se. Com efeito, é o sentimento de

salvação da moralidade pública que anima os votos da maioria do TSE e STF. A

ele irá se acoplar o discurso que legitima a decisão como medida protetiva da

vontade do eleitor soberano. Sendo esse o caso, não seria melhor, após amplo

debate, perquirir esta “vontade popular” por plebiscito, conforme expôs

Wanderley Guilherme dos Santos? Nada disto parece ser necessário; as respostas

sempre estiveram ali, implícitas na Constituição. Como afirmaria Asfor Rocha,

relator da Consulta n°1.398/07 do TSE:

[...] parece-me equivocada e mesmo injurídica a suposição de que o mandato político eletivo pertence ao indivíduo eleito, pois isso equivaleria a dizer que ele, eleito, se teria tornado senhor e possuidor de uma parcela da soberania popular [...] O princípio da moralidade, inserido solenemente no art. 37 da Carta Magna, repudia de forma veemente o uso de qualquer prerrogativa pública, no interesse particular ou privado, não tendo relevo algum afirmar que não se detecta a existência de norma proibitiva de tal prática.539

A defesa da moralidade pública presta-se, inclusive, a punir sem existência

de norma que preveja o ilícito. O ministro Marco Aurélio saudaria esta

alvissareira interpretação:

Penso que a invocação foi muito correta. Estamos a discorrer sobre administração pública, gênero, lato sensu, e não podemos desconhecer os princípios mencionados, numa sinalização clara e precisa, no art. 37 da Constituição Federal [...] Não temos como deixar de responder – e talvez a sociedade fique de alma

537 Quanto à relação entre escândalos políticos e a necessidade de revisão do sistema eleitoral como meio para resolver o problema do caráter imoral dos representantes parlamentares, Wanderley Guilherme dos Santos anota: “O escândalo nacional da CPI do Orçamento, por exemplo, [...] aponta menos para o caráter deste ou daquele político do que para latente ameaça em toda democracia moderna complexa: a da privatização do que á público por parte dos grupos especiais de interesses. A reiterada atribuição por tal problema, ao sistema partidário e eleitoral, é pura charlatanice dos neo-oligarcas. Nenhum sistema eleitoral ou partidário filtra caráter; só filtra votos. É por isso, aliás, que as vestais neo-oligarcas conseguiram chegar ao Congresso.” SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Regresso, p. 25. 538 MARCHETTI, Vitor. Poder judiciário e competição política no Brasil, p. 177. 539 Consulta n°1.398, TSE; Voto Min. Asfor Rocha.

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lavada, no que cada qual cumprirá o dever de apreciar a matéria neste Colegiado, de forma afirmativa à consulta formulada pelo Partido da Frente Liberal.540

Cabia, desta forma, proteger a vontade popular dos trânsfugas imorais;

proteger, como afirmaria Cezar Peluso, “os eleitores, que votaram na expectativa

de que aquele candidato honraria seu compromisso com o ideário político que o

partido encarnava”. 541

A legitimação da concentração – e usurpação – de poder pelo discurso da

moralidade apresenta-se, assim, como mais um indício da reminiscência da

cultura do Poder Moderador na atuação do Supremo. Como afirma Francisco de

Guimaraens, “a moralidade em abstrato – como qualquer princípio concebido em

abstrato – tende a ‘ações moderadoras’, risco esse que, de D. Pedro I até os dias

de hoje, jamais deixamos de correr.”542 A superioridade moral com a qual o

tribunal se apresenta para conduzir a reforma política conduz à inevitável

comparação com o papel que se procurou atribuir às forças armadas ao longo da

década de 60. Francisco de Guimaraens ressalta o ponto de intersecção entre os

referidos momentos históricos:

Estamos diante de um risco a ser levado seriamente em consideração: o risco do surgimento de um poder que se funda em uma suposta autoridade moral superior, um Olimpo cujos integrantes se dizem acima da corrupção dos valores a que políticos e eleitores se encontram irremediavelmente submetidos. Não faz muito tempo que as forças armadas se incumbiram desta tarefa, o que resultou no mais longo e violento período autoritário de nossa história. Se vige a soberania popular, ela não pode ser seqüestrada por onze paladinos da moralidade.543

540 Consulta n°1.398, TSE; Voto Min. Marco Aurélio. 541 Consulta n°1.398, TSE; Voto Min. Cezar Peluso. 542 GUIMARAENS, Francisco de. O judiciário brasileiro e a fidelidade partidária, p. 6. 543Idem. Judicialização da política, pp. 6-7. No caso da fidelidade partidária, a aproximação decorre, ainda, do efeito concreto que se deu à matéria. De fato, a reedição da fidelidade partidária reconduziu, neste ponto, o sistema representativo nacional ao período ditatorial. Como exposto por Guimaraens: “O STF, ao analisar a questão da troca de partido, em 1989, recusou a possibilidade de instituir sanção de perda de mandato para parlamentares que mudassem de partido porque, em seu entendimento, a Constituição de 1988 manteve a decisão política fundamental adotada pela Emenda Constitucional n. 25, de 1985, que retirou da constituição então vigente a hipótese de perda de mandato por parlamentar que mudasse de partido. Tal hipótese havia sido incluída na Constituição de 1967 pela Emenda Constitucional n. 01, de 19695. Ao manter a decisão de ruptura com o sistema eleitoral da ditadura, ruptura esta instaurada pela Emenda Constitucional n. 25, de 1985, a Constituição Federal em vigor manteve sua contrariedade ao que estabeleceu o regime militar a respeito da troca de partido. Não é preciso relembrar o quanto representou a Constituição de 1988 em termos de ruptura com o regime autoritário inaugurado em 1964, o que se reflete, sem dúvida alguma, na decisão de não possibilitar a perda do mandato quando se troca de partido. Estariam o TSE e o STF embalados por um movimento de retorno à Emenda Constitucional n. 01, de 1969? É o que deixa transparecer a resolução n. 22.610 do TSE.” GUIMARAENS, Francisco de. O judiciário brasileiro e a fidelidade partidária, p. 4.

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Em resumo, a atuação do Supremo perante a questão da fidelidade partidária

revela-se emblemática para o estudo das reminiscências do poder moderador na

cultura política brasileira. Ali se reúnem inúmeros aspectos correspondentes às

características que se acumularam ao longo da história em torno da atuação do

Poder Moderador: a resistência ao exercício do poder pelo povo, compreendido,

mais uma vez, como criança a ser tutelada; a disposição em moldar extra-

constitucionalmente a feição do sistema político-partidário, arrogando-se a poder

constituinte em evidente desvirtuamento do seu papel de guardião da

Constituição; o uso retórico de uma suposta superioridade moral como título que

legitima a condução das questões públicas do país.

Não se trata, repita-se, de imputar às reminiscências do poder moderador o

caráter de chave de leitura para decifrar a ampla e complexa atuação do Supremo

Tribunal Federal. Trata-s, apenas, de trazer à baila as práticas antidemocráticas

historicamente acumuladas e que, ainda, se refletem, por vezes, na atuação de

algumas instituições democráticas.

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