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3 Contra-revolução e Poder Moderador 3.1 Contra-revolução Americana e a função moderadora da Suprema Corte Em tópico anterior discorreu-se sobre os efeitos benéficos do dissenso para dinamizar o processo democrático. Esta dinâmica demanda instituições sensíveis à mutação, suscetíveis à atualização igualitária levada a efeito pelas manifestações do poder constituinte. Se a virtù coletiva aparece em Maquiavel como necessidade para evitar o perecimento diante da fortuna, as instituições, se bem erigidas, permitem a manutenção da liberdade e a convivência salutar com o conflito. Maquiavel faz, assim, da virtù a alma e das instituições o corpo da república. Compreendido que a desunião constitui a política, cabe analisar os modos como os arranjos institucionais são concebidos para lidar com os conflitos. As opções variam entre a compreensão da desunião como força motriz da democracia e sua identificação como ameaça a uma ordem vigente que se pretende naturalizada. O embate entre estas duas concepções marcou os movimentos de revolução e contra- revolução que se desenvolveram nos Estados Unidos e na França ao fim do século dezoito. Em contraposição à concepção elogiosa do dissenso, importantes teorias políticas foram idealizadas, tendo por diretriz a repugnância à idéia do conflito; uma ojeriza que atrela o desentendimento ao risco sedicioso. Por esta perspectiva, as instituições devem ser pensadas como meio de evitar o dissenso: o litígio não deve visto a menos que seja para classificá-lo como vandalismo que, ao subverter a ordem, autoriza a intervenção estatal. O que se procura conter, em última instância, é qualquer possibilidade de emergência de um poder constituinte que ponha em dúvida a naturalidade da ordem que divide os papéis de governantes e governados. A teoria política de Montesquieu é herdeira desta tradição, e se anuncia como essencial para o estudo aqui proposto. Sua teoria política influenciou decisivamente o pensamento das contra-revoluções acima anunciadas, que se valeram do poder moderador como instância de bloqueio à democracia. A

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3 Contra-revolução e Poder Moderador

3.1 Contra-revolução Americana e a função moderadora da Suprema

Corte

Em tópico anterior discorreu-se sobre os efeitos benéficos do dissenso para

dinamizar o processo democrático. Esta dinâmica demanda instituições sensíveis à

mutação, suscetíveis à atualização igualitária levada a efeito pelas manifestações

do poder constituinte. Se a virtù coletiva aparece em Maquiavel como necessidade

para evitar o perecimento diante da fortuna, as instituições, se bem erigidas,

permitem a manutenção da liberdade e a convivência salutar com o conflito.

Maquiavel faz, assim, da virtù a alma e das instituições o corpo da república.

Compreendido que a desunião constitui a política, cabe analisar os modos como

os arranjos institucionais são concebidos para lidar com os conflitos. As opções

variam entre a compreensão da desunião como força motriz da democracia e sua

identificação como ameaça a uma ordem vigente que se pretende naturalizada. O

embate entre estas duas concepções marcou os movimentos de revolução e contra-

revolução que se desenvolveram nos Estados Unidos e na França ao fim do século

dezoito.

Em contraposição à concepção elogiosa do dissenso, importantes teorias

políticas foram idealizadas, tendo por diretriz a repugnância à idéia do conflito;

uma ojeriza que atrela o desentendimento ao risco sedicioso. Por esta perspectiva,

as instituições devem ser pensadas como meio de evitar o dissenso: o litígio não

deve visto a menos que seja para classificá-lo como vandalismo que, ao subverter

a ordem, autoriza a intervenção estatal. O que se procura conter, em última

instância, é qualquer possibilidade de emergência de um poder constituinte que

ponha em dúvida a naturalidade da ordem que divide os papéis de governantes e

governados. A teoria política de Montesquieu é herdeira desta tradição, e se

anuncia como essencial para o estudo aqui proposto. Sua teoria política

influenciou decisivamente o pensamento das contra-revoluções acima anunciadas,

que se valeram do poder moderador como instância de bloqueio à democracia. A

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organização de uma constituição mista, pela qual a separação de poderes

atribuísse a cada força social uma parcela no ato de governar; o governo

oligárquico representativo vinculado à inexistência de sufrágio universal; o

desprezo pela multidão como ator político; a necessidade de controlar e conduzir,

de cima para baixo, as instituições; tudo isso que se inscreve no pensamento de

Montesquieu, se faz presente em Hamilton e Madison, em Sieyès e Constant.

Separar os poderes para evitar o despotismo não será o suficiente, constatará

Montesquieu. É preciso que se arroste a menor possibilidade de atritos entre os

mesmos, como meio de harmonizar e conferir estabilidade e unidade ao governo.

Daí a necessidade de se prever um poder peculiar, cuja função se resumisse a

moderar as disputas entre os demais poderes. Há que se arquitetar um desenho

institucional em que esteja contemplada a existência de um elemento neutro e

imparcial que, por seu distanciamento desapaixonado das questões políticas, se

legitime como instituição moderadora.193 A instância de poder moderadora, de

fato, não suprime a divisão de poderes; ela exerce função de controle sobre os

demais.

Na monarquia inglesa, afirma Montesquieu, a Câmara Alta bem cumpria

esta função; a nobreza encontra-se ali como corpo intermediário a moderar as

paixões populares e evitar o despotismo do rei. A neutralidade e imparcialidade

emanam naturalmente da nobreza pelo fato de ter garantida pela hereditariedade a

condição de usufruir de riquezas e luxo, sem necessitar lançar-se em disputas

fratricidas pelo poder. O bem nascer a fazia moderada por natureza.194 Tanto nos

Estados Unidos, pela inexistência de um corpo de nobres, quanto na França, cuja

revolução se fizera contra a nobreza, impunha-se engendrar mecanismos

moderadores para controlar o poder constituinte da multidão. A contra-revolução

193“Dos três poderes dos quais falamos, o judiciário é, de algum modo, nulo. Restam dois, portanto, e como esses poderes necessitam de um poder regulador para moderá-los, a parte do corpo legislativo, que é composto de nobres, torna-se muito capaz de produzir esse efeito” MONTESQUIEU. O espírito das leis, pp. 169-170. 194 A nobreza modera o poder do monarca: “o poder intermediário mais natural é o da nobreza. Esta, de algum modo, faz parte da essência da monarquia, cuja máxima fundamental é: se não existir um monarca, não existirá nobreza; se não existir nobreza, não existirá monarca. Haverá, contudo, um déspota” Ibidem, pp. 30-31. Ela, ao mesmo tempo, impede o despotismo popular: “o governo aristocrático tem, por si próprio, uma certa força que a democracia não tem. Os nobres formam um corpo que, por sua prerrogativa e interesse particular, reprime o povo.” Ibidem, p. 37.

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francesa será analisada à seu tempo, em tópico próprio. Impõe-se, agora, a

caminhada pelas veredas abertas no processo revolucionário estadunidense.195

Quando Thomas Jefferson redige a Declaração de Independência, o

processo revolucionário democrático americano já emergira com força suficiente

para fundar uma nova sociedade política. Os fatores que convergiram para a

eclosão da independência não podem ser aqui esgotados. No entanto, anterior a

eles, e como seu substrato, pode ser apontada a concepção de liberdade assumida

pelos colonos norte-americanos. Como expõe Negri, a dimensão selvagem da

liberdade americana, calcada no espaço não limitado por fronteiras, irá conferir

características peculiares ao processo constituinte ali desenvolvido.196 A liberdade

que se expressa no espaço não é abstrata, mero enunciado formal; ela se

concretiza efetivamente pela propriedade concebida como apropriação; como

prática de uma massa que pode se difundir em ampla base territorial, produzindo e

desenvolvendo seu trabalho. A possibilidade de apropriação da terra por todos

aproxima a experiência americana à teoria desenvolvida por Harrington em sua

obra Oceana197: formação da comunidade política livre fundada na distribuição da

propriedade. O que seria fruto de uma lei agrária em Harrington, para os

estadunidenses decorre da mera apropriação, do trabalho aposto à terra. Os

sujeitos da política são as massas de livres apropriadores198 e o ideal de liberdade

vincular-se-á diretamente à resistência contra qualquer ato tendente a podá-lo.

Este espírito forjado na liberdade espacial seria posto à prova – e dela sairia

fortalecido - nas Guerras Franco-Indígenas e na resistência à taxação inglesa.

Disto decorria, ainda, que em terras norte-americanas era diminuta a parte

da população em condição de miserabilidade, destino, por exemplo, da maioria da

195A análise sobre a Revolução Americana aqui desenvolvida tem por diretriz a leitura que Antonio Negri faz sobre o tema. Não se trata, por certo, da única análise possível ou válida, no entanto, dela se extraem importantes considerações sobre o papel desenvolvido pela Suprema Corte como instituição engendrada para conter a expansão da democracia. 196 NEGRI, Antonio. O poder constituinte; p.213. 197 “O espaço é a expressão da liberdade. De uma liberdade bem concreta, porém: uma liberdade harringtoniana, fundada na propriedade, na apropriação, na expansão colonizadora. [...] O equilíbrio de poder numa sociedade acompanha sempre o equilíbrio da propriedade da terra.” Ibidem, p.214. 198 Ibidem, p.215.

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população francesa.199 Tal fato levaria Hannah Arendt a afirmar que Revolução

Americana não foi influenciada pela questão social, entendida como a relação

entre riqueza e governo, ou seja, o modo como as formas de governos determinam

a distribuição da riqueza. Em sua perspectiva, os fracassos de revoluções como a

francesa decorreram do fato de a questão social ter sido o motor que impulsionou

seus revolucionários. Em sentido oposto, a Revolução Americana teria sido a

única em que a questão social não se fizera presente, possibilitando a criação de

um espaço político autenticamente livre.200

Negri opõe-se a esta interpretação; ele afirma que a forma original de

compreender a propriedade como apropriação - como derivação do trabalho sobre

a terra - comprova o viés social da Revolução Americana. Expõe o pensador

italiano:

[...] os conservadores da guerra fria usavam como bandeira a afirmação de Tocqueville: “Os Estados Unidos nasceram livres”. Segundo eles, a “revolução política” bastaria para satisfazer homens fortes e decididos a conquistar, com a liberdade, a propriedade; seria suficiente para encher suas barrigas e contemplar seus interesses. Também neste caso é evidente que se trata de pura ideologia. Na verdade, a revolução social é inerente à Revolução Americana, na medida em que constitui sua borda. Ela está compreendida no conceito de revolução política, pois os conceitos de povo soberano e de poder constituinte são delineados no espaço continental, e o conceito de propriedade experimenta uma profunda mutação já que, longe de se apresentar nos termos da jurisprudência inglesa, é definido em termos de apropriação e exaltado como um produto direto do trabalho.201

Não deixa de ser interessante como na própria obra de Hannah Arendt

colhem-se elementos que desmentem a inexistência de uma questão social na

Revolução Americana. Arendt, com precisão, aponta que a questão do trabalho

contínuo excluía automaticamente os trabalhadores da participação política.202

199 “O que realmente estava ausente no cenário americano era antes a miséria e a escassez que a pobreza [...]”. ARENDT, Hannah. Da revolução. Trad. Fernando Dídimo Vieira. Brasília: Ed. UnB, 1988; p.54. 200 Nos Estados Unidos, afirma Arendt, a liberdade não teve que ceder à urgência de por limites a esta condição de penúria das massas, ao passo que na França a revolução alterara seu rumo: desviara da conquista da liberdade para ter, por finalidade, a felicidade do povo, de forma a transmudar os Direitos do Homem nos direitos dos sans-culottes. ARENDT, Hannah. Da revolução, p. 48. De forma diversa do que se passava na França, os trabalhadores americanos “não eram movidos pela necessidade, e a revolução não foi frustrada por eles. O problema que punham não era de ordem social, mas político, e dizia respeito não à ordem sociedade, mas à forma de governo.” Ibidem, pp.54-55. 201 NEGRI, Antonio. O poder constituinte, pp. 227-228. 202 “O ponto em questão era que o ‘trabalho contínuo’ e o desejo de lazer da maioria da população os excluiria automaticamente de participação ativa no governo [...]”. ARENDT, Hannah. Da revolução, p. 55.

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Valendo-se do pensamento de John Adams, Arendt revela que a maldição da

pobreza não se resumia à autopreservação. Uma vez adquirida, minimizando o

abismo que separa ricos e pobres, persistia para o pobre a consciência de que é

alijado de qualquer decisão; um ser que vaga pelo mundo sem ser notado.

Reveladoras as palavras de John Adams, reproduzidas por Arendt:

[o pobre] sente-se alijado, tateando no escuro. A humanidade não toma conhecimento dele, e ele vagueia e perambula despercebido. Em meio a uma multidão, na igreja, no mercado [...] ele está tão na obscuridade como se estivesse num sótão ou num porão. Ele não é nem desaprovado, nem censurado, nem acusado; ele simplesmente não é notado [...] Ser totalmente ignorado e ter consciência disso, é algo intolerável. 203

Arendt é confrontada com a existência de não-contados e, ainda assim,

persiste em ignorar a existência da questão social, ancorando-se no pressuposto de

que a divisão entre quem pode tomar parte no governo ou ser apenas governado

retrata, nos Estados Unidos, uma questão meramente política. O que se passa não

é tão simples: o modo de organizar o mundo revela uma distribuição,

pretensamente natural, das tarefas e lugares na sociedade; a distribuição política

dos papéis de governante e governado está atrelada a uma partilha do sensível que

define a divisão social das atribuições de cada parcela da sociedade. Trata-se de

uma divisão de funções que é política, mas também social e que, ao fim, atribui

apenas a uma parte dos integrantes da comunidade a condição de tomar parte nas

decisões públicas.204 Distribuição social e política de funções encontram-se,

assim, atreladas. A tentativa de fazê-las parecer cindidas resume todo o esforço da

teoria burguesa205 em determinar quais as pessoas legitimadas e os lugares

específicos do fazer político.206

203 ADAMS, John. Discourses on Davila, Works, Boston: 1851, v. 6, p. 239-240 apud ARENDT, Hannah. Da revolução, p. 55. 204 Eis porque, como explicita Negri, a Revolução Francesa não fizera com que o político restasse anulado ou subordinado ao social como quer Arendt: o político constitui o social. Nos Estados Unidos, a liberdade se associa a uma pressuposição de igualdade que se atrela à apropriação. O social insere-se no político como espaço aberto e liberdade da fronteira. NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p.33. 205 Uma necessária ressalva se impõe: com o fim de evitar perplexidades, ao longo do presente tópico será utilizado o termo “teoria burguesa” em lugar de “teoria liberal”. Isto se deve ao fato de que, nos Estados Unidos, a corrente político-partidária denominada de Liberal, de tradição jeffersoniana, vincula-se a projetos mais progressistas e afeitos à democracia, ao passo que, os denominados Republicanos encampam os ideais aristocráticos que marcam a burguesia. 206 Daí Negri expor que Arendt “funda inicialmente o seu raciocínio na força do poder constituinte, e termina por esquecer sua radicalidade; afirma inicialmente as razões da democracia, mas conclui sustentando as do liberalismo.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 32.

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Retorne-se ao evento revolucionário estadunidense. Ao final da Guerra dos

Sete Anos (Guerras Franco-Indígenas) em 1763, o aumento das taxas que recaiam

sobre as colônias americanas para recompor esforços de guerra encerravam com

um período de considerável autonomia perante a metrópole britânica, agora tida

sob a condução de um governo despótico.207 Grupos de cidadãos organizaram-se

promovendo manifestações e boicotes, confrontando a ordem policial inglesa.208

A Convenção reunida contra a Lei do Selo, por exemplo, declarou a ilegalidade

daquela lei sob o argumento de que, sem representação da colônia, o Parlamento

Inglês não possuía legitimidade para tributação. A revolta popular, primeiramente

contra as Leis de Townshend, e posteriormente contra a permanência da taxação

do chá, foi o desfecho de uma série de manifestações populares que se

intensificaram por todo o país. Os agenciamentos entre cidadãos, entretanto, não

se resumiram aos boicotes. Nos primeiros anos revolucionários a atuação extra-

legislativa da multidão, reunida em convenções, representava a emergência de

corpos legislativos independentes das instâncias oficiais. As convenções,

compreendidas pelos estadunidenses como corpos autônomos existentes fora da

autoridade constituída – como ressalta Bercovici – permitiram diante do quadro

de instabilidade institucional oficial instalado após 1770, “a elaboração

constitucional de novos Estados, diferentes e superiores aos legislativos

ordinários.209

207 Após as Guerras Franco-Indígenas a Inglaterra editou uma séria de leis taxando a colônia: a Lei do Açúcar em 1764, que alterava a taxação do melaço, instituía a taxação para importação de bens de luxo, como vinho e seda, e restringia exportação de produtos como pele e couro apenas à própria Inglaterra; a Lei do Selo em 1765, pela qual a todo material impresso – de jornais a documentos – deveria ser apostos selos adquiridos por agentes nomeados pela coroa; as Leis de Townshend, que em 1767 reduzia os impostos territoriais pagos pelos britânicos e aumentava as taxas alfandegárias referente a produtos básicos importados pelos americanos (chá, vidro, papel, tinta e chumbo. DRIVER, Stephanie S. A declaração de independência dos Estados Unidos. Trad. Mariluce Pessoa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, pp. 11-14. 208 Assim é que, enquanto oito das treze colônias enviaram petições respeitos ao rei contra a lei do açúcar, foram realizados boicotes populares aos produtos importados sobre os quais incidiam o imposto. De forma análoga, a reação mais contundente contra a lei do selo emergiu de setores sociais, principalmente de grupos organizados em torno de comerciantes coloniais, conhecidos como Filhos da Liberdade. Em relação às leis Townshend, boicotes eficazes reduziram drasticamente a importação de produtos britânicos. Ibidem, p. 15. 209 “[...] na década de 1770, a crise faz com que as instituições governamentais existentes não servissem mais, restando as convenções como última alternativa para que o povo pudesse se defender na falta de meios ordinários. As convenções foram meios extra-ordinários, instituídas com base na necessidade pública, para a elaboração constitucional dos novos Estados, diferentes e superiores aos legislativos ordinários . BERCOVICI, Gilberto, Soberania e constituição; pp. 122-123.

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A experiência de autogoverno, acima narrada, iria suscitar debates sobre a

possibilidade das convenções adquirirem caráter permanente, tornando-se

instituições que funcionariam em paralelo ao corpo legislativo de representantes: a

continuidade do povo reunido em convenções, possibilidade concreta de processo

constituinte perene. Somada a tais fatos, a organização de milícias populares para

proteger o território conferiu aos colonos crescente sentimento de independência e

constituição de uma comunidade capaz de se governar pela virtú de seus

cidadãos.210 O povo em armas maquiaveliano se impõe aqui com sua força

constituinte211 e não deve ser desprezado como importante fator para que a

Revolução Americana ganhasse tons democráticos e tornasse a independência um

caminho sem retorno, para além do que inicialmente idealizado pela elite norte-

americana.212

A questão da representação efetiva aparece como pano de fundo

revolucionário: se os americanos não se fazem representar no Parlamento, a este

não toca legitimidade para legislar sobre os assuntos da colônia. Essa

pressuposição igualitária é interpretada pela ordem policial britânica como

reclamações infundadas daqueles que não conseguem ter adequada percepção da

realidade. A constituição mista se engendra, responderá a Coroa, sob as bases da

representação virtual, que abrange tanto a massa de ingleses privados de direitos 210 Como expressa Negri, observa-se uma relação contraposta entre instituições espontâneas e governo, entre povo em armas e exército, a representar a ruptura de uma ordem social antiga por um processo revolucionário compreendido como processo de constituição de novas subjetividades. Nas palavras de Negri: “A passagem da resistência à revolução, do associativismo à constituição dos corpos políticos, dos comitia à representação continental, das militiae ao exército, tudo isso se entrecruza num clima político em que as prescrições ideológicas e as pulsões materiais produzem rapidamente resultados irreversíveis e conduzem irresistivelmente a determinações radicalmente inovadoras.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, pp. 218-219. Nunca demais ressaltar, conforme já procedido no primeiro capítulo, a necessidade de se contextualizar o elogio ao “povo em armas”, diante da diversidade de natureza que elas assumem a depender do momento histórico que se analisa. 211A insurreição armada, o povo em armas, aduz Negri, “não é somente uma façanha de organização militar, mas representa, igualmente, o advento de uma nova ordem constitucional. O recrutamento das milícias pelas colônias é um ato de poder constituinte.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 219. 212 Com efeito, a revolução americana inicia-se mais com o intento de recondução do modelo britânico ao que entendiam como sua forma pura de governo misto, conspurcado pelo despotismo da Coroa. Hannah Arendt demonstra que os revolucionários norte-americanos não se moviam sequer com a intenção inicial de separação: “O que julgavam que fosse uma ‘restauração’, o restabelecimento de suas antigas prerrogativas, transformou-se numa revolução, e suas idéias e tórias sobre a Constituição britânica, os direitos dos cidadãos ingleses e as formas de governo colonial, desembocaram numa declaração de independência [...] Benjamin Franklin [...] pôde escrever mais tarde, com toda franqueza: ‘Nunca ouvi, em qualquer conversa com qualquer pessoa, ébria ou sóbria, a menor expressão de um desejo de separação [...]’” ARENDT, Hannah. Da revolução, pp. 35-36.

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políticos, quanto os colonos americanos sem representação efetiva. Não há

escândalo a ser corrigido; a cada parcela já se encontram definidos seus poderes e

limites; a previsão - ainda que virtual - da representação dos colonos revela a

impertinência colonial a ser arrostada, se necessário, pela força militar. Restou

evidente para revolucionários da linhagem de Thomas Paine que a concepção

mista de governo não condizia com o ideal democrático que encontrava substrato

na liberdade americana.213 Os acontecimentos que se agregaram ao longo década

que antecedeu à independência encontrou neste sentimento de liberdade solo fértil

para a emergência do espírito verdadeiramente revolucionário. O impacto que os

escritos de Thomas Paine e Thomas Jefferson causaram na sociedade

estadunidense comprova que o caráter conservador que animou tantos

congressistas coloniais encontrou contraponto na crescente organização das

massas populares americanas como expressão do poder constituinte. Em seu

panfleto Common Sense, de 1776, Thomas Paine defende a independência dos

Estados Unidos e a constituição de um governo republicano democrático, com a

extinção do bicameralismo de corte francamente aristocrático.214 A Constituição

inglesa não deveria ser usada como modelo. A percepção de Paine sobre o caráter

ludibriador do governo misto inglês é primorosa: através deste tipo de governo se

permite que a comunidade seja continuamente submetida ao privilégio de poucos

e, ainda assim, imagine viver sob um governo com poderes repartidos entre rei,

lordes e o povo.215 A democracia, ali, resta subjugada por resquícios da tirania

monárquica e da tirania aristocrática:

The prejudice of Englishmen, in favour of their own government of king, lords, and commons, arises as much or more from national pride than reason. Individuals are undoubtedly safer in England than in some other countries, but the will of the king is as much the law of the land in Britain as in France, with this difference, that instead of proceeding directly from his mouth, it is handed to the people under the

213 BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, p. 120. 214 Ibidem, p. 120. 215“[...] if we will suffer ourselves to examine the component parts of the English constitution, we shall find them to be the base remains of two ancient tyrannies, compounded with some new republican materials. First – The remains of monarchial tyranny in the person of the king. Second – The remains of aristocratical tyranny in the person of the peers.” PAINE, Thomas. Common sense. Nova York: Penguin Books, 1983, pp. 68-69. [… se nos dispusermos a examinar as partes que compõem a constituição inglesa, identificaremos resquícios de duas antigas tiranias, combinadas com alguma matéria republicana. Primeiro – Os resquícios de tirania monárquica, na pessoa do rei. Segundo – Os resquícios da tirania aristocrática na pessoa dos nobres.]; [tradução livre].

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must formidable shape of an act of parliament. For the fate of Charles the First, hath only made kings more subtle – not more just.216

Thomas Jefferson, por sua vez, condensa na Declaração de Independência o

espírito do evento constituinte norte-americano. O documento não reivindica

equiparação aos direitos dos ingleses; trata-se, sim, de fundação de uma sociedade

nova. A liberdade e autonomia não necessitam extrair legitimidade de nenhuma

ordem constituída. Ao contrário, elas inauguram uma sociedade: “o direito

precede a constituição, a autonomia do povo vem antes de sua formalização.” 217

A fundação desta nova ordem política e social ancora-se, assim, apenas em si

própria. Revela-se e declara-se imanente: uma sociedade capaz de auto-regulação

e que tem por princípio a liberdade e a igualdade; governos instituídos entre os

homens para garantir tais princípios, e que retiram seus poderes do consentimento

dos governados; comunidade política fundada e legitimada pela participação

direta de seus integrantes. Os desdobramentos desta jeffersoniana afirmação do

poder constituinte estão expostos na própria Declaração de Independência:

necessidade de participação democrática concreta– jamais virtual – dos cidadãos

na decisão da coisa comum; declaração do direito de resistência e revolução que

se institui como direito de abolir governos arbitrários; ratificação do caráter aberto

do processo constituinte, revelado pelo direito da comunidade organizar o poder

de modo que lhe pareça mais provável de proporcionar segurança e felicidade.218

Negri sintetiza o significado do poder constituinte nesta experiência

revolucionária americana:

216 Ibidem, p. 71. [O julgamento dos ingleses em favor de seu governo de rei, lordes e comuns, deriva do orgulho nacional que da razão. Indubitavelmente os indivíduos estão mais protegidos na Inglaterra que em alguns outros países, mas a vontade do rei, tanto na Inglaterra quanto na França, é a lei da terra, com a diferença que, ao invés de partir diretamente da boca do rei, ela é passada ao povo sob a forma mais temível de uma lei do Parlamento. O destino de Carlos I só tornou os soberanos mais sutis, e não mais justos.]; [tradução livre]. 217 NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 221. 218Vê-se que tais direitos são entendidos como meio de garantir, para além de direitos meramente formais, efetiva construção do bem comum pela participação direta ou consentida dos cidadãos. Assim é, como pontua Negri, que o direito à vida se expressa pela proteção da população contra perigos externos e internos; pelo incentivo a leis de povoamento, à naturalização e colonização; pela ordenada distribuição de terras, dentre outros. O direito à liberdade concretizar-se-ia pela instituição de um poder judiciário livre exercido por júris populares; pelo controle popular da administração pública; pela subordinação do poder militar ao poder civil. O direito à busca da felicidade, por sua vez, restou afirmado de forma positiva, associada ao exercício do comércio, no povoamento do país e na atuação do governo efetivar políticas públicas necessárias ao bem comum. E, por fim, no que toca ao direito ao governo consentido e democrático, garantir a representação popular nas assembléias, reconhecer aos cidadãos, detentores do direito natural de se autogovernar, o direito de se darem as próprias instituições e leis. NEGRI, Antonio. O poder constituinte, pp. 222-223.

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[...] ele se apresenta como capacidade de construção de um espaço totalmente novo, de um espaço redefinido pela política, conquistado pela atividade de fundação da emancipação política, e o faz em termos universais. Jefferson apreende imediatamente a vivacidade do processo desenvolvido entre o Primeiro (1774) e o Segundo (1775) Congresso Continental, através das associações pelo boicote, das experiências difusas de autogoverno, do armamento popular; através das novas experiências de gestão, pela base, das atividades administrativas, jurídicas e econômicas dos Estados, através da reapropriação do poder pelo povo em armas.219

A Declaração de Independência pode ser tida não apenas como síntese do

processo constituinte norte-americano, mas como seu ápice. Após a

independência, a possibilidade das convenções buscarem se tornar instituições

permanentes, funcionando paralelamente ao corpo legislativo representativo,

apresentar-se-á como uma questão concreta.220 Organizados em associações

revolucionárias ou em convenções capitais para o processo constituinte, os

cidadãos iniciaram a contestar – e mesmo desobedecer – leis sobre a propriedade,

em uma sucessão de eventos dentre os quais sobressai a Rebelião de Shays,

deflagrada em 1786 contra a cobrança de dívida de pequenos proprietários e a

conseqüente perda de seus bens.221 As próprias assembléias legislativas atuavam

em desafio aos direitos de propriedade e interesses de credores e, pressionadas

pelas revoltas sociais, passaram a intervir nas relações de propriedade.222 O

conteúdo da missiva enviada pelo general Knox a Washington revela seu

aturdimento ao relatar que encontrara em Massachusetts:

[...] uma “massa entre 12 a 15 mil, desesperados e destituídos de caráter”, mas recrutados “fundamentalmente na parte jovem e ativa da população”, tomados por idéias, estranhas e absurdas, de redistribuição da terra, de “leis agrárias” e até de “propriedade comum”.223

Neste ambiente, a Convenção da Filadélfia foi convocada para frear os

ímpetos de uma democracia tida pela elite americana como o despotismo popular

descrito por Montesquieu224. Buscou-se transladar o poder constituinte da atuação

219Ibidem, p. 225. 220NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 123. 221A revolta de Shays ocorreu em 1786-1787, em Massachusetts, por obra de camponeses pobres e endividados que se rebelaram contra a venda a baixo preço, em leilão, das suas terras e bens, e contra a condenação ao cárcere dos devedores como determinava a legislação americana protetiva do crédito. LOSURSO, Domenico. Democracia ou bonapartismo, p. 96. 222BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, p. 123. 223 LOSURSO, Domenico. Democracia ou bonapartismo, p. 97. 224 Negri descreve o ambiente que antecedeu à promulgação da constituição americana: “[...] as rivalidades entre os Estados, as dificuldades enfrentadas para harmonizar as políticas comerciais e, sobretudo, as revoltas sociais impõem, mais uma vez, a necessidade de ir além dos “Artigos” da Confederação.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 231.

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positiva e dinâmica dos cidadãos para uma estrutura constitucional rígida,

conduzida pelos poderes constituídos dentro de limites definidos para o exercício

da liberdade.225 A Constituição, longe de se mostrar mais um passo do movimento

revolucionário, revelou-se como ato de seu encerramento. Os federalistas se

propuseram a construir o caminho contra-revolucionário. Caberia aos poderes

constituídos, erigidos sobre o sistema de freios e contrapesos, a mediação do

“processo de filtragem, equilíbrio, controle e coordenação dos interesses

sociais”226, produzindo os efeitos de uma constituição mista por meio de um

arranjo institucional novo, diverso da fórmula polibiana:

[...] transformação da constituição mista, de polibiana, em constituição moderna: divisão do exercício da soberania já não está mais condicionada à constituição corporativa e classista da sociedade, mas ao processo formal de sua própria estrutura e de sua própria organização. 227

Como se apresenta estruturado este novo aparato de aprisionamento do

poder constituinte? A primeira consideração a ser feita refere-se à riqueza como

título de dominação que dirige este projeto contra-revolucionário. É o dinheiro,

ressalta Negri, que cumpre as funções de orientação e organização

constitucional.228 Em sentido convergente, Charles Beard ressaltara que a

constituição americana tratou-se de um documento eminentemente econômico,

fundado no ideal “de que o direito de propriedade a antecede e deve ser protegido

das maiorias populares.” 229 A propriedade é exposta como direito natural que

antecede e submete o projeto constituinte contra o ideal revolucionário da

propriedade como apropriação, decorrente do trabalho direto sobre a terra. É

Jefferson, mais uma, que manterá viva a lembrança revolucionária:

[...] nenhum indivíduo tem, de direito natural, uma propriedade separada num acre de terras, por exemplo. Por uma lei universal, de fato, o que quer que seja fixo ou

225 “Se o homo politicus da Revolução insere o social no político, como espaço aberto e liberdade da fronteira, o homo politicus da Constituição está submetido a uma máquina institucional que estabelece limites precisos para a liberdade, de modo a controlar e, ao mesmo tempo, garantir sua expansividade através de uma estrutura jurídica que se apresenta como limite insuperável.” Ibidem, p. 231. 226 NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 233. 227 Ibidem, p. 242. 228 Ibidem, pp. 242-243. 229 Na concepção de Beard, expõe Bercovici, “a constituição de 1787 não foi criada pelo povo, nem pelos Estados, mas por um grupo consolidado de interesses econômicos, que era nacional em seus objetivos.” BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, pp. 132-133.

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móvel pertence a todos os homens igualmente e, em comum, a propriedade é daquele que a ocupa durante um momento.230 [...] Onde existem em qualquer país terras não cultivadas e pobres desempregados, é claro que as leis da propriedade se estendam, de tal forma, a ponto de violarem o direito natural.231 [...] Nenhum direito natural nem razão submete o corpo de um homem a reclusão por dívidas.232

Contra a idéia de leis que pudessem ofender o direito natural à propriedade,

impôs-se uma eficiente estrutura de controle do poder constituinte. É o que se

observará ao longo da construção teórica desenvolvidas nos Artigos Federalistas.

O temor ao facciosismo que permeia toda a obra de James Madison, Alexander

Hamilton e John Jay é uma clara tradução dos riscos que a política traz para um

grupo dominante. O conflito que contrapunha o modelo estabelecido a uma

pressuposição igualitária do direito à propriedade perturba efetivamente a ordem

liberal. O que os federalistas lêem como facciosidade, pode ser lido como política

no sentido que Rancière confere ao termo: poder constituinte em ação no processo

de atualização do principio da igualdade. Esta parece ser a leitura de Jefferson

sobre a Rebelião de Shays, e aqui, Jefferson se distancia dos federalistas para se

ombrear a Maquiavel no elogio à desunião como elemento que confere vitalidade

e estabilidade ao governo. Em missivas ele expõe seus argumentos:

A meu ver, uma pequena rebelião, de quando em vez, é boa medida e tão necessária no mundo político como tempestades no mundo físico [...] A observação desta verdade deve fazer com que os governantes republicanos honestos amenizem as punições contra as rebeliões de sorte a não as desencorajar demais. É um remédio necessário à saúde saudável do governo.233 Livre-nos Deus de passar vinte anos sem tal rebelião (rebelião de Shays) [...] que país poderá preservar sua liberdade se seus governantes não forem advertidos, de tempos em tempos, de que o povo preserva o espírito de resistência? Deixemo-lo levantar-se em armas [...] Deve-se regar a árvore da liberdade, de quando em vez com o sangue de patriotas e tiranos. É sua adubação natural. Nossa convenção ficou demasiada impressionada com a insurreição de Massachusetts e, precipitadamente, está soltando um gavião para amedrontar as aves.234

Um gavião pronto a neutralizar e domar o poder constituinte. O objetivo do

projeto contra-revolucionário se anuncia no número X dos Artigos Federalistas: a

230 Trecho da correspondência que Jefferson encaminha a Isaac MacPherson em 13 de agosto de 1813. JEFFERSON, Thomas. Escritos políticos. Trad. Leônidas Gontijo de Carvalho. São Paulo: Abril cultural , 1979, p. 5. 231 Missiva a James Madison em 28 de outubro de 1785. Ibidem, p. 5. 232 Correspondência a George Hammond, em 29 de maio de 1792. Ibidem, p.6. 233 Carta dirigida a James Madison em 30 de janeiro de 1787. JEFFERSON, Thomas. Escritos políticos, pp. 13-14. 234Carta a Ezra Stiles, em 24 de dezembro de 1786. JEFFERSON, Thomas. Escritos políticos, p. 15.

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primeira finalidade do governo é proteger a diversidade das aptidões humanas,

que está na origem dos direitos de propriedade.235 Contra o pendor facciosista das

massas, impôs-se a substituição do princípio democrático por um princípio

republicano sem povo. Esta nova estrutura institucional se funda no

fortalecimento do federalismo e centralização do poder na União como meio de

controlar os efeitos de um facciosismo que tem a distribuição desigual de

propriedade por principal fonte.236 A União deve concentrar poderes para defender

a propriedade contra facções movidas por ideais igualitários despropositados, ao

tempo que defende as pretensões dos legislativos estaduais de intervir em assuntos

econômicos: “um furor por papel moeda, por uma anulação de dívidas, por uma

divisão igual da propriedade, ou por algum outro projeto impróprio ou perverso,

terá menos condições de impregnar todo o corpo da União que um de seus

membros.”237 Disto decorrerá, ainda, a necessidade de manutenção regular de um

exército permanente pela União, a reduzir a importância das milícias civis e

subverter o projeto constituinte do povo em armas em soberania estatal.238 Esta

soberania dividir-se-á entre os poderes da república que, dotados de

indeterminados poderes implícitos ao texto constitucional, já podem, de cima para

baixo, moldar a feição constitucional norte-americana. No entanto - e a isso

Montesquieu já se referira – os inevitáveis conflitos entre poderes demandam

soluções que não devem passar pelo crivo democrático, prenhe de facciosismo, e

o sistema de controle recíproco de checks and balances se apresentará mais

indicado aos federalistas.239

Resta evidente a total exclusão do cidadão desta máquina de governo, ao

tempo em que a mesma é identificada como único espaço legítimo da política.

Esta captura do poder constituinte procura doutrinar as mentes: fora deste novo

235HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. Os artigos federalistas, 1787-1789: edição integral. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, número X, p. 134. 236“A fonte mais comum e duradoura de facções, porém, tem sido a distribuição diversa e desigual da propriedade.” HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. Os artigos federalistas, número X, p. 135. 237Ibidem, número X, p.139. 238Ibidem; números XXV e XXIX. 239Conforme destaca Charles Beard, o sistema de freios e contrapesos - elemento mais essencial da Constituição americana - se funda na “doutrina de que o poder popular do Governo não pode ser deixado livre, sobretudo no referente a leis afetando o direito de propriedade.” BEARD, Charles A. A suprema corte e a constituição. Trad. Paulo Moreira da Silva. Rio de Janeiro: Forense, 1965; p. 100.

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espaço político há apenas facciosidade, violência e vileza, prontas a serem

arrostadas em prol da tranqüilidade e ordem pública.240 Vê-se erigir um

engenhoso modelo aristocrático, embora se recorra ao povo como fonte

legitimadora da constituição. Isto resta mais evidente pelo modo como se dispõe o

direito ao voto na república norte-americana. Aqui se evidencia claramente como

se cruzam o temor da burguesia pela intervenção política no campo econômico,

pela distribuição de renda e por um sistema eleitoral que, permitindo a

participação popular, pudesse levar à adoção destas medidas.241 Assim, apenas os

deputados são eleitos de forma direta, ao passo que, o acesso ao Senado e à

Presidência decorre de eleições indiretas, e os juízes da Suprema Corte restam

escolhidos por indicação presidencial. Conforme ressalta Losurdo, Tocqueville,

em sua obra Democracia na América, descortina os mecanismos de filtragem dos

interesses populares e propala a vantagem da qualidade sobre a maioria:

Há certas leis cuja natureza é democrática e que, no entanto, conseguem corrigir em parte esses instintos perigosos da democracia. Quando entramos na Câmara de Representantes, em Washington, surpreende-nos o aspecto vulgar daquela grande assembléia. O olhar procura muitas vezes em vão no seu seio um homem célebre. Quase todos os seus membros são figuras obscuras, cujo nome não evoca imagem alguma ao pensamento. São, na sua maior parte, advogados de aldeia, comerciantes, ou mesmo homens pertencentes às últimas classes [...] A dois passos dali, abre-se a sala do Senado, cujo reduzido recinto encerra uma grande parcela das celebridades da América. Dificilmente se percebe um só homem que não recorde à idéia uma ilustração recente [...] Por que a elite da nação acha-se naquela sala e não na outra? [...] No entanto, uma e outra emanam o povo, uma e outra são produtos do sufrágio universal [...] Então, donde vem diferença tão enorme? Para explicá-lo, vejo apenas um fato: a eleição que produz a Câmara de Representantes é direta; aquela da qual emana o Senado é sujeita a dois graus.242

O sistema eleitoral de duplo grau exerce, assim, a necessária função de

filtragem dos interesses das classes populares, sob pena de pretenderem intervir na

esfera econômica e na propriedade privada, em busca de uma igualdade que lhes

envenena o espírito.243 O ideário político dos federalistas trilha o mesmo caminho.

240 Com a constituição, ressalta Losurdo, trata-se de enfatizar não mais a liberdade e a participação, mas a tranqüilidade e a ordem pública. LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo, p. 100. 241 LOSURDO, Domenico. Ibidem, p. 17. 242 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Trad. Neil R. da Silva. Belo Horizonte: Itatiaia, 1962, pp. 155-156. 243 “[...] as instituições democráticas desenvolvem, num grau muito elevado, o sentimento de inveja no coração humano [...] despertam e incentivam a paixão da igualdade [...] Essa igualdade completa foge todos os dias das mãos do povo no momento em que ele acredita poder apoderar-se dela [...] A oportunidade de triunfar o agita, a incerteza do êxito irrita-o; ele agita-se, ele se cansa, ele se desilude.” Ibidem, p. 153. Diante deste quadro Tocqueville apresenta a solução: “[...] vejo

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Losurdo relembra a perspectiva de Madison sobre a questão: “se as eleições

fossem abertas a todas as classes do povo, a propriedade fundiária não seria mais

segura. Logo seria introduzida uma lei agrária.”244 Hamilton, a seu tempo, alerta

para a necessidade de controlar o povo: por ser inconstante e invejoso, está

propenso a atacar a propriedade.245 O acesso por eleição direta apenas à Câmara

dos Representantes parece recomendável: ao tempo em que se evita tornar claro a

diferença entre governo e povo, angariando a simpatia deste último que se

imagina participante decisivo das questões públicas, não oferece riscos mais

contundentes ao regime burguês de propriedade, diante do poder de veto da

Câmara alta.246

A condição de lei suprema que é conferida à Constituição diferenciará

sensivelmente o constitucionalismo americano. Muito se associa este traço ao

aprisionamento do poder constituinte pela constituição. A questão, no entanto, não

reside aí, e sim no procedimento mediante o qual a constituição é elaborada, e os

modos pelos quais é protegida e se abre às necessárias mutações. O projeto

democrático jeffersoniano está a provar que a hierarquia do texto constitucional

sobre o legislativo ordinário pode constituir-se elemento fundamental para

preservar as determinações oriundas do processo constituinte. Não por outro

motivo, o embate entre revolução e contra-revolução em solo estadunidense não

gravitará sobre a topografia que o texto constitucional ocupa; os projetos

divergem quanto à natureza, os meios de proteção e mecanismo de atualização

constitucional.

O que resultará da Convenção de Filadélfia é a concepção de constituição

limitada à sua expressão legal. O político agora faz parte de um glorioso passado,

e só pode ser reeditado como farsa que ousa perturbar a ordem constituída pelos

no duplo grau eleitoral o único meio de pôr o uso da liberdade política ao alcance de todas as classes do povo.” Ibidem, p. 156. 244 LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo, p. 24. 245 Ibidem, p. 24. 246 Charles Beard oferece um panorama do sistema norte-americano arquitetado pelos federalistas: “A exclusão do voto popular direto para eleição do presidente; a criação, também por eleição indireta, de um Senado, destinado, no espírito dos Constituintes, a representar os homens de posse e os interesses conservadores do país; a criação de um Judiciário independente, nomeado pelo presidente com o beneplácito do Senado – todas essas medidas testemunhavam o fato de que o propósito básico da Constituição não era a criação de um governo popular exercido por maiorias parlamentares”. BEARD, Charles A. A suprema corte e a constituição, p. 100.

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Pais Fundadores.247 Em sentido oposto, o projeto jeffersoniano mantém viva a

política ao prever o direito de as futuras gerações, periodicamente, alterarem a

constituição através de convenções constitucionais formadas mediante voto

popular para aquele fim específico.248 Uma abertura institucional expressa para a

manifestação do poder constituinte: a mutatio promovida pela virtú coletiva; a

multidão como criadora e defensora da constituição.249 Para Jeferson, a

Constituição oriunda da Convenção de Filadélfia não apenas não decorrera de

uma verdadeira assembléia constituinte, como também não poderia obrigar as

futuras gerações.250

A forma de mutação da ordem constitucional tornou-se sensível ponto do

debate que opôs Jefferson aos federalistas, e aqui, a Suprema Corte se encaixará

com precisão como última e preciosa peça do aparato de neutralização do poder

constituinte. Para os federalistas a constituição é apenas um texto jurídico, e a

especificação do seu sentido deve logicamente ser atribuída ao tribunal supremo,

com seus juízes indicados pelo Presidente da República. A Suprema Corte é

erigida como guardiã da Constituição, a evitar sua conspurcação, filtrar eventuais

mutações e amortecer inevitáveis conflitos: estes são poderes implícitos a uma

corte que tem por função precípua interpretar o texto jurídico constitucional.251

247 A concepção dos federalistas sobre a necessidade de pôr termo à revolução é expressa por Arendt: “[...] se a fundação era o objetivo e o fim da revolução, então o espírito revolucionário não seria simplesmente o espírito de dar início a alguma coisa nova, mas de principiar algo permanente e duradouro; uma instituição permanente, que englobasse esse espírito e o estimulasse a novos empreendimentos, estaria sentenciando o seu próprio fracasso. Disso, infelizmente, se pode depreender que nada ameaça mais perigosamente e mais profundamente as aquisições da revolução do que o espírito que as suscitou.” ARENDT. Hannah. Da revolução, p. 186. 248 “Jefferson é o líder americano que chegou mais próximo da idéia de revolução permanente, propondo, pelo voto, a realização de uma Second American Revolution.” BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, p. 177. 249Como destaca Bercovici, na democracia jeffersoniana, “a vontade do povo deveria ser reintegrada na constituição. O povo era o elemento vital do republicanismo, o natural defensor da constituição”. Soberania e constituição,, p. 178. 250“A geração atual tem o mesmo direito de autogoverno que a anterior teve para si.” JEFFERSON, Thomas. Escritos políticos, p 26. 251“A interpretação das leis é o domínio próprio e particular dos tribunais. Uma Constituição é de fato uma lei fundamental, e como tal deve ser vista pelos juízes. Cabe a eles, portanto, definir seu significado tanto quanto o significado de qualquer ato particular procedente do corpo legislativo”. HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. Os artigos federalistas, número LXXVIII, p. 481.

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O célebre caso Marbury vs. Madison252, não raro apresentado como

deflagrador do reconhecimento da Suprema Corte como instituição de controle do

legislativo, deve, portanto, ser compreendido neste contexto de intensa disputa

entre o pensamento revolucionário-democrático e a contra-revolução aristocrática

e sua visão icônica de povo. Após a derrota para Jefferson, John Adams, então

presidente candidato à reeleição, conduz John Marshall, seu secretário de Estado,

à Suprema Corte. Marshall é quem conduzirá a corte suprema em franca oposição

ao governo presidencial de Jefferson, contendo seu projeto democrático, como

destaca Bercovici:

A suprema corte de Marshall, a partir de um caso sem grande importância, tenta responder à pretensão de Thomas Jefferson subordinar o poder judiciário ao seu projeto revolucionário. A corte, como afirma Khan, agiu como um ator político em um conflito sobre como se deveria conformar politicamente a sociedade americana. Não era, diretamente, um projeto de fortalecimento político da suprema corte, mas a proposta de substituição da ação política pelo direito do rule of law, suprimindo o conflito político pela sua juridificação. 253

A Contra-Revolução americana cumpria, enfim, seu desiderato. A política

se transformara refém dos poderes constituídos.254 Em meio a este sofisticado

mecanismo de controle do poder constituinte, a Suprema Corte será apresentada

como a instância moderadora dos arroubos democráticos, a conferir estabilidade

ao modelo burguês. Esta condição aparece com clareza ao longo dos artigos

federalistas referentes ao Poder Judiciário. Hamilton aproxima-se do ideal

moderador de Montesquieu ao definir a necessidade de um corpo intermediário

que limite o despotismo legislativo.255 A nobreza que aparece em Montesquieu

como corpo intermediário, necessário a moderar o pendor despótico do monarca e

da câmara de representantes, é aqui substituída pelos tribunais de justiça que,

252Ao fim de seu mandato presidencial, John Adams nomeia William Marbury juiz de paz, mas este não chega a ser empossado por recusa de James Madison, na qualidade de Secretário de Estado do recém eleito Thomas Jefferson, o que deflagrou a célebre disputa judicial. Em sua decisão sobre o caso, John Marshall anuncia que a Suprema Corte possuía como poder implícito às suas atribuições constitucionais, o poder de rever atos provenientes do poder legislativo que não se coadunem com o texto constitucional. 253BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, pp. 178-179. 254Este aspecto deve restar bastante claro, sob pena de se atribuir, erroneamente, a qualquer forma de controle dos atos do executivo e do legislativo pelo judiciário a indevida pecha de usurpação. 255“É muito mais sensato supor que os tribunais foram concebidos para ser um intermediário entre o povo e o legislativo, de modo a, entre outras coisas, manter este último dentro dos limites atribuídos a seu poder.”; HAMILTON, Alexander; JAY, John e MADISON, James. Os artigos federalistas; número LXXVIII, p. 481.

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agora, passam a cumprir o papel de moderar os demais poderes256: o poder

moderador transfere-se da Câmara Alta à Corte Suprema. Se quanto aos efeitos

não subsistem maiores divergências, a retórica de Hamilton procura adequar o

poder moderador norte-americano aos reclames democráticos: os tribunais devem

proteger o povo contra a usurpação do poder constituinte pelo legislativo, diante

da possibilidade de edição de normas em desconformidade como o texto

constitucional. Indo além: os tribunais devem proteger o povo contra si mesmo,

contra violações perpetradas pela maioria via legislativo.257

O caráter contra-majoritário da Suprema Corte, a despeito de sua

importância teórica como mecanismo de defesa de direitos civis das minorias, não

raro, seria utilizado como bloqueio à democracia. Isto nos informa, em primeiro

lugar, que a questão mais sensível se refere à forma como se estrutura a

instituição: não se trata, portanto, de apontar o judicial review como

intrinsecamente pernicioso. Como instrumento que é, está a depender da forma de

uso, esta sim, necessariamente vinculada ao modo de se conceber o arranjo da

instituição que irá manejá-la. A Contra-Revolução norte-americana construíra a

Suprema Corte como última instância a garantir a perenidade de uma constituição

idealizada para bloquear o princípio igualitário da democracia e, ao fazê-lo, valeu-

se do judicial review como instrumento de proteção ao ideário caro à aristocracia

norte-americana. A função moderadora da Suprema Corte garantiria, por estes

meios, a estabilidade da ordem liberal ao longo do século XIX, como explicita

Losurdo:

Deve-se acrescentar que nos Estados Unidos, a Corte Suprema funciona na prática como uma Terceira Câmara chamada a ser “a guardiã da propriedade contra o poder do número”; e é justamente desta forma que ela, no século XIX, obstaculiza

256Ao rebater as críticas de que, na Grã-Bretanha, o poder judiciário pertence, em última instancia, à Câmara Alta (dos Lordes), Hamilton defende a sua substituição pela atuação da Suprema Corte: “Talvez se pense que a força da objeção consiste na organização particular da Corte Suprema proposta: no fato de ser composta de um corpo distinto de magistrados, e não de uma das câmaras do legislativo, como no governo da Grã-Bretanha [...] segundo a interpretação conferida a essa máxima [separação de poderes] ao longo destes artigos, ela não é violada quando se atribui o poder final de julgar a uma parte do corpo legislativo. Mas, ainda que não se trate de uma violação absoluta dessa excelente norma, está tão próxima disso que apenas por isso já seria um modo menos adequado que aquele proposto pela convenção.” Ibidem, número LXXXI, p. 494. 257 HAMILTON, Alexander; JAY, John e MADISON, James. Os artigos federalistas, número LXXVIII, p. 483.

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fortemente o desenvolvimento da democracia, o associativismo sindical, o imposto de renda progressivo, a proibição do trabalho infantil, etc.258

Charles Beard, neste mesmo sentido, resumira com acurada pertinência que

o sistema federal foi basicamente concebido “para oferecer aos direitos

estabelecidos de propriedade a proteção de um Judiciário totalmente independente

do eleitorado.”259 Por mais que os fatos demonstrem o contrário, existirá sempre a

hábil pena de Hamilton a demonstrar aos espíritos mais inquietos que a Suprema

Corte apenas especifica o sentido da lei fundamental, mediante ato de mero

julgamento, que não se confunde com o exercício de vontade expresso pelo

legislativo.260 Não há lógica, portanto, em questionar sobre quem nos guardará do

guardião: “não se pode dar nenhum peso à afirmação de que os tribunais podem, a

pretexto de uma incompatibilidade, substituir as intenções constitucionais do

legislativo por seus próprios desejos.”261

Após esse percurso não restará traço daquele poder judiciário que

Montesquieu definira como um poder nulo, apenas a boca da lei. Conquanto

Hamilton o considere ainda o mais fraco dos poderes, trata-se agora de um poder

que pode influir nas decisões públicas, um poder dotado de capacidade de

“orientação política”.262 Não se trata, à evidência, de uma instituição aberta à

atualização do princípio da igualdade, e sim uma esfera de poder que entende

ilegítima qualquer mutação que se desenvolva fora dos escaninhos do poder

estatal. O aprisionamento do poder constituinte se limita menos ao texto

constitucional, do que à interpretação que a Suprema Corte, guardiã da ordem

contra-revolucionária, lhe reserva, a exemplo do que explicita Negri:

[...] na Constituição dos Estados Unidos, o poder judiciário resolve dinamicamente as ambigüidades que a máquina constitucional evidencia na rigidez que lhe constitui a garantia. Ao atuar como elemento dinâmico de efetivação constitucional, o poder judiciário funda e inova. Atribui-se continuamente uma espécie de poder constituinte que revela a “força política” global da Constituição. [...] O poder judiciário assume e exalta por si mesmo a explicitação de um poder

258 LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo, p. 25. 259 BEARD, Charles A. A suprema corte e a constituição, p. 100. 260 HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. Os artigos federalistas; artigo LXXVIII, p. 482. 261 HAMILTON, Alexander; JAY, John e MADISON, James. Os artigos federalistas, artigo LXXVIII, p. 482. Ou, ainda, conforme o próprio Hamilton: “pode-se observar, finalmente, que o suposto perigo de usurpações da autoridade legislativa pelo judiciário, reiterado em muitas ocasiões, é na realidade um fantasma.” Ibidem, artigo LXXXI, p. 496. 262 NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 255.

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constituinte insuscetível de aprisionamento nas malhas de uma constituição rígida.263

Como conseqüência, o poder constituinte, longe de ganhar um espaço

público de atuação, resta encapsulado no poder judiciário e a Suprema Corte não

apenas se apresenta como único espaço legítimo em que se decide a mutação - ou

a cristalização – constitucional, mas como sujeito que determina sua forma, a

oportunidade e conteúdo. Arendt, sem parecer se dar conta das implicações daí

decorrentes, apresenta a fotografia deste tribunal:

Do ponto de vista institucional é a falta de poder, acrescida da permanência no cargo que, na República americana, a verdadeira sede da autoridade está na Suprema Corte. E essa autoridade é exercida através de uma formulação contínua da Constituição, pois a Suprema Corte é, de fato, nas palavras de Woodrow Wilson, “uma espécie de assembléia constitucional em sessão permanente”.264

O que leva Arendt a aceitar que a Suprema Corte substitua o poder

constituinte na “formulação contínua da Constituição”? Em que se baseia para

transmudar um mero poder constituído em “assembléia constitucional em sessão

permanente”? Arendt fundamenta sua teoria na necessidade de distinguir poder e

autoridade. Em sua perspectiva, os revolucionários norte-americanos souberam

atribuir origens diversas ao poder e à autoridade.265 Esta dicotomia, explicita a

autora, era conhecida dos romanos, que depositavam a autoridade em seu Senado.

Na realidade norte-americana a distinção também se revela: o povo é a fonte do

poder, mas a autoridade é exercida pela Suprema Corte mediante processo de

interpretação de uma constituição escrita, concebida com o objetivo de evitar que

“as normas da decisão da maioria se deteriorassem em ‘despotismo eletivo’ do

governo da maioria.”266. Arendt destaca:

Entre ‘as numerosas inovações introduzidas no cenário americano’ (Madison) talvez a mais importante, e certamente a mais evidente, consistiu numa mudança de localização da autoridade, que passou do Senado romano para o ramo judiciário do governo; mas o que permaneceu próximo ao espírito romano foi a necessidade de estabelecimento de uma instituição concreta que, diferindo nitidamente dos poderes das áreas legislativa e executiva do governo, fosse destinada ao exercício da autoridade [...] Em Roma, a função da autoridade era política, e consistia em oferecer aconselhamento, enquanto que, na República americana, a função da autoridade é legal e se exerce através da interpretação.267

263 Ibidem, pp. 255-256. 264 ARENDT, Hannah. Da revolução, pp. 160-161. 265 ARENDT, Hannah. Da revolução, p. 125. 266 Ibidem, p. 131. 267 Ibidem, pp. 160-161.

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O fundamento exposto por Arendt diz muito sobre a função moderadora da

Suprema Corte. Interessante notar como Carl Schmitt já havia se valido de

semelhante argumento para construir teoria que atribuía ao presidente do Reich a

função de poder neutro. Em sua obra O guardião da constituição a distinção entre

autoridade e poder é essencial para solucionar a posição do chefe de Estado no

âmbito do Estado constitucional parlamentar fundado pela Constituição de

Weimar. Schmitt destaca a presença da diferenciação entre poder e autoridade na

teoria do poder moderador de Benjamin Constant, ressaltando que o pensador

francês faz menção à autoridade do Senado romano como exemplo de exercício

da função moderadora.268 Ressalta, ainda, que a afirmação de Montesquieu no

sentido de que o judiciário apresenta-se como um poder fraco relaciona-se com a

diferenciação entre poder e autoridade, “pois o juiz tem muito mais autoritas do

que potestas”269 Arendt parece concordar com tudo isso.

Na concepção de Schmitt a distinção entre autoridade e poder restou

esquecida na Alemanha pelo fato de que o monarca, na monarquia constitucional

alemã, efetivamente reinava e governava.270 Fato diverso se passaria no Estado

constitucional parlamentar com diferenciação de poderes. Ali o presidente do

Reich deveria exercer um tipo especial de autoridade, função peculiar de terceiro

neutro que não se confunde com atividade contínua executiva e legislativa, mas

apenas como guardiã que só é deflagrada diante de uma emergência.271

A aproximação entre a estrutura argumentativa de Arendt e Schmitt,

conquanto esposem projetos distintos e atribuam a função de autoridade a

instituições diversas, reforça a assertiva de que, à Suprema Corte, restou atribuída

a função de Poder Moderador.272 A partir de então, caberia a esta “assembléia

constitucional em sessão permanente” proceder a uma “formulação contínua da

268 “É de se considerar nesse contexto que Benjamin Constant, em suas exposições sobre o pouvoir neutre, também menciona a auctoritas do senado romano como exemplo.” SCHMITT, Carl. O guardião da constituição. Tradução: Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, pp. 199. 269 SCHMITT, Carl. O guardião da constituição, pp. 199-200. 270 Ibidem, p. 197. 271 “Conforme o direito positivo da Constituição de Weimar, a posição do presidente do Reich, eleito pela totalidade do povo, só pode ser construída com a ajuda de uma teoria mais desenvolvida de um poder neutro, intermediário regulador e preservador”. Ibidem, p. 201. Ao que se integra: “[...] a função peculiar do terceiro neutro não consiste em atividade contínua de comando e regulamentar, mas, primeiramente apenas intermediária, defensora e reguladora, e só é ativa em caso de emergência e, ademais, porque ela não deve concorrer com os outros poderes no sentido de uma expansão do próprio poder [...]” Ibidem, p. 200. 272 A teoria do Schmitt sobre o poder neutro será retomada, ainda, ao longo do próximo ponto.

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Constituição”. Ora, esta mutação contínua que Arendt atribui à Suprema Corte em

nada remonta à criatividade e espontaneidade da mutatio maquiaveliana. Ela

deriva da argumentação de que o tribunal superior, na qualidade de poder neutro,

se apresenta como autoridade mais capacitada para interpretar um abstrato espírito

constituinte e determinar o verdadeiro sentido da lei fundamental; um filtro

imparcial a profetizar a vontade do povo soberano plasmada no texto

constitucional.

Recorrer a tal discurso implica, ainda, apresentar a Suprema Corte como

único espaço no qual os desvios do legislativo e do executivo poderão ser

arrostados legitimamente: uma instituição que torna desnecessário o direito de

resistência; que entende o conflito e a política como perigoso dissenso faccioso.273

Eis o engenho de uma arquitetura institucional que, valendo-se do ideal

moderador, neutraliza o poder constituinte ao tempo em que prega, retoricamente,

sua ardorosa defesa.

O exemplo norte-americano do uso da teoria do poder moderador revela,

assim, traços já contidos na sua proposição por Montesquieu. O receituário de

Montesquieu será repetido pelos contra-revolucionários franceses. O Termidor

procurará, com suas peculiaridades, instituir seu poder moderador. Alteram-se as

formas, instituições e personagens, não os objetivos.

3.2 O Poder Moderador e Contra-Revolução Francesa

Montesquieu atribui à moderação valor indispensável para bem ordenar

tanto a vida pública como a vida privada. Transportada para a organização política

(organização policial como preferiria Rancière) a moderação possui um

significado próprio. Ela se apresenta como fiadora do equilíbrio institucional,

trazendo estabilidade para um governo misto, calcado na separação de poderes. Se

a diferenciação do poder pelas funções de governar, legislar e julgar deve impedir

273 Daí Bercovici afirmar que o direito de resistência restou absorvido e substituído nas estruturas do Estado de direito, consumando o liberalismo, não a democracia. Desta forma, expõe o autor, ao excluir a resistência e a revolução do sistema, o liberalismo privou o direito à revolução de fundamento jurídico. Estando fora do direito, a revolução tornou-se mero fato.” BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, p. 180.

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o arbítrio, a sua divisão entre as parcelas da sociedade – monarca, nobres e povo -

busca impedir o desentendimento e a luta entre classes. Enquanto ao monarca

compete o poder executivo, o poder de legislar deve ser conferido ao povo e à

nobreza. O povo - todos aqueles que não integram a nobreza ou a realeza - deve,

por meio dos seus representantes eleitos para integrar a Câmara Baixa, tomar parte

da elaboração das leis, tendo, entretanto, como contraponto moderador, a

participação da nobreza através da Câmara Alta. Aqui se pode observar

claramente que o modelo de governo misto-moderado, embora pregue a

participação de todas as forças sociais no ato de governar, convive em perfeita

harmonia com seu profundo desprezo pela democracia. Se, parte do povo

encontra-se apta a escolher representantes, ele jamais deve influenciar diretamente

as decisões do governo, face sua inaptidão natural para tanto:

[...] saberá o povo conduzir um negócio, conhecer os lugares, as ocasiões, os momentos, e aproveitá-los? Não, não o saberá [...] Da mesma forma que a maioria dos cidadãos que têm capacidade para eleger, mas não a têm para serem eleitos, assim também o povo, que tem capacidade suficiente para julgar a gestão de outrem, não é, no entanto, capaz de governar por si próprio. É preciso que os negócios se desenvolvam, mas dentro de um certo ritmo, não muito lento nem muito acelerado. Mas o povo sempre tem ou muita ou pouca ação, Às vezes, com cem mil braços, tudo transforma; outras, com cem mil pés, caminha apenas como os insetos.274 A limitada participação de uma parcela menor deste nosso Gregor Samsa275

presta-se, como prestidigitação, a ludibriar os sentidos, fazendo-nos perceber

como igualitária uma partilha desigual do sensível. A preocupação que

Montesquieu revela com o despotismo tampouco tem o condão de, por si só,

tornar democrática uma teoria que tem por pedra de torque a desigualdade política

e social. É na teoria política de Espinosa que o vínculo entre o combate ao

despotismo e a democracia pode ser encontrado. Em seu Tratado Político,

Espinosa sustenta que a participação da plebe nas coisas do governo não deve ser

evitada pela razão de uma suposta inaptidão natural em lidar com as questões

políticas. Espinosa inverte a lógica: por não lhe ser permitido participar das

274 MONTESQUIEU. O espírito das leis, p.25. 275 Nesta desconcertante obra de Franz Kafka em que se constitui A metamorfose, Gregor Samsa amanhece transmudado em um tenebroso inseto. O tratamento que a família lhe dispensa após o sinistro acontecimento, oscila entre a adoração, em sua ausência, e inconfessável mal-estar ante a materialização do vil animal sob suas vistas. Eis o destino do povo - e isso se tornará evidente nos discursos liberais termidorianos – digno de figurar como parcela contável nas mais sofisticadas abstrações teóricas; causador de repulsa ao primeiro sinal de sua concretude como ator político.

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decisões públicas é que a plebe sequer tem a oportunidade de formar idéias

adequadas sobre esta atuação. Nas palavras de Espinosa:

Não é de se admirar, enfim, que para a plebe não haja verdade e que ela não tenha capacidade de juízo, visto que os maiores negócios do Estado são tratados fora dela e que ela não tem qualquer meio de saber de nada, à parte alguns indícios que é impossível dissimular. É coisa rara, com efeito, ser capaz de prorrogar os juízos. Portanto, querer tratar de todos os negócios com desconhecimento dos cidadãos e pedir ao mesmo tempo que estes não estabeleçam sobre eles falsos juízos, que não interpretem erradamente os acontecimentos, é pura loucura.276

A praxis, portanto, faz o homem público. Essas duas formas distintas de se

conceber a relação entre o social e o político voltariam a se confrontar ao longo da

Revolução Francesa. O elogio à desigualdade social que conduz à necessária

desigualdade política em Montesquieu será adaptado pelo discurso liberal sob a

fórmula de uma igualdade meramente formal. Ao seu passo, os sans-culottes

ostentarão uma pressuposição de igualdade material que, ao modo pregado por

Espinosa, permitia o efetivo exercício de seu direito de tomar parte na construção

de uma ordem comum. O abstrato princípio da soberania popular, enunciado

etéreo no discurso burguês dos primeiros anos revolucionários, se corporifica não

mais como ente transcendente, mas como poder constituinte em ação. Interessante

observar como estas duas formas distintas de apreender o real amparam-se, na

alvorada da revolução, em uma mesma teoria. Em torno do pensamento político

de Rousseau gravita a disputa entre burguesia e sans-culottes sobre o significado

da soberania e seus efeitos. Se, na concepção rousseauniana, a soberania é o

exercício da vontade geral277, a chave para a legitimação do poder passa pelo

conteúdo deste conceito. A vontade geral não se limita à soma das vontades

particulares, a que o pensador denomina vontade de todos. Esta, afirma Rousseau,

prioriza apenas o interesse privado; aquela trata do interesse comum278 e se assim

o é, a lei comum deve ser estatuída por todo o povo.279

276 ESPINOSA, Baruch de. Tratado político, p. 337. 277 ROUSSEAU, Jean-Jacques . O contrato social e outros escritos. Trad. Rolando Roque da Silva. São Paulo: Cultrix, 2009, p. 38. 278 Ibidem, p. 41. 279 “[...] quando todo o povo estatui sobre todo o povo, só a si mesmo considera; e se se forma um relação, é de um objeto inteiro sob o ponto de vista ao objeto inteiro sob outro ponto de vista, sem nenhuma divisão do todo. Então a matéria sob a qual estatuímos passa a ser geral, como a vontade que a estatui. A este ato é que eu chamo uma lei [...] As leis não são propriamente senão as condições de associação civil. O povo, submetido às leis, deve ser o autor das mesmas [...]” Ibidem, pp. 48-49.

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A questão se intrinca no momento em Rousseau faz do legislador o

decifrador desta vontade geral, o guia que conduz o povo, essa “turba cega, que

em geral não sabe o que quer, porque raramente conhece o que lhe convém”280 e,

a um só tempo, reafirma que “a soberania não pode ser representada”281,

expressando-se no “povo legitimamente reunido em corpo soberano”282, pois

“onde se encontra o representado deixa de haver o representante”283, de forma que

cabe apenas ao povo o julgamento sobre a pertinência de se manter regido por

determinada constituição.284 Este paradoxo em torno do conceito de vontade geral,

afirmará Negri:

[...] ao mesmo tempo em que permitia a afirmação do poder constituinte [...], negava-a. A vontade geral era um conceito antigo, forjado fora da temporalidade, ou melhor, definido em contraste com a temporalidade. Sua natureza abstrata era indelével. O poder constituinte, submetido à tutela da vontade geral, permanecia prisioneiro de uma essência atemporal.285

No entanto, tal paradoxo permite que o conceito de vontade geral seja posto

em disputa no decorrer da Revolução Francesa, contrapondo o ideal burguês à

concretude igualitária dos sans-culottes. É Negri, mais uma vez, que revela os

termos desta disputa:

Para a burguesia, de um lado, a “vontade geral” é o fundamento abstrato da soberania, que aponta genericamente o povo como sujeito do poder; para os sans-culottes, de outro, a soberania reside diretamente no povo, em sua concretude histórica, não como princípio, mas como prática.286

O que se depreende dessas formas antagônicas é a existência de dois

mundos sensíveis que se chocam. Não há revolucionário que não lance contra o

Ancien Régime a lógica igualitária a fazer tremer as bases da ordem absolutista.

No entanto, quando burgueses e sans-culottes gritam igualdade, esta mesma

palavra é sentida de forma dissensual. Igualdade, liberdade e fraternidade não são

lidas da mesma forma por aqueles que tomam parte da revolução. A disputa

revolucionária é também o embate pelo significado dos ideais revolucionários.

Assim, quando a Declaração de Direitos de 1793 reconhece o direito à

280 Ibidem, p. 49. 281 Ibidem, p. 96. 282 Ibidem, p. 94 283 Ibidem, p. 94. 284 “[...] não há nem pode haver nenhuma espécie de lei fundamental obrigatória para o corpo do povo, nem mesmo o contrato social.” Ibidem, p. 32. 285 NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 287. 286 Ibidem, p.282.

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insurreição como decorrência da soberania popular, esta não é compreendida

pelos sans-culottes como mero um princípio abstrato, e sim como reconhecimento

da democracia como praxis:

O conflito de interpretações tem lugar no debate político e na vida do movimento. Toda a classe política – aqui, girondinos e montanheses [jacobinos] estão alinhados – declara que, se a soberania pertence ao povo, isto se dá enquanto o soberano for uno e indivisível, um ser puramente metafísico, ou seja, expressão da vontade geral. Ao contrário, para os sans-culottes, o soberano nada tinha de metafísico, era de carne e sangue, o próprio povo era quem exercia os seus direitos nas assembléias de suas seções.287

A ruptura com o Antigo Regime abrira a disputa para estabelecer a nova

estrutura que conformaria o Estado. Até então alijada da participação no poder, a

burguesia almeja a tradução de seu poderio econômico em poder político. Trata-se

de transmudar o título sobre o qual se deve fundar a legitimidade de mando: da

honra dos nobres, à riqueza dos burgueses, e de tomar de assalto o poder estatal,

subjugá-lo aos interesses burgueses e mantê-lo disciplinado; fazer a revolução e

alcançar o poder, cristalizando uma nova ordem na qual o Estado sirva aos seus

interesses. As revoluções, no entanto, não costumam seguir roteiros lineares e

previsíveis. Do projeto ao processo há caminhos que, não raro, apontam para

direções opostas. O processo revolucionário, distendido no tempo, permite um

aprofundamento da participação popular além do projetado pela burguesia. A

massa de sans-coulotes não assiste impassível ao processo revolucionário. Neste

novo cenário que se descortina não se resignam a exercer papel coadjuvante. Sua

participação no decorrer da revolução revela algo para além de uma massa

docilizada a ser manobrada pela burguesia288.

O conflito entre as distintas formas pelas quais sans-culottes e burgueses

apreendem o mundo encontra-se impresso nas diferenças entre as Declarações de

Direitos de 1793 e 1795, a indicar as lutas que marcaram a Revolução

Francesa.289 A forma diversa com que tratam as questões da igualdade e do sujeito

287Ibidem, pp. 282-283. Esta forma direta de exercer o poder anunciada como “soberania”, explicita Negri, não é outra coisa senão a expressão do caráter absoluto do poder constituinte. Ibidem, p. 283. 288HOBSBAWN, Eric J.; A revolução francesa. Tradução Maria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996; p. 24. 289Como expõe Negri, se é difícil interpretar a Revolução Francesa do ponto de vista da luta de classes, certo é que, ao longo do seu desenvolvimento, se moldam novos sujeito políticos da luta de classe: burguesia e proletariado, pelo que a luta de classes não é a origem, e sim resultado do processo revolucionário. NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 281. Esta conclusão encontra

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constituinte está a demonstrar este desentendimento. Se na Declaração de

Direitos de 1789 estas questões ainda se encontram em suspenso, à espera da

definição dos embates290, na Declaração de Direitos de 1793 elas se expressam

claramente. A igualdade ali não se apresenta apenas como uma fórmula genérica.

Ao enunciado de que todos os homens são iguais por natureza e diante da lei (art.

III), seguem-se dispositivos que concretizam esta igualdade no campo social.291 A

igualdade política se faz acompanhar da igualdade social. Como ressalta Negri:

O espaço político torna-se espaço social, o poder constituinte identifica o espaço social como terreno de sua operatividade. O conceito de política é subvertido no terreno social [...] A igualdade não é um conceito abstrato, mas um terreno a ser percorrido. O conceito transcendental da vontade geral desmorona e o poder constituinte afirma-se como potência social.292

Em relação à atuação do sujeito do poder constituinte, por sua vez, a

Declaração de Direitos de 1793 contempla o direito de resistência e insurreição

em sua forma positiva, como prática transformadora em decorrência do

respaldo na teoria de Rancière, para quem as classes não preexistem ao embate; elas se formam pelo conflito. RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, p. 32. O que há anteriormente a indicar a cena conflituosa não é apenas a oposição de dois grupos; é “a reunião conflituosa de dois mundos sensíveis”. Idem. O dissenso, p. 374. 290 Negri ressalta que o conceito de igualdade e a possibilidade de fazer acompanhar igualdade política à social ainda não se tornara problemático na Declaração de Direitos de 1789. NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 295. De forma análoga, a questão da subjetividade do poder constituinte, como atividade que se desenvolve no tempo, não é enfrentada por aquela declaração. Ibidem, pp. 299-300. Na perspectiva de Christian Lynch, o alto grau de abstração da constituição de 1789 e a inexistência de um poder moderador que impusesse controle sobre os sentimentos mais radicalmente democráticos, permitiram que a natureza e extensão da soberania fossem questionadas, o que teria levado à continuação da revolução pelos sans-culottes. LYNCH, Christian. O momento monarquiano: o poder moderador e o pensamento político imperial. Tese de doutorado em Ciência Política. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro, 2007, p. 64-65. 291São exemplos destas normas que indicam a concretização da igualdade social, na constituição de 1793: o art. V - “Todos os cidadãos têm igual acesso aos cargos públicos [...]”; o art. XVIII – “Todo homem pode compromissar seus serviços, seu tempo; mas ele não pode vender ou ser vendido; sua pessoa não é uma propriedade alienável. A lei não reconhece qualquer servidão; entre o homem que trabalha e aquele que o emprega, somente pode existir um compromisso de dedicação e de compensação.”; o art. XXI – “A assistência social é uma dívida sagrada. A sociedade deve aos cidadãos desafortunados a garantia de sua subsistência, seja oferecendo-lhes trabalho, seja garantindo meios de sobrevivência aos que não têm como trabalhar.”; o art. XXII – “A instrução é necessidade de todos. A sociedade deve favorecer o progresso da razão pública com todos os meios ao seu dispor e deve colocar a instrução ao alcance de todos os cidadãos.”; o art. XXIII – “A segurança social consiste na ação de todos para garantir a cada um o desfrute e a preservação de seus direitos; esta garantia repousa na soberania nacional.”; o art. XXIX – “Cada cidadão tem o mesmo direito de participar na formulação das leis e na nomeação de seus mandatários ou de seus agentes.”; o art. XXXIV– “O corpo social sofre opressão quando mesmo um de seus membros é oprimido. Cada membro sofre opressão quando o corpo social é oprimido.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 296 292 Ibidem, p. 296.

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desenvolvimento do poder constituinte.293 Este sujeito constituinte, dirá Negri, “é

o sujeito coletivo capaz de se mover no tempo. A sua capacidade constituinte é

contínua.” 294 A declaração de 1793 aponta, assim, para a manutenção do espírito

revolucionário. Estende indefinidamente o tempo de atuação do poder constituinte

da multidão. Faz da desunião uma variável da concórdia; internaliza o conflito

aceitando-o como motor da mutação maquiaveliana.

Para a burguesia, em contraposição, estender no tempo o atuar do poder

constituinte implica em abrir caminho para a insegurança e desestabilização da

ordem policial. O ideal liberal burguês jamais foi constituir uma sociedade

democrática e igualitária295, e sim estabelecer o império do constitucionalismo

que tutelasse liberdades civis e garantias para o desenvolvimento do capital296.

Revelar o caráter da política, abrir espaço ao dissenso com intuito de permitir uma

constante atualização do princípio da igualdade é inaceitável, justamente por

inserir incontáveis variáveis em sua equação, tornando imponderável o cálculo do

futuro, tão caro aos espíritos – e aos negócios - burgueses. Fundamental, portanto,

conter as paixões e domar os ânimos populares; idealizar mecanismos de

moderação de poder para conter a democracia, identificada como convite ao

despotismo.

A reação burguesa viria pela Declaração de Direitos de 1795, com a

derrubada dos jacobinos do poder, após a fase o Terror imposto por Robespierre.

Para burguesia, impunha-se encerrar a Revolução. A contra-revolução burguesa

293 Expressam esses direitos, dentre outros: o art. XXXV – “A resistência à opressão é conseqüência dos demais Direitos do Homem”; o art. XXXV – “Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição do povo e de cada seção do povo é o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres”. Na sua forma positiva, o direito de resistência se expressa pelo art. XXXII – “O direito de apresentar petições aos depositários da autoridade pública não será, sob qualquer circunstância, vedado, suspenso ou limitado; pelo art. XXXIII – “Um povo tem sempre o direito de revisar, de reformar e de alterar sua Constituição. Uma geração não pode sujeitar as gerações futuras às suas leis.” 293Ibidem, pp. 299-300. 294Ibidem, p. 301. 295“Mais especificamente, as exigências do burguês foram delineadas na famosa Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Este documento é um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios da nobreza, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária.” HOBSBAWN, Eric J. A revolução francesa, p. 20. 296A corroborar a tese de Domenico Losurdo, no sentido de que liberalismo e democracia não são co-originárias, Hobsbawn salienta que “uma monarquia constitucional baseada em uma oligarquia possuidora de terras era mais adequada à maioria dos liberais burgueses do que a república democrática [...] de modo geral, o burguês liberal clássico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não era um democrata mas sim um devoto do constitucionalismo. De um Estado secular com liberdade civis e garantias para a empresa privada e de um governo de contribuintes e proprietários.” Ibidem, pp. 20-21.

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traz consigo a experiência – e os traumas - dos primeiros anos revolucionários:

após o Termidor, os liberais não voltariam a se referir à igualdade como princípio

amplamente abstrato, como ocorrera em 1789, momento no qual se abriu o flanco

para que os sans-culottes disputassem o conteúdo de seu significado. Se a

constituição democrática de 1793 deslocara a igualdade abstrata para a concretude

do terreno social, tornando-a igualdade material, a constituição burguesa de 1795

a desloca para o campo da propriedade e a projeta apenas em seu aspecto

formal.297 No que toca ao sujeito constituinte, a Declaração de Direitos de 1795

transmuda a dinâmica constituinte contemplada em 1793, em obrigações aos quais

as massas devem se submeter. O que está implícito ali é o retorno das massas à

condição de animais ruidosos. Seres de inferior patamar capazes apenas de

compreender ordens, o que, por fim, legitimará sua exclusão do processo eleitoral.

Nesta concepção excludente, não é mais a desunião que traz a boa ordem, e sim a

obediência.298 É tempo de encerrar a revolução, obstruir o tempo contínuo de

atuação do poder constituinte da multidão e consolidar o projeto liberal.

Eis o mais sensível embate ideológico desde então: desnudar a política,

tornando evidente - e desejável - a desunião, ou travesti-la de ordem policial,

edificada para naturalizar a dominação burguesa legitimada pelo título de riqueza.

A política, como bem pontua Rancière, aparece como um desvio no jogo normal

da dominação que se revela como transição de um princípio de dominação a

outro. Uma naturalidade que, modificando-se apenas na forma de dominação e

não no conteúdo – que é a própria dominação – pretende-se dinâmica, quando, no

fundo, revela uma estática de não-liberdade. O que se vivenciava era a passagem

da lógica de dominação nobiliárquica - fundada no poder da diferença no

297 Nas palavras de Negri: “se a igualdade é afirmada, [...] se a segurança é reafirmada como ‘resultado do concurso de todos para assegurar os direitos de cada um’(art. IV); se a inalienabilidade da pessoa é novamente garantida (art. XV), a ordem da igualdade e da segurança é depois reconduzida à norma da propriedade.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 297. A proteção à propriedade ganha destaque neste texto constitucional: art. V – A propriedade é o direito de gozar e dispor de seus bens, de suas rendas, do fruto de seu trabalho e da sua operosidade e art. VIII – O cultivo das terras, toda a produção, todo o meio de trabalho e toda a ordem social repousam sobre a preservação das propriedades. 298 Assim, a Declaração de Direitos de 1795 determina que o cidadão não pode se insurgir, resistir ou transformar : art. III – “As obrigações de cada um para com a sociedade consistem em defendê-la, servi-la, viver sob a lei e respeitar seus agentes”; art. V – “Não se pode ser um homem de bem sem cumprir honesta e religiosamente a lei”; art. VI – “Aquele que viola abertamente a lei declara-se em estado de guerra com a sociedade”; art. VII – “Aquele que, sem transgredir abertamente a lei, contorna-a mediante ardil ou artifício, fere os interesses de todos; ele se torna indigno da benevolência e da estima alheia”

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nascimento – para a lógica de dominação burguesa - fundada no poder indiferente

da riqueza.299

A política rompe com este percurso natural, vez que se apóia na ausência de

qualquer fundamento de dominação. Não há título para governar. Ela não apenas

indica a reciprocidade entre as posições de governantes e governados, como se

abre para reconfigurações dos sensíveis comuns. Restam evidente os riscos que o

elogio à desunião, como deflagrador da política, traz para os projetos da

burguesia. E por isso lhe é tão caro recorrer, contra-revolucionariamente, ao

modelo do governo misto e moderado. Se não há erro na contagem, não há porque

se recolocar em questão a partilha já dada do sensível. Assim, todas as possíveis

cenas de conflito não devem ser tidas por situações em que o proletariado discuta

e argumente; trata-se apenas de manifestações ruidosas de uma massa animalizada

que se move premida por instintos. Rancière apresenta, assim, a tentativa liberal

de ocultar a política:

Na franqueza antiga que ainda subsiste nos “liberais” do século XIX, ela se exprime assim: há apenas chefes e subordinados, pessoas de bem e pessoas de nada, elites e multidões, peritos e ignorantes. Nos eufemismos contemporâneos, a proposta enuncia-se de maneira diferente: há apenas partes da sociedade: maiorias e minorias sociais, categorias sócio-profissionais, grupos de interesses, comunidades etc. Há apenas partes, das quais devemos fazer parceiros. Mas, tanto nas formas policiadas das sociedades contratuais e do governo de concertação, como nas formas brutais da afirmação igualitária, a proposta fundamental permanece a mesma: não há parcela dos sem-parcela. Só há as parcelas das partes. Em outras palavras: não há política ou não deveria haver.300

Nesta perspectiva, a aproximação dos liberais ao pensamento de

Montesquieu apresenta-se coerente. É em Benjamin Constant - revolucionário que

procurou moldar o aparato institucional francês à feição liberal - que a influência

de Montesquieu se fará marcante. É certo que o ideal moderador já se fizera

presente desde o início da Revolução Francesa301. Ademais, no Ano III da

299 E este é o sentido de igualdade para a burguesia. A riqueza deve ser indiferente ao bem nascer dos nobres. No entanto, àqueles que por méritos a detêm, cabe a condução dos rumos nacionais. 300 RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, p. 29. Daí porque, como já mencionado no capítulo anterior, Rancière ressalta que a guerra dos pobres e dos ricos é a guerra sobre a própria existência da política. Ibidem, p. 29. 301 Como demonstra Lynch, nos primeiros anos da Revolução Francesa já se esboçara o conceito de Poder Moderador que se prestasse a controlar o que os liberais entendiam como excessos do modelo republicano. As propostas apresentadas tinham em comum a adoção do governo misto como mecanismo de moderação, tendo sido todas rechaçadas, inclusive por Sieyès, aferrado que se mantinha, até então, à concepção unitária da soberania nacional a ser exercida pela Assembléia legislativa. LYNCH, Christian. O momento monarquiano, p. 63.

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Revolução Sieyès não apenas deixa de se opor ao ideal moderador – do qual se

afastava inicialmente pela fidelidade à concepção unitária da soberania nacional a

ser exercida pela Assembléia de representantes – como propõe a criação de um

jury contitucionnaire com função de controlar eventuais mudanças na

constituição.302 O mesmo Sieyès, que em 1789 não admitia a constituição inglesa

como modelo para França, se aproxima de Montesquieu ao propor um equilíbrio

de poderes em que uma instância moderadora pudesse conservar a ordem

liberal.303 A mutatio transfere-se, assim, do poder constituinte a um poder

constituído e, neste tormentoso percurso, perde seu caráter inovador, empalidecida

e deturpada para ser submetida a uma função conservadora. A proposta de Sieyès

restou derrotada, não o sentimento moderador. Este permaneceria como núcleo da

teoria política de Benjamin Constant atravessando o Termidor, o bonapartismo e a

restauração monárquica. O ideal do poder moderador ressurgiria como aparato

institucional pronto para controlar eventuais arroubos democráticos ao estilo da

temida Constituição de 1793.

Marcantemente influenciado por Montesquieu, Constant identifica a

soberania ilimitada como sinônimo de despotismo a ser combatido. A crítica

dirigida a Rousseau refere-se à extensão por ele conferida ao princípio da vontade

geral, pois, dirá Constant, se Rousseau acerta ao condicionar a legitimidade da

autoridade ao princípio da vontade geral, equivoca-se ao atribuir-lhe caráter tão

extenso que a possibilite dispor soberanamente dos direitos individuais dos

cidadãos.304 Insurge-se Constant:

Pelo contrário, há uma parte da existência humana que, necessariamente, permanece individual e independente e que, por direito, transcende a jurisdição política. A soberania só existe numa forma limitada e relativa. A jurisdição dessa soberania pára onde começa a existência individual e independente. Se a sociedade

302 Esta instância moderadora de controle, segundo Sieyès, deveria pronunciar-se sobre eventuais violações à Constituição, anulando-as; seria, ainda, espaço para decidir sobre as mutações no texto constitucional, bem como, prestar-se-ia a suprir lacunas das leis positivas. SIEYÈS, Emmanuel. Escritos e discursos de la revolución. Trad. Ramon Maiz. Centro de estudios constitucionales; pp. 277 e 291-293. 303A alteração de rota de Sieyès revela, para Negri, o desvio conceitual da burguesia como conseqüência da concepção de poder constituinte da multidão que se expressa em 1793. Negri, Antonio. O poder constituinte, p. 315. Neste momento, afirma Lynch, Sieyès abandona parte de suas posições republicanas para abraçar posturas liberais. LYNCH, Christian. O momento monarquiano, p. 67. 304CONSTANT, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos (1810). Trad. Joubert de Oliveira Brízida. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, p. 81.

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ultrapassa essa fronteira, torna-se tão culpada de tirania quanto o déspota que só se mantém no poder à custa da espada assassina.305

O que Constant pretende limitar, portanto, não é tanto o abstrato conceito de

vontade geral de Rousseau. O que torna insuportável para o controle liberal é a

inscrição de igualdade operada pela concretude do processo constituinte,

decorrente da forma peculiar pela qual os sans-culottes desatam a dúbia fórmula

rousseauniana da soberania popular.306 Orientado pela necessidade de limitar o

poder constituinte da multidão, tirana das liberdades civis, o pensamento político

de Benjamin Constant erige-se tendo por pilares: representatividade mediante

voto censitário; não intervenção do Estado na gestão dos assuntos privados;

divisão de poderes e criação de uma instância de poder, cuja neutralidade a

legitimasse a amortecer os conflitos entre os demais poderes, garantindo

estabilidade do Estado liberal.

Em célebre artigo sobre o tema, Constant pontua que concepção de

liberdade dos modernos se opõe à dos antigos. Enquanto o homem antigo a

identificava na participação direta nos assuntos públicos307, o indivíduo moderno

a entendia como livre exercício de direitos individuais, a possibilitar uma gestão

da vida privada sem a ingerência estatal.308 A economia baseada na guerra e na

escravidão, permitira aos antigos tomar parte nos negócios da polis intensamente.

Isto já não era mais possível - nem quisto - pelos modernos. Seu tempo é voltado

para si próprio, suas realizações e negócios. Assim, se os antigos exerciam

diretamente seus direitos políticos, os modernos deveriam fazê-lo pela via indireta

305 Ibidem, pp. 81-82. 306O que se torna mais evidente na edição de 1814 dos Princípio Políticos: “existe [...] uma parte da vida humana que é, por natureza, individual e independente, e fica à margem de toda a disputa social.” CONSTAT, Benjamin. Princípios políticos constitucionais: princípios políticos aplicáveis a todos os governos representativos e particularmente à Constituição atual da França (1814). Trad. Mário do Céu Carvalho. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1989, p. 63. 307A liberdade dos antigos consistia, assim, em “exercer coletiva, mas diretamente, várias partes da soberania inteira, em deliberar na praça pública sobre a guerra e a paz, em concluir com os estrangeiros tratados de aliança, em votar as leis, em pronunciar julgamentos, em examinar as contas, os atos, a gestão dos magistrados [...]” CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à liberdade dos modernos. Trad. Loura Silveira. In: Filosofia Política; L± p. 11. 308 A liberdade dos modernos, sustenta Constant, consiste “em não se submeter senão às leis [...] no direito de que cada indivíduo de dizer sua opinião; de escolher seu trabalho e de exercê-lo; de dispor de sua propriedade, até de abusar dela; de ir e vir sem precisar de permissão e sem ter que prestar contas de seus motivos e de seus passos. É para cada um o direito de reunir-se a outros indivíduos, seja para discutir sobre seus interesses, seja para professar o culto que ele e seus associados preferirem, seja simplesmente para preencher seus dias e suas horas de maneira mais condizente com suas inclinações, com suas fantasias.” Ibidem, p. 10.

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da representação.309 Ao homem moderno, espírito emancipado pela independência

que lhe impinge a prática comercial, autocentrado em seus empreendimentos e em

sua vida privada, não sobra tempo para participar diuturnamente das deliberações

públicas, de sorte que o governo representativo lhe é interessante e útil. Útil

porque, ao tempo que possibilita participação indireta do cidadão na vida política,

o libera para cuidar de seus interesses privados; interessante porque evita a

participação direta da multidão no tomar parte do governo.

A adesão ao regime representativo, no entanto, traz embutida em si o risco

da eventual influência que as massas possam exercer nos sufrágios.310 Deve-se,

portanto, controlar a escolha dos representantes, sob pena de se viver sob a égide

de uma legislação social igualitária, negação da liberdade individual tão cara a

Constant. A solução reside em aplicar o sufrágio censitário, impedindo o acesso

da classe trabalhadora ao voto. Tal qual Montesquieu, Constant entende que o

trabalhador vulgar não é talhado para a coisa pública. Obrigados que estão a

dispensar todo o tempo no labor, não dispõe de momentos de ócio para informar-

se e alcançar um julgamento adequado sobre o bem comum:

Aqueles a quem a indigência mantém numa eterna dependência e condena a trabalhos diários, não têm maior informação que as crianças sobre os assuntos públicos [...] É preciso pois, além do nascimento e da idade legal, um terceiro requisito: o tempo livre indispensável para informar-se a atingir a retidão de julgamento. Somente a propriedade assegura o ócio necessário à capacitação do homem para o exercício dos direitos políticos.311

Não deixa de ser auspicioso que o povo-inseto de Montesquieu seja, aqui,

ao menos, reconduzido à sua forma humana! A par da diferença do estilo retórico,

tudo se resume a fazer parecer natural a distribuição dos papéis e lugares que cada

parcela da sociedade deve ocupar na ordem liberal. O elogio de Constant à classe

trabalhadora - patriota como qualquer outra, dirá312 – prepara o terreno para

ocultar os proletários como a parcela dos sem-parcela, como os não-contados no

tomar parte do governo, por não possuírem o título de propriedade que legitima a

dominação. Qual a parte que cabe ao proletariado nessa partilha liberal do

sensível? Apenas o trabalho; somente através dele poder-se-á alcançar ao título de

Ibidem, pp. 10-11. 310LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo, p. 16. 311CONSTANT, Benjamin. Princípios políticos constitucionais (1814), p. 118. 312“Não quero cometer nenhuma injustiça contra a classe trabalhadora. É tão patriota como qualquer outra e amiúde realiza os mais heróicos sacrifícios.” Ibidem, p. 118.

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proprietário.313 O artesão a que se referira Platão, impossibilitado pelo trabalho de

participar nas decisões da polis, revive em Constant. O que se passa é uma

distribuição perfeita das ocupações e lugares que cada parcela possui na

sociedade. Aos burgueses cabe gerar e fazer circular a riqueza; aos representantes,

eleitos por voto censitário, elaborar leis que protejam os cidadãos da ingerência

indevida do Estado em suas vidas privadas; e à massa de populares, emprestar

heroicamente sua força física ao labor. A divisão do trabalho presta-se, portanto, a

excluir o proletariado de todo o espaço político comum:

[...] o princípio de uma sociedade bem organizada é que cada um faça apenas uma coisa só, aquela à qual sua “natureza” o destina. Em certo sentido, isso diz tudo: a idéia do trabalho não é a de uma atividade determinada ou a de um processo de transformação material. É a idéia de uma partilha do sensível: uma impossibilidade de fazer “outra coisa”, fundada na “ausência de tempo”. Essa “impossibilidade” faz parte da concepção incorporada da comunidade. Ela coloca o trabalho como encarceramento do trabalhador no espaço-tempo privado de sua ocupação, sua exclusão da participação do comum.314 Associado à representatividade censitária, impunha-se adotar a separação de

poderes como meio de evitar o arbítrio de uma assembléia de representantes

outrora compreendida como depositária da soberania nacional. A concentração de

poder, para Constant, é a porta aberta para o despotismo. No entanto – e isso já

havia aprendido com Montesquieu - a mera separação de poderes não evitaria, por

si só, que um poder pudesse tentar sobrepujar o outro, causando desequilíbrio.

Não é demais ressaltar que Benjamin Constant elabora as linhas mestras do seu

conceito de poder moderador à época do Termidor, momento contra-

revolucionário em que teóricos liberais, como Sieyès, se dedicaram a engenhar

um arranjo institucional para neutralizar novas manifestações do poder

constituinte. Era preciso preservar a ordem liberal, colocando a salvo a

constituição de 1795, o que explica ter Constant denominado inicialmente o poder

moderador como poder preservador ou neutro. A preocupação dos liberais

transitava mais uma vez, e sempre, entre os riscos de uma assembléia legislativa

influenciada pelas paixões populares e um executivo que porventura se inclinasse 313“Lembremo-nos de que logicamente a intenção dos não proprietários é adquirir propriedade, empregando todos os meios para esse fim. Se à liberdade de propriedade e de indústria a que têm direito os não-proprietários, acrescentarem-se os direitos políticos, a que não devem ter direitos, eles servirão infalivelmente para distribuir a propriedade em mãos de maior número. Os não-proprietários começarão a utilizar esse caminho espúrio em vez de seguir o cominho normal: o trabalho. Esse procedimento os corromperá e será uma fonte de desordens para o Estado.” Ibidem, p. 119. 314 RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível, p. 64.

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para a tirania.315 Os choques e embates inevitáveis entre estes poderes deveriam

ser amortecidos por um poder que sobre eles pairasse; um poder que se colocasse

acima dos demais, com intuito de preservar a estabilidade da ordem constitucional

ao proceder ao controle político sobre o exercício das funções legislativa e

executiva.

Diante de tais desafios, a instância moderadora deveria ser dotada de valores

nobilíssimos. Em primeiro plano, o poder moderador deveria ser neutro e

imparcial, distanciada do plano das paixões de que se alimentam muitas vezes os

embates entre grupos e poderes divergentes. O poder moderador apresentar-se-ia

como expressão maior da neutralidade do Estado; ele não se intromete nas

questões políticas que gravitam na órbita legítima de atuação dos demais poderes,

atuando apenas quando se faz necessário pôr freios à tendência de um poder

ultrapassar os limites de suas atribuições. É o poder legitimado a preservar ou

restaurar a ordem constituída; que guarda a constituição dos excessos apaixonados

dos demais poderes. Tendo a função de resolver os confrontos entre poderes, não

toca ao poder neutro um sistema rígido de regras ao qual esteja vinculado. Ele

possui discricionariedade para, uma vez posto diante de uma situação de crise

institucional, recompor a paz e a estabilidade da ordem constitucional valendo-se

dos meios que julgar adequado.316 Eis o motivo pelo qual, embora a função de

arbitrar disputas com neutralidade e imparcialidade aproxime o poder moderador

da atuação dos juízes, não pode recair sobre um tribunal tarefa que demanda um

atuar discricionário tão atípico à função jurisdicional.317 Neste ponto, Constant

marca distinção em relação ao pensamento de Sieyès, para quem o poder

moderador deveria ser exercido por um tribunal, o júri constitucional.318

315Bercovici ressalta a forma dos liberais compreenderam o momento: “O objetivo do constitucionalismo deveria ser colocar em ação as estruturas do governo representativo e impedir o retorno da tirania ou da guerra civil”. BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, p. 185. 316 Como ressalta Lynch ao afirmar o controle político do poder moderador em Constant: “[...] quem dizia política dizia poder discricionário; daí que, para eliminar os conflitos privados e restabelecer a paz, esta nova instituição precisasse dispor de alguns recursos próprios do estado de exceção – ainda que restritos a certos e determinados casos”. LYNCH, Christian. O momento monarquiano, p. 75. 317 Ibidem, p. 76. 318 Lynch destaca a distinção da natureza do controle de constitucionalidade em Sieyès e Constant. Enquanto Sieyès propunha um controle jurisdicional da constitucionalidade, Constant sustentava que o conflito entre poderes demandava um controle político-estrutural de constitucionalidade. Ibidem, p. 74.

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Em face dos atributos que lhe distingue e da função de controle que lhe é

atribuída, o poder moderador revela-se, na perspectiva de Constant, a instituição

mais adequada para filtrar e compreender a vontade geral que emana de um

abstrato princípio da soberania popular e se expressa por meio da constituição.319

E assim o é, pois o poder moderador funciona como centro para o qual converge a

soberania320, dando-lhe a visibilidade que a separação de poderes e o regime

representativo fizera ocultar. Esta importante característica – cuja análise será

retomada adiante - ficará mais clara na obra em que Constant procura adequar sua

teoria à monarquia constitucional, contemplada na Constituição de 1814, como

expressão da restauração dos Bourbon ao trono francês, após a derrocada

bonapartista. Esta adaptação não se mostra incoerente com o cerne da teoria de

Constant: preservar o Estado liberal. Como o pensador liberal já deixara claro,

seus escritos referiam-se a princípios aplicáveis a todas as formas de governo.

Importa menos se o governo é republicano ou monárquico, desde que ele

contemple o modelo liberal como norteador de suas ações.321

Conquanto não expresso no texto constitucional da Restauração, Constant

sustenta que dele se depreende que o monarca exerce o poder moderador. Ao

estabelecer as responsabilidades dos ministros e a irresponsabilidade do monarca,

ter-se-ia constituído o poder real como poder neutro e o poder dos ministérios

como um poder ativo. Esta distinção, dirá Constant, constitui-se “a chave de toda

a organização política”.322 O poder neutro cabe, nesta estrutura, ao monarca: “um

ser à parte” que se posiciona acima das divergências privadas323, imparcial e

desinteressado, rezando apenas pela conservação da ordem e da liberdade.324 Para

319 Ibidem, p. 76. 320 O poder moderador consistia, assim, no aparato institucional próprio a representar a unidade do poder nacional num plano superior. Ibidem, p. 68. 321 Conforme expõe Lynch, transcrevendo citação de Stephen Holmes: “[...] Constant sempre insistiu que os liberais deveriam ajustar-se de modo flexível ao regime existente a fim de explorar as oportunidades disponíveis para as reformas [...]. ”. LYNCH, Christian, Moderação e divisão de poderes no liberalismo clássico: as origens do poder moderador. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1999, p. 86; citação extraída de HOLMES, Stephen. Benjamin Constant and the making of modern liberalism. New York: Yale University Press, 1984, p. 23. 322 CONSTANT, Benjamin. Princípios políticos constitucionais (1814), p. 74. 323 “O poder real precisa estar situado acima dos fatos, e que, sob certo aspecto, seja neutro, a fim de que sua ação se estenda a todos os pontos que se necessite e o faça com um critério preservador, reparador, não hostil.” Ibidem, p. 74. Em relação aos demais poderes, o poder real deve se portar como “autoridade ao mesmo tempo superior e intermediária, interessado em manter o equilíbrio, e com a máxima preocupação de conservá-lo”. Ibidem, p. 75. 324 Ibidem, p. 77.

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manter sua imparcialidade, no entanto, o monarca não pode cumular o exercício

do poder neutro com o do poder executivo, sob pena de, deixando de ser neutro,

se tornar “uma espécie de ministro temido porque une à inviolabilidade que possui

atribuições que nunca deveria possuir.”325

Por fim, impõe-se retornar ao tema da soberania tornada visível na figura do

poder moderador. Constant constrói sua teoria pregando a pulverização dos

poderes e atribuições como forma de conter, ou mesmo arrostar, os riscos da

soberania como unidade de poder tendente ao despotismo. Como se explica esta

reviravolta justamente no encaixe da última peça de seu engenho institucional? O

paradoxo é apenas aparente. A questão mais uma vez nos conduz às hostes da

transcendência como mecanismo de controle policial. A soberania, como

princípio abstrato, não é o alvo de Constant. Isto se evidencia pelo alçar do

monarca a uma condição superior, transcendente. O poder neutro - este ente

superior dotado de valores quase divinos de imparcialidade e neutralidade; ser

pacificador, que paira indiferente às disputas políticas’; legítimo intérprete da

vontade geral e guardião do espírito constitucional - é a expressão de uma

soberania evidentemente transcendente. O ataque que Constant lança é de outra

ordem: não é anti-soberanista; é voltado contra o poder constituinte, ou melhor,

contra a torção que os sans-culottes procederam na soberania popular

rousseauniana, deslocando-a de uma abstração infértil para o plano da imanência;

é contra a inscrição igualitária do poder constituinte da multidão na materialidade

histórica que Constant erige sua teoria conservadora. O arranjo institucional de

que se vale para tanto - partindo da separação dos poderes, passando pelo governo

representativo limitado pelo sufrágio censitário, e coroando seu percurso com a

mediação transcendente do poder moderador – presta-se a ocultar e neutralizar a

política, entendida como dinâmica de desunião e mutação.

Um último, mas valioso ponto deve ser abordado. A concentração da

soberania que faz do monarca a chave de toda a organização política (policial)

levou Carl Schmitt, teórico antiliberal e profundo admirador de Hobbes, não só a

elogiar, como a valer-se da teoria do poder neutro para legitimar a figura de seu

soberano que, pairando sobre a sociedade alemã, detivesse o poder de representar

325 Ibidem, p. 87.

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sua essência, legitimando-o, em momentos de exceção, a decidir politicamente.

Assim como Constant, Schmitt não vislumbra que os tribunais possam bem

decidir os impasses sobre os conflitos constitucionais, devendo, tal atribuição, ser

entregue a um órgão em uma relação de coordenação com os demais poderes.326 É

certo que Schmitt critica a neutralidade que o liberalismo imputa ao ordenamento

legal. Vê-se, assim, que o “neutro” atravessa sua teoria como crítica por um lado e

elemento legitimador por outro. O que poderia parecer paradoxal revela-se

perfeitamente coerente no contexto do pensamento schmittiano. O que Schmitt

não admite é a imputação de soberania ao texto constitucional como meio a

proteger os princípios burgueses da atuação de forças políticas. Inconcebível, para

ele, o depósito da soberania em abstrações tal qual fizera Guizot ao mencionar a

soberania da razão, justiça e outros valores abstratos327. A neutralização da

política promovida pela incapacidade de decisão do parlamento liberal diante de

casos emergenciais estaria a demonstrar a necessidade de se atribuir autoridade

decisória a uma outra instância institucional. Conforme visto no item antecedente,

esta instância revestia-se de características próprias a que Constant atribuíra ao

poder moderador: um terceiro neutro que só atuaria em caso de emergência e sem

concorrer com os demais poderes. O soberano em Schmitt, aquele que decide

sobre a exceção e na exceção328, sorve, portanto, sua legitimidade de uma espécie

própria de neutralidade. O soberano detém a capacidade de filtrar e encarnar a

vontade homogênea do povo como unidade social; ele transcendente à sua figura

pessoal, decorrendo daí seu caráter neutro muito próximo ao que Constant atribui

ao exercente do poder moderador.

326 Sustenta Schmitt: “[...] é conseqüente em um Estado de direito, onde há diferenciação dos poderes, não confiar isto, suplementarmente, a nenhum dos poderes existentes, pois senão obteria apenas o sobrepeso perante os demais e poderia ele próprio se esquivar do controle. Ele tornar-se-ia, por meio disso, senhor da Constituição. Destarte, é necessário colocar um poder especial neutro ao lado dos outros poderes, relacionando-o e equilibrando-o com eles por intermédio de poderes específicos.” SCHMITT, Carl. O guardião da constituição, p. 193. Ele ressalta o caráter indispensável do poder neutro no sistema do Estado de direito com diferenciação de poderes, pois, ele é “como já sabia Benjamin Constant, mesmo que essa parte de sua teoria tenha passado despercebida, um pouvoir préservateur, ‘um poder preservador’”. Ibidem, p. 200. 327Hermann Heller atribui a Schmitt a regeneração do dogma da soberania mediante a reintegração de um sujeito de vontade capaz de ser seu titular, em contraposição a uma vontade geral expressa pela norma jurídica, pela qual não se pode ser identificada como sujeito da soberania. HELLER. Hermann. La soberania: contribución a la teoría del derecho estatal y del derecho internacional. Tradução Mario de la Cueva; México D.F.: Universidad Nacional Autónoma de México, 1995, p.153. 328 SCHMITT, Carl. Political theology: four chapters on the concept of sovereignty. Chicago and London: University of Chicago Press, pp. 5 e 7.

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O estudo mais detido sobre a teoria de Schmitt não é objeto deste trabalho.

Convém, assim, apenas tangenciar o pensamento schmittiano. A breve exposição

do uso da teoria do poder neutro em seu pensamento antiliberal presta-se para

realçar que as questões que rondam o poder moderador não se restringem apenas

ao modelo liberal. O seu uso por liberais e antiliberais autoritários revela o

fundamental ponto de interseção entre dois antagônicos modelos: ambos se

erigem, ao seu modo, em contraposição aos ideais democráticos.

Imprescindível ao presente estudo revela-se traçar sucintas aproximações

entre o uso da teoria do poder moderador nas experiências norte-americana e

francesa. Em ambos os eventos, o poder moderador é apresentado como poder

erigido para neutralizar os riscos que o ideal igualitário da democracia representa

para a ordem de dominação constituída, ao tempo em que faz parecer que todas as

parcelas da sociedade podem ser ouvidas igualitariamente; um poder que detém

atributos que lhe confere sensibilidade para filtrar o espírito constituinte e traçar

os rumos da constituição. O que importa é ocultar o caráter litigioso da política,

inscrito na tradição maquiaveliana; tornar escandalosa a revolução permanente,

associando-a a um estado de natureza hobbesiano, relegando ao esquecimento sua

possibilidade pela construção de instituições permeáveis aos arrombamentos que a

lógica igualitária deve provocar na ordem policial. Se existe fundamento em

associar democracia, política e revolução - como se pretendeu demonstrar no

primeiro capítulo -, não constitui exagero afirmar que o poder moderador - e seus

efeitos - associa-se ao ideal de contra-revolução que emergiu como reação às

revoluções americana e francesa.

3.3 O Poder Moderador no Brasil

De saída, convém tornar explícito que o objetivo do estudo sobre a

influência da teoria do poder moderador no Brasil não se constitui em exaurir as

nuances históricas que permeiam o tema. Trata-se apenas de identificar, em

diversos momentos e eventos que se desenrolaram ao longo de quase dois séculos

de independência, a presença do poder neutro como inspiração para construção da

estrutura institucional do país, e os contornos próprios que ele adquiriu no Brasil.

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Neste particular, a referência constante ao poder moderador na construção da

ordem policial nos aponta para o seu enraizamento na cultura política brasileira.

Um segundo alerta se faz necessário: por óbvio que o Brasil, neste percurso,

encontrava-se inserido na ordem mundial, sofrendo seus influxos e reagindo

diante de um cenário complexo o que tornaria simplificador ler os acontecimentos

apenas pela lente de uma teoria. Não é o caso, portanto, de apresentar o poder

moderador como causa dos acontecimentos; o sentido é inverso, em meio ao

complexo de variáveis que contribuem para a sucessão dos acontecimentos, trata-

se de identificar se – e como – a teoria do poder moderador se insere neste

processo mais amplo.

A inserção do Brasil na ordem mundial mercantilista se deu na condição de

grande empresa comercial montada pela metrópole para explorar recursos

naturais329, cujo poder policial e administrativo encontrava-se concentrado em

Lisboa. Fiel a este propósito a economia da colônia, proibida a industrialização

em suas terras, voltava-se exclusivamente para a transferência de riquezas

mediante a monocultura e extração mineral. O desenvolvimento histórico

brasileiro, portanto, se distingue do medieval pelo qual o centro de poder na

Europa experimentou um deslocamento do feudo para os burgos, e os conceitos

de povo e nação conformaram os Estados europeus. Isto, todavia, não implica

afirmar que o Brasil esteve imune aos ideais burgueses que sacudiram a velha

ordem absolutista e estabeleceram o liberalismo como ordem vigente na passagem

do século XVIII para o século XIX. Caio Prado Júnior destaca esta influência e o

seu papel retórico:

Ainda há finalmente mais um setor em que a política brasileira se liga ao momento internacional. É o da ideologia que se adota aqui, e que servirá para explicar, justificar e emprestar aos nossos fatos o calor das emoções humanas; tal é sempre o

329 Segundo Caio Prado Jr, no processo de colonização brasileira o colono europeu ocupa lugar de dirigente e grande proprietário rural, sem contribuir com seu trabalho físico para o negócio: este colono “viria como dirigente da produção de gêneros de grande valor comercial, como empresário de um negócio rendoso, mas só a contragosto como trabalhador. Outros trabalhariam para ele.” PRADO JR, Caio. A formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense, 2008; pp. 28-29. A condição de grande empresa rural, na perspectiva do autor, distingue o processo de colonização nas colônias tropicais Brasil: “No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução histórica dos trópicos americanos”. PRADO JR, Caio. A formação do Brasil contemporâneo, p. 31.

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papel das ideologias, que os homens raramente dispensam, e que em nosso caso, não sabendo ou não podendo forjá-las nós mesmos, fomos buscar no grande e prestigioso arsenal do pensamento europeu.330

Importa analisar, como ressalta Florestan Fernandes, o padrão absorvido no

Brasil como projeto de civilização e as condições peculiares sobre as quais se

desenvolveu:

Esse padrão, pelo menos depois da Independência, envolve ideais bem definidos de assimilação e de aperfeiçoamento interno constante das formas econômicas, sociais e políticas de organização da vida, imperantes no chamado “mundo ocidental moderno”.331

A recepção dos ideais liberais no Brasil não se deu, no entanto, como marca

de ruptura do regime anterior, mesmo porque a Independência fora conduzida pela

mesma casa que regia o sistema colonial. Esta peculiaridade produz efeitos

concretos no processo de desenvolvimento do Brasil: enquanto nas nações em que

as elites burguesas se impuseram politicamente sobre as elites do antigo regime

observa-se a consolidação da burguesia como classe dominante que resistia às

pressões das classes trabalhadoras mediante o recurso de “conservar-mudando”332,

no Brasil, em sentido oposto, a influência do pensamento liberal convive com a

manutenção da ordem sócio-econômica oriunda do período colonial, calcada na

escravidão e na atividade agro-exportadora.333 A explicação desta conjunção entre

330Ibidem p. 373. 331FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1976; p. 17. 332CARVALHO, Maria Alice Rezende de; e VIANNA, Luiz Werneck. República e Civilização Brasileira. In: Estudos de Sociologia. Vol. 5, nº 8, 2000, p. 7-33, p. 15. Conservar-mudando, ao feitio do ensinamento que Tancredi Falconeri profere a seu tio, príncipe Dom. Fabrizio, justificando sua adesão aos revolucionários, assim escrito por Lampedusa: “- Estás louco, meu filho! Meter-se com aquela gente [...] um Falconeri deve estar conosco, ao lado do rei. Os olhos voltaram sorrir. - Do lado do rei, com certeza, mas de que rei? [...] Se nós não estivermos lá, eles fazem uma república. Se queremos que tudo fique como está é preciso que tudo mude. Expliquei-me bem?” LAMPEDUSA, Giuseppe Tomasi di. O Leopardo. Trad. Rui Cabeçadas. São Paulo: Difusão Européia de Livros, 1960, p. 33. 333CARVALHO, Maria Alice Rezende de; e VIANNA, Luiz Werneck. República e Civilização Brasileira, p. 22. A respeito do tema, Christian Lynch ressalta que, no “momento de transição do Antigo Regime para o governo constitucional representativo” brasileiro “aqueles que com mais afinco mais defendiam o liberalismo estavam comprometidos com o latifúndio e a escravidão.” LYNCH, Christian C. O momento monarquiano, p. 119. Anote-se, ainda, como referência a este compromisso liberal com a ordem escravocrata e o latifúndio, o pensamento do Padre Alencar, parlamentar constituinte de 1823. Conforme relato de José Honório Rodrigues: “[...] outro ex-revolucionário, Padre Alencar, declara que não podemos fazer cidadãos brasileiros a todos os habitantes do Brasil, porque deste modo ofenderíamos a lei da salvação do Estado. ‘É esta lei que nos inibe de fazer cidadãos aos escravos, porque além de serem propriedades de outros, e de se ofender por isso este direito se os tirássemos do patrimônio dos indivíduos a que pertencem,

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liberalismo e latifúndio no Brasil é expressa por Raymundo Faoro, ao esboçar o

cenário econômico dos anos que antecederam à Independência:

Sob a pressão da conjuntura adversa o fazendeiro sentirá o que em outros tempos, nos tempos prósperos, não percebera: o fiscalismo, a tirania, o entrave do governo à atividade econômica. Mal-estar associado com as idéias francesas do liberalismo nascente, únicas idéias então disponíveis para colorir a revolta [...] Liberalismo, na verdade, menos doutrinário do que justificador: os ricos e poderosos fazendeiros cuidam em diminuir o poder do rei e dos capitães-generais apenas para aumentar o próprio, numa nova partilha de governo, sem generalizar às classes pobres a participação política334

A convivência entre estruturas do regime colonial e a nova ordem nascida

com a Independência se refletiria, igualmente, no campo da organização policial.

Esta interseção apresentaria seu momento mais tenso no embate travado no

âmbito da Assembléia Constituinte de 1823, opondo os interesses do Imperador

aos dos liberais. Ali se pode observar que representantes da elite rural e da elite

burocrática travaram disputa pelo poder central, conquanto tal embate não tenha

reproduzido qualquer ameaça de mudanças significativas no quadro social e

econômico.335 Tratou-se da disputa pelo poder central, o controle do Estado e o

direcionamento de seus recursos, o que, por fim, culminou com a dissolução da

Assembléia Constituinte pelo Imperador. Pela Constituição de 1824, outorgada

por D. Pedro I, transpôs-se para o Brasil a teoria do poder real – ou poder neutro -

de Benjamin Constant, adaptando-a às necessidades do Imperador seguir

conduzindo os rumos políticos nacionais sem interferência de outros centros de

poder.336 Se a Constant era caro possibilitar a adaptação do modelo liberal a

amorteceríamos a agricultura, um dos principais mananciais de riquezas da nação, e abriríamos um foco de desordens na sociedade, introduzindo um bando de homens que, saídos do cativeiro, mal poderiam guiar-se por princípios de bem entendida liberdade’. Não podia haver princípios mais ordeiros e conservadores que estes que Alencar defendia: a propriedade, a economia escravocrata, a liberdade bem entendida.” RODRIGUES, José Honório. A assembléia constituinte de 1823. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 131. 334FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 2001, p. 281-283. Não se está, com isso, a querer insinuar que o liberalismo francês era marcado por uma preocupação com as classes pobres, mas, tão somente, que neste caso houve efetiva mudança de na estrutura social e econômica, conforme será tratado adiante. 335Ao tecer comentários sobre a Constituinte de 1823 José Honório Rodrigues é categórico: “[a Assembléia Constituinte] não pretendia, pela grande maioria de seus constituintes, mudar basicamente a estrutura econômica e social. Havia muito mais o propósito de continuidade que o de mudança [...] a verdade é que a resistência à mudança foi muito forte; e na Assembléia, que reunia a elite de duas classes, isto é, a dos senhores rurais com os grandes latifundiários e fazendeiros, e a média e superior urbana, pouco se pôde fazer no sentido social, ou reformista-econômico.” RODRIGUES, José Honório. A assembléia constituinte de 1823, p. 159. 336Christian Lynch ressalta que durante a Constituinte foram apresentadas três concepções sobre o conceito de Poder Moderador: “primeiro, o Poder Moderador transmitia a imagem de um governante suprapartidário, desinteressado e acima da política; segundo, a de um poder de

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qualquer forma de governo – no que se empenhou após a Restauração francesa –,

sua teoria prestou enorme favor a um Imperador que precisava desenhar uma

estrutura de poder concentrada em suas mãos.

Na França, a Restauração monárquica encontrara uma nova estrutura social,

econômica e política solidificada pela Contra-Revolução burguesa que tornava

impossível o retorno ao absolutismo. Ali a monarquia cumpriu o roteiro traçado

pelo liberalismo. No Brasil, além de prestar-se ao ideal originário de manter a

massa popular afastada das decisões públicas, a teoria do poder moderador, em

função das especificidades brasileiras, sequer foi utilizada como mecanismo a

contribuir com a formação de um Estado liberal nos moldes desenvolvidos na

Europa. Conquanto o liberalismo não tenha causado impacto profundo na ordem

sócio-econômica brasileira, conforme pontuado por Florestan Fernandes, seus

ideais influenciaram na separação dos planos de organização do poder, inclusive

com a adoção do princípio da representação, que não contava com a preferência

da ordem senhorial baseada no interesse da grande lavoura.337 Para o domínio

senhorial, afirma o autor, mais interessante se revelava uma monarquia forte,

absolutista, a impedir qualquer possibilidade de mudança no modelo econômico

baseado no trabalho escravo e na monocultura latifundiária. A convivência entre

estas duas mentalidades produz uma estrutura policial-administrativa em que

representação e separação de poderes se curvam perante o Poder Moderador,

exercido pelo Imperador. Como expõe Florestan:

Embora o princípio de representação (por causa dos efeitos da concentração do poder ao nível estamental, regulada constitucionalmente), o poder executivo e o poder moderador fossem convergentes [...] é de presumir-se que o referido princípio não teria encontrado acolhida tão favorável sem a difusão e o entusiasmo suscitados pelas “idéias liberais.”338

exceção a serviço do sistema constitucional; terceiro, a figura de um avalista ou artífice da centralização políticoadministrativa.” LYNCH, Christian C. O momento monarquiano, p. 126. No entanto, as três perspectivas admitem o Poder Moderador como poder transcendente que impõe concentração de poder na figura do Imperador. Nas palavras do próprio autor: “Em todos os três casos, o Poder Moderador era apresentado como o instituto constitucional que asseguraria à Coroa o poder de preservar no Império o interesse público, entendido como imparcialidade, equilíbrio institucional ou interesse nacional, contra o interesse particular representado, respectivamente, pelo político ordinário, movido por paixões e apetites; pelas facções partidárias, instaladas na assembléia; e, enfim, pelas províncias, com suas oligarquias bairristas e sua tendência ao centrifuguismo.” Ibidem, p. 126. 337FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil, p. 37. 338Ibidem, p. 38.

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Se é correto, portanto, afirmar que os princípios de representação e da

separação de poderes se anunciam como influência do liberalismo no Brasil, não

menos verdade que a concentração de poder constitucionalmente engendrada,

tendo o Poder Moderador como eixo, conferia ao monarca brasileiro ampla

liberdade de atuação.

No desenrolar do Império observou-se no Brasil a “superposição entre um

critério liberal - presente na constituição da Câmara dos Deputados – e uma

perspectiva hobbesiana, que fez do príncipe o criador da nação”.339 Este peculiar

arranjo é o retrato do pensamento defendido na Constituinte de 1823 pela corrente

liderada por Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, no sentido de que a monarquia e

o imperador preexistiam à Constituinte e à própria independência.340 Por ela se

expressa a concepção de que democracia e liberdade se contrapõem, dando

prevalência a esta em detrimento daquela num estilo, destaca Faoro, “teórico e

prático que a restauração de Luís XVIII impusera às monarquias velhas.”341 A

influência da Restauração francesa restou evidenciada no arranjo institucional da

Carta de 1824. Como pontua Faoro a respeito desta estrutura de poder:

O esquema procurará manter a igualdade sem a democracia, o liberalismo fora da soberania popular. Linha doutrinária que flui de Montesquieu, passa por Sieyès e se define em Benjamin Constant, não por acaso o pai do Poder Moderador da Carta de 1824. A soberania – se de soberania se trata – será a nacional, que pressupõe um complexo de grupos e tradições, de comunidades e de continuidade histórica, e não a popular, que cria e abate os reis. A liberdade perseguida se torna realidade não na partilha do poder entre os cidadãos autônomos, mas na segurança dos direitos individuais e políticos, garantidos pelas instituições.342

A existência da Câmara de Deputados não ameniza a concentração de

poderes na figura do imperador. Nos ditames da Carta de 1824, o monarca não

apenas indica os membros vitalícios do Senado, como lhe é permitido dissolver a

Câmara de Deputados, possibilitando a composição de parlamentos alinhados.343

O caráter contra-majoritário deste sistema é pontuado por Faoro:

339LESSA, Renato. A invenção republicana: Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira República brasileira. São Paulo: Vértice, 1988; p. 44. 340FAORO, Raymundo. Os donos do poder, pp. 320-321. 341Ibidem, p. 321. 342Ibidem, p. 321. 343É o que se extrai dos comandos dos artigos 40, 43 e 101, da Constituição de 1824. Art. 40. O Senado é composto de Membros vitalícios, e será organizado por eleição Provincial. Art. 43. As eleições serão feitas pela mesma maneira, que as dos Deputados, mas em listas triplices, sobre as quaes o Imperador escolherá o terço na totalidade da lista.

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Acenando com um mecanismo de absorção dos atritos entre os poderes legislativo e executivo – o Poder Moderador – [o imperador] situa no Senado a barreira de defesa do despotismo das maiorias parlamentares. Adverte contra os que “julgar ver nesta segunda câmara um asilo da aristocracia, porque ignoram que o perfeito sistema constitucional consiste na fusão da monarquia, da aristocracia e da democracia.” Em águas do liberalismo, a monarquia se refugia, ao estilo europeu pós-napoleônico, na Câmara dos pares e, com a originalidade do texto constitucional, no Poder Moderador. O poder minoritário, concentrado na aristocracia em construção e na alta burocracia, vigia, disciplina e educa o poder majoritário, numa reformulação brandamente absolutista da realidade monárquica.344

Nesta composição de forças, o poder do imperador realça diante do desenho

institucional conferido ao Poder Moderador. Diversamente do proposto pela teoria

de Benjamin Constant, a Constituição de 1824 estipula expressamente a reunião

dos poderes Executivo e Moderador na figura do Imperador.345 Raymundo Faoro

aponta para esta distorção:

O pouvoir royal do escritor francês [Constant], o pouvoir neutre evocado para ajustar os três poderes clássicos, colocando-os na sua órbita constitucional, a clef de toute organisation politique, assume, na tradução infiel, caráter ativo. Em lugar da contenção dos demais poderes, alheio às suas atribuições específicas [...] o Poder Moderador, apropriado pelo chefe do poder executivo, comanda a administração e a política. A distinção entre monarquia constitucional e monarquia absolutista se esgarça.346

Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador: I. Nomeando os Senadores, na fórma do Art. 43; ...... V. Prorogando, ou adiando a Assembléa Geral, e dissolvendo a Camara dos Deputados, nos casos, em que o exigir a salvação do Estado; convocando immediatamente outra, que a substitua. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao24.htm>. Acesso em: 22 fev. 2010. 344FAORO, Raymundo. Os donos do poder, pp. 332-333. 345 Como se extraí do cotejo entre os artigos 98 e 102 da Constituição de 1824: Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos. Art. 102. O Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao24.htm>. Acesso em 22 fev. 2010. 346FAORO, Raymundo. Os donos do poder, 2001, p. 333. Em sentido oposto, entendendo que não houve distorções no processo de recepção da teoria de Constant, manifesta-se Lynch: “É curioso, porém, que a quase unanimidade da historiografia brasileira ainda partilhe da opinião de que a recepção do Poder Moderador desfigurou a doutrina de Constant num sentido absolutista (CUNHA, 1985:256; BONAVIDES e ANDRADE, 1991:96; FAUSTO, 1999:152; FAORO, 1997:290). De acordo com esses autores, a Constituição teria atribuído ao monarca o exercício do Executivo e do Moderador, quando a intenção de Constant seria a de separá-los para consagrar o parlamentarismo. [...] A verdade, portanto, é que o Imperador e seus conselheiros de Estado lograram operar uma transposição jurídica bastante fiel das competências concedidas por Benjamin Constant ao seu poder neutro, sendo de todo infundada a crença generalizada de que ela teria desfigurado sua doutrina num sentido autoritário.” LYNCH, Christian. O discurso monarquiano, pp. 137-140. No entanto, é o próprio autor que, em outra passagem da mesma obra,

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Procurou-se erigir o sistema brasileiro nos moldes do governo misto, no

qual se distribuiria o direito de tomar parte no governo entre monarca, aristocratas

e o povo, através de instituições que lhes correspondia: a Coroa, o Senado

vitalício e a Câmara composta por representantes eleitos por voto censitário. No

entanto, na prática cotidiana, o detentor do Poder Moderador é quem encarna a

soberania nacional, ele se constitui o centro em volta do qual gravita a vida

político-institucional do país, o elemento que confere unidade ao sistema. Ao

longo do período imperial coube ao monarca, teoricamente neutro e imparcial,

irresponsável por seus atos, desenhar, de cima para baixo, a estrutura institucional

do país. Escudado pelo “papel nominal de árbitro das disputas e dissensões”347,

ressalta Faoro, “em lugar de conter os demais poderes, preservando harmonia e

equilíbrio, o Poder Moderador assume caráter ativo e comanda a administração e a

política.”348 Assim restou claro a Frei Caneca com tamanha força, que o levou a

identificar no Poder Moderador a mão que esmaga a nação brasileira,

constituindo-se um dos motivos pelo qual se manifestou contrário à aceitação da

Constituição outorgada pelo imperador:

O poder moderador de nova invenção maquiavélica é a chave mestra da opressão da nação brasileira e o garrote mais forte da liberdade dos povos. Por ele, o Imperador pode dissolver a câmara dos deputados, que é a representante do povo, ficando sempre no gozo de seus direitos o senado, que é representante dos apaniguados do Imperador. Esta monstruosa desigualdade das duas Câmaras, além de se opor de frente ao sistema constitucional, que deve chegar o mais possível à igualdade civil, dá ao imperador, que já tem de sua parte o Senado, o poder de mudar a seu bel-prazer os deputados que ele entender que se opõem aos seus interesses pessoais e fazer escolher outros de sua facção, ficando o povo indefeso nos atentados do imperador contra seus direitos, e realmente escravo, debaixo porém das formas da lei, que é o cúmulo da desgraça [...]

349

Distintamente do ocorrido na França e nos Estados Unidos, o Poder

Moderador não se prestou, no Brasil, à proteção de uma ordem genuinamente

liberal-burguesa que eventualmente se consolidava. Como visto - e aqui se

demonstra que a referência ao uso do Poder Moderador na teoria Schmitt não foi

denuncia o intuito do uso distorcido da teoria do poder moderador para conferir-lhe efeito contrário ao pretendido por Constant: “Embora Constant afastasse o monarca do governo para atribuir-lhe o papel exclusivo de árbitro do sistema, as salvaguardas por ele requeridas para que ele pudesse exercê-lo continham argumentos valiosos para que os governistas brasileiros delas lançassem mão com o fito contrário: o de preservar a inteireza das prerrogativas imperiais frente às pretensões da assembléia de monopolizar a representação da soberania.” Ibidem, p. 21. 347FAORO, Raymundo. Os donos do poder, 2001, p.332. 348FAORO, Raymundo. Os donos do poder, p. 333. 349CANECA, Frei Joaquim do Amor Divino. Voto sobre o juramento do projeto de constituição oferecido por D. Pedro I in Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Coleção Formadores do Brasil. Organização Evaldo Cabral de Mello. São Paulo: editora 34, 2001, p. 561.

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de todo inútil - a idéia de poder neutro não se associa necessariamente ao ideal

liberal. O Império brasileiro, longe de se instituir como modelo antiliberal,

também não tinha o liberalismo como ordem materialmente vigente, ainda que sua

influência se fizesse presente com as peculiaridades aqui apresentadas.350

Impõe-se, assim, para os fins a que este trabalho se propõe, identificar de

que forma a contenção da democracia, que inspira a idealização do Poder

Moderador em Montesquieu, perpassa a experiência brasileira, aproximando-a,

neste objetivo central, das Contra-Revoluções americana e francesa. Em todas

estas experiências o sistema eleitoral – seja por voto censitário ou indireto –

aparece como primeiro filtro da participação popular. No Brasil, entretanto, o

Poder Moderador não opera apenas como soldado reserva a neutralizar a rebeldia

de um poder legislativo eventualmente aberto às demandas igualitárias; ele não se

resume a um segundo filtro a ser acionado caso o sistema eleitoral dirigido não

cumprisse sua tarefa. O Poder Moderador, no Império, determina, pelo alto, a

própria composição dos demais poderes. Ele detém o poder de interferir

decisivamente na seleção dos parlamentares, invertendo a lógica do princípio da

representação mediante um arranjo institucional marcado, como salienta Renato

Lessa, pelo paradoxo da representação e pela verticalização da ordem política.351

O paradoxo da representação, destaca o autor, pode ser expresso pelo sorites

anunciado pelo senador Nabuco de Araújo, pelo qual “o Imperador escolhe o

governo e este invariavelmente faz das eleições um ritual para obtenção de apoio

majoritário.”352 Eis o caráter paradoxal: o governo não é a expressão da maioria

parlamentar; o imperador, no exercício do Poder Moderador, estabelece qual será

a maioria antes mesmo das eleições. 353 Conforme aduz Lessa, o regime imperial

350 A menção a Schmitt não é despropositada. Com efeito, o conteúdo da Carta de 1824 permitia a atuação do Imperador muito mais próxima à teoria que Schmitt desenvolveria anos após, do que propriamente à teoria de Constant que prestara-se como inspiração. 351LESSA, Renato. A invenção republicana, p. 33. 352Ibidem, p. 34. Ainda sobre a crítica de Nabuco de Araújo ao sistema representativo brasileiro, Faoro reproduz trecho do discurso do senador: “Ora, dizei-me; não é isto uma farsa? Não é isto um verdadeiro absolutismo, no estado em que se acham as eleições no nosso país? Vede este sorites fatal, este sorites que acaba com a existência do sistema representativo – o Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios, esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-las; esta eleição faz a maioria. Eis aí está o sistema representativo do nosso país.” FAORO, Raymundo. Os donos do poder, p. 410. 353 O receio oligárquico da inclusão do demos no processo de decisão do bem comum ao longo do Império é , assim, retrata por Lessa: “Eram arriscadas eleições ‘verdadeiras’ sem o atributo corretivo do Poder Moderador e este, por sua vez, inviabilizava o sonho por um sistema

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brasileiro subverteu as regras do parlamentarismo clássico, pois “as maiorias

eram, na verdade, expressões da orientação do Poder Executivo, instalado por

iniciativa do Poder Moderador”.354 Recordando a constatação de Faoro o poder

minoritário vigiava, disciplinava e educava o poder majoritário. O caráter contra-

majoritário do Poder Moderador, na linhagem de Montesquieu e Constant,

perpassa, assim, não apenas os eventos contra-revolucionários na França e

Estados Unidos. No Brasil, não se trata apenas de conduzir as eleições, e sim

torná-las irrelevantes. Sintomático que D. Pedro II a elas se refira como uma

calamidade que, sob pena arrastar o governo para o facciosismo, deve ter seu

resultado moldado pelo Poder Moderador.355 Lessa sintetiza com precisão esse

sentimento moralizador: “O Poder Moderador, fonte da inversão do sistema

representativo, aparece como único elo capaz de resguardar a vontade nacional,

maculada pela fraude e pela manipulação das facções”.356

Corolário deste fenômeno, a verticalização da ordem política constitui-se o

segundo aspecto que marca a estrutura institucional do Império, atingindo tanto a

elite que integra os partidos políticos como os sujeitos que integram a

comunidade. No primeiro caso, é pelas graças do Poder Moderador que se

estabelece o acesso aos cargos do governo, quem ascende à ordem policial e

administrativa. Em relação à incorporação da população à comunidade política ou

ao demos, entendido como conjunto de atores dotados de direitos básicos de

intervenção na vida pública”357, observar-se-á a restrição à participação popular

pela adoção do voto censitário. A condição de infantilidade que se atribuiu ao

povo ao longo das contra-revoluções liberais é retomada, aqui, como discurso

legitimador, em compasso com o papel de tutor que o titular do Poder Moderador minimamente representativo dotado de alguma capacidade governativa.” LESSA, Renato. A invenção republicana, p. 37. 354Ibidem, p. 34. 355A posição do D. Pedro II é, assim, tratada por Lessa: “Do ponto-de-vista manifestado pelo Imperador, em sua vasta produção epistolar, o uso das atribuições do Poder Moderador, era um mal necessário. Para ele, as eleições eram ‘uma calamidade’, e se o sistema decisório do Império lhes concedesse o poder de fazer governos, inevitavelmente ocorreria a eternização do predomínio de uma facção, em detrimento da outra.” Ibidem, p. 34. 356Lessa apresenta, ainda, os motivos pelos quais os partidos políticos evitavam o conflito com a ordem imperial: “No limite, para as elites partidárias era preferível a previsibilidade da tutela – que era fonte de suas identidades políticas – à incerteza e o risco da competição política aberta.” LESSA, Renato. A invenção republicana, pp. 34-35. Mais adiante, resume a contribuição deste fenômeno para ruína do Império: “Eram arriscadas eleições ‘verdadeiras’ sem o atributo corretivo do Poder Moderador e este, por sua vez, inviabiliza o sonho por um sistema minimamente representativo dotado de alguma capacidade governativa”. Ibidem, p. 37. 357Ibidem, p. 36.

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deve exercer. O caráter pedagógico de seus atos torna-se essencial para sujeitos

que ainda não têm discernimento para decidir sobre o bem comum. A

verticalização da ordem política (policial, em verdade) admite o Imperador como

centro e expressão da soberania nacional: ele confere unidade e racionalidade ao

sistema policial, controlando a facciosidade dos partidos e filtrando a vontade de

sujeitos que não possuem condições de emitir opinião inteligível.

Ainda em relação à exclusão da população da participação nas decisões

públicas nacionais, ressalte-se, como o faz Lessa, que a situação de escravidão,

por si, mantinha grande contingente populacional automaticamente alijado da

possibilidade de integrar a comunidade política. Tal exclusão permitiu que o

Império não precisasse lidar com a tensa relação entre a ordem policial e o mundo

do trabalho358, como ocorrera ao longo do século XIX na França, diante das

demandas igualitárias do proletariado. A questão da escravidão não se limita, no

entanto, a uma mera conseqüência que se expressaria na impossibilidade da

ascensão de um proletariado que desafiasse a ordem hegemônica. No Brasil, ela

revela uma tensão que lhe é própria e que desafia a ordem escravocrata

constituída; uma subjetivação política que se expressa nas diversas formas de

resistência contra a escravidão. Esta tensão descortina uma real cena de litígio

através do qual o sistema oligárquico-escravocrata de dominação e distribuição

natural do poder era ameaçado.359

Caio Prado Jr. já apontara esta cena conflituosa como um dos elementos

presentes na passagem do sistema colonial para a independência.360 Seu caráter

358Ibidem, p. 36. 359Hardt e Negri destacam como a reação dos escravizados foi fundamental para a ruína do sistema escravocrata na América: “Na realidade, nem argumentos morais em casa, nem cálculos de lucratividade no exterior, poderiam levar o capital europeu a desmantelar os regimes escravocratas. Só a revolta e a luta dos próprios escravos poderiam fornecer uma alavanca adequada. Justamente quando o capital avança para reestruturar a produção e emprega novas tecnologias apenas como resposta à ameaça organizada de antagonismo dos trabalhadores, o capital europeu não renunciaria à produção escrava até que escravos organizados representassem uma ameaça ao seu poder e tornassem esse sistema de produção insustentável. Em outras palavras, a escravidão não foi abandonada por razões econômicas, mas derrubada por forças políticas. A agitação política de fato minou a lucratividade econômica do sistema, mas, o que é mais importante, os escravos revoltados acabaram por constituir um contrapoder real.” HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Império, pp. 139-140. 360Na perspectiva de Caio Prado Jr. a cisão da colônia com a Coroa portuguesa não foi fruto de uma “idéia” de Independência, mas de várias idéias de separação oriundas de oposições, de pequenos conflitos que expõem os vícios do sistema colonial. Como exemplo destas contradições o autor cita a luta pela libertação dos escravos e a supressão de barreiras de cor e classe. Nas palavras de Caio Prado: “[...] Outra contradição do sistema é de natureza étnica, resultado da

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político é evidente diante da presunção de igualdade que a deflagra. Poder

constituinte que perpassa desde as mais pontuais formas de resistência361 até a sua

expressão mais evidente na fundação de uma nova ordem social e política, que

representavam os quilombos. Tudo isso que representa uma escandalosa

afirmação de igualdade a perturbar uma ordem centenariamente constituída,

traduz-se, por ocasião da Inconfidência Baiana, nas recomendações do artesão

Lucas Dantas do Amorim Torres a João de Deus ao esclarecê-lo sobre o modo

pelo qual deveriam explicar o caráter revolucionário do levante aos soldados,

artesãos, escravos e forros:

Quando lhes falar, diga-lhes assim: o Povo tem intentado huma revolução, afim de tornar esta Capitania hum Governo democrático, nelle seremos felices; porque só governarão as pessoas que tiverem capacidade para isso, ou sejão brancos ou pardos, ou pretos, sem distinção de cor, e sim de juizo, e he melhor do que governado por tolos, e logo os convencerá.362

posição deprimente do escravo preto, e em menor proporção, do indígena, o que dá no preconceito contra todo indivíduo de cor escura. É a grande maioria da população que á aí atingida, e que se ergue contra um sistema que além do efeito moral, resulta na exclusão de tudo quanto de melhor oferece a existência na colônia [...] A condição dos escravos é outra fonte de atritos. Não se julgue a normal e aparente quietação dos escravos, perturbada alias pelas fugas, formação de quilombos [...] É uma revolta constante que se lavra surdamente [...]”. PRADO JR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo, pp. 362-366. 361Desde as mais diretas formas de resistência como a fuga e o assassinato do senhor de escravo, até as mais sutis que, não raros, eram atribuídas à natureza inferior do negro. Trata-se das “pequenas sedições do cotidiano” que denunciam a “permanente revolta do escravo”, que Antônio Risério extrai da obra de José Alípio Goulart Da fuga ao suicídio: aspectos de rebeldia dos escravos no Brasil. Risério, em seu livro Uma história da cidade da Bahia, enumera essas pequenas sedições: “A mentira, por exemplo. O engodo pensado, sistemático. Sim – havia o sentido social da mentira. Da trapaça. E como deve ter sido gratificante levar o senhor ao erro! [...] Dentro da mentira, o fingimento. Fingir enfermidades e dores, disfarçar afetos, mascarar ações. O escravo era um expert em simulações. Era como se a mentira fosse um modo seu de afirmar uma verdade própria.” RISÉRIO, Antônio. Uma história da cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2004, p. 151. E continua: “Uma outra forma de se insubordinar contra as determinações do regime escravista estaria na prática voluntária do aborto [...] para que não cheguem os filhos de suas entranhas a padecer o que elas padecem. A mãe sofria, mas feria o regime. Impedia o crescimento da mão-de-obra escrava.” Ibidem, pp. 151-152. Risério ressalta, ainda, que o suicídio pode ser igualmente apontado como ato sedicioso: “Os escravos não se mataram apenas porque se achavam tristes [...] Muitos foram os móveis para a revoada [...] Fruto da depressão, do medo, do ódio, sim. Mas fruto, sobretudo, de uma violência sistêmica [...] nesse sentido que Fernando Ortiz pôde definir o suicídio como um ‘meio de emancipar-se’. De uma parte esse suicídio foi recusa [...] De outra, representou prejuízo para a economia senhorial.” RISÉRIO, Antônio. Uma história da cidade da Bahia, pp. 152-153. Por fim, o autor elenca dentre os atos de resistência a tão apregoada preguiça dos escravos: “[...] o fato de o escravo fazer mal o seu serviço já foi incluído, por diversos estudiosos, entre as ‘pequenas sedições do cotidiano’. Trabalhar mal era prejudicar o senhor, assim como destruir ‘por acaso’, instrumentos de trabalho. [...] Jean-Paul Sartre fez uma observação, que é aplicável ao desmazelo do escravo no Brasil: ‘são preguiçosos, é claro, e isto é sabotagem’.” Ibidem, pp. 153-154. 362TAVARES, Luís Henrique Dias. Introdução ao estudo das idéias do movimento revolucionário de 1798. Salvador: Livraria Progresso, 1959; p. 13.

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Um levante de negros e pardos não apenas contra a escravidão, mas também

contra o preconceito, contra a eleição da tonalidade da pele como título que

legitima a distribuição e cristalização dos papéis de mando e obediência. Caio

Prado Jr. ressalta que “o nervo principal do levante projetado era a diferença de

castas, a revolta contra o preconceito de cor.”363 São Domingos era uma

atemorizante e viva lembrança na memória escravocrata. De fato, a Revolução

haitiana se revelara concreto exemplo de conquista da liberdade, tendo por força

propulsora a presunção de igualdade.364 São eventos que, não distanciados dos

primeiros anos do Império brasileiro recém independente, suscitaram o temor dos

constituintes de 1823. Muniz Tavares revela esse receio ao ressaltar que os

“discursos da Assembléia Constituinte da França provocaram os acontecimentos

de São Domingos” 365 e que devem, aqui, ser evitados. Para os constituintes, como

visto, a abolição da escravidão conjugava ofensa ao direito à propriedade e o risco

iminente de abertura de um foco de desordem social. Eis um pensamento para o

qual convergia a grande maioria dos constituintes.

O Poder Moderador apresenta-se, neste cenário, não apenas como tutor da

nação; ele é também a instituição que estabiliza um regime garantidor da ordem

escravocrata e latifundiária, preservando intacta uma ordem de dominação que

atende aos privilégios econômicos da oligarquia nacional. O Poder Moderador

confere, assim, unidade ao regime imperial; na perspectiva de José Antônio

Pimenta Bueno, o Marquês de São Vicente, ele constitui-se “a mais elevada força

social, o órgão político mais ativo, o mais influente de todas as instituições

fundamentais da nação.”366 Ao apresentar o caráter conservador e contra-

revolucionário do Poder Moderador, este integrante da nobreza nacional o definirá

como depositário de grande neutralidade, superior às paixões e interesses,

363PRADO JR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo, p. 365. 364“A revolução haitiana foi, certamente, um divisor de águas na história moderna da revolta dos escravos – e seu espectro circulou pela América do século XIX da mesma forma que o espectro da Revolução de Outubro assombrou o capitalismo europeu mais de um século depois. Não se deve esquecer, entretanto, que revolta e antagonismo eram constantes na escravidão da América, de Nova York à Bahia.” HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império, p. 140. 365Ibidem, p. 131. 366SÃO VICENTE, José Antônio Pimenta Bueno, Marquês de. José Antônio Pimenta Bueno, marquês de São Vicente. Organização de Eduardo Kugelmas. Coleção Formadores do Brasil. São Paulo: Ed. 34, 2002; p. 280.

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especificando que “o exercício do poder Moderador é quem evita nos perigos

públicos o terrível dilema da ditadura ou da revolução.”367

Os eventos transcorridos após a abdicação de D. Pedro I revelariam a

importância institucional do Poder Moderador para a monarquia constitucional

brasileira. O projeto de lei da reforma da Constituição, proposto pela Câmara dos

Deputados em 1831 por ocasião da abdicação, previa a supressão tanto do Poder

Moderador, quanto do Conselho de Estado, a quem a Constituição de 1824

atribuía função consultiva daquele poder. No entanto, após as emendas no Senado

e aprovação das mesmas pelos deputados, editou-se o Ato Adicional, de caráter

liberal e descentralizador, que suprimia o Conselho de Estado mantendo-se,

entretanto, o Poder Moderador.368 Mesmo os adeptos da extinção do Poder

Moderador entendiam necessárias suas atribuições e efeitos.369 A Lei de

Interpretação de 1840 marcaria o retorno do modelo centralizado, gravitando em

torno do Poder Moderador, como resposta à descentralização mal engendrada. Ao

tecer comentário sobre o regresso de 1841, o Visconde do Uruguai ressaltou a

essencialidade do Poder Moderador, recordando o reconhecimento daqueles que

queriam extinguir sua previsão constitucional:

As atribuições do poder Moderador são essenciais em qualquer organização política. Não podem deixar de existir nela, em maior ou menor grau, mais ou menos extensas ou restritas […] É por isso que, como já vimos, quando em 1832 se pretendeu extinguir o poder Moderador da Constituição, protestavam os pugnadores da idéia que não pretendiam extinguir o poder, mas sim passar as atribuições que o constituem para o poder Executivo.370

O Poder Moderador teve seu fim como instituição oficial apenas com a

derrubada do próprio Império. Esvaiu-se a “chave da organização política”

nacional sem que a República adotasse um sistema eficiente de representação

política que conferisse estabilidade ao governo. Se o modelo imperial de

367Ibidem, p. 281. 368Explicitando a falta de lógica da medida, Paulino José Soares de Sousa, o Visconde do Uruguai, comenta: “[…] a primitiva supressão do Conselho do Estado, a qual prevaleceu definitivamente, teve por causa a supressão do poder Moderador, a qual afinal não prevaleceu.” URUGUAI, Visconde do. Visconde do Uruguai. Organização de José Murilo de Carvalho. São Paulo: Ed. 34, 2002; p. 249. 369Visconde do Uruguai transcreve a manifestação do senador José Inácio Borges, neste sentido: “Quero fazer desaparecer a palavra 'poder Moderador' e que pertençam aquelas atribuições ao poder Executivo, ao poder Executivo por quê? Porque este tem responsabilidade na pessoa dos ministros, e o poder Moderador não tem [...]”.URUGUAI, Visconde do. Visconde do Uruguai, p. 317. 370Ibidem, p. 341.

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representação simbólica371 se mostrava deletério, era, contudo, eficiente como

diretriz para a escolha dos integrantes do governo através de eleições de um só

eleitor. Os republicanos, por sua vez, não dispunham sequer de um projeto

concreto para substituí-lo.372 O vazio em torno do qual gira o sistema republicano

brasileiro em seu alvorecer é explicitado por Lessa:

O Brasil acordou sem Poder Moderador, em 16.11.1889. Isto é, sem ter qualquer resposta institucional a respeito de si mesmo: quem faz parte da comunidade política, como serão as relações entre polis e demos, entre o poder central e as províncias, como se organizarão os partidos e se definirão as identidades políticas. Enfim, quem deverá mandar [...]373

A Primeira República tampouco se empenhou em promover à inclusão do

demos, antes, procurou estabelecer novos mecanismos de sua “domesticação e

exclusão”.374 A ausência de rotina institucional marcaria a primeira década do

novo regime. Nem mesmo a edição da Constituição de 1891 possibilitou o

desenvolvimento de um governo estável, em que não se observasse um impasse

constante entre Executivo e Legislativo. A preocupação da oligarquia, no entanto,

não se resumiria à criação de dispositivos que controlassem a escolha dos

representantes do povo. Em compasso com um modelo estável e não competitivo

de acesso à ordem policial republicana, caminhava o receio com aqueles seres

criados para não influir no curso da história; aqueles não dotados de palavra que

ousam se levantar de seu estado de infantilidade ou animalidade, ainda que numa

desarticulada manifestação de presunção igualitária.

O que revela Canudos, a título de exemplo - e longe de se constituir em uma

proposta articulada em espectro nacional -, é a ocorrência de arrombamentos na

ordem policial que pretendia determinar a organização social. O perigo da

existência da Canudos de Antônio Conselheiro não se expressa apenas no

371LESSA, Renato. A invenção republicana, p. 44. 372A passagem para a República em nada remonta às criações de novas instituições conforme se deu na França e nos Estados Unidos onde a substituição do modelo de governo se fez acompanhar de novas estruturas. O projeto republicano brasileiro fundava-se em enunciados de princípios abstratos. Como relembra Lessa: “É um engano supor que o Golpe de Estado de 15.11.1889 foi a materialização de um projeto de utopia, lentamente amadurecido por duas décadas de ação republicana [...] Confrontando com o que lhe era estritamente contemporâneo, o reformismo republicano é anódino [...] As propostas apresentadas, e que ‘só poderiam ser implementadas com a República’ incluíam: soberania do povo, democracia, governo representativo e responsável e federalismo. É inútil procurar no Manifesto de 1870, e nos outros que lhe seguiram, maior detalhamento.” Ibidem, pp. 38-39. 373Ibidem, p. 46. 374LESSA, Renato. A invenção republicana, p. 39.

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eventual elogio à Monarquia e sim, mais poderosamente, na desarticulação da

centenária estrutura de mando que imperava no sertão brasileiro; no desafio à

natural distribuição dos locais e papéis que cada sujeito deveria ocupar e exercer

naquela sociedade. O pavor à experiência de Canudos é que ela encarna

vigorosamente o poder de agenciamento de sujeitos no sentido de constituir uma

nova ordem social, econômica e política, independente do sistema de exploração e

sujeição em meio ao qual emerge. O receio à emergência de manifestações

constituintes desse jaez - e à dimensão política que lhe é implícita -, imbrica-se à

necessidade de estabilizar a ordem policial erigida com a República. Fazia-se

necessário, portanto, orquestrar novos mecanismos para arrefecer os ânimos e

domar os espíritos mais libertários.375

Na ausência de um arranjo institucional oficial que garantisse a

continuidade do modelo oligárquico por outras formas, nada mais ordinário que

nutrir certo saudosismo pelo Poder Moderador.376 É pela obra do governo Campos

Sales que se promoverá a política dos Estados como correspondente funcional do

Poder Moderador.377 O retorno de seus efeitos à institucionalidade nacional

ocorreria, agora, de forma oficiosa, desenvolvida à margem do texto formal da

Constituição de 1891. Também denominada de política dos governadores, a

política dos Estados consistiu no pacto entre o governo federal e elites estaduais

que estabilizava o poder destas últimas, ao passo que docilizava as bancadas da

Câmara dos Deputados, cujo acesso, a partir da alteração de seu Regimento

Interno pelo Presidente da República, passou a ser determinado pelos desígnios

375Como afirma José Murilo de Carvalho: “A primeira quinzena republicana, que vai de 1889 até a Revolta da Vacina em 1904, foi turbulenta. Houve assassinatos políticos, golpes de estado, revoltas populares, greves, rebeliões militares, guerras civis. Ausente da proclamação do novo regime, o povo esteve presente nesses anos iniciais. Mas as oligarquias conseguiram inventar e consolidar um sistema de poder capaz de gerenciar seus conflitos internos que deixava o povo de fora.” CARVALHO, José Murilo de. Os três povos da república, disponível em <http://www.ifcs.ufrj.br/~ppghis/pdf/carvalho_povos_republica.pdf > , acessado em 15 de julho de 2008, p. 1. 376Como destaca Lessa: “a referência negativa para a nova ordem não foi o antigo regime, mas a infância do próprio regime republicano. Salvar a República de seus primeiros passos implicou em tornar a nova ordem senão semelhante, pelo menos respeitosa com relação ao passado monárquico.” LESSA, Renato. A invenção republicana, p. 111. 377“Campos Sales, como nenhum outro político de seu tempo, percebia que o abandono da forma monárquica não implicava a inexistência dos problemas institucionais que aquele regime, ao seu modo, soube resolver. Neste sentido, a engenharia política do pacto oligárquico e a definição do governo como instrumento de administração podem ser enquadradas como sendo a busca por um equivalente funcional do poder Moderador.” Ibidem, p. 111.

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dos chefes estaduais.378 A justificativa de Campos Sales, pontua José Murilo de

Carvalho, é expressão do modelo da política dos governadores: “É de lá [dos

estados] que se governa a República, por cima das multidões que tumultuam

agitadas, nas ruas da capital da União.”379 A arquitetura deste pacto, no entanto,

é mais complexa do que se revela a um primeiro olhar. O poder dos governadores

era controlado pela possibilidade de intervenção federal.380 As bases locais,

associadas ao que se denominou coronelismo381, eram, por sua vez, igualmente

dependentes do governo central. Às nuances desta complexa confluência de

interesses, Vitor Nunes Leal se refere em sua obra Corenelismo, Enxada e Voto,

pela qual ressalta a interdependência entre o poder central e o coronelismo,

relativizando sobremaneira o poderio dos chefes regionais que, conquanto

gozassem de poderio em seus currais eleitorais, dependiam intensamente do apoio

do governo federal. Os coronéis atuavam como espécie de delegados dos

governadores, garantindo-lhes votos em troca de distribuição de empregos

públicos e de favores do Estado.382 No entanto, se o governador cai em desgraça

com o governo federal o que se perceberá é a imediata debandada de coronéis em

apoio ao governador do momento. Através desta troca de proveitos entre o poder

público e chefes regionais o governo federal detinha mecanismos que impediam

que restasse refém da ordem regional. Independente da exata composição de 378Cabia à comissão de verificação de poderes, órgão da própria Câmara, a análise das reclamações dos não eleitos, a ela cabia analisar a validades dos diplomas apresentados pelos candidatos. Pela alteração realizada por Campos Sales os diplomas passaram a ser identificados com a ata geral da apuração das eleições, assinada pela maioria da Câmara Municipal, encarregada por lei de coordenar a apuração eleitoral. Como expõe Lessa: “A nova origem da Comissão implicou na perda de soberania do Legislativo, dada a definição atribuída aos diplomas. As eleições já vêm praticamente decididas, antes que a Comissão delibere a respeito dos reconhecimentos. Na verdade ela opera como garantia extra para impedir o acesso de inimigos ao parlamento. Na maior parte dos casos, a degola da oposição é feita na expedição dos diplomas pelas juntas apuradoras, controladas pelas situações locais.” Ibidem, p. 106. 379CARVALHO, José Murilo de. Os três povos da república, pp. 2-3. 380“Para a rebeldia dos governadores, a União dispõe ”do trunfo máximo da intervenção federal, prevista no discutido artigo 6.° da Carta de 1891[...]” FAORO, Raymundo. Os donos do poder, p. 642. 381Na perspectiva de Vitor Nunes Leal o coronelismo era “uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa. Por isso mesmo, o 'coronelismo' é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras.” LEAL, Vitor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1948; p. 40. 382“E assim nos aparece este aspecto importantíssimo do coronelismo, que é o sistema de reciprocidade: de um lado, os chefes municipais e os coronéis, que conduzem magotes de eleitores como quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação política do Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força policial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder da desgraça.” LEAL, Vitor Nunes. Coronelismo, enxada e voto, p. 63-64.

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forças resta claro que nesta nova distribuição de poder “não há lugar para a res

publica e nem há cidadãos”.383

A equivalência funcional entre a política dos Estados e o Poder Moderador é

expressa com acuidade por Lessa. Segundo o autor, a política dos governadores

reproduziu o controle que o Poder Moderador detinha sobre a dinâmica legislativa

e sobre o processo eleitoral direcionado para favorecer a facção partidária mais

conveniente, então, ao Imperador. Este controle é explicitado pelo autor:

A engenharia política do Poder Moderador dotou o sistema político imperial de controle sobre quatro dimensões básicas de ordem: 1. A dinâmica legislativa, através da atribuição exclusiva do Poder Moderador em dissolver a Câmara e em nomear senadores; 2. As eleições, pela legislação excludente e pelos poderes conferidos ao governo para realizá-los; 3. As administrações regionais, através da nomeação dos presidentes de província, cujo encargo mais importante era preparar convenientemente as eleições; 4. O processo de geração de atores políticos legítimos, através da ação exercida sobre os partidos pelo Poder Moderador, em última análise o único eleitor relevante do modelo. 384

Se o Poder Moderador conferia ao Imperador a competência para dissolver a

Câmara, nomear os senadores e conduzir o resultado das eleições, de modo

semelhante, a política dos Estados, valendo-se do ardiloso modelo de verificação

de diplomas eleitorais expedidos pelo poder local, conduzia ao parlamento aliados

do Executivo federal, para regalo do poder central. Pela política dos governadores

a alta taxa de exclusão do demos combina-se, mais uma vez, com a verticalização

da ordem policial-administrativa, cujo resultado imporia não apenas a baixa

competitividade na disputa pelo acesso aos cargos eletivos, como a canalização

desta desidratada competição para “critérios de processamento não dotados de

caráter público.”385

A Revolução de 30 romperia com o pacto oligárquico que sustentara a

política dos governadores por três décadas. Tratou-se de uma revolução sem povo,

pela qual Getúlio Vargas foi alçado ao posto de Chefe do Governo Provisório. O

conturbado período que a ela se sucedeu trouxe à baila o debate sobre a

necessidade de um órgão que fizesse as vezes de Poder Moderador. A

preocupação por estabilidade política, diante do fim da política dos governadores,

levou Borges de Medeiros a reclamar a efetiva volta do Poder Moderador como

383LESSA, Renato, A invenção republicana, p. 110. 384Ibidem, pp. 111-112. 385LESSA, Renato, A invenção republicana, p. 115.

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instituição oficial, aplicada, agora, ao regime republicano, em que o chefe do

poder Executivo assumiria a função de grande mediador dos interesses nacionais.

O caráter transcendente do Poder Moderador restou explícito em sua defesa:

Desde que se trata de combinar poderes diferentes confiados a pessoas diversas, a existência de um centro de ação reguladora, de um grande mediador que previna os choques violentos, que neutralize as tendências funestas [...] apresenta-se logo ao espírito como um meio lógico indeclinável [...] Só um poder neutro,

mediador, moderador, separado e independente dos outros poderes ha de fazer que o presidente seja realmente não só o primeiro representante como também o primeiro magistrado da nação [...]386

No entanto, o que emergiu do processo do qual resultou a Constituição de

1934 foi a proposta de se atribuir ao Supremo Tribunal Federal função de Poder

Moderador a conter os excessos do Legislativo e do Executivo. O anteprojeto da

referida constituição, aduz João Mangabeira, esboçava o Judiciário como “chave

de abóbada da constituição política”387. Esta suprema função política, como

ressalta o autor, faz dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal a mais alta lei

do país, a torná-lo o grande poder político do Estado388.

A Carta de 1937, outorgada por Getúlio Vargas após o auto-golpe que

instituiu o Estado Novo, em sentido diverso, previa expressamente que a Câmara

dos Deputados poderia remover a inconstitucionalidade de lei assim declarada

pelo Supremo Tribunal Federal. Na perspectiva de Francisco Campos, Ministro da

Justiça de Getúlio Vargas e importante teórico do novo regime, conferir ao Poder

Judiciário a autoridade para dizer em última instância o que significa a

Constituição implica em conferir-lhe poderes de moderar ou inibir os ímpetos

386MEDEIROS, Antônio A. Borges de. O poder moderador na república presidencial. Brasília: Senado Federal, 2004, pp. 73-76. Importante ressaltar que Alberto Torres constitui-se outro importante defensor do ideal moderador, ao sugerir em sua obra A Organização Nacional a criação do Poder Coordenador, espécie de poder Moderador que teria, dentre outras, a competência para reconhecer os eleitos para mandatos por voto direto. A justificativa, mais uma vez, se pauta pelo risco da incapacidade do povo escolher seus mandatários de modo consciente, pelo que o Poder Coordenador poderia corrigir os deslizes das maiorias inconscientes. TORRES, Alberto. A organização Nacional, primeira parte: a Constituição. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: Ed. UnB, 1982, pp.89-90. 387MANGABEIRA, João. Em torno da constituição. São Paulo. Companhia Editora Nacional, 1934; p. 100. 388Ibidem, p. 100. A proposta defendida por João Mangabeira, no entanto, restou vencida. A função moderadora passou a ser exercida mais pelo Senado do que pelo Supremo Tribunal Federal.

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democráticos nacionais.389 Recusando a neutralidade do caráter técnico e objetivo

da interpretação jurídica, Campos argumenta:

A supremacia do Judiciário não é, pois, como procura fazer acreditar a ingênua doutrina que atribui ao método jurídico um caráter puramente lógico e objetivo, uma supremacia aparente. É, ao contrário, uma supremacia política, porque a função de interpretar, que redunda na de formular a Constituição, é a mais alta ou a mais eminente das funções políticas.390

Em sua perspectiva, o controle judicial de constitucionalidade sem a

possibilidade de o Parlamento remover a inconstitucionalidade, não constituiria

uma proteção para o povo e sim, um mecanismo para bloquear a democracia,

impedindo ou moderando as reivindicações populares. Nas palavras de Francisco

Campos: “É, como se vê, uma sobrevivência do poder moderador da monarquia,

um resquício monárquico que se enquistou nas instituições democráticas [...]”.391

Não deixa de ser curiosa a concepção de democracia de Francisco Campos

expressa ao longo do texto da Constituição de 37, que transformou o Parlamento

em pouco mais que um conselho orçamentário. De fato, pela forma de

composição e competência a ele atribuída, o Parlamento proposto por Campos

distanciava-se sobremaneira do “povo” a que ele afirmava o dever de proteger,

bastando para tanto, ressaltar que a Câmara de Deputados deveria ser eleita por

sufrágio indireto. No entanto, é na instituição e disciplina do estado de emergência

que texto constitucional de 37 possibilita o governo por meio de permanente

estado de exceção. A constituição não apenas autoriza o presidente a dissolver o

Parlamento, como ela própria, de plano, declara imediatamente dissolvida a

Câmara de Deputados e Senado Federal, possibilitando que o presidente governe

por decreto-lei enquanto não convocado plebiscito para convalidação da nova

Constituição. O plebiscito convalidante, registre-se, jamais seria convocado,

mesmo porque cabia apenas ao presidente fazê-lo.392

389CAMPOS, Francisco. O estado nacional: sua estrutura, seu conteúdo ideológico. Brasília: Senado Federal, Conselho editorial, 2001; p. 103. 390Ibidem, p.104. 391Ibidem, p. 104. 392Eis o estatuto das competências moderadoras atribuídas ao Presidente da República pela Constituição de 1937: Art 73 - o Presidente da República, autoridade suprema do Estado, coordena a atividade dos órgãos representativos, de grau superior, dirige a política interna e externa, promove ou orienta a política legislativa de interesse nacional, e superintende a administração do País. Art. 74 - Compete privativamente ao Presidente da República:

k) decretar o estado de emergência e o estado de guerra nos termos do art. 166;

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Mais curioso ainda, que Francisco Campos faça crítica veemente ao

resquício do poder moderador. O Estado Novo, por certo, não se erige inspirado

na arquitetura institucional proposta por Constant. Não parece desarrazoado, no

entanto, identificar neste período traços do poder moderador na vertente que Carl

Schmitt conferiu ao instituto. A influência que o pensamento de Schmitt exerceu

sobre a teoria de Francisco Campos é evidente.393 Na concepção de Schmitt o

poder moderador não se separa da função presidencial. Ele constitui um tipo

especial de autoridade que o chefe do executivo necessita possuir para lidar com

questões emergenciais para as quais o modelo liberal, e sua arrastada deliberação

Art. 75 - São prerrogativas do Presidente da República:

b) dissolver a Câmara dos Deputados no caso do parágrafo único do art. 167; Art. 166 - Em caso de ameaça externa ou iminência de perturbações internas ou existências de concerto, plano ou conspiração, tendente a perturbar a paz pública ou pôr em perigo a estrutura das instituições, a segurança do Estado ou dos cidadãos, poderá o Presidente da República declarar em todo o território do Pais, ou na porção do território particularmente ameaçado, o estado de emergência. Desde que se torne necessário o emprego das forças armadas para a defesa do Estado, o Presidente da República declarará em todo o território nacional ou em parte dele, o estado de guerra. Parágrafo único - Para nenhum desses atos será necessária a autorização do Parlamento nacional, nem este poderá suspender o estado de emergência ou o estado de guerra declarado pelo Presidente da República. Art. 167 - Cessados os motivos que determinaram a declaração do estado de emergência ou do estado de guerra, comunicará o Presidente da República à Câmara dos Deputados as medidas tomadas durante o período de vigência de um ou de outro. Parágrafo único - A Câmara dos Deputados, se não aprovar as medidas, promoverá a responsabilidade do Presidente da República, ficando a este salvo o direito de apelar da deliberação da Câmara para o pronunciamento do País, mediante a dissolução da mesma e a realização de novas eleições. Art. 175 - O primeiro período presidencial começará na data desta Constituição. O atual Presidente da República tem renovado o seu mandato até a realização do plebiscito a que se refere o art. 187, terminando o período presidencial fixado no art. 80, se o resultado do plebiscito for favorável à Constituição. Art. 178 - São dissolvidos nesta data a Câmara dos Deputados, o Senado Federal, as Assembléias Legislativas dos Estados e as Câmaras Municipais. As eleições ao Parlamento nacional serão marcadas pelo Presidente da República, depois de realizado o plebiscito a que se refere o art. 187. Art. 180 - Enquanto não se reunir o Parlamento nacional, o Presidente da República terá o poder de expedir decretos-leis sobre todas as matérias da competência legislativa da União. Art. 186 - É declarado em todo o País o estado de emergência. Art. 187 - Esta Constituição entrará em vigor na sua data e será submetida ao plebiscito nacional na forma regulada em decreto do Presidente da República. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao37.htm>. Acesso em 24.02.2010. 393O ideal de democracia decorrente da unidade e homogeneidade política representado na identificação direta do povo com o chefe do executivo; a proposição do Estado autoritário, promotor da ditadura democrática; o desprezo pela atuação do parlamento; a aclamação como mecanismo de manifestação pública, conferindo instituindo um regime plebiscitário; a configuração dos poderes atribuídos ao presidente em caso de declaração de estado de exceção, tudo isso Campos assimila do pensamento schmittiano para aplicar na construção teórica do Estado Novo. SANTOS, Rogério Dultra dos. O constitucionalismo antiliberal no Brasil: cesarismo, positivismo e corporativismo na formação do Estado Novo. Tese de doutorado apresentada no Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 2006; pp. 19 e 56-57.

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parlamentar, não se mostrou eficaz. Schmitt explicita seu entendimento sobre a

importância do poder moderador nestes termos:

[...] o chefe de Estado em semelhante Constituição [Weimar] representa a continuidade e a permanência da unidade estatal e de seu funcionamento uniforme, transcendendo às competências a ele atribuídas, e que, por motivos da continuidade, da reputação moral, e da confiança geral, tem que ter um tipo especial de autoridade, a qual faz parte da vida de cada Estado, assim como o poder e o poder de comando que se tronam diariamente ativos. Isso é de especial interesse para a teoria do poder neutro, porque a função peculiar do terceiro neutro não consiste em atividade contínua de comando e regulamentar, mas primeiramente, apenas intermediária, defensora e reguladora, e só ativa em caso de emergência e, ademais, porque ela não deve concorrer com os outros poderes no sentido de uma expansão do próprio poder e também não tem que normalmente estar, em seu exercício, de acordo com a natureza do assunto, discreta e morosa. Apesar disso, ela existe e é indispensável, pelo menos no sistema do Estado de direito com diferenciação dos poderes.394

Este poder neutro, portanto, confere, ao chefe do executivo, autoridade de

decidir politicamente em caso de estado de exceção, sem as amarras impostas pelo

parlamento. Poder moderador, por certo, utilizado como inspiração para engendrar

um regime antiliberal e autoritário. Valendo-se desta autoridade especial do

presidente em casos emergenciais, apoiada na teoria do poder neutro na

perspectiva de Schmitt, Francisco Campos define os argumentos para que Getúlio

Vargas governe em permanente estado de exceção, conforme acima registrado.395

No trato deste período, necessário registro deve ser feito: consistiria

equívoco desmedido ler este momento histórico apenas pelas lentes do poder

moderador de viés schmittiano; trata-se apenas de mais uma - talvez a mais branda

- dentre tantas características que integra o complexo conjunto de fatores que

ajudam na compreensão de um fenômeno. Assim, ressalte-se a grande influência,

certamente a mais evidente, exercida pelo pensamento positivista de Julio de

Castilhos e pelo corporativismo de Oliveira Vianna que, juntamente com o

394SCHMITT, Carl. O guardião da constituição, pp. 199-200. 395A breve exposição de motivos da Constituição de 1937 explicita o uso do estado de exceção como fundamento para as diretrizes constitucionais postas. Ali se faz menção à profunda perturbação da paz política e social por fatores de desordem, à iminente deflagração de guerra civil, ao perigo comunista e à incapacidade das instituições liberais disporem de meios normais de preservação e de defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao37.htm>. Acesso em 24.02.2010.

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pensamento schmittiano, formam um mosaico teórico em que se baseou o Estado

Novo.396

Se, após Revolução de 30 e ao longo do Estado-Novo, as decisões sobre os

rumos nacionais permanecem verticalizadas, observa-se modificação sensível no

acesso da população aos direitos políticos e sociais.397 As profundas

transformações promovidas por Getúlio Vargas faz o Brasil adentrar a segunda

metade do século XX com um novo arranjo de forças políticas. É certo que o

alinhamento com as oligarquias rurais parece se constituir o ponto de contato com

a velha ordem policial brasileira. No entanto, a inserção, ainda que controlada, da

população como sujeito de direitos políticos e sociais provocaria abalos no

sistema oligárquico que imperava até então. O reflexo das alterações gestadas

naquele período pode ser observado rapidamente. O período de relativa

democracia experimentada após a Constituição de 1946, mais precisamente após a

saída de Dutra da presidência em 1951398, terá como protagonistas sujeitos nunca

antes contados como parte da comunidade política brasileira: camponeses e

operários; o “povo-criança” a procura de emancipação, a demandar participação

no governo, a demonstrar uma pretensão igualitária como perturbação à velha

democracia sem povo que marcara os anteriores regimes nacionais.

O que se expõe, a partir de então, é fratura entre dois mundos diversos,

partidos e contrapostos, ao que se sucederiam desesperadas tentativas de conter o

poder constituinte expresso no agenciamento entre trabalhadores, camponeses,

estudantes e operários. O objetivo seria alcançado com o golpe civil-militar de

1964. Em sua obra 1964: A conquista do estado, René Dreifuss revela como o

golpe que interrompeu a breve experiência democrática brasileira decorreu da

396Em sua tese, aqui já referida, Rogério Dultra dos Santos demonstra como o Estado Novo foi influenciado não apenas pelo pensamento de Schmitt, como pelo positivismo castilhista e pelo corporativismo de Oliveira Vianna. Para abordagem específica desta conjunção de fatores vide a referida obra. Nunca demais ressaltar a grande e decisiva influência do castilhismo na condução do Estado-Novo. No entanto, se tal característica apresentava-se muito evidente e forte, não se pode deixar de reconhecer que Francisco Campos contribuiu para a elaboração do fundamento teórico do regime. 397Data deste período a garantida de direitos trabalhistas como salário mínimo, férias anuais, descanso semanal, jornada diária de oito horas, indenização poder demissão sem justa causa, assistência social, criação da Justiça do Trabalho, dentre outros. 398Isto porque, ainda que sob a égide de uma Constituição democrática, o governo Dutra notabilizou-se pela intervenção em inúmeros sindicatos e pela orquestração para expulsar o PCB (Partido Comunista Brasileiro) da polis, negando-lhe acesso à palavra pela cassação de seu registro em 1947, medida esta ratificada pelo Supremo Tribunal Federal a demonstrar o viés antidemocrático que animava a casa, então.

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associação entre o capital transnacional, capital financeiro e industrial local e

Forças Armadas, como reação a uma série de medidas do governo João Goulart

contrárias aos interesses da burguesia.399

Dreifuss demonstra como os representantes do capital transnacional e local

exerciam pressão econômica nos governos Kubitschek e Jânio Quadros,

ocupando, a um só tempo, cargos nas diretorias de grandes companhias e no

aparelho administrativo e burocrático do Estado – o que lhes valeu a denominação

de tecnoempresários - com o intuito de desenvolver um “complexo financeiro-

industrial integrado de produção e domínio”.400 Tais agentes atuariam

determinantemente na reação burguesa contra o governo João Goulart, de evidente

apelo às forças populares. Conforme expõe Dreifuss, a proximidade ideológica de

oficiais das Forças Armadas à União Democrática Nacional (UDN) e ao Partido

Democrático Cristão (PDC), aliado à organização destes oficiais como reduto

político na Escola Superior de Guerra, facilitou o intercâmbio com os

tecnoempresários401.

A relação entre militares e civis foi coordenada pela atuação conjunta do

Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e do Instituto Brasileiro de Ação

Democrática (IBAD), dos quais integravam membros do que Dreifuss denomina

de elite orgânica: tecnoempresários, intelectuais e militares, representantes dos

interesses multinacionais e associados.402 Maria Victória Benevides destaca a

relação entre esses sujeitos e os objetivos pretendidos:

O papel relevante comumente atribuído às Forças Armadas, assim como à "tecnoburocracia", passa a ser atribuído aos empresários, e banqueiros. O complexo IPES/IBAD teria sido o núcleo ativo desse "golpe de classe", cujos objetivos seriam, entre outros, restringir a organização das classes trabalhadoras; consolidar

399 Estas medidas encontram-se veiculadas no discurso que o Presidente João Goulart dirigiu ao Congresso Nacional em 15 de março de 1964. Ali são expostas as diretrizes de seu governo: a) política externa independente; b) reforma agrária; c) regulação de remessas de lucros para o exterior; d) combate à sonegação fiscal; e) defesa das riquezas minerais nacionais, dentre outras, com o objetivo de promover a “libertação das classes sociais inferiorizadas pela situação que ocupam no processo geral de produção”, resíduos de “uma concepção aristocrática” que regia a atuação estatal. GOULART, João. A histórica mensagem do presidente João Goulart. Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, 1984. 400DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 2006; pp. 79-80. 401Conforme ressalta Dreifuss, muitos tecnoempresários como o próprio Eugênio Gudin, Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões eram assíduos conferencistas na Escola Superior de Guerra DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado, p. 86 402Ibidem, pp. 78-81.

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o crescimento econômico num modelo de capitalismo tardio, dependente, com alto grau de concentração industrial integrado ao sistema bancário e promover o desenvolvimento de interesses multinacionais e associados na formação de um regime tecnoempresarial, protegido e apoiado pelas Forças Armadas.403

A legitimação para deflagração do golpe foi construída recorrendo-se ao

discurso da necessidade de uma instância moderadora que, por sua força moral e

condição de neutralidade, pudesse reconduzir o país ao estado de ordem,

arrostando o dissenso – entendido como anarquia – e propiciando a estabilidade

da ordem liberal. Este aspecto é incensado pela estreita cooperação entre civis e

militares para a formulação do golpe. Conforme pontua Dreifuss a respeito do

tema:

Um dos resultados da íntima cooperação entre civis e militares e entre as Forças Armadas dos Estados Unidos e do Brasil e seus serviços de segurança foi a crescente convicção dentro do Exército de que eles deveriam desempenhar um papel de “moderadores” nos conflitos entre facções das classes dominantes. Esse mito do poder moderador societário do Exército foi aceito e legitimado por muitos estudiosos de política brasileira em seus escritos históricos. No entanto, esse papel de poder moderador era conflitante com a identificação partidária de oficiais militares [...] Contudo, e apesar da evidência histórica, o mito do papel moderador proporcionou a racionalização para o controle militar autoritário do sistema político depois de 1964.404

Caberá às Forças Armadas, neste momento, vestir a fantasia do Poder

Moderador, emascular a política e conter o poder popular. A construção desta

identidade militar ressalte-se, foi lenta e gradual; ela não brota em meio ao nada

em plena década de 60. O sentimento de tutor do povo brasileiro já se desenvolvia

nas Forças Armadas há muitos anos. A Constituição de 1891, ressalta Fábio

Carvalho Leite, “não apenas não afirmava expressamente o princípio da

supremacia civil sobre o poder militar, como ainda atribuía às forças armadas a

obrigação de sustentar as instituições constitucionais [...]”405Tal abertura

semântica permitia que as Forças Armadas pudessem se arrogar à definir o

conteúdo da constituição, compreendendo-se como instituição moderadora

competente para resolver os conflitos institucionais e salvar a nação. Como atenta

Raymundo Faoro, em passagem destacada por Fábio Carvalho Leite: “se as 403BENEVIDES, Maria Victória de Mesquita. 1964: um golpe de classe? (Sobre um livro de René Dreifuss). Disponível em <http://sala.clacso.org.ar/gsdl/cgi-bin/library?e=d-000-00---0luanova--00-0-0Date--0prompt-10---4------0-1l--1-es-Zz-1---20-about---00031-001-0-0utfZz-8- 00&cl=CL2.1&d=HASH019572922773632323e28aec.12&x=1>. Acesso em 15 de julho de 2008. 404DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe, pp. 89-90. 405LEITE, Fábio Carvalho. 1891: A constituição da matriz político-institucional da república no Brasil. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2002; p. 113.

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forças armadas podem sair da esfera de poder do governo, poderão destruí-lo,

em defesa do que entendem ser a constituição, com a faculdade de avaliar-lhe o

alcance e compreendiam o papel das Forças Armadas, explicita a auto-

compreensão daquela conteúdo”406. José Murilo de Carvalho, por sua vez, ao

relatar a forma como Góis Monteiro e Gaspar Dutra - emergentes chefes militares

da década de 30 – interpretavam o papel das Forças Armadas, explicita a auto-

compreensão daquela instituição como Poder Moderador:

Para eles, o Exército não devia ser instrumento político dos chefes civis, como era a prática na Primeira República, nem fator de revolução social, como queriam os “tenentes”. Devia ter papel tutelar, sobre o governo e a nação. Deveria ter um projeto próprio para o país [...] Era um projeto de modernização conservadora ou, na terminologia que se popularizou, de poder moderador, lembrança do papel exercido pelo Imperador. 407

O período que atravessa o Estado Novo, e sua derrocada, é marcada, como

pontua João Almino, pelo protagonismo das Forças Armadas como co-artífice do

regime. Como expõe o autor:

São os militares que são invocados pelos liberais em 35, 36 e 37 e que ajudam Vargas a instaurar o regime do Estado Novo. São eles que conseguem manter esse regime e que, no auge da guerra, podem reforçar a ideologia da segurança interna que desrecomenda que eventuais divisões internas possam desviar as atenções da questão maior da guerra. São eles que, mais uma vez invocados pelos liberais, fazem o golpe de 29 de outubro. Em todo o período que vai da instauração do Estado Novo ao seu final e à organização do novo regime político são, inclusive, as mesmas pessoas que estão em cena [...] É significativo que, na

406FAORO, Raymundo. Democratização e Forças Armadas. Apud LEITE, Fábio Carvalho, op. cit., p.113. 407CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Editora Brasileira, 2001; p. 105. Este sentimento emerge antes mesmo de 1930. Raymundo Faoro traça o panorama que indica o sentimento das Forças Armadas na passagem do Império à República. Trecho do manifesto de 14 de maio de 1887, demonstrando inconformismo de setores do exército com o governo imperial, é, na perspectiva do autor, elucidativa: [...] a consciência pública tem certeza de que o Exército brasileiro é a mais estável segurança da paz, da legalidade, da organização civil do Estado. Seja qual for a posição a que as circunstâncias nos levem, a segurança individual, a tranqüilidade pública, as instituições constitucionais, as tradições livres da nação encontrarão sempre no Exército um baluarte inexpugnável e em cada peito de soldado uma arma de cidadão. FAORO, Raimundo. Os donos do poder, 2001, p. 545. Das palavras do manifesto, pontua Faoro: “sobressai o espectro [...] de que a força armada não é mera dependência do governo, senão que constitui a primeira coluna de paz e da legalidade. Não por meio das formas jurídicas atua o Exército, mas, sobre elas, no seio da nação.” Ibidem, p. 545. Benjamin Constant Botelho de Magalhães trilha mesmo entendimento, ainda naquele ano, conforme relata Faoro ao trancrever suas palavras: “A intervenção das força armada para derrubar e erguer ministérios seria sediosa, incompativel com a lealdade militar e missão natural do Exército. Pode, porém, e deve [...] quando são conspurcadas pela tirania as liberdades públicas, quando são falseadas as garantias constitucionais e o poder constituído se torna um inimigo da nação, intervir como libertador da pátria, para uma transformaçao política.” Ibidem, p. 554.

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chamada “redemocratização” de 1945, os dois principais candidatos à Presidência da República sejam militares [...]408

Assim, no início dos anos 60 as Forças Armadas já nutriam robusto

sentimento tutelar pela Nação, respaldado por seu patriotismo e por sua força

moral. A manifestação de Eugênio Gudin, em artigos veiculados na imprensa em

novembro de 1962, traduz bem os efeitos da tradição das Forças Armadas

entenderem-se como tutores da soberania nacional. Em um primeiro momento

Gudin argumenta sobre a necessidade de reativar um correspondente funcional ao

Poder Moderador, na qualidade de exímio corretivo das arbitrariedades

democráticas:

Se no regime republicano de 1889 foi mantida a democracia representativa, mas se, de outro lado, o nível de educação cívica e política não se modificou pela simples proclamação da República, a que mãos, pergunta-se, se deveria passar o Poder Moderador, corretivo indispensável do sistema democrático na América Latina? É claro que, sendo o exercício desse poder destinado, como no Império, a corrigir, em circunstâncias excepcionais, de decisiva importância para o País, os erros ou desmandos do Executivo ou do Legislativo, havia o Poder Moderador ser exercido por um organismo estranho e independente.409

Após declamar a indispensabilidade de uma instituição moderadora, Gudin

conclama as Forças Armadas a reinstalar a ordem no país, na condição de herdeira

do Poder Moderador. Após apresentar argumentos pelos quais tal tarefa não

deveria recair sobre o Judiciário, afirma que caberia às Forças Armadas atuar na

qualidade de Poder Moderador por, dentre outras razões, nunca ter se apossado do

poder em momentos de crise e pelo fato de seus membros terem “formação em

ambiente de civismo e educação de caráter, afastados dos torvelinhos das paixões

e interesses” 410. A preconizada neutralidade das Forças Armadas imbricar-se-ia,

assim, com a retórica da superioridade moral. Eis um ponto que merece ser

aprofundado.

O caráter moral - e elitista - do detentor do poder neutro integra a

formulação teórica do próprio Montesquieu. Como visto no início deste segundo

capítulo, em seu modelo monárquico cabe à nobreza o papel eqüidistante de poder

moderador não apenas pela posse de bens que garantam seu fausto. Sua condição

408Os democratas autoritários: liberdades individuais, de associação política e sindical na constituição de 1946. São Paulo: Brasiliense, 1980; pp. 69-70. 409GUDIN, Eugênio. Análise de problemas brasileiros: coletânea de artigos – 1958-1964. Rio de Janeiro: Agir, 1965, p.118. 410Ibidem, p. 118.

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desapaixonada pelo poder decorre, mais precisamente, de sua nobre superioridade

que a afasta das disputas comezinhas pelo poder. Tal qual as Forças Armadas na

concepção de Gudin, a nobreza para Montesquieu aparta-se dos torvelinhos das

paixões e interesses. Em verdade, Montesquieu não se refere expressamente à

moral, e sim à “honra”. As formulações não são idênticas, mas herdeiras de uma

mesma concepção: trata-se de atribuir a função de moderador da democracia

àquele que, por características morais, se distingue dos demais seres incapazes de

comportamento equilibrado diante do exercício do poder. A condição moral – ou

honorífica - da nobreza a coloca acima das demais classes, pairando sobre os seus

conflitos, tornando-a apta a amortecê-los. O burguês poderá gozar de riqueza

inconteste, mas jamais será talhado moralmente para exercer a função

moderadora. Na concepção de Montesquieu não é a riqueza, e sim a honra o valor

social mais elevado; é ela que marca a distinção entre a elite e o povo.

Os articuladores do golpe de 64 fazem do discurso moral peça fundamental

para legitimação das Forças Armadas como herdeira do Poder Moderador.411 A

ausência deste poder como instituição oficial demandava maior recorrência à

retórica moralista. Não por coincidência, a UDN operou como pilar civil que

sustentou o golpe. De fato, as articulações entre UDN e Forças Amadas nos

preparativos do golpe revelam como a retórica da moralidade foi utilizada para

legitimar a intervenção militar na democracia. A reação udenista após o golpe

reflete o tom; a primeira nota oficial do partido saúda a vitória contra a “subversão

dos ideais cristãos” e contra o “câncer da corrupção.”412 Conforme ressalta Maria

411 O editorial do jornal O Globo de 02 de abril de 1964 é emblemático para demonstrar a forma pela qual o golpe de 64 calcou-se, em larga escala, no discurso da moralidade e do salvacionismo. Sob o título Ressurge a Democracia ali se discorre: “Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas [...] o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições. Como dizíamos, no editorial de anteontem, a legalidade não poderia ser a garantia da subversão, a escora dos agitadores, o anteparo da desordem [...] Aliaram-se os mais ilustres líderes políticos, os mais respeitados Governadores, com o mesmo intuito redentor que animou as Forças Armadas. Era a sorte da democracia no Brasil que estava em jogo. A esses líderes civis devemos, igualmente, externar a gratidão de nosso povo. Mas, por isto que nacional, na mais ampla acepção da palavra, o movimento vitorioso não pertence a ninguém. É da Pátria, do Povo e do Regime. Não foi contra qualquer reivindicação popular, contra qualquer idéia que, enquadrada dentro dos princípios constitucionais, objetive o bem do povo e o progresso do País [...]Mais uma vez, o povo brasileiro foi socorrido pela Providência Divina, que lhe permitiu superar a grave crise, sem maiores sofrimentos e luto. Sejamos dignos de tão grande favor.” Jornal O Globo, 02 abril de 1964. 412BENEVIDES, Maria Vitória. A UDN e o udenismo: ambigüidades do liberalismo brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 128.

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Vitória Benevides, em 1962 o jornalista Júlio de Mesquita Filho, por meio do

diário O Estado de S.Paulo, já dirigira aos militares apelo para realização do

golpe clamando pela realização de um “saneamento político e moral”.413 Otávio

Mangabeira, udenista de primeira linhagem, outrora se referira à convergência

entre seu partido e os militares em prol da moralidade: “a união das Forças

Armadas é condição de nossa sobrevivência, como democracia que aspira à

Ordem, à Justiça, e à Estabilidade, dentro das normas rigorosas da moralidade.”414

No entanto, é Maria Vitória Benevides que melhor sintetiza como a moralidade,

um dos pontos de convergência entre a UDN e os militares, serve de fermento

para a gestação do golpe de 64:

[...] a relação da UDN com as Forças Armadas não deve ser vista apenas em termos de apego às candidaturas militares para a presidência da República e à intervenção “salvadora” no processo político, mas sobretudo pela ótica de uma certa concepção de nação, de segurança e de “moralidade” (onde o udenismo certamente se acomodava) que se consubstanciaria no arcabouço ideológico de 64.415

Este discurso em prol da moralidade expressava-se não apenas pelo aspecto

individual da probidade pessoal, como também, pelo brandir contra à corrupção e

pelo elitismo416, que pressupunha a “presciência das elites em relação aos grandes

movimentos populares”417 A retórica moral imbricava-se, portanto, com uma

tradição liberal demofóbica, expressa, na certeza de que o povo não sabe

conduzir-se bem nas suas decisões políticas, a exigir uma intervenção pedagógica

da elite nacional. Esta visão moralista e elitista, expõe Benevides, traduz a “antiga

crença de que o ‘país não está amadurecido para um verdadeiro regime

democrático, porque o povo não sabe escolher seus representantes’.”418

Em recente artigo, Maria Inês Nassif demonstra como o discurso moral

encontrou guarida nos oficialato militar, cioso de seu papel de tutor nacional:

No passado - e no limite -, a emocionalização do discurso moral encontrou abrigo não apenas nos setores médios da sociedade, mais vulneráveis a ele, mas também nos setores militares. A UDN foi o braço civil do golpe de 64; o propagandista do movimento político e militar; o partido que mobilizou os setores médios e conservadores [...] Na retórica udenista, os julgamentos morais são reiterados e

413Ibidem, pp. 128-129. 414 Ibidem, p 145. 415 Ibidem,pp. 142-143. 416416BENEVIDES, Maria Vitória. A UDN e o udenismo, p. 267. 417ARINOS, Afonso. O Estado de S. Paulo, 21 de março de 1976 apud BENEVIDES, Maria Vitória. A UDN e o udenismo, pp. p. 252. 418BENEVIDES, Maria Vitória. A UDN e o udenismo, pp. p. 249.

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repetidos como verdade, mesmo que exagerados ou injustos, porque se trata também de fixar, perante um segmento da opinião pública, aquela parte como a legítima julgadora moral dos demais atores que se movem no cenário político. É aquele que domina a retórica agressiva, o depositário da verdade, o juiz da moral nacional, o fiscalizador - e todos os contrários à retórica são os objetos da desconfiança nacional, os desonestos e impatriotas.419

Ao contrário do esperado pelos udenistas, as Forças Armadas não se

despiriam do traje de Poder Moderador. É o poder militar, agora, que se constitui

o repositório da moralidade nacional, legitimando-se timoneiro natural da

democracia sem povo. A moderação aos arroubos democráticos não tardaria e se

desenvolve como manifestação da função tutelar e pedagógica responsável por

ensinar a cartilha democrática ao povo-criança, explicitada na missão militar de

“colocar o povo na prática e na disciplina do exercício democrático.”420 Os

dispositivos legais de bloqueio ao poder constituinte são conhecidos: os atos

institucionais, por meio dos quais a ditadura militar submete o país a seus

desígnios, determinaram o retorno do processo de verticalização das decisões

públicas e de controle sobre o sistema de representação parlamentar. Esta função

moderadora não explicita abertamente sua intenção contra-majoritária; ela é

insidiosa, procura legitimar-se pelo discurso da intervenção na democracia para

salvar a democracia. Desta tentativa deriva a constante menção, nos preâmbulos

dos atos institucionais, à suposta Revolução deflagrada pelas Forças Armadas no

exercício do poder constituinte.421

Além da expressa usurpação do poder constituinte, a edição dos referido

atos revela o aprofundamento institucionalizado do controle militar sobre a

composição das instituições: pelo AI-1 os chefes militares se concedem o direito

de suspender direitos políticos e cassar mandatos legislativos das três esferas da

federação (art. 10º); o AI-2 estabelece eleições indiretas para presidente (art. 9º) e

extinção dos partidos políticos (art. 18); as eleições indiretas seriam adotadas para

419NASSIF, Maria Inês. O juiz da moral e a moral do juiz. Jornal Valor Econômico; 03 de dezembro de 2009, p. A6. 420Preâmbulo do Ato Institucional nº 2 (AI-2). ANDRADE, Paes; BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. Brasília: Paz e Terra, 1988; p. 775. 421Preâmbulo do AI-1: “Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e, ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte.” No preâmbulo do AI-2 lê-se que a auto-referida revolução “edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória, pois graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representa o povo e em seu nome exerce o Poder Constituinte de que o povo é o único titular.” Na mesma linha seguem os AI nº 3, 4 e 5. BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil, pp. 770-791.

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o acesso ao cargo de governador pelo AI-3; por meio do AI-4 a ditadura convoca

o Congresso Nacional para elaborar sua Carta; por fim, o AI-5 que, a partir de 13

de dezembro de 1968, reintroduziu no país a possibilidade do presidente da

República decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias

Legislativas e Câmaras de Vereadores (art. 2º), decretar intervenção nos Estados e

Municípios e suspender a garantia do habeas corpus (art. 10).

Analisados tais aspectos, se depreende que o Poder Moderador não foi

usado pelos militares apenas como parte da retórica que o legitimou a condutor do

golpe de 64. Como demonstra Marcelo Ciottolla em seu trabalho Os atos

institucionais e o regime autoritário no Brasil, o regime militar procurou se

institucionalizar valendo-se de um arcabouço jurídico que lhe desse respaldo

legal. Este aparato prestou-se a conferir ao militares o poder de moldar o sistema

representativo a seu gosto, enquanto emprestava mínimas feições democráticas ao

regime ditatorial pela permanência de um Congresso manietado. Este arranjo

permite alcançar semelhantes objetivos àqueles atribuídos por Renato Lessa ao

Poder Moderador no Império e à política dos governadores na Primeira

República: o controle da dinâmica legislativa, o resultado das eleições, e o

alinhamento das administrações regionais ao poder central. Por certo, todos os

fatores internos e externos que agiram sobre cada momento os tornam específicos,

e não mera reprodução um do outro. No entanto, a equivalência funcional dos

diversos aparatos dos quais se valeram, os colocam numa mesma linhagem de

contenção e moderação da democracia e usurpação do poder constituinte.

Ultrapassado este breve e generalizado percurso por momentos diversos da

vida política nacional, podem ser tecidos sucintos comentários sobre o papel da

teoria do Poder Moderador no Brasil. De saída, resta evidente o papel contra-

majoritário que ela desempenha. Este aspecto se reflete no fato de que, em todos

os momentos analisados, se observa um ataque, direto ou sinuoso, ao parlamento

nacional, restringindo a competitividade eleitoral pelos diversos modos insidiosos

de direcionar sua composição ou mesmo negando-lhe atuação. Em segundo plano,

a participação popular nas decisões públicas é drasticamente inibida, a

espontaneidade de agenciamentos entre sujeitos constituintes suprimida. Como

corolário, a influência da teoria do poder moderador contribui como mecanismo

de concentração de poder nas mãos de poderes constituídos que se arrogam

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oráculo do poder constituinte, centro de convergência da soberania nacional que,

posto em patamar superior, rege o destino do país. Por fim, o ideal do poder

moderador encontra-se vinculado aos diversos estratagemas de que a elite

oligárquica brasileira se valeu para legitimar sua ordem de dominação

necessariamente refratária às demandas igualitárias da democracia.

Com efeito, o Brasil emergiu como nação independente, moldado pela

teoria do poder moderador e, desde então, tem sua história pontuada por aspectos

que remontam a uma propalada necessidade de moderar a democracia, de salvar o

“povo” de si mesmo. Convém questionar, portanto, se a redemocratização lenta e

distendida que se completou com a Constituição de 1988, conseguiu arrostar da

atuação das instituições nacionais os últimos laivos de Poder Moderador,

condição necessária rumo a um nível minimamente aceitável de práticas

institucionais democráticas.

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