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4 Sergio Bernardes: o mundo como projeto “O mundo em que vivemos é o mundo que nós fizemos.” O.Aicher, Die Welt als Entwurf 1 O último ano da gestão de Carlos Lacerda como governador do Estado da Guanabara coincidiu com o IV Centenário de fundação da cidade do Rio de Janeiro. A data não poderia ser mais oportuna para alguém que permanecia firme na disputa pela Presidência. O Pavilhão de São Cristóvão, projeto recém- inaugurado de Sergio Bernardes, foi designado centro das festividades que se estenderam ao longo de todo o ano, e o símbolo projetado por Aloísio Magalhães – uma formalização geométrica do número 4 - varou a cidade em jornais, embalagens, biquínis, muros. No campo do urbanismo, esse período ficou marcado pela inauguração de uma série de obras de vulto, como o Parque do Flamengo e a adutora do Guandu 2 . Mas 1965 deve ser lembrado também pela conclusão do já citado Plano Doxiadis, gestado ao longo de quase dois anos por uma equipe interdisciplinar instalada entre o Rio de Janeiro e Atenas 3 . O Plano Doxiadis visava determinar, em linhas gerais, o desenvolvimento urbano do novo estado da Guanabara, prevendo sua expansão até o ano 2000, quando, de acordo com estimativas, sua população deveria chegar a 8,4 milhões de habitantes (quase o dobro da população recenseada em 1960 4 ). Segundo relato do próprio Lacerda 5 , veio de sua colaboradora e amiga Lota de Macedo Soares, então à frente das obras do Parque do Flamengo, o incentivo decisivo à convocação do já afamado urbanista grego Constantinos Doxiadis para a tarefa 6 . 1 Die Welt, in der wir leben, ist die von uns gemachte Welt. in: Aicher, Otl. Die Welt als Entwurf. p. 185. A tradução é nossa. 2 Ver Revista do Clube de Engenharia, número 344/346, de abril/junho de 1965 (edição comemorativa do IV Centenário da Cidade do Rio de Janeiro). 3 Para tanto foi criada, no Rio, a CEDUG (Comissão Executiva do Desenvolvimento Urbano do Estado da Guanabara), sob a liderança técnica dos arquitetos Hélio Modesto e A. Hadjapoulos e supervisão do coronel Américo Fontenelle. Vários arquitetos brasileiros e gregos trabalharam nessa comissão, entre eles Hélio Marinho e Daisy Igel. Ver Doxiadis Associates. Guanabara. A plan for urban development. e Reis, José de Oliveira. A Guanabara e seus governadores. Rio de Janeiro, Prefeitura Municipal, 1977. p.15. 4 A população da Guanabara em 1960 era de 4,5 milhões de habitantes. Ver Reis, José de Oliveira. A Guanabara e seus governadores. Rio de Janeiro, Prefeitura Municipal, 1977. p.15. 5 Entrevista de Constantino Apolos Doxiadis a Carlos Lacerda. 6 Konstantinos Apostolu Doxiadis (1913-1975) já tinha então projetos urbanos em vários continentes, sobretudo nos países árabes, e era internacionalmente conhecido por promover intensos debates teóricos sobre planejamento urbano e por formular as bases teóricas de uma

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Page 1: 4 Sergio Bernardes: o mundo como projeto · Guanabara. A plan for urban development. e Reis, José de Oliveira. A Guanabara e seus governadores. Rio de Janeiro, Prefeitura Municipal,

4 Sergio Bernardes: o mundo como projeto

“O mundo em que vivemos é o mundo que nós fizemos.”

O.Aicher, Die Welt als Entwurf1

O último ano da gestão de Carlos Lacerda como governador do Estado da

Guanabara coincidiu com o IV Centenário de fundação da cidade do Rio de

Janeiro. A data não poderia ser mais oportuna para alguém que permanecia firme

na disputa pela Presidência. O Pavilhão de São Cristóvão, projeto recém-

inaugurado de Sergio Bernardes, foi designado centro das festividades que se

estenderam ao longo de todo o ano, e o símbolo projetado por Aloísio Magalhães

– uma formalização geométrica do número 4 - varou a cidade em jornais,

embalagens, biquínis, muros. No campo do urbanismo, esse período ficou

marcado pela inauguração de uma série de obras de vulto, como o Parque do

Flamengo e a adutora do Guandu2. Mas 1965 deve ser lembrado também pela

conclusão do já citado Plano Doxiadis, gestado ao longo de quase dois anos por

uma equipe interdisciplinar instalada entre o Rio de Janeiro e Atenas3.

O Plano Doxiadis visava determinar, em linhas gerais, o desenvolvimento

urbano do novo estado da Guanabara, prevendo sua expansão até o ano 2000,

quando, de acordo com estimativas, sua população deveria chegar a 8,4 milhões

de habitantes (quase o dobro da população recenseada em 19604). Segundo relato

do próprio Lacerda5, veio de sua colaboradora e amiga Lota de Macedo Soares,

então à frente das obras do Parque do Flamengo, o incentivo decisivo à

convocação do já afamado urbanista grego Constantinos Doxiadis para a tarefa6.

1 Die Welt, in der wir leben, ist die von uns gemachte Welt. in: Aicher, Otl. Die Welt als Entwurf. p. 185. A tradução é nossa. 2 Ver Revista do Clube de Engenharia, número 344/346, de abril/junho de 1965 (edição comemorativa do IV Centenário da Cidade do Rio de Janeiro). 3 Para tanto foi criada, no Rio, a CEDUG (Comissão Executiva do Desenvolvimento Urbano do Estado da Guanabara), sob a liderança técnica dos arquitetos Hélio Modesto e A. Hadjapoulos e supervisão do coronel Américo Fontenelle. Vários arquitetos brasileiros e gregos trabalharam nessa comissão, entre eles Hélio Marinho e Daisy Igel. Ver Doxiadis Associates. Guanabara. A plan for urban development. e Reis, José de Oliveira. A Guanabara e seus governadores. Rio de Janeiro, Prefeitura Municipal, 1977. p.15. 4 A população da Guanabara em 1960 era de 4,5 milhões de habitantes. Ver Reis, José de Oliveira. A Guanabara e seus governadores. Rio de Janeiro, Prefeitura Municipal, 1977. p.15. 5 Entrevista de Constantino Apolos Doxiadis a Carlos Lacerda. 6 Konstantinos Apostolu Doxiadis (1913-1975) já tinha então projetos urbanos em vários continentes, sobretudo nos países árabes, e era internacionalmente conhecido por promover intensos debates teóricos sobre planejamento urbano e por formular as bases teóricas de uma

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Presumivelmente, Lacerda encontrou aí mais uma possibilidade de dar projeção

ao seu governo, não obstante as reações desfavoráveis por parte de uma parcela

significativa de engenheiros e arquitetos cariocas, dentre os quais Oscar

Niemeyer, Maurício Roberto e Lucio Costa, que se alinharam em ofensiva à

contratação de um escritório estrangeiro7. Muitos diziam que a inauguração de

Brasília, cinco anos antes, já deveria ser prova suficiente da capacidade técnica

dos profissionais brasileiros – e cariocas, acrescente-se, em particular. E além

disso, no dizer de Lucio Costa, o escritório de Doxiadis não era mais que “uma

firma empreiteira para explorar planos urbanísticos de países subdesenvolvidos”,

chefiada por “um cabotino”8.

O relatório preliminar do Plano Doxiadis foi entregue em março de 19659.

No mês seguinte, a revista Manchete publicou um número especial dedicado ao

Rio do Futuro. A capa é inteiramente consagrada ao projeto, anunciado como uma

“antevisão da Cidade Maravilhosa no século da eletrônica” [fig.110].

Curiosamente, não encontramos aí qualquer referência ao autor do projeto,

arquiteto Sergio Bernardes. Mas tampouco há sequer menção ao restante do

conteúdo editorial, embora esse incluísse assunto tão relevante quanto a sucessão

presidencial e o anúncio da surpreendente aliança entre Lacerda e o governador de

Minas Gerais, Magalhães Pinto. No mais, a revista apresentava, como de costume,

pauta ampla e heterogênea, amparada em imagens de forte apelo visual: enquanto

uma matéria anunciava a prisão de guerrilheiros no sul do país, outra alardeava o

sucesso da bossa-nova em Nova York. E ainda havia espaço para a publicação dos

perfis de Liz Taylor e Helena Rubinstein, entre crônicas de Rubem Braga e

Fernando Sabino. disciplina que nomeou de “Ekística” (Ekistics), destinada a estudar os aspectos físicos, sociais, econômicos e demográficos dos assentamentos humanos. 7 O Instituto de Arquitetos do Brasil chegou a encarregar uma comissão de arquitetos para estudar o contrato de Doxiadis com o governo da Guanabara. Essa comissão resolveu repudiar o contrato “por considerá-lo incompatível com o nosso estágio de desenvolvimento técnico e atentatório à cultura brasileira”. (apud Andreatta, Verena. Cidades quadradas, Paraísos circulares. p.298) Sendo então presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil, o arquiteto Maurício Roberto decidiu por afastar-se da direção da Esdi, para manter-se na oposição pública, secundada também pelo Clube de Engenharia, à contratação de Doxiadis. 8 Costa, Lucio. “O contrato com a Doxiadis Internacional Associados” in: Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 4.fev.1964. ver também a “Retificação” que se seguiu à publicação do artigo, no dia seguinte e no mesmo jornal, em que Lucio Costa confirma o adjetivo usado para caracterizar Doxiadis. 9 O Plano Doxiadis foi concluído em 20 de novembro de 1965, a exatos 15 dias do fim do governo de Lacerda, e por isso não chegou a ser aprovado. Meses antes, porém, foi entregue um relatório preliminar, em 26.mar.1965; esse relatório foi apresentado por Doxiadis a Lacerda em 23.jun.1965.

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Ao projeto de Sergio Bernardes garantiu-se, em todo caso, destaque

absoluto na edição. Sob o título sugestivo de Rio, admirável mundo novo, abriu-se

espaço equivalente a 36 % da revista para expô-lo. E nessas páginas,

curiosamente, não houve senão uma inserção publicitária: sinal de desconfiança

dos anunciantes diante do alcance público do projeto de Sergio Bernardes? Ou

temor, por parte da revista, de vincular o projeto a um apelo comercial? Sim,

porque os editores esforçaram-se por creditar ao projeto um caráter por assim

dizer científico, ou não o teriam precedido de resumo de artigo extraído da revista

Time, o qual, afirmava-se, “por coincidência, comprova os seus princípios”. Tal

artigo, intitulado A Idade da Cibernética, celebrava as perspectivas abertas pelos

computadores eletrônicos, ao aumentar as possibilidades das viagens espaciais,

mas também responder exigências da vida cotidiana. E de fato o artigo funcionava

como uma espécie de prelúdio ao que viria a seguir: 44 páginas de textos e

imagens de cores fortes (fotos, gráficos e desenhos) que juntos compõem toda

uma atmosfera de science fiction para o Rio do ano 2000. [fig.110-114]

Sem dúvida, dá-se ênfase maior às imagens que ao texto. E são antes de

tudo os desenhos que convocam a nossa atenção; ora em página dupla, ora em

página inteira ou página e meia, até chegar a ocupar quatro páginas seguidas que

se desdobram para revelar, num mapa-cartaz, a cidade idealizada por Sergio

Bernardes. Vale lembrar que àquela altura – pouco mais de dez anos após sua

criação - a Manchete já era reconhecida como a mais influente revista semanal de

circulação nacional, com uma tiragem que podia chegar a 800.000 exemplares10.

E o primoroso tratamento gráfico da edição só confirma o quanto se investia no

aspecto visual para que a revista continuasse a se distinguir entre as concorrentes.

Diz o editorial (assinado pelo diretor de redação, Justino Martins) que o

projeto de Sergio Bernardes foi feito “por sugestão de Manchete”. Esse aspecto

merece atenção, sobretudo se considerarmos o vínculo ao mesmo tempo tão forte

e peculiar que se produziu entre vanguarda e Estado no Brasil, de Vargas a

Kubitschek, pelo menos, ou do Ministério da Educação a Brasília. Conforme A.

Gorelik, se nesse período a vanguarda arquitetônica brasileira soube produzir

símbolos estatais, por outro lado o Estado soube potenciá-la como “a chave 10 Ao contrário de sua principal concorrente, a revista O Cruzeiro, a Manchete não declarava sua tiragem. A estimativa quanto ao número de exemplares deve-se a relato de Adolpho Bloch, fundador e proprietário da revista. Ver Andrade, Ana Maria Ribeiro de e Cardoso, José Leandro Rocha. “Aconteceu, virou Manchete”.

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modernizadora de sua ambição por uma cultura, uma sociedade e uma economia

nacionais” 11. É verdade que esse argumento, particularmente evidente na

dobradinha Niemeyer-Kubitschek, pode ajudar a esclarecer também a articulação

inicial entre Sergio Bernardes e Carlos Lacerda, embora esta tenha se produzido

em circunstâncias distintas e com duração bem mais limitada. Mas é igualmente

significativo que a partir de determinado momento Sergio Bernardes tenha optado

por exercer uma prática menos dependente do aparato estatal que estimulara a

produção dos anos 1930-40 e mais consorciada à lógica do mercado, em todas as

suas facetas – editorial, inclusive. E a prova de que seu desejo de emancipação do

patronato do Estado encontrou incentivadores entre empresários está justamente

na publicação do projeto do “Rio do Futuro” na revista Manchete- uma revista não

especializada, de grande circulação e fins nitidamente comerciais, supostamente

responsável pela encomenda do projeto ao arquiteto.

Seja como for, o projeto pode ser visto como uma provocação à concepção

de projeto de Doxiadis, que se apoiava em extenso levantamento de dados e numa

exaustiva análise da situação geográfica, social e econômica da Guanabara para

formular um masterplan (inteiramente redigido em inglês) de quase 500 páginas,

recheado de mapas e diagnósticos, do qual, entretanto, a arquitetura se via

praticamente excluída – ou melhor, resumia-se a dois ou três projetos-piloto de

casas populares apresentados na seção de “apêndices”. A opção pela pré-

fabricação, aliada à rigorosa modulação das plantas, indica que estes projetos

estavam em certa medida sintonizados com a política habitacional àquela altura já

vinculada ao BNH. Mas também deve ser ressaltado que pelo menos um dos

membros da equipe brasileira do Plano Doxiadis – a arquiteta Daisy Igel - vinha

de uma formação em arquitetura que dava ênfase considerável à produção

industrial, como já vimos. Ainda assim, é inevitável observar que a solução

arquitetônica do problema habitacional, tal como apresentada no relatório final do

Plano Doxiadis, não vai muito além de uma sugestão de caráter quase ilustrativo,

que o lugar secundário reservado à apresentação de tais projetos apenas contribui

para reforçar.

Hoje parece claro que, no radicalismo de sua proposta, Sergio Bernardes

se colocava na direção contrária à de Doxiadis, como que anunciando uma

11 Gorelik, Adrián. Das vanguardas a Brasília. Cultura urbana e arquitetura na América Latina.. p.164.

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resistência à ameaça de dissolução da experiência da arquitetura no planejamento

urbano. E não poupava esforços para garantir força comunicativa à sua

mensagem, mesmo que para isso fosse preciso apelar para ilustradores garimpados

nas nascentes agências de publicidade brasileiras (José Ramis, Anna Sakalys e

Janusz Stylo), os quais assinam as imagens produzidas originalmente em pranchas

de grandes dimensões, a guache (a propósito, vale dizer que do próprio traço de

Sergio Bernardes pouco se conhece; raras exceções publicadas, como a

perspectiva aérea do Pavilhão do Brasil na Exposição de Bruxelas [fig.157] e o

corte esquemático do Hotel em Manaus [fig.180], mostram um traço meio tosco,

algo infantil, quase o inverso simétrico da potência plástica das imagens do Rio do

Futuro). Mas o projeto de Sergio Bernardes opõe-se também à visão

desesperançada de um futuro sombrio, enraizada no mundo ficcional de H. G.

Wells e exacerbada, precisamente nos anos 1960, pelo cinema (vide 2001: uma

odisséia no espaço, de Stanley Kubrick, 1968). Longe de supor, como estes, o

domínio da tecnologia sobre o homem, Bernardes apela para “técnicas de

construção já comprovadas” – sem propriamente especificá-las - para propor uma

solução radicalmente verticalizada para a cidade, cujos problemas cada vez mais

graves de transporte (evidenciados nos dados apresentados por Doxiadis12) seriam

supostamente resolvidos com a instalação de um sistema integrado em vários

níveis compreendendo pistas de alta velocidade, “metrô vertical” e monotrilho,

além de duas pontes e um túnel cruzando a baía de Guanabara. No vigoroso

grafismo do mapa publicado em Manchete [fig.114] distinguem-se claramente as

gigantescas artérias de tráfego que se definem como princípio estruturador do

projeto, ao qual a maioria das edificações projetadas (habitação coletiva, escolas,

comércio, hotel, centros de lazer etc) encontra-se diretamente conectada. De resto,

não há ruas, casas ou lotes. Nem pedestres. Tudo o que vemos são edificações de

grande porte (à escala da América, bem se poderia dizer), cuja condição de

insularidade não chega a ser rompida pelas vias expressas que lhes tocam em um,

no máximo dois pontos. Ao norte, chama atenção um padrão regular de faixas

paralelas, em duas cores alternadas: são as áreas reservadas aos setores industrial e

agrícola, que Sergio Bernardes reaproxima e reequilibra, mas não permite que se

confundam (e o próprio arquiteto nos oferece uma pista valiosa a esse respeito,

12 Segundo dados do Plano Doxiadis, o número de licenciamento de veículos na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, havia crescido 120 % em sete anos (de 1957 a 1964).

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quando afirma que as áreas destinadas ao cultivo agrícola garantiriam “ar e

paisagem para o homem respirar e descansar os olhos fatigados”13) Mas o que se

destaca de imediato no mapa é sem dúvida o triângulo destinado ao centro

comercial e administrativo, localizado em Jacarepaguá. Este guardaria um de seus

vértices para a instalação, sobre plataforma elevada, de um edifício também de

planta triangular, destinado a abrigar os Três Poderes. Junto a ele, o Centro

Comercial (com lojas, escritórios, bancos etc): uma série limitada de prédios em

tronco de pirâmide, com 10 pavimentos cada e unidades de 1000 m2 (100x100m),

interligados por uma “calçada móvel”.

Deve ser notado, por sinal, que o mesmo ponto em Jacarepaguá serviria a

Lucio Costa para instalar, no governo seguinte (Negrão de Lima), o centro

metropolitano da cidade, em seu “Plano Piloto para a Baixada compreendida entre

a Barra da Tijuca, Pontal de Sernambetiba e Jacarepaguá” (1969)14. [fig.115] E as

consonâncias não param por aí: além de partilharem a localização do centro,

ambos os projetos propõem torres residenciais de grande altura, espaçadas entre si

um quilômetro e referidas à escala dos acidentes geográficos – ao Corcovado, no

caso de Bernardes; à Pedra da Panela, no caso de Lucio Costa. Sem desconsiderar

as diferenças mais óbvias entre os dois projetos (projetos esses, convém lembrar,

apresentados no intervalo de apenas quatro anos para a mesma cidade), é forçoso

reconhecer a grande distância existente, em termos de concepção urbanística,

entre os planos pilotos de Lucio Costa para Brasília e a região da Barra da Tijuca.

É verdade que no primeiro caso as terras eram devolutas, enquanto que no

segundo os terrenos eram em grande parte privados – e isso é apenas um dos

aspectos a serem examinados (em conjunto com fatores políticos e geográficos, é

claro) se se quer entender o caráter distinto das duas propostas, entre as quais

decorrem pouco mais de dez anos. Que o Plano Piloto de Lucio Costa para a Barra

da Tijuca deve algo ao projeto de Sergio Bernardes é, em todo caso, algo que cabe

reconhecer. Na verdade, é de se supor que a concepção de Sergio Bernardes tenha

inspirado, antes ainda, a proposta de Oscar Niemeyer para uma área localizada

entre a praia da Barra e a av. das Américas, a ser ocupada por um núcleo com

cerca de 70 torres residenciais cilíndricas com altura média de 30 pavimentos –

13 O Rio do Futuro. p.57 14 Costa, Lucio. Plano Piloto para a Baixada compreendida entre a Barra da Tijuca, o Pontal de Sernambetiba e Jacarepaguá.

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projeto que Lucio Costa viu com reservas (em função, sobretudo, do adensamento

proposto), mas não deixou de reconhecer como “contribuição decisiva” para o

partido do seu próprio plano para a Barra da Tijuca, cuja praia se converteria, nas

suas palavras, na “praia das Torres”15.

4.1 A cidade de Sergio Bernardes

À diferença do traçado axial, de raiz clássica, que define e delimita a

capital delineada por Lucio Costa, e da malha viária retangular, levemente

distorcida para amoldar-se à topografia local, do plano de Doxiadis para o Rio de

Janeiro [fig.116] , a cidade de Sergio Bernardes é concebida segundo uma

estrutura potencialmente evolutiva, um sistema arterial que se estende a partir de

um centro localizado entre os maciços da Tijuca e da Pedra Branca, em torno dos

quais se definem dois grandes anéis viários [fig.114]. Apesar de ter como ponto de

partida um centro (na sua relação de dependência mútua com uma área que pode

ser considerada periferia, ao norte da cidade), esse centro não corresponde a um

centro geométrico, não se define pela noção de concentração nem institui

hierarquias axiais e/ou viárias. O que vemos, isto sim, é um híbrido de

concentração e dispersão, permanência e mutabilidade, que no fundo talvez seja o

que melhor resume o caráter do projeto.

Considerando o interesse pelo urbanismo demonstrado por Sergio

Bernardes nesse projeto, não deixa de ser intrigante que ele tenha abdicado de

participar do concurso para o Plano Piloto de Brasília, realizado não muito antes

(1956-7). É possível que não se sentisse à época preparado para desenhar uma

cidade-capital. Ou que tenha optado por apostar em projetos mais pontuais em

Brasília, como o aeroporto internacional da cidade e a superquadra do

IBC/Instituto Brasileiro do Café (nenhum dos dois construído) [fig.124-125]. Ou

ainda, por suspeitar de um concurso que não guardava o anonimato dos

15 No memorial do Plano Piloto para a região da Barra da Tijuca, Lucio Costa afirmou que o projeto de Oscar Niemeyer “contribuiu decisivamente para a adoção (...) do partido que transformará a praia da Barra na futura praia das Torres.” Ressaltou, no entanto, que “esse projeto não poderá ser executado integralmente na forma proposta, porquanto iria criar uma barreira edificada bloqueando ostensivamente o acesso à baixada.”. Costa, Lucio. Registro de uma vivência. p. 350. Sobre o projeto de Niemeyer, ver Architecture d’Aujourd’hui 171, jan-fev 1974 (edição especial sobre Oscar Niemeyer), pp.66-69 e Acrópole 372, abr 1970, pp.22-24.

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concorrentes. Todas essas hipóteses são plausíveis, assim como também é

possível que a própria experiência de Brasília, em seus erros e acertos, e a

promessa de “aceleração do desenvolvimento industrial” aí vislumbrada16 tenha

despertado no arquiteto o desejo de se envolver mais a fundo com a dinâmica da

cidade contemporânea - desde que isso não implicasse limites à sua imaginação.

A oportunidade de pensar o Rio de Janeiro apresentava-se, em todo caso,

num momento especialmente favorável, embora delicado, no qual não obstante a

intensificação das tensões políticas e econômicas em decorrência do golpe militar,

não faltavam investimentos na modernização da assim chamada Belacap17. Para

livrar o Rio de Janeiro da imagem de “cidade devastada” usada no discurso de

Lacerda ainda como candidato ao governo da Guanabara18, o governo estadual

seguia somando capital público e recursos externos para levar adiante uma série

de projetos ligados à infra-estrutura urbana19. Além das obras já mencionadas da

adutora do Guandu e da urbanização do parque do Flamengo, isso incluiu a

expansão das redes de esgotos e de telefonia, a construção de viadutos e a

perfuração de túneis, a substituição de bondes por ônibus elétricos e a

reformulação do sistema de coleta de lixo, com a extinção da coleta por tração

animal e a construção de usinas de lixo20. Simultaneamente adotou-se um

conjunto de medidas visando a descentralização do poder público, dentre elas a

criação das Regiões Administrativas, às quais foi delegada a gestão dos assuntos

locais, à escala dos bairros.

16 Sobre Brasília, vale a pena confrontar duas declarações de Sergio Bernardes, que distam 20 anos entre si. “A aceleração do desenvolvimento industrial, aplicado à indústria da construção civil” foi uma das contribuições de Brasília citadas pelo arquiteto em resposta ao “Inquérito Nacional de Arquitetura”, série de perguntas endereçadas a arquitetos brasileiros por Alfredo Britto e publicadas pela primeira vez no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, em 1961. (ver Arquitetura número 7, janeiro 1963, p.40). Já no II Inquérito Nacional de Arquitetura, realizado em 1982, Sergio Bernardes afirma que “Brasília é um projeto medíocre” que gerou uma “arquitetura habitacional ditatorial”, e onde “é mais difícil de se projetar do que em Ouro Preto”. (ver II Inquérito Nacional de Arquitetura/Depoimentos. São Paulo, Projeto, 1982). 17 termo usada por Lacerda para contrapor a Guanabara à Brasília, erguida pela Novacap/Companhia Urbanizadora da Nova Capital. 18 “A cidade devastada e sua reconstrução”, discurso de Carlos Lacerda em 30.jul.1960 in: Lacerda, Carlos. O poder das idéias. 19 Para uma análise da relação entre recursos públicos e externos na administração de Lacerda ver Perez, Maurício Dominguez. Lacerda na Guanabara. A reconstrução do Rio de Janeiro nos anos 1960. 20 Para uma relação pormenorizada das obras, ver Reis, José Oliveira. A Guanabara e seus governadores. Rio de Janeiro, 1977. pp.15-21. Note-se, a propósito, que a criação da Esdi curiosamente não é incluída entre as realizações de Lacerda, mas constará da lista de realizações de seu sucessor, Francisco Negrão de Lima.

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Como assessor de Lacerda para assuntos de arquitetura e urbanismo desde

fevereiro de 1962, Sergio Bernardes teve participação direta ou indireta em

algumas dessas frentes; foi encarregado de projetar um restaurante popular no

Parque do Flamengo, por exemplo, e chegou a ter assento no Grupo de Trabalho

que deu origem à Esdi, como já vimos. O arquiteto chegou mesmo a reivindicar

para si a proposta de criação das Regiões Administrativas21. Mas seu encargo mais

importante no governo de Lacerda foi, sem dúvida, o plano de urbanização da

Baixada de Jacarepaguá22. Dele Sergio Bernardes se ocupou até afastar-se do

governo, quando da contratação de Doxiadis. Não há, salvo engano, registro de

que nesse período ele tenha chegado a entregar algum desenho ao governador ou

sua equipe. Mas não se pode negar o quanto essa experiência foi decisiva para o

aguçamento da sua sensibilidade para os problemas urbanos, o que levou-o, na

verdade, a uma atuação irrestrita ao raio de ação tradicional do arquiteto.

Passados dois meses da nomeação de Sergio Bernardes como assessor de

Lacerda, o Rio de Janeiro foi surpreendido com o Decreto 991, de 27 de abril de

1962 [anexo 1]. Além de permitir a construção de mais de dois prédios no mesmo

lote (desde que a distância entre eles fosse no mínimo igual à metade da altura do

mais alto), o decreto 991 liberou a altura das edificações na maior parte da cidade

(desde que o ganho na vertical fosse compensado por um afastamento mínimo das

divisas do terreno). Assim, se por um lado abriu-se caminho para a verticalização

da cidade, por outro lado foram garantidos afastamentos e recuos imprescindíveis

à execução das inúmeras obras de circulação viária que vinham sendo

implementadas23, bem como a definição de áreas non aedificandi (a serem

possivelmente usadas como jardins, recreação ou estacionamento), e a

preservação de boas condições de aeração e iluminação dos espaços construídos.

É difícil dizer até que ponto Sergio Bernardes teve alguma participação na

21 Cf Módulo, edição especial Sergio Bernardes, 1983. p. 41. Deve ser notado, porém, que a solução das Regiões Administrativas já vinha sendo defendida por Lacerda em sua campanha política, antes de assumir o cargo de governador. (veja-se “A cidade devastada e sua reconstrução”, discurso de Lacerda na convenção da UDN carioca, em 30.jul.1960. in: Lacerda, Carlos. O poder das idéias. pp.145-167). 22 Segundo Raphael de Almeida Magalhães, à época secretário de planejamento de Lacerda, Sergio Bernardes foi nomeado presidente de uma comissão destinada a apresentar o primeiro plano urbanístico para ocupação da Baixada de Jacarepaguá. Ver depoimento à autora, em 13.jun.2007. 23 Xavier, Hélia Nacif. Transformações recentes em um bairro residencial. Laranjeiras, o papel da legislação urbanística. p. 150.

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definição dessa nova normativa de ocupação do solo urbano24, mas não podemos

deixar de considerar a posição que o arquiteto ocupava junto ao governador

naquele momento, nem sua defesa cada vez mais firme da verticalidade – que se

tornaria a chave do projeto publicado na revista Manchete.

O decreto 991 chegou a motivar a reunião de arquitetos, engenheiros e

industriais da construção num seminário de três dias, no Clube de Engenharia, ao

final do qual o Instituto de Arquitetos do Brasil apresentou um documento que

acusava a ausência de um plano diretor para o Estado e propunha a criação de um

órgão técnico, subordinado ao Governador, para estudo dos problemas relativos

ao planejamento urbano da Guanabara25. Menos de um ano depois, Lacerda

assinaria outro decreto polêmico: o decreto 1509, de 1 de fevereiro de 1963

[anexo 2]. A formulação e redação deste é atribuída por Raphael de Almeida

Magalhães, então secretário de Planejamento do Estado da Guanabara, a Sergio

Bernardes26. Ao contrário do decreto 991, o decreto 1509 assume um caráter

claramente restritivo. O texto começa apresentando argumentos em favor do

interesse público: “a Zona Sul da Cidade exige normas que assegurem o respeito

ao interesse público e às técnicas de aproveitamento racional do espaço urbano”.

Em seguida, aponta “falhas na legislação [que] permitiram na zona sul da Cidade

uma concentração populacional de índice elevadíssimo, [...] sem qualquer

planejamento ou provisão de medidas complementares, como alargamento de

ruas, expansão dos serviços públicos de água, esgotos, luz etc.” E finalmente

defende a criação - “mesmo com prejuízo de interesses particulares” - de normas

para evitar que viesse a ocorrer aí “o mesmo que em Copacabana”, em função do

“tumulto gerado pela falta de normas severas de preservação da cidade” e da

subordinação desta “ao privatismo de iniciativas desordenadas, às vezes de

finalidade meramente especulativa”. Só depois dessas considerações introdutórias, 24 O arquiteto Pedro Teixeira Soares, que na época trabalhava na Sursan (Superintendência de Urbanização e Saneamento do Estado da Guanabara), acredita que o responsável pela parte urbanística do decreto 991 tenha sido o arquiteto Hélio Modesto, que também trabalhou posteriormente (em equipe com Hélio Marinho e outros arquitetos) na formulação do decreto “E” 3800/70, que substituiu o Código de Obras do Rio de Janeiro instituído pelo Decreto 6000 em 1937. Para Teixeira Soares, “o papel de Sergio Bernardes pode ter sido mais de articulador, por sua proximidade de Carlos Lacerda, de quem, além de amigo, era vizinho”. (depoimento a Ana Luiza Nobre e Hélia Nacif em 03.jul.2007) 25 “Decreto 911: seminário” in: Guanabara número 5, mar/abr 1962, pp.24-25. 26 segundo Raphael de Almeida Magalhães, Sergio Bernardes “formulou esse decreto, que depois foi muito desvirtuado”, o qual vinha ao encontro da proposta do governo de “aplicar uma política pública de restrições nas áreas ocupadas e de estímulo às áreas a serem ocupadas.” ver depoimento à autora, em 13.jun.07.

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expressas em 6 ítens, passa-se ao teor propriamente dito do decreto: o

estabelecimento de uma relação pré-determinada e obrigatória entre a área do

terreno e a área das unidades a serem construídas aí, ou mais especificamente, a

definição de uma cota de terreno de 60 m2 para cada unidade (residencial ou

comercial) que viesse a ser erguida a partir de então entre os bairros da Glória e da

Gávea27.

Somados, os dois decretos promoviam uma intervenção significativa na

legislação urbana da cidade, que há quase trinta anos vinha sendo definida por

meio de uma série de adendos ao Código de Obras de 1937 (o decreto 6000, que

só viria a ser substituído, na verdade, em 1967)28. Convém notar, aliás, que a

arquitetura moderna no Rio de Janeiro até então traduzira-se, no mais das vezes,

em eventos atípicos dentro de uma malha urbana de tendência uniforme,

dominada pelos parâmetros agachianos29, mediante os quais se mantinha vigente,

em linhas gerais, o padrão tradicional de edifícios colados nas divisas, com

gabarito fixo, configurando quadras fechadas com pátio interno, as quais por sua

vez configuravam as ruas e espaços públicos. Mesmo com a introdução do pilotis

na legislação urbana carioca, em 1951 (Dec. 10753) manteve-se como referência

primordial o instrumento do gabarito – número máximo de pavimentos permitido

pela legislação numa determinada área da cidade30. Ora, os decretos 991 e 1509

provocavam uma mudança profunda e sem precedentes – tanto em termos de

amplitude quanto em termos normativos - nesse padrão31, que com algumas

exceções de caráter mais pontual e geralmente com estatuto de obra pública

(como a Esplanada de Santo Antônio, no centro da cidade) sobrevivera mesmo

27 ver decreto 1509, de 1 de fevereiro de 1963. (Anexo 2) e depoimento de Raphael de Almeida Magalhães à autora, em 13.jun.07. 28 A Lei 1574 (dita “Lei de Desenvolvimento Urbano da Guanabara”), aprovada pela Assembléia Legislativa em 11 de dezembro de 1967, constituiu-se na primeira substituição do Decreto 6000, de 1 de julho de 1937, e seus decretos modificadores. Cf Xavier, Hélia Nacif. Transformações recentes em um bairro residencial. Laranjeiras, o papel da legislação urbanística. p. 150. 29 O urbanista francês Alfred Agache foi contratado pela Prefeitura do Distrito Federal em 1926 para projetar o que costuma ser considerado o primeiro plano urbanístico para o Rio de Janeiro. Embora não tenha sido oficialmente aprovado, o chamado Plano Agache serviu de referência para propostas posteriores, inclusive o Decreto 6000/ 1937, que definiu as bases do Código de Obras do Rio de Janeiro por quatro décadas. 30 Muito embora a legislação urbana tenha criado um estímulo ao uso do pilotis na cidade, ao deixar de computar este pavimento na medição do gabarito. 31 Segundo Pedro Teixeira Soares, vários edifícios foram construídos no Rio de Janeiro segundo esse novo parâmetro, entre eles o já citado edifício Mal Deodoro da Fonseca, (ver nota 188). Cf. depoimento de Pedro Teixeira Soares à Ana Luiza Nobre e Hélia Nacif Xavier, em 03.jul.2007.

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aos períodos em que Affonso Eduardo Reidy estivera à frente do Departamento de

Urbanismo da Prefeitura, entre 1948 e 195532.

Tanto ou mais que o decreto 991, o decreto 1509 provocou uma ampla

discussão pública, a ponto de merecer uma crônica (favorável) de Rubem Braga

no Jornal do Brasil33. Por sua vez, o editorial da revista Arquitetura – órgão

oficial do departamento da Guanabara do Instituto de Arquitetos do Brasil –

tomou o decreto 1509 como “um passo à frente para o controle da atividade

predatória da especulação com terrenos”, que estava conduzindo o Rio de Janeiro

“a um caos urbanístico de características insolúveis”34. O mesmo decreto

enfrentou, porém, forte oposição dos empreendedores imobiliários, e

conseqüentemente uma verdadeira queda-de-braço entre os poderes executivo e

legislativo, num processo cheio de idas-e-vindas que se prolongou quase até o

final do governo Lacerda35. Isso porque, na prática, o decreto 1509 colocava uma

série de embaraços à especulação imobiliária, na medida em que praticamente

forçava o remembramento dos lotes existentes (no mais das vezes resultantes da

subdivisão de chácaras e glebas maiores, e dimensionados para residências

unifamiliares) e a disposição de áreas livres no terreno. Evidentemente, o decreto

causava também um enorme impacto no valor imobiliário dos lotes. Por outro

lado, tratava-se de um rompimento decisivo com a noção de gabarito, e com isso

instituía-se uma liberação sem precedentes da área a ser construída (desde que

32 Não obstante o envolvimento decisivo de Reidy em projetos que reformularam, em muitos aspectos, a feição da cidade, como a urbanização da Esplanada de Santo Antônio, de 1948-9, onde os princípios do urbanismo corbusieriano se expressam com clareza. Deve-se notar, em todo caso, que os projetos de urbanização da Esplanada de Santo Antônio e do Aterro do Flamengo não implicaram mudanças significativas na legislação urbana do Rio de Janeiro, uma vez que essa não incide sobre os espaços públicos. Deve ser ressaltado também que cabia ao Departamento de Urbanismo muito mais o desenho de projetos de alinhamento que a formulação de decretos. 33 Braga, Rubem. “Desgoverno urbano”. in: Jornal do Brasil, 9.jun.1965. 34 Arquitetura número 10, abril 1963, p.4. 35 O processo se estendeu até 1965, e revela a reação enfrentada pela proposta de Sergio Bernardes: ao Decreto 1509, de 1 de fevereiro de 1963, seguiu-se o decreto 1585, de 18 de março de 1963, que ampliava sua área de abrangência para o bairro da Tijuca. A fim de revogar esses dois decretos, a Assembléia Legislativa votou, ainda em 1963, o projeto de lei 404, que foi vetado pelo governador. Este promulgou então o Decreto “N”de 21 de maio de 1964, consolidando os dois decretos anteriores. Seu veto foi, no entanto, derrubado na Assembléia, o que permitiu a promulgação da Lei 791, de 14 de abril de 1965 (oriunda do projeto 404), que reinstituiu normativas anteriores a 1963, inclusive o instrumento do gabarito. Simultaneamente, constitui-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito visando apurar denúncias de corrupção dos deputados para derrubada do veto do governador. De todo modo, sob o argumento de que cabia ao Poder Executivo a prerrogativa do licenciamento das obras, Lacerda declarou que a promulgação da Lei 791 seria, na prática, ignorada no seu governo. Ver Diário Oficial do Estado da Guanabara de 1/02/63, 19/03/63 e 25/05/64; Diário Oficial da Assembléia Legislativa de 28/04/65 e depoimento de Raphael de Almeida Magalhães à autora.

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respeitada a relação estabelecida entre o número de unidades e a área de terreno,

bem entendido). Ao romper com a normativa do gabarito, renunciava-se também a

uma das bases fundamentais de uma tradição urbanística que tinha em Paris seu

paradigma por excelência, com rebatimentos, de certo modo, também sobre

Brasília. Aquele perfil regular e uniforme que caracteriza, a despeito de todas as

suas diferenças, a Place Royale (atual Place des Voges) em Paris (séc.XVII), o

Plan Voisin de Le Corbusier (1925) ou as superquadras de Lucio Costa (1957)

certamente não teria lugar na cidade de Sergio Bernardes, uma cidade aberta à

diversidade e ao imprevisível, pois pensada não mais segundo a noção de

composição (i.e., de acordo com relações harmônicas entre massas edificadas, e

dentre essas e os espaços livres) senão com base na matemática (i.e., segundo uma

equação composta por variáveis e, como tal, indeterminada por natureza). Quer

dizer, se no primeiro caso trabalhava-se com a predefinição de uma fisionomia

urbana (a permanecer como referência, não obstante quaisquer alterações sofridas

no tempo), no segundo colocava-se em jogo, de saída, uma alta dose de

indefinição quanto à configuração da cidade.

4.2 “Bairros verticais”

Não encontramos referência a qualquer projeto de Sergio Bernardes,

anterior a década de 1960, do qual conste uma proposta tão abrangente para o Rio

de Janeiro quanto aquela publicada na revista Manchete36. Além de abrangente, a

proposta era ostensivamente ousada, por sustentar uma nova estrutura de cidade

que não se integrava em nada à preexistente e permitia, no máximo, que esta

permanecesse como uma lembrança esmaecida (cuja trama ainda podemos

entrever, não sem algum esforço, em pelo menos uma das perspectivas

publicadas).

Na verdade, um alto índice de inconformismo ante a realidade existente é

o que permite a Sergio Bernardes pensar o Rio de Janeiro como uma cidade

36 O projeto publicado na “Manchete” inclui, na verdade, pelo menos uma proposta anterior do arquiteto: o aeroporto da cidade, projeto amplamente divulgado pelo autor, que chegou, inclusive, a alugar espaço junto ao cinema Rian, em Copacabana, para expô-lo. Cf depoimento de Pedro Teixeira Soares a Ana Luiza Nobre e Hélia Nacif Xavier, em 03.jul.2007.

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espantosamente ordenada e plena de espaços verdes, possibilitados pela

concentração de todas as unidades habitacionais nos chamados bairros verticais:

156 torres helicoidais com cerca de 50 m de diâmetro e 600 m de altura – “quase à

altura do Corcovado”, conforme ressalta o autor do projeto [fig.119 e 121]. Cada

uma dessas torres de dimensões quase inimagináveis teria um núcleo central de

serviços (redes gerais de água, luz, gás e esgoto) e estaria pousada sobre uma base

de 37.500 m2, destinada a abrigar um centro comercial local, estacionamento e

administração. Bairros, e não edifícios de apartamentos - insiste o arquiteto -,

essas torres helicoidais, virtualmente infinitas como as colunas de Brancusi,

supostamente seriam capazes de abrigar, no total, 3.120.000 unidades

habitacionais, ou 15.600.000 pessoas. Isto é, 100.000 habitantes por torre, número

muitas vezes superior, por exemplo, à população (da ordem de 1.600 pessoas) que

Le Corbusier quis abrigar em suas Unidades de Habitação – projeto considerado

paradigma, no pós-guerra, da articulação de habitações e serviços num só edifício

de grandes dimensões.

Não há mais que indicações sumárias na revista Manchete com relação à

solução em planta dessas torres. Mas um projeto pouco posterior (Hotel Tropical

em Recife, 1968) [fig.123] permite supor como poderiam ser os “Bairros

verticais” do Rio: no caso de Pernambuco, pretendia-se construir sobre a água

uma torre helicoidal com 24 pavimentos-tipo, provida de um núcleo cilíndrico de

22 m de diâmetro, destinado a circulação e instalações. Desse núcleo sairiam dois

gomos, com nove apartamentos cada, que se deslocariam cerca de 15 graus por

pavimento, configurando uma gigantesca escada helicoidal enrijecida em seu

perímetro externo por uma viga de amarração que serviria ao mesmo tempo de

rampa37.

Graças ao adensamento populacional e à concentração de infra-estrutura, a

solução análoga para o Rio permitiria que o perfil recortado das montanhas

cariocas seguisse quase intocado, a não ser pelas gigantescas torres helicoidais

dispostas a cada quilômetro, que parecem intencionalmente rivalizar com a

imagem do edifício-viaduto com o qual Le Corbusier enfrentara essa mesma

paisagem, ainda no final da década de 1920. Com efeito, em vez de buscar apoio

na horizontal, na qual Le Corbusier viu a “única linha que é capaz de cantar

37 Cf Vieira, Monica Paciello. Sergio Bernardes: arquitetura como experimentação. pp.102-105.

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harmoniosamente com o capricho veemente dos montes”38, Sergio Bernardes

tratou de defender uma proposta radical de verticalização – mas, nas suas

palavras, uma “verticalização ousada”, e não a “verticalização tímida” encontrada

em Copacabana, por exemplo, que aos seus olhos só fazia agravar os problemas

urbanos, por fazer de cada proprietário de um lote um especulador em potencial.

[fig.121 e 122] Além de combater a dispersão e o desperdício de infra-estrutura

próprios das cidades estendidas desmesuradamente, tendentes a fundir-se nas

megalópoles preconizadas por Doxiadis39, os “bairros-verticais” permitiriam que a

população migrasse à vontade de uma área a outra da cidade, sem comprometer a

estrutura desta.

Sergio Bernardes mesmo considerou seu projeto para o condomínio

residencial Casa Alta (1963), em Botafogo, um antecedente construído para os

bairros verticais40. [fig.129-130] Embora operando numa escala muito menor, e

apesar de ter sido apenas parcialmente desenvolvido sob a coordenação do

arquiteto41, o projeto do condomínio Casa Alta - e com ele o Edifício da Torre,

proposto pouco antes para São Paulo (em colaboração com Ennes Silveira Mello)

– pode, em certa medida, ser localizado na raiz do processamento da idéia de

verticalização da habitação coletiva culminante nos bairros verticais. Isso porque

no projeto Casa Alta, apresentado pelo arquiteto como “o primeiro loteamento

vertical”, são introduzidas e testadas algumas das premissas projetuais que mais

adiante serão retomadas e desenvolvidas nos chamados bairros verticais: a

elaboração de redes de tráfego independentes para pedestres e automóveis, a

incorporação de programas complementares à moradia no corpo do edifício e a

concentração de estrutura e infra-estrutura em torres de serviços, de modo a

liberar as unidades habitacionais de quaisquer interferências estruturais e de

instalações e assim oferecer ao morador, ao menos em teoria, liberdade total no

arranjo interno da sua unidade42. É verdade que o projeto Casa Alta sequer

38 Santos, Cecília Rodrigues dos et alii. Le Corbusier e o Brasil. p.96. 39 “no futuro não haverá Rio e São Paulo separadamente, mas uma só megalópolis, uma gigantesca Rio-São Paulo”, declarou o urbanista grego. ver “Entrevista de Constantino Apolos Doxiadis a Carlos Lacerda” in: Jornal do Brasil, 13/3/1972 40 Casa Alta. (Folder de lançamento do empreendimento) 41 O conjunto compreende 3 edifícios, chamados de Etapa A, B e C; destes, apenas o A foi desenvolvido pelo arquiteto. Segundo Pontes, Ana Paula. Individualismo de massa: a habitação coletiva na obra de Sergio Bernardes. 42 Vale a pena atentar para as contradições encontradas por Ana Paula Pontes nesse projeto. Em primeiro lugar, a liberdade prometida pela planta livre de obstáculos resulta, na verdade, contrariada pela própria área das unidades habitacionais. Afinal, em 120 m2 não há tantas

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chegava perto do grau de liberdade oferecida muito antes por Le Corbusier em

seus projetos para o Rio de Janeiro (1929) e Argel (1932-42) – nestes, uma vez

definida a superestrutura do edifício, os espaços habitáveis restariam fora do

controle do arquiteto, a serem edificados de acordo com o gosto e as necessidades

dos moradores. Mas nem por isso o projeto de Sergio Bernardes deixava de ser

anunciado como uma “carta de alforria’ ao cliente para livrá-lo da escravidão das

gavetas, tristes substitutos modernos das casas”, conforme se lê no folheto

promocional do empreendimento.

Ainda segundo esse folheto, o projeto fora apresentado por Sergio

Bernardes em Munique, na Alemanha, em abril de 1963, numa ocasião em que

“sociólogos, humanistas e críticos de arte – gente vinda, em grande parte da

Bauhaus” teria discutido “a tirânica padronização das habitações”43. Por mais que

tal afirmação possa ser colocada sob suspeita44, a referência à Bauhaus certamente

não era fortuita, e se considerarmos a associação quase imediata, naquele

momento, dessa escola com a HfG (não obstante a reorientação desta após o

afastamento de Max Bill), não podemos deixar de notar que o problema que então

se colocava para o arquiteto brasileiro tinha a ver com uma questão na qual

também achava-se envolvida, de uma maneira ou de outra, a escola ulmiana,

conforme já vimos.

Assinale-se que a questão sobre a altura mais adequada para as habitações

da cidade moderna havia sido amplamente discutida no CIAM II (Frankfurt,

1929) e III (Bruxelas, 1930)45, encontros que ficaram marcados pela defesa dos

edifícios altos por Gropius, que definiu então a casa unifamiliar com jardim como

“um empréstimo tomado à vida no campo”, uma construção anti-econômica e

inadequada às necessidades psicológicas e sociais dos habitantes da cidade

industrial moderna46. Por isso sua localização, segundo Gropius, deveria se limitar

variações possíveis que atendam ao programa típico das famílias de classe média às quais o edifício se destinava. Além disso, a solução adotada, com lajes duplas entre os pavimentos para encaminhamento horizontal dos dutos de instalações, é de manutenção ainda mais difícil e custosa do que a solução convencional, com os dutos correndo na horizontal. Ver Pontes, Ana Paula. Individualismo de massa: a habitação coletiva na obra de Sergio Bernardes. 43 Casa Alta. Sergio Bernardes. Texto de Tarciso Leal. p.11. 44 Conforme depoimento do arquiteto alemão Hans-Jörg Fuchsloch, que trabalhou com Sergio Bernardes no Rio de Janeiro entre 1964 e 1965, a palestra deste ocorreu, na verdade, num Fórum de fabricantes de tapetes (e por indicação de Oscar Niemeyer, o qual, convidado inicialmente, teria declinado do convite). Cf. depoimento de Hans-Jörg Fuchsloch à autora, em 10.jul.2005. 45 Aymonino, Carlo. La vivienda racional. Ponencias de los congresos CIAM 1929-1930. 46 Gropius, W. “Construções baixas, médias ou altas?” In: Bauhaus: Novarquitetura. p.159.

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no máximo à periferia, ao contrário dos edifícios altos, que - desde que em boas

condições de ventilação - foram considerados “a forma ideal de habitação”.

Se é a essa orientação que, de certo modo, os bairros verticais de Sergio

Bernardes terminam por remeter, no Casa Alta a questão passa também por

recusar a rigidez implicada nas casas padronizadas, sem abrir mão do raciocínio

modular. É isso, pelo menos, o que se pretende ao colocar em xeque o princípio

das residências unifamiliares (pelo menos no sentido tradicional, que vincula um

núcleo familiar ao solo). Na verdade, a casa, propriamente dita, vai sendo

progressivamente eliminada dos projetos urbanos de Sergio Bernardes, por mais

contraditória que essa direção se mostre em relação aos padrões residenciais da

clientela que o arquiteto seguiu atendendo em paralelo, tanto no Rio quanto em

São Paulo (onde chegou a ter escritório, no início da década de 196047).

Convém atentar, de todo modo, para a distinção feita por Sergio Bernardes

entre edifício e bairro vertical. Estendidos virtualmente ao infinito, estes tratariam

de oferecer, segundo ele, não apartamentos mas lotes verticais – no caso do

projeto publicado na Manchete, trabalhou-se com a cifra de 20.000 lotes de 100

m2 para cada “bairro vertical”. É verdade que os bairros verticais de Sergio

Bernardes tomarão, ao longo do tempo, configurações diversas e em alguns

momentos razoavelmente distintas das curvas helicoidais que vemos nas páginas

da revista Manchete – basta comparar este projeto, por exemplo, com a proposta

bem posterior de ocupação de uma área de 1,2 milhão de metros quadrados às

margens do canal de Sepetiba, na Barra da Tijuca, com quatro bairros verticais de

planta estrelada.48 [fig.133] Mas em princípio, todas as versões de bairros

verticais mantêm em comum o desejo de ir além da noção já esvaziada de sentido

revolucionário do arranha-céu. É sua ambição, segundo Bernardes, realizar ao

mesmo tempo a tarefa impossível de “libertação do solo e da gravidade” e a

limitação da expansão horizontal da cidade. E nisso eles sugerem uma

proximidade muito maior com as grandes estruturas dos metabolistas japoneses e

do grupo britânico Archigram, como veremos adiante.

47 Em São Paulo, Sergio Bernardes associou-se, nos anos 60, a Eduardo de Almeida e Ennes Silveira de Mello. São desse período as residências José Luiz de Magalhães Lins e Jayme de Souza Dantas, respectivamente no Rio de Janeiro e em São Paulo. 48 ver Módulo, edição especial Sergio Bernardes, 1983. p.55. Trata-se de uma edição especial da revista, inteiramente dedicada a Sergio Bernardes e publicada como catálogo da exposição do arquiteto no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em outubro/novembro de 1983.

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Antes disso, porém, convém determo-nos um pouco mais na terminologia

usada por Sergio Bernardes. Se tomarmos a publicação oficial do governo da

Guanabara para o IV Centenário do Rio de Janeiro, veremos que já aí se alertava

para a imprecisão da noção de bairro, à qual se confiava uma certa identidade

raramente coincidente com as unidades fiscais ou administrativas, porém definida

por um “sentimento coletivo” de seus habitantes e por uma certa paisagem urbana

(tipos de casa, disposição das ruas, sítio de implantação etc)49. Pode-se dizer que é

esse sentimento de pertencimento a uma coletividade que o bairro vertical de

Sergio Bernardes pretende explorar, embora nem por isso ele se disponha a buscar

qualquer identificação com um determinado sítio ou paisagem urbana. Trata-se,

de fato, de um pensamento generalizante, e por princípio refratário a qualquer

localismo.

Em nenhum outro texto de Sergio Bernardes encontramos uma formulação

mais completa dos bairros verticais que no livro publicado uma década depois da

edição de Manchete: Cidade. A sobrevivência do poder (Guavira, 1975). Mais

uma vez, não é só o título que é provocativo. Nesse livro, o arquiteto começa por

afirmar “que a atividade especulativa é inerente ao homem”, para se propor a

“dirigi-la de forma mais produtiva e racional, (...) com o objetivo de conciliar

homem e ambiente”50. Uma vez que o Brasil optara por desenvolver-se segundo

as regras de uma economia de mercado, diz ele, seria preciso levar essa opção às

últimas conseqüências; daí a proposta de criação das “células urbanas”: unidades

modulares com um núcleo habitacional verticalizado, constituídas juridicamente

como sociedades anônimas. A tese se complementa com os Bônus patrimoniais,

proposta teórica de capitalização do solo urbano apresentada pelo arquiteto em

diversas ocasiões e posteriormente tornada objeto de publicação específica (Bônus

patrimoniais. LIC/Laboratório de Investigações conceituais, 197751). Uma postura

49 Soares, Maria Terezinha Segadas. “A fisionomia das unidades urbanas”. 50 Bernardes, Sergio. Cidade. A sobrevivência do poder. p.31 51 O LIC/Laboratório de Investigações Conceituais foi criado na década de 1970 dentro da estrutura de SBA-Sergio Bernardes Associados (escritório sediado na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, em edificação projetada pelo próprio arquiteto) e se constituiu como um grupo de trabalho interdisciplinar destinado a desenvolver “trabalhos de reflexão e formulação que se consubstanciem em projetos de estudo e pesquisa” voltados para o desenvolvimento urbano. Há dados contraditórios quanto à data exata de sua criação; segundo texto de Sergio Bernardes publicado em 1983 na revista Módulo (número especial sobre Sergio Bernardes), o LIC nasceu em 1979. No entanto, observamos que o livro “Bônus patrimoniais”, publicado em 1977, já dava crédito ao LIC. Segundo depoimento de Kykah Bernardes à autora, o LIC contava, entre seus

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no mínimo corajosa, considerando a ameaça à arquitetura associada à especulação

imobiliária. E, é claro, as implicações de uma defesa do poder naquele momento –

já em pleno governo Geisel.

Aos poucos vamos vendo que a preocupação de Sergio Bernardes em

encontrar uma resposta para o crescimento acelerado das cidades implicava, no

caso, alterar radicalmente a legislação urbana, reformular conceitos de

organização social, a ocupação do solo urbano e rural. Por outro lado, refutar a

noção de megalópole de Doxiadis significava reinvestir a forma urbana de valor.

O que, no caso, era o mesmo que retirar a questão estética de uma condição

secundária, ou mesmo irrelevante, na qual essa ia se vendo cada vez mais

confinada na prática da planificação urbana, e ao mesmo tempo considerar o

problema estético menos em termos do edifício, como unidade plástica autônoma,

do que à escala da metrópole contemporânea.

4.3 Jogo de helicoidais

O projeto para o Rio do Futuro de Sergio Bernardes pode ser situado

dentro de um ciclo de propostas ditas visionárias – termo que dá nome a uma

exposição organizada pelo MoMA e exposta na VIII Bienal de São Paulo, também

em 1965, com projetos de Bruno Taut, Kiyonori Kikutake, Paolo Soleri, Frederick

Kiesler, Louis Kahn e Buckminster Fuller, dentre outros52. Cidades subterrâneas,

cidades flutuantes, cidades helicoidais, cidades-ponte: segundo o curador da

exposição (Arthur Drexler), o que aproxima estes projetos é, essencialmente, sua

dimensão crítica e o grau de desafio que se colocam, ao buscar soluções para os

problemas derivados do congestionamento e adensamento dos grandes centros

urbanos na conjugação entre tecnologia e imaginação. Sem dúvida é essa a

direção para a qual o trabalho de Sergio Bernardes deriva, mais marcadamente a

partir de meados dos anos 60 – veja-se o projeto para o Hotel de Manaus (1963-

70) [fig.179,178,184], cuja gigantesca cúpula geodésica, afinal desenvolvida no fundadores, com o médico Ivo Pitanguy e o economista Roberto Campos. Ver Bônus patrimoniais. Capitalização do solo urbano e Módulo especial sobre Sergio Bernardes, 1983. 52 A exposição, exibida primeiramente no MoMA, em 1960, circulou a partir de então por vários países. A mostra era composta por 45 projetos de 30 arquitetos, oriundos de sete países (França, Grã-Bretanha, Alemanha, Japãp, Holanda, Rússia e Estados Unidos). ver Fundação Bienal de S.Paulo. Catálogo da VIII Bienal de São Paulo, set/nov 1965.

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Brasil pelo engenheiro Jayme Mason, chegou a ser submetido, numa de suas

versões anteriores, ao próprio Buckminster Fuller53. Ora, por este viés, é possível

aproximar Sergio Bernardes também de alguns movimentos de vanguarda das

primeiras décadas do século XX, principalmente do futurismo italiano (compare-

se, por exemplo, o Centro Comercial do Rio do Futuro de Bernardes e os

Terrassenhäuser da Cidade Nova de Sant´Elia54) [fig.117-118] e do

expressionismo arquitetônico alemão, em sua obsessão por escapar do cerco da

racionalidade ocidental. Em que pese a distância entre a arquitetura de Bernardes

e a obra de um Taut, por exemplo, não deixa de ser significativo que a prática

projetual daquele tenha caminhado para o domínio da fantasia no exato momento

em que se deflagra aqui a brutalidade do golpe militar - e aproveitando de certa

maneira as possibilidades inauguradas por aqueles arquitetos que, a seu modo e

em seu tempo, se dispuseram a “reagir ‘criativamente’ à experiência destrutiva da

guerra e da derrota”55 . Não que o arquiteto brasileiro tenha, a qualquer momento,

demonstrado alguma inclinação por um posicionamento político de esquerda. Já

vimos como sua proximidade com Carlos Lacerda foi altamente produtiva nos

primeiros anos da década de 1960, e o mesmo se pode dizer do período mais

negro do regime militar, em que Sergio Bernardes concebeu vários edifícios

públicos de envergardura para o poder estatal, como o Ministério da Marinha

(Brasília, 1970) e o Mausoléu de Castello Branco (Fortaleza, 1968) [fig. 132].

Dentre esses projetos, por sinal, aquele que é provavelmente o mais significativo

nem encerra um espaço arquitetônico, mas não deixa de ter uma presença pública

inegável: o mastro da bandeira nacional, estrutura tubular de aço, com 100 m de

53 Documentos encontrados nos arquivos de Buckminster Fuller na Universidade de Stanford revelam uma correspondência intensa entre este e Sergio Bernardes ao longo do ano de 1968, a propósito do projeto de duas cúpulas de grandes dimensões no Brasil (nenhuma delas realizada): uma para o Hotel em Manaus, outra para o estádio do Corintians em São Paulo. Dentre os documentos encontrados, devemos destacar também o esboço de um projeto do qual ambos seriam consultores, destinado à criação de uma associação não-governamental, com sede em Nova York, voltada para promover o desenvolvimento de uma área específica, porém não identificada, no Brasil. 54 Denomina-se “Terrassenhäuser” (literalmente, edificações em terraço) ou “estrutura em A” os edifícios escalonados usados pelo italiano Antonio Sant’Elia (1888-1916), um dos pioneiros do movimento moderno em arquitetura que afetou mais diretamente os megaestruturalistas, segundo Reyner Banham. Ver Banham, R. Megaestructuras. 55 Argan, “A arquitetura do expressionismo” in: Projeto e Destino. p. 193.

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altura, fincada na Praça dos Três Poderes, em Brasília, no começo da década de

197056. [fig.131]

Cúpulas de cristal sobre os Alpes, torres helicoidais sem começo nem fim

sobre a Serra do Mar; se é possível encontrar um traço comum entre tais propostas

– que noutros aspectos, especialmente no que diz respeito ao compromisso

político de seus autores, permanecem, a rigor, incompatíveis – esse traço comum

está na confiança extrema e genuína que os arquitetos que as conceberam

depositaram na técnica de seu tempo, e na forte expressão gráfica na qual

buscaram apoio para veicular seus projetos. Neles, a fantasia e a exacerbação da

técnica andam de braços dados. E uma vez que esta segue colocando à disposição

novos materiais e produtos, não há porque supor limites para a invenção. A

tecnologia industrial, afinal, promete ser capaz de tudo, inclusive transpor a utopia

e a ficção científica para a realidade.57

A operação na qual Bernardes investe para inserir seu projeto no circuito

de comunicação de massa mostra-se, por sua vez, bastante atenta, e é preciso

dizer, absolutamente atualizada com o pensamento urbanístico que emerge no

meio da arquitetura no começo dos anos 1960, como desdobramento da crise do

urbanismo modernista nascida no próprio interior dos CIAM. É certo que a

circulação da Manchete ocorre num ambiente em tudo distinto daquele onde se

propagam os sedutores panfletos do grupo Archigram, constituído na cena

alternativa de Londres entre o final da década de 1950 e o início da década de

196058. E tampouco encontraremos em Sergio Bernardes o desejo de dar uma

“injeção de ruído no sistema” que, conforme Kenneth Frampton59, motivou a

articulação em grupo dos arquitetos do Archigram (Warren Chalk, Peter Cook,

Dennis Crompton, David Greene, Ron Herron e Mike Webb) e a publicação, em

papel barato e impressão econômica, de nove edições do periódico homônimo,

entre 1961 e 1974. É preciso notar, antes de tudo, que à diferença desses

arquitetos – todos então recém-formados – Bernardes já contava, àquela altura,

com mais de 40 anos; era um arquiteto conhecido e respeitado internacionalmente,

56 A altura do mastro foi determinada pela decisão de colocar a bandeira acima das representações dos Três Poderes. Sua estrutura é constituída de 24 tubos – número equivalente à quantidade de estados do Brasil na época - que convergem para um ponto único, formando um cone. Neste ponto nasce um tubo único que sustenta a bandeira de quase 300 m2. 57 Argan, G.C. Arte moderna. p. 514. 58 Ver Cook, Peter (ed). Archigram. 59 Frampton, K. Historia critica de la arquitectura moderna, p. 285.

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cujo currículo compreendia vários prêmios (da Bienal de São Paulo à Trienal de

Milão), algumas exposições (inclusive uma sala especial na VII Bienal de São

Paulo, em 1963) e nomeações de prestígio (como o cargo de presidente da

comissão do plano urbanístico da Baixada de Jacarepaguá, no governo de Carlos

Lacerda). Além disso, seu currículo já apresentava uma boa quantidade de obras,

muitas delas publicadas nas revistas especializadas de maior prestígio na época:

L’architecture d’aujourd’hui (França), The Architectural Review (Inglaterra),

Zodiac (Itália), além das brasileiras Habitat, Módulo, Acrópole e Arquitetura e

Decoração, dentre outras. Desse modo, e considerando a supremacia do caráter

autoral que permanecia em absoluta vigência na arquitetura carioca, não é de

admirar que a ação de Sergio Bernardes se sustentasse individualmente, enquanto

os arquitetos do Archigram moviam-se em grupo, sem o que dificilmente teriam

conseguido abrir espaço no meio altamente institucionalizado da arquitetura

inglesa.

A extravagância e mesmo o excesso das suas propostas, o desafio de

retirar a arquitetura dos espaços institucionais consolidados e inseri-la no circuito

da comunicação de massa (no caminho aberto à arte pela estratégia pública da pop

art), assim como a alta dose de otimismo e confiança no desenvolvimento

científico-tecnológico que impregna seus projetos naquele momento, permite-nos,

porém, aproximar Sergio Bernardes do Archigram, e até mais do movimento

metabolista japonês, definido simultaneamente ao Archigram e em sintonia com

este60. Muito embora os arquitetos ditos metabolistas estivessem longe de

comprometer-se com movimentos de contra-cultura, como o grupo britânico, e ao

contrário deste, se inclinassem por fundir aspectos pragmáticos e utópicos em seus

projetos61. Na Inglaterra, propostas carregadas de ironia como a Walking City

(Herron, 1964) e a Plug-in-City (Cook, 1967) [fig.134-135]; no Japão, a série de

60 Considera-se o ponto de origem do movimento metabolista a declaração “Metabolism: The proposals for New Urbanism”, publicada em 1960, por ocasião da World Design Conference, em Tóquio, e assinada pelos arquitetos Noriaki Kurokawa, Kiyonori Kikutake, Masato Otaka e Fumihiko Maki e pelo crítico de arquitetura Noboru Kawazoe. Convém destacar a presença, nessa conferência, de Peter e Alison Smithson (Inglaterra), Jean Prouvé (França) e Louis Kahn (EUA). Cf Guiheux, Alain. Kisho Kurokawa. Le Métabolisme 1960-1975. 61 Colquhoun, Alan. La arquitectura moderna. Una historia desapasionada. p.225. Com efeito, convém notar que diversos projetos metabolistas foram executados, boa parte deles na esteira das obras executadas para a Feira Internacional de Osaka, em 1970 (como o Pavilhão Takara, de K.Kurokawa, que antecipa a solução em cápsulas que se verá a seguir na Torre Nakagin, do mesmo arquiteto (Tóquio, 1970). A esse respeito, ver Guiheux, Alain. Kisho Kurokawa. Le Métabolisme 1960-1975.

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cidades flutuantes de Kiyonari Kikutake (1958-62) e Kasumigaura (1961) e os

edifícios helicoidais de Kisho Kurokawa (1961) [fig.136-137]; no Brasil, os

bairros verticais de Sergio Bernardes: cada uma dessas megaestruturas62 - para

usar o termo cunhado por Fumihiko Maki – sustenta, de todo modo, uma resposta

positiva ao inchamento das cidades contemporâneas, somada a uma postura

transgressiva em relação à doutrina urbana instituída por Le Corbusier na Carta de

Atenas63.

O chamado movimento megaestruturalista teve repercussão ampla e quase

imediata em vários países europeus – na França e na Itália, sobretudo (com

representantes como Yona Friedman e Ludovico Quaroni, respectivamente) - e na

América (com Paolo Soleri, Paul Rudolph e outros). No Brasil, aquelas propostas

encontraram eco ainda no final dos anos 1950, nos super-blocos de 300 m de

altura e 16.000 habitantes de Rino Levi e equipe para Brasília64 [fig.126], e

ganharam desdobramento numa seqüência de projetos de Sergio Bernardes. Este,

em particular, fez questão de se mostrar em dia com o movimento

megaestruturalista; seu projeto para o Rio do Futuro surge no ano seguinte do que

Reyner Banham denominou “o mega-ano” de 1964: “ano em que Fumihiko Maki

cunha o termo megaestrutura, revistas como Architectural Forum e Bauen +

Wohnen contribuem para a cristalização das idéias em jogo e novas forças, como

Archigram, causam seu primeiro impacto”65. Uma análise mais detida das

páginas da revista Manchete mostra que a ênfase nos problemas do tráfego, a

concentração das edificações em gigantescas estruturas multifuncionais,

expansíveis e articuláveis a unidades modulares e repetitivas; todos esses aspectos

que, segundo Banham66, definem o que se entende por megaestrutura

comparecem, a seu modo, no projeto de Sergio Bernardes, e encontram aí uma

formulação vigorosa e eloqüente, digna de ser incluída no rol das megaestruturas.

62 O termo megaestrutura surgiu em 1964, em texto do arquiteto japonês Fumihiko Maki, “Investigations in Collective Forms”(Washington University, 1964). E ao ser publicado, na década seguinte, o estudo de Reyner Banham tornou-se referência fundamental sobre o assunto. ver Banham, Reyner. Megastructure. 63 Publicada em 1942, a Carta de Atenas resumiu - na versão de Le Corbusier – as atas não publicadas do IV CIAM, realizado em 1933. Seus princípios baseavam-se na divisão da cidade em 4 funções: habitação, trabalho, lazer e circulação. 64 ver Módulo 8, jul 1957, pp.56-61. 65 Banham, R. Megaestructuras. p. 70 66 Ibid.

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Autores como Siegfried Giedion67 e Alan Colqhoun68 identificaram

basicamente dois caminhos possíveis dentro dessa abordagem mais geral: um,

mais inclinado a concentrar várias funções urbanas numa só estrutura em grande

escala (caso típico dos projetos do Archigram), outro, que substitui a ênfase nos

edifícios isolados pelo acento nas relações dos edifícios entre si (caso do projeto

de F. Maki para a reconstrução de uma parte de Tóquio, de 1964). Sob esse ponto

de vista, a análise do projeto de Sergio Bernardes indica uma posição

intermediária: se por um lado sua concepção de bairro vertical segue o sonho das

gigantescas estruturas auto-suficientes dos ingleses, por outro sua concepção de

cidade põe ênfase num sistema de inter-relações entre edificações, espaços livres e

vias de circulação - idéia contida nos projetos do Archigram e que alimenta

também as propostas contemporâneas de Yona Friedman e outros para uma

“arquitetura móvel”69 [fig.127-128].

O campo em que os arquitetos envolvidos com as megaestruturas se

movem define-se justamente entre essas duas variantes, tendo em vista a

emergência da sociedade de consumo no pós-guerra, o inchamento dos centros

urbanos e o conseqüente colapso das redes de comunicação e transportes, o

impacto dos novos sistemas de comunicação e informação e das teorias

cibernéticas70. Nenhum dos arquitetos dessa corrente parece disposto a negar que

a arquitetura seja um artigo de consumo, e diverte-os a idéia de que no passado,

como assinala Peter Cook, fosse considerado imoral buscar o máximo

aproveitamento econômico de um terreno71. Também fica evidente, nesses

projetos, uma inversão do sinal negativo antes atribuído ao crescimento das

cidades (a exemplo do Plano Piloto de Brasília, cujos limites são pré-

determinados). E um deslocamento do eixo das demandas sociais em torno do 67 Giedion, S. Espaço, Tempo e Arquitetura. p. 885. 68 Colqhoun, A. La arquitectura moderna. Uma historia desapasionada. 69 nascido em Budapeste em 1923, Friedman estudou em Israel e estabeleceu-se em Paris em 1957; no ano seguinte fundou o GEAM (Groupe d’Etude d’Architecture Mobile), integrado também por David Georges Emmerich, Frei Otto, Eckhard Schulze-Fielitz, Paul Maymont e outros. A síntese das idéias do GEAM pode ser encontrada num texto de 1960, que propõe, entre outros pontos, a reforma da legislação para facilitar o intercâmbio das construções, tanto em termos de propriedade quanto de uso; o uso de estruturas variáveis e intercambiáveis; a abertura à participação do usuário; o recurso contínuo à pré-fabricação e industrialização. ver Busbea, Larry. Topologies. The Urban Utopia in France, 1960-1970. 70 O termo Cibernética foi cunhado por Norbert Wiener no pós-guerra para designar uma disciplina nascente, dedicada fundamentalmente a estudar o impacto social da automação. ver Wiener, Norbert. Cibernética e sociedade. O uso humano dos seres humanos. 71 Cook, Peter. Architecture: Action and Plan (1967) apud Frampton, K. Historia critica de la arquitectura moderna. p. 286.

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qual giravam as tendências construtivas desde o começo do século, para por

ênfase na liberdade individual. E nesse particular convém notar como os projetos

do Archigram, sobretudo, incorporaram dispositivos (plug-in/clip-on/drive-in)

mediante os quais a arquitetura mostrava-se tendencialmente aberta à participação

do indivíduo-morador, renunciando a assumir qualquer configuração estável e

definitiva. Pois a crítica mais forte dirigida pelo Archigram à arquitetura do

Movimento Moderno estava justamente aí, na incapacidade ou resistência

demonstrada por esta em operar com as novas tecnologias de modo a conceder ao

morador/usuário uma margem de participação na obra72, quase no sentido de

completá-la – ainda que de maneira provisória.

E no entanto não deixaram de ser propostos espaços tipificados segundo o

conceito de Existenzminimum que fora tema do II CIAM, como já vimos. As

unidades habitacionais de dimensões mínimas (18 m2 no caso do protótipo LC-

30X de Kisho Kurokawa [fig.140]) tendiam a ser pensadas, contudo, como

cápsulas que podiam ser livremente, e com relativa facilidade, conectadas e

desconectadas de uma estrutura nuclear distribuidora de serviços (a exemplo da

proposta não executada de Warren Chalk, de 1964, concretizada pouco depois nas

Torres Nakagin, em Tóquio, e Sony, em Osaka, ambas projetadas por Kisho

Kurokawa e construídas respectivamente em 1970 e 1972) [fig.138,139,140]. Se

analisada em termos da sua correspondência com a lógica da produção industrial,

portanto, a noção de habitat-cápsula mostra-se menos próxima do elementarismo

construtivo de Wachsmann que do modo de produção de um carro, digamos, cuja

serialidade se realiza não no produto final (o carro), mas na sua repetição como tal

(a indústria automobilística). Por outra parte, reencontramos na predestinação à

conexão e desconexão dessas cápsulas algo do princípio do jogo que Lewis

Munford mostrou ter tido papel fundamental na constituição de toda uma cultura

técnica. “Algumas das grandes conquistas da mecanização foram concebidas

primeiramente como jogo, diz ele: relógios primorosos cujas figuras se moviam

com uma seqüência de movimentos rijos e elegantes, bonecas que se mexiam

sozinhas, (...) pássaros que moviam sua cauda ao tilintar de uma caixinha de

música.” Desse modo, segue Munford, “a verdade mecânica foi muitas vezes dita

72 Cabral, Claudia Piantá Costa. “Archigram 1961-1974: uma fábula de la técnica”.

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primeiramente como brincadeira, tal como o éter foi usado antes nos jogos de

salão na América do que em cirurgias.”73

Às palavras de Munford podemos somar a reflexão de Johan Huizinga

sobre o jogo como elemento fundamental da cultura74. O jogo é definido por este

como “uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e

determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente

consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo,

acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de

ser diferente da ´vida cotidiana”75. Observa Huizinga que a base semântica da

palavra jogo (do latim ludus) aponta na direção do ilusório (illudere) e do irreal.

Para ele, o jogo define-se como “um intervalo em nossa vida cotidiana”, visto que,

enquanto jogamos, nos vemos livres da esfera das necessidades imediatas e da

utilidade material.

Por possuir uma realidade autônoma, sem outro fim senão em si mesmo, o

jogo é considerado por Huizinga uma atividade desinteressada. E como tal,

partilha qualidades com a criação poética, ou nas palavras do autor, com os “atos

de imaginação” produzidos por aqueles que “ultrapassam os limites da realidade

física”, seja na poesia, na música, na dança ou nas artes plásticas. Com relação às

artes plásticas, porém, Huizinga faz uma distinção fundamental: por estarem

“ligadas à matéria e às limitações formais que daí decorrem”, essas não

desfrutariam, no seu entender, da mesma liberdade de jogo que tanto a música

quanto a poesia se permitem. Ora, nesse ponto sua leitura é diametralmente oposta

à leitura de Hans-Georg Gadamer, para quem o jogo é um dos motores da

experiência da arte, e mais especificamente, da arte moderna76. Pois é com o

impressionismo, e principalmente com a “destruição formal cubista” que destrói-

se, segundo Gadamer, “a consciência ingênua de que a imagem é uma

contemplação intuitiva assim como a contemplação que nossa experiência

cotidiana nos dá da natureza”. Cai então por terra, definitivamente, um dos

pressupostos básicos do caráter de evidência da arte plástica: a perspectiva central.

E daí em diante, escreve Gadamer, não podemos mais ver a pintura com um

“olhar apenas assimilativo”. O que está na tela passa a exigir do espectador, isto 73 Munford, Lewis. Technics and Civilization. p.101 (a tradução é nossa) 74 Huizinga, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 75 Ibid., p.33 76 Gadamer, Hans-Georg. A atualidade do belo. A arte como jogo, símbolo e festa.

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sim, um “trabalho de elaboração ativa”; como num jogo, diz Gadamer, cada obra

deixa para nós um espaço que temos que preencher. Ou seja, a obra só surge como

tal no jogo e enquanto jogo. E teremos que participar desse jogo ativamente, ser,

num certo sentido, parceiros da obra, ou a obra permanecerá fechada para nós.

Recorrer ao princípio do jogo para pensar a obra de Sergio Bernardes, e

em especial seu projeto para o Rio do Futuro, significa, assim, reconhecer que ela

escapa - por vezes, zombeteiramente - dos limites da racionalidade construtiva em

arquitetura, na medida em que promove um certo grau de indeterminação e

pressupõe uma margem de abertura - seja à configuração da planta pelo usuário

(como no projeto Casa Alta), seja à definição da imagem urbana por aqueles de

uma maneira ou outra envolvidos na construção da cidade (conforme os termos do

decreto 1509). Já veremos como o desejo de libertação das leis da estática leva o

arquiteto a conceber, com o auxílio de materiais industriais e procedimentos

construtivos próprios da indústria (como os cabos de aço e as malhas espaciais),

formas instáveis que não raro colocam em risco sua própria existência, e desafiam

os princípios naturalistas para pôr em causa uma concepção de forma como

“moldagem de forças”. No jogo para o qual nos convoca o “Rio do Futuro” de

Sergio Bernardes é inevitável a suspeita de que nos encontramos agora diante de

uma espécie de subversão do projeto construtivo em arquitetura no Brasil.

Dá-se, pelo menos, uma tentativa - provavelmente sem termos de

comparação no meio de arquitetura no Brasil - de desestabilização da objetividade

absoluta para a qual o projeto construtivo seguia apontando, já em plenos anos 60.

E isso, não apenas por conta da aposta numa possibilidade, tão desacreditada pela

vertente ulmiana, de articulação entre técnica e imaginação. O projeto para o “Rio

do Futuro” de Bernardes ratifica a falta de aderência social da arquitetura

brasileira que tanto afrontara Max Bill, e passa ao largo da máxima ética

subjacente à Boa Forma do arquiteto suíço. O que mais impressiona em Sergio

Bernardes, nesse momento, é justamente a firmeza da sua recusa em

comprometer-se com uma perspectiva utilitária e pretensamente capaz de

constituir as bases para a transformação e ordenação do ambiente da vida social.

Ele prefere se aventurar, isto sim, a extrapolar todos os limites e circunstâncias

dadas de modo a abrir, à maneira de um jogo, um “intervalo na nossa vida

cotidiana”.

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Na verdade, Sergio Bernardes supõe nesse projeto uma espécie de “grau

zero” de sociabilidade que o mantém num total alheamento em relação a qualquer

contexto. Isso pode sugerir que sob o nivelamento sem preconceitos que o projeto

pressupõe, repõe-se, no fundo, o mesmo caráter autoritário que permanece tão

arraigado no quadro da modernização brasileira. Afinal de contas, no “Rio do

Futuro”, todos estarão sujeitos àquelas estruturas helicoidais idênticas, que tudo

absorvem e unificam. Não haverá casa, nem lote, no sentido urbanístico

tradicional: sendo a condição do projeto a sociedade de massa, não há lugar para a

esfera do indivíduo como ser autônomo e independente. Mas a questão, para

Sergio Bernardes, parece estar antes em abrir brechas nessa ordem dominadora;

recuperar, por meio de “atos da imaginação”, um grau de liberdade que em

princípio só a arte - e o jogo - ainda são capazes de guardar.

4.4 Flor rara e banalíssima

Em Sergio Bernardes, há sempre, com efeito, uma espécie de “atrevimento”

em jogo, um expor-se a novos riscos que leva inevitavelmente a alguns impasses e

às vezes até a alguns “fracassos espetaculares”, como no caso do Pavilhão de São

Cristóvão (1957-8), do qual trataremos adiante. O Pavilhão é, de certo modo, o

ponto culminante – e também de tensão máxima - de uma seqüência de projetos

em que Bernardes se ocupa de testar o rendimento da estrutura metálica, seja em

espaços residenciais (Res. Staub, 1950, e Res. Lota de Macedo Soares, 1951-6),

seja em espaços expositivos de caráter efêmero (como o Pavilhão da Companhia

Siderúrgica Nacional no Parque do Ibirapuera, 1954, e o Pavilhão do Brasil na

Exposição Internacional de Bruxelas, 1958).

Detenhamo-nos primeiro nas casas, por onde tem início a pesquisa de

Sergio Bernardes com a estrutura metálica. É preciso notar que, quando projeta as

Residências Staub e Macedo Soares na região serrana de Petrópolis [fig.142 e

144], Sergio Bernardes já conta com uma produção relativamente intensa, que

começa a distinguir-se por aspectos pouco usuais no meio brasileiro, como a

solicitação da estrutura metálica (veja-se seu projeto não-executado para o

Country Club de Teresópolis, apresentado com destaque na edição especial sobre

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o Brasil da prestigiada revista francesa L’Architecture d’Aujourd’hui, em 194777)

[fig.144]. Mas é com a casa de Lota que Bernardes, então recém-formado pela

Universidade do Brasil, firma posição no disputado meio de arquitetura no país. É

ainda inconclusa que a casa é premiada na II Bienal de São Paulo, o que nos

permite supor que dos três projetos então apresentados pelo arquiteto (além da

casa de Lota, as Residências Paulo Sampaio, em Itaipava, e Jadir de Souza, no

Rio78), este encontrou meios de se sustentar perante o júri – encabeçado por

ninguém menos que Walter Gropius79 - por seus atributos mais propriamente

projetuais, definidos por meios gráficos, que por sua eventual fotogenia. Pois

ainda que o júri tivesse em mãos as fotos de Michel Aertsens já impressas em

influentes revistas brasileiras e européias80, estando a casa ainda em obras sua

avaliação haveria por força de se concentrar nos desenhos arquitetônicos – planta

e corte, em última instância.

E não é senão através da planta, de fato, que se pode começar a

compreender este projeto. [fig.145] Desde logo, chama atenção sua espacialidade

dilatada, a desdobrar-se em todas as direções. Ao invés do core encontrado em

toda uma vertente de casas brasileiras – a qual passa pela tipologia bandeirante

tanto quanto pelas primeiras residências de Vilanova Artigas81 – a casa projetada

por Sergio Bernardes mostra-se atravessada por um fluxo ininterrupto, dominante

no sentido leste-oeste em que se desenvolve a rampa. É justamente a circulação –

a rampa e suas extensões - o elemento primordial do projeto, a enervar todos os

espaços com os quais se comunica. Em contraste com a contenção dos dois

extremos da casa, a rampa solicita uma ação contínua, um movimento incessante

77 L`Architecture d`aujourd`hui. número 13-14 (especial sobre o Brasil), set.1947. p. 96. Note-se que o projeto foi publicado um ano antes que Sergio Bernardes se graduasse pela Faculdade Nacional de Arquitetura (após quase dez anos de um longo processo de formação que incluiu alguns periodos de afastamento da escola). 78 Aparticipação na seção de arquitetura da II Bienal de São Paulo estava condicionada à seleção por um júri composto por Eduardo Kneese de Mello, Francisco Beck, Mario Henrique Glicério Torres, Oswaldo Arthur Bratke, Salvador Candia e Walter Gropius. 79 Integravam o júri da premiação Walter Gropius, José Lluis Sert, Alvar Aalto, Ernesto Rogers, Oswaldo Arthur Bratke, Affonso Eduardo Reidy e Lourival Gomes Machado. 80 Entre julho de 1951 (início do projeto) e dezembro de 1953 (abertura da IV Bienal), a casa é publicada pelo menos três vezes: na revista Habitat número 7, em 1952 e na L’Architecture d’Aujourd’Hui (Paris), em agosto de 1952 e outubro de 1953. 81 Refiro-me, por um lado, à tradição clássica dos pátios, conforme empregada na arquitetura residencial do período colonial e redefinida por arquitetos da primeira geração modernista, como Lucio Costa e Alcides Rocha Miranda (em projetos como a Res Saavedra e a Casa de Plácido Rocha Miranda, respectivamente). Já no caso de Artigas, a configuração de um núcleo evoca a vertente orgânica da arquitetura de Wright – veja-se, em particular, a primeira casa do arquiteto e a Res. Rio Branco Paranhos, ambas em São Paulo.

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de atravessamento. Não apenas confere fruição ininterrupta dos dois níveis em

que a casa se organiza (social no inferior; zonas íntimas e de serviço no superior)

como delineia a própria linha de força do projeto, nitidamente demarcada desde a

sua primeira versão82.

À luz do sentimento de tranqüilidade e repouso que emana da casa-grande

brasileira – cuja configuração espacial permanece atrelada, como mostrou

Gilberto Freyre, à organização familial patriarcal – a casa de Sergio Bernardes

impressiona por sustentar um partido que não se deixa conformar pelas

convenções sociais (e basta folhear o compêndio lançado em 1956 por Henrique

Mindlin para perceber o quanto a casa guarda independência com relação à prática

projetual então dominante no Brasil). Por certo respeitam-se as exigências de

abrigo e intimidade individual – e nisso passa-se longe da exposição da vida

doméstica da Casa Farnsworth de Mies van der Rohe, por exemplo. Porém é

acima de tudo dos deslocamentos constantes e do próprio dinamismo da vida

social que o projeto de Sergio Bernardes se faz. E neste sentido, o projeto parece

armar um embate com a vertente mais em evidência da arquitetura carioca.

Contrasta, mais precisamente, com a exterioridade e mesmo a gestualidade da

forma niemeyeriana, posto que se constrói a partir da articulação de elementos e

de uma lógica planar bastante refinada, que se aproxima da poética neoplástica.

Pode-se dizer que o projeto é, em essência, uma construção geométrica por

planos – do piso, das paredes e vedos, da cobertura – em que ressoam os

princípios da elementaridade construtiva, da clareza distributiva, do rigorismo

formal enfatizados por Theo van Doesburg em seus 17 pontos para uma

arquitetura neoplástica83. Donde a articulação da casa em cinco zonas, por assim

dizer, que correspondem a atividades bem definidas: galeria e circulação; cozinha

e jantar; ala íntima; dependências de hóspedes e de empregados. Mais uma sala de

estar, esta disposta perpendicularmente ao corpo principal. Tal arranjo confere à

casa um perímetro de recorte irregular, por meio do qual se lê com clareza a

setorização dos ambientes: social no centro, serviço ao fundo e duas zonas íntimas

nas extremidades. Em planta, o projeto executado se permite uma única

82 A consulta às revistas de época revela pelo menos duas versões do projeto. De uma para outra, as alterações se limitam ao arranjo interno dos corpos extremos da casa e à angulação da parede que define o acesso principal. 83 veja-se Fusco, Renato de. A idéia de arquitetura. pp. 156-159.

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“subversão” do rigor ortogonal: a linha oblíqua que separa as dependências de

hóspedes e de empregados (ambas, com dois quartos, banheiro e hall).

A seu modo, a disciplina geométrica e a estrutura matemática subjacentes

à casa de Lota indicam, como se vê, uma opção ao menos implicitamente

compassada com o universalismo evolucionista por meio da qual a arte concreta

se define no início dos anos 50. E não se pode desconsiderar o fato da casa ter

sido premiada, ainda antes de ser concluída, por uma instituição como a Bienal de

São Paulo, e mais ainda, na edição em que Gropius é festejado a ponto de receber

o Grande Prêmio de Arquitetura das mãos de Getúlio Vargas. Tal reconhecimento

precisa ser pensado, em primeiro lugar, em relação a secular dominância da

cultura artística francesa no meio de arte e arquitetura no Brasil, para a qual o

próprio Vargas cuidara de contribuir ao viabilizar a decisiva vinda de Le

Corbusier ao país, em 1936. Tudo indica que a partir de então a clara opção de

Lucio Costa pela formulação corbusieriana tenha abafado os ecos por aqui da

vertente bauhausiana, introduzida nos anos 20 sobretudo pelos arquitetos Gregori

Warchavchik e Alexander Altberg e pela ação divulgadora de Theodor

Heuberger84. Que o fundador da Bauhaus só viesse a receber distinção oficial nos

anos 50 pode indicar, portanto, que se abria uma perspectiva não por acaso

coincidente com a intensificação da penetração dos postulados construtivos no

Brasil. Com o prêmio “Federação das Indústrias de São Paulo” concedido a

Unidade Tripartida de Max Bill, já a I Bienal, afinal, legitimara a arte concreta no

Brasil. A premiação da casa projetada por Sergio Bernardes em tal contexto

assume, pois, significação particular, uma vez que ali se colocava explicitamente a

exigência de vencer as resistências à abstração por meio da defesa da linguagem

geométrica, da idéia construtiva da produção de arte.

Quer tenha sido mais ou menos motivado pelo cosmopolitismo de sua

cliente, Bernardes encontraria aí uma ocasião sem precedentes para desembaraçar-

se de certo apego à tradição pelo qual ele próprio respondera até pouco antes em

projetos como a residência do diretor do Sanatório de Curicica, em Jacarepaguá

(1949-50). Ainda que alguns de seus projetos para o Serviço Nacional de

Tuberculose dêem testemunho do interesse cedo despertado no arquiteto pela pré-

fabricação, pode-se dizer que a casa de Lota constitui-se, assim, num projeto-

84 ver Moreira, Pedro. “Alexander Altberg e a Arquitetura Nova no Rio de Janeiro”.

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chave, na medida em que denota uma rara procura de correspondência com a

lógica do sistema industrial. O ponto máximo de tensão do projeto está no

problema que se coloca com relação à técnica moderna. Porque a opção pela

lógica do sistema industrial, no caso, não pressupõe o uso de técnicas sofisticadas

ou elementos pré-fabricados. Pelo contrário. O que chama atenção, aqui, é o

investimento numa relação não-literal com a técnica. Não-literal, sem cerimônia, e

quase se poderia dizer mesmo desavergonhada. O uso simultâneo do sapê, do

tijolo, do seixo rolado, por exemplo, indica sensibilidade às circunstâncias locais,

ao mesmo tempo em que passa ao largo de qualquer regionalismo anedótico –

mesmo em sua versão mais cândida, tal qual assumida por Lucio Costa em seu

projeto para a Vila Monlevade, em Minas Gerais (1934)85. Ao invés de enxergar a

técnica como uma chave redentora – segundo a crença positiva na civilisation

machiniste de certo modo compartilhada por Corbusier e Costa - Sergio Bernardes

opta por investir numa espécie de desmistificação do seu estatuto, em favor de

uma improvisação que admite ser constituinte do próprio ambiente cultural

brasileiro.

Não se trata, bem entendido, de apelar para o “jeitinho brasileiro” –

possivelmente mais próximo das manobras e soluções de compromisso de

Warchavchik em suas primeiras casas em São Paulo86. E tampouco de uma adesão

à estratégia de valorização da cultura popular com a qual Lina Bo Bardi se

envolveria, como vimos, a partir do final dos anos 50 (e que faz com que a

cobertura de sapê usada em obras como a Res. Chame-Chame, de 1958, adquira

um sentido político-ideológico de todo ausente em Bernardes). Na verdade, Sergio

Bernardes passa longe das motivações ideológicas e da mobilização de

sentimentos nacionalistas que culmina na criação dos CPCs (e nem seria preciso

atentar para a distância guardada pelo arquiteto em relação a posições político-

partidárias, pela qual, aliás, ele tem sido mais censurado que compreendido87).

85 ver Leonidio, Otavio. Carradas de razões. 86 Veja-se em particular a casa do arquiteto, tida como a “primeira casa modernista no Brasil”, cuja feição moderna dependeu de recursos para mimetizar materiais e técnicas construtivas praticamente inexistentes no Brasil dos anos 20 – como a laje de concreto, a janela em fita ou a estrutura metálica tubular. Para uma análise da relação entre as soluções de Warchavchik e os paradoxos característicos da arquitetura moderna brasileira, ver Lira, José Tavares Correia de. “Ruptura e construção. Gregori Warchavhik, 1917-1927.” 87 Embora tenha sido candidato a prefeito do Rio de Janeiro nos anos 80 pelo Partido Anarquista, Sergio Bernardes manteve-se distante da política partidária e, de certo modo, alheio ao acirramento do clima político no país a partir de 64. Realizou, nos anos 70, vários projetos públicos em

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Apenas deixa claro que a arquitetura não há de ser reduzida a seus procedimentos

técnicos. Ou a confiança na técnica confundida com a sua ostentação. Isso implica

uma deliberada posição crítica frente à quase obsessiva explicitação do grau de

capacitação técnica supostamente alcançado àquela altura pela arquitetura

brasileira, e ao mesmo tempo um enfrentamento do idealismo tecnicista integrado

à arte concreta. Em última instância, é como se Sergio Bernardes se propusesse,

neste projeto, a testar os limites da ordem tecnicista que permanece na base da

versão brasileira do projeto construtivo. E com isso, colocasse em questão a

possibilidade de acomodação desse mesmo projeto.

Longe de ser tomada como impedimento ou índice de atraso, a

desqualificação da mão-de-obra local converte-se, assim, em oportunidade de

experimentação da qual o arquiteto procura extrair rendimento em favor do

projeto. Tome-se, por exemplo, a cobertura, concebida em telhas de alumínio

corrugado apoiadas sobre uma delicada treliça metálica. É uma solução

semelhante àquela usada pouco antes por Charles e Ray Eames em sua casa na

Califórnia (1949), concebida no âmbito do programa Case Study House, lançado

pela revista Arts & Architecture88 [fig.146]. Só que aqui, diante da

indisponibilidade de material industrializado, não se descarta o fazer manual:

basta recorrer aos vergalhões de ferro usualmente empregados em estruturas de

concreto armado e dobrá-los no próprio canteiro, com a mão-de-obra local. Esse

modo empírico de resolver os problemas projetuais repete-se a todo momento e

resulta no hibridismo algo estapafúrdio da mesma cobertura, onde a intenção de

assegurar uma circulação permanente de ar leva à sobreposição de um ripado de

sapê às telhas de alumínio. Ora, quem àquela altura se permitiria a criação de uma

tal relação de interdependência entre dois materiais aparentemente tão

inconciliáveis do ponto de vista da ordem tecnicista e desenvolvimentista vigente? Brasília, como o mastro da bandeira na Praça dos Três Poderes, o qual gerou grande polêmica pública – alimentada inclusive por Lucio Costa, que enviou-lhe na ocasião um telegrama de pêsames. Em todo caso, só a tendência em julgar sua obra mais por bases ideológicas que artísticas explica, a nosso ver, seu quase banimento da historiografia da arquitetura no Brasil produzida nos anos 80-90. Vejam-se, por exemplo, os livros de Hugo Segawa (“Arquiteturas no Brasil. 1900-1990”) e de Sylvia Ficher e Marlene Acayaba (“Arquitetura Moderna Brasileira”), publicados respecivamente em 1999 e 1982, onde há, no máximo, menções quase que de passagem a Sergio Bernardes. 88 o programa, lançado em 1945 pelo editor da revista, John Entenza, previa inicialmente a construção e divulgação, nas páginas da revista Arts & Architecture, de oito casas na Califórnia. O projeto, encomendado a oito arquitetos norte-americanos, deveria levar em conta os produtos industriais disponíveis no imediato pós-guerra, na criação de modelos contemporâneos de casas econômicas. Para um resumo do programa, ver Smith, Elizabeth A.T. Case Study Houses.

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Por outro lado, não se instila aí um curioso paradoxo, na medida em que o caráter

perecível do sapê pressupõe, por si só, uma inesperada concordância com a

própria lógica da obsolescência programada implicada no ciclo industrial da

produção e do consumo?

Também na cobertura, vale dizer, flagra-se a determinação de evidenciar

os diferentes elementos com os quais se trabalha – igualmente manifestada, por

sua vez, nos apoios livres (perfil em “I” no corpo longitudinal, pares de colunas

esbeltas no avarandado do corpo transversal e de maior diâmetro no balanço dos

quartos, na leste da casa). No caso das treliças da coberta, estas são formadas por

vergalhões de ½” pintados de branco e barras de ¼” x 1” pintadas de preto, de

maneira que, no limite, é possível, por decomposição, apreender todo o processo

de construção da casa – seja por meio das suas articulações, seja por meio dos

materiais aqui e ali empregados. Logo se percebe, por exemplo, que pedra, tijolo,

vidro, palha, ferro e alumínio equivalem-se em termos de importância, sem se

misturar ou se esconder. Isso porque, livres das relações hierárquicas prescritas

pela arquitetura clássica, os materiais aqui são pensados na sua relação com a

estrutura e em respeito à sua própria natureza (veja-se o tijolo empregado nos

vedos do corpo em balanço, por exemplo, em relação à pedra usada no corpo

assentado diretamente sobre o terreno). E nessa tentativa de conferir

inteligibilidade ao processo construtivo como um todo pode-se entrever uma

aproximação do New Brutalism, tal qual definido na Inglaterra quase

simultaneamente com o projeto de Peter e Alison Smithson para a Escola de

Hunstanton (1949-54).

Ao testar a possibilidade de conjugar o fazer manual à produção industrial,

o procedimento de Sergio Bernardes não deixa de se reportar, por sua vez, às

próprias bases do programa bauhausiano formulado por Gropius89. Não tanto no

sentido de buscar o estabelecimento de uma relação produtiva com a indústria –

relação esta que, de resto, também assumirá em Sergio Bernardes uma inflexão

muito particular90. Mas sem dúvida sua busca é a de uma relação estreita entre

89 segundo o programa definido por Walter Gropius para a Bauhaus, o aluno deveria partir da experimentação manual na oficina da escola para chegar ao protótipo a ser produzido em série pela indústria. Ver Gropius, Walter. “Programme of the Staatliches Bauhaus in Weimar (1919)” in: Conrads, Ulrich. Programs and manifestoes on 20th-century architecture. pp. 49-53. 90 Na verdade, essa relação limitou-se, no mais das vezes, a uma operação de escambo primária, pela qual o projeto era entregue à indústria em troca do fornecimento de material para as obras de Sergio Bernardes. E isso, não obstante ter este projetado uma série de produtos que vieram a ser

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concepção, material e processo de produção, mesmo que por meio de um modo

empírico de resolver os problemas projetuais – tipo learning by doing - ao final do

qual nem sempre se alcança definição precisa, e que só é possível à revelia de

qualquer pressão de ordem econômica ou demanda por produtividade. Com

relação ao problema da modulação, por exemplo, Sergio Bernardes entende que

não se pode exigir rigor absoluto, quando se leva em conta o caráter rudimentar

dos procedimentos construtivos adotados no Brasil. Daí o grau de flexibilização

que se permite em seus projetos, onde cada solução manifesta o engenho do

arquiteto, mais que qualquer rigor construtivo. De resto, não obstante a inclinação pelo pensamento matemático e pela

geometria, a casa de Lota nada tem da pureza da forma erguida sobre pilotis e

assim mantida como que imaculada, em alheamento constante em relação ao

ambiente no qual se insere (partido este cujo exemplo mais paradigmático é

certamente a Villa Savoye de Le Corbusier). Ressalta, isso sim, a busca de uma

relação produtiva – quer dizer, transformadora - com aquilo que a circunda: o

infinito do vale, o maciço vertical da rocha, o fluxo contínuo do rio. Porque

habitar essa casa envolve necessariamente uma transformação: do gosto, dos

hábitos, da mentalidade; um “ser moderno”, enfim, na acepção mais ampla e

atualizada do termo. Nesse sentido, ainda que se trate de caso isolado, essa casa

volta a permitir aproximações com as Case Study Houses, erguidas mais ou

menos simultaneamente na Costa Oeste dos Estados Unidos. Pelo menos quanto à

confiança depositada na casa como condensador do grau de otimismo envolvido

no programa de modernização americano no pós-guerra.

Obviamente, a casa de Lota só pode se distinguir da feição mais corriqueira

das casas de Petrópolis, as quais, apegadas aos ecos da colonização germânica da

região, insistem em manter um caráter fechado, por mais que inadequado ao clima

local, extremamente úmido. Já a interioridade da casa projetada por Sergio

Bernardes segue se desdobrando através dos seus amplos panos de vidro,

potencializando o espaço que a envolve e oferecendo ao mesmo tempo o máximo

de contato com a luz e o sol. Não por acaso, suas linhas estiradas descrevem a largamente utilizados por outros arquitetos, como as telhas meio-tubo de fibrocimento, comercializadas pela Eternit, e os blocos cerâmicos vazados de 10x10x10cm – estes, usados pela primeira vez na residência do arquiteto em São Conrado (1960), como módulo tridimensional que define todo o projeto, da estrutura aos vedos. Ao contrário do que se tem afirmado, no entanto, o arquiteto não chegou a solicitar patente de nenhum desses projetos, conforme pudemos apurar em pesquisas no INPI/Insituto Nacional de Propriedade Industrial.

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todo momento rasantes sobre as massas informes da natureza, ressignificando uma

e outra. Tudo concorre para um convívio medido, e por que não, civilizado; em

outras palavras, embora isolada na montanha, a casa não se quer de maneira

alguma segregada do mundo. Busca definir-se, antes, como lugar social, sede de

uma pequena comunidade em lida permanente com a natureza, que inclui a

proprietária e sua companheira, seus empregados, freqüentes hóspedes e visitas –

todos, afinal, partícipes do projeto de existência social e afetiva que a casa

subsume.

4.5 Malhas, redes, cabos e triângulos

Se a casa de Lota dá partida à pesquisa da lógica serial por Sergio

Bernardes, o Pavilhão da CSN [fig.147] assinala o início de um período de

expansão da estrutura metálica no Brasil que tenderá a coincidir com o processo

de transição de um país essencialmente agrícola a um país urbano, industrial e de

serviços, significativamente acelerado a partir dos anos 195091. Como se sabe, a

inauguração da primeira siderúrgica de grande porte no Brasil resultou de um

longo processo de discussões e negociações intensificado ao longo do Estado

Novo (1937-45) e efetivado no governo Dutra (1946-51), dentro do qual coube

papel decisivo ao engenheiro militar Edmundo de Macedo Soares e Silva92 -

primo-irmão de Lota de Macedo Soares, por sinal. Ora, se não cabe nos limites

deste estudo um exame da relação estabelecida entre Sergio Bernardes e uma das

famílias mais influentes politicamente do país, tampouco podemos deixar de

registrá-la, visto que ela dá bem a medida do Brasil dos anos 50, onde as

aspirações de modernização chocavam-se com as formas mais arcaicas de

91 Indicadores reunidos por Boris Fausto mostram que essa passagem se localiza entre 1950 e 1980. ver Fausto, Boris. História do Brasil. São Paulo, Edusp, 2000. 92 Diplomado engenheiro metalúrgico na França, Edmundo de Macedo Soares e Silva (1901-1989) foi um dos maiores incentivadores da indústria metalúrgica no Brasil e presidente da CSN. Integrou a Comissão Nacional de Siderurgia, criada em 1931 com o objetivo de propor soluções para a implantação da siderurgia no Brasil, e em 1939 foi enviado pelo governo brasileiro à Europa e Estados Unidos com o propósito específico de visitar instalações siderúrgicas. De volta ao Brasil, foi nomeado presidente da “Comissão Executiva do Plano Siderúrgico Nacional”, da qual resultou o projeto da Usina de Volta Redonda. Entre os inúmeros cargos que exerceu, foi ministro da Viação e Obras Públicas (1946), ministro da Indústria e Comércio (1967-69), e governador do Rio de Janeiro (1947-51). Cf Telles, Pedro Carlos da Silva. História da Engenharia no Brasil (século XX). pp.245-46.

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propriedade e poder, ao mesmo tempo em que dependiam delas (e vice-versa).

Não é improvável que tenha sido por intermédio da família Macedo Soares, afinal,

que o arquiteto carioca recebeu o encargo de projetar o Pavilhão da CSN.

O Pavilhão foi construído no âmbito do IV Centenário de São Paulo (1954),

cujo programa compreendia uma série de atividades abertas oficialmente com a

inauguração da II Bienal de São Paulo, ainda em 1953. E mais: foi erguido no

amplo parque urbano projetado por Niemeyer e equipe93 como ápice das

comemorações em torno do aniversário da fundação da cidade. Coube ao projeto,

portanto, enfrentar a vizinhança da arquitetura de Niemeyer, por um lado, e por

outro lado destacar-se no panorama de uma cidade em construção incessante,

onde a cada 7 minutos surgia um edifício novo94, e que se vangloriava de ser

“uma das poucas no mundo a não possuir um único edifício com mais de cem

anos.”95

Comprometido com essa imagem, o anteprojeto do Ibirapuera (1952) já

cedera espaço para várias estruturas de caráter provisório em meio àquelas ditas

permanentes (como os pavilhões das Indústrias, das Nações e dos Estados, a

grande marquise sinuosa e um bar-restaurante a ser construído sobre o lago). Ao

todo, seriam construídos 32 pavilhões provisórios, pelo menos dois deles em

estrutura metálica: o da CSN e o do Rio Grande do Sul (este, projetado por Jayme

Luna dos Santos, com cerca de 6000 m2 [fig.148]). Esses dois pavilhões fizeram

uso dos cabos de aço na sua construção e estão entre as primeiras coberturas

pênseis executadas no Brasil: no último, a superfície em dupla curvatura reversa

(ou em sela de cavalo)96 permaneceu recoberta por telhas de alumínio, enquanto o

pavilhão de Sergio Bernardes deixou claramente sua estrutura à mostra, como a

reforçar o caráter “quase descaradamente publicitário”97 de uma técnica

construtiva muito explorada no século XIX justamente em espaços expositivos,

93 O projeto do Parque do Ibirapuera é assinado por uma equipe formada por Oscar Niemeyer, Zenon Lotufo, Eduardo Kneese de Mello e Helio Uchoa (com Gauss Estelita e Carlos Lemos como colaboradores). 94 Cf Xavier, Denise. Arquitetura metropolitana 95 Revista Manchete, 23 de janeiro de 1954. apud Queiroz, Tereza Aline Pereira de. “São Paulo nos anos 50: as imagens da idéia”. in: Fantasia Brasileira. O Balé do IV Centenário. São Paulo, SESC, 1998. p.138. 96 A definição refere-se a uma das três categorias de superfícies curvas definidas pelo matemático Karl F. Gauss no início do século XIX. No caso, trata-se de uma superfície curva obtida por meio de linhas retas, configurando um parabolóide hiperbólico. ver Salvadori, M. Por que os edifícios ficam de pé. pp.215-220. 97 Argan, G.C. Arte moderna.

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como o Palácio de Cristal, em Londres (Joseph Paxton, 1851), a Torre Eiffel, em

Paris (Gustav Eiffel, 1899), e, no campo mais específico das coberturas suspensas,

os pavilhões da Exposição de Nizhny-Novgorod, na Rússia (Vladmir Grigorevich

Shukhov, 1896). [fig.149-150]

Na verdade, se no pavilhão de Bernardes ressurgem, com força, os cabos

de aço do bar-restaurante que não chegou a ser construído sobre o lago do

Ibirapuera, eles agora se mostram nitidamente indissociáveis da estratégia de

chamar atenção para o crescente potencial da CSN, primeira siderúrgica de porte

no Brasil, que desde o ano anterior vinha fazendo alarde da entrada em

funcionamento do seu segundo alto-forno e da conquista de recordes de

produção98. O entusiasmo que cercava as operações da CSN era tamanho, e tão

coadunado com as estratégias construtivas no meio da arte, que as dependências

da siderúrgica acabariam sediando a quarta e última exposição do Grupo Frente,

patrocinada pelo MAM carioca e aberta na presença de Niomar Muniz Sodré,

Mário Pedrosa, Tomás Maldonado e do próprio presidente da CSN, em 1956.99

Deve ser lembrado também que em 1953 surgira, dentro da CSN, a

FEM/Fábrica de Estruturas Metálicas100, com o duplo objetivo de contribuir para a

construção da expansão da Usina de Volta Redonda e incrementar o consumo do

aço no meio de arquitetura no Brasil. Muito difundido no país entre final do

século XIX e começo do século XX, o uso do metal na arquitetura praticamente

limitara-se então a ornamentos, mobiliário (urbano e doméstico) e estruturas de

ferro fundido importadas da Europa e largamente disseminadas por meio de

catálogos que forneciam também um vasto repertório de estilos históricos. Graças

a tarifas e subsídios por parte do governo, a indústria siderúrgica começou a

expandir-se nos anos 1920 no Brasil, embora cerca de 70% dos produtos de aço de

98 A CSN foi criada em 1941 e entrou em operação em 1946. O aumento da produção para um milhão de lingotes de aço por ano foi assinalado como “marco histórico” por Edmundo Macedo de Soares e Silva em conferência realizada em 29.04.1954 no âmbito do IV Centenário, na VI Semana de estudos dos problemas mínero-metalúrgicos no Brasil. ver Revista do Clube de Engenharia, dezembro de 1954, p. 47-49. Sobre a conquista de novos índices de produção pela CSN entre 1953 e 1954, vejam-se os artigos publicados na Revista do Clube de Engenharia: “Expansão de Volta Redonda” (janeiro de 1953), “Ultrapassados os ‘records’ de produção” (junho de 1953), “Em franca ascensão a produção da Usina de Volta Redonda” (maio de 1954, p.31) e “Aumento da capacidade de produção de aço no Brasil” (dezembro de 1954, p. 47-49). 99 Na ocasião, integrantes do grupo (que incluía Lygia Clark, Lygia Pape, Ivan Serpa, Aloisio Carvão e outros), mais Mário Pedrosa, Niomar Muniz Sodré, Paulo Bittencourt e Tomás Maldonado foram recebidos pelo presidente da CSN, General Macedo Soares. Cf Morais, Frederico. Cronologia das Artes Plásticas no Brasil. p.238. 100 A FEM foi desativada em 1998, cinco anos depois de ter sido privatizada.

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que careciam as estradas de ferro, os estaleiros e a indústria da construção civil

ainda viessem do exterior, em 1940101. Mesmo as instalações da CSN dependeram

de estruturas fornecidas por empresas estrangeiras, e foi preciso aguardar a

entrada em funcionamento da FEM para que surgisse, em São Paulo, o primeiro

edifício alto com estrutura metálica inteiramente projetado, fabricado e montado

no país: o “Garagem América”, edifício-garagem de 16 pavimentos cujo projeto,

desenvolvido pelo arquiteto Rino Levi, é contemporâneo do pavilhão da CSN102.

À exceção dos cabos de aço, também este último teve toda sua estrutura

fabricada e montada pela FEM. No caso, o vão de 30 m sobre um braço do lago

do Ibirapuera foi vencido por um sistema estrutural em arco, com pilares

inclinados e interligados por tirantes ancorados ao solo. A solução aliviou, desse

modo, o empuxo dos arcos, garantindo dimensões reduzidas aos perfis metálicos.

Num piso único elevado a 9 m do nível da água foram dispostos painéis, balcão de

informações e um cinema, totalizando 300 m2. A planta retangular do espaço

expositivo, definida por uma modulação rigorosa, foi ladeada por duas pontes em

arco (uma delas ainda existente no local) e atravessada por uma marquise sobre as

pontes, ressaltando o eixo de simetria do pavilhão. [fig.147]

Não é por acaso, como se vê, que o pavilhão pode ser considerado um

ponto de inflexão na produção projetual de Sergio Bernardes. Se na produção

imediatamente anterior do arquiteto – como a casa de Lota de Macedo Soares e o

Country Club, ambos projetados para a cidade serrana de Petrópolis – já podemos

encontrar sinais de seu interesse pela estrutura metálica e pelo princípio da

repetição serial, é a partir do pavilhão da CSN que sua obra vai assumir um

embate mais resoluto (e claro, público) com o processo de industrialização da

arquitetura, com soluções estruturais cada vez mais ousadas e quase sempre

articuladas à exploração empírica das qualidades plásticas e construtivas e do

limite de resistência de materiais industriais como o aço (Pavilhão do Brasil em

Bruxelas, 1958), o concreto protendido (Mausoléu de Castello Branco, Fortaleza,

1968103), o alumínio (Indústrias químico-farmacêuticas Schering, Rio de Janeiro,

101 cf Viana, Luiz Werneck. “O Estado Novo e a ‘ampliação’ autoritária da República”. p.124 102 A autoria deste projeto tem sido creditada a Rino Levi, embora revistas da época afirmem que o projeto básico foi trazido dos Estados Unidos pelo proprietário e apenas adaptado ao Código de Obras paulista pelo arquiteto brasileiro, ver “16 Pavimentos em Aço”, Revista EPUC Engenharia e Arquitetura, PUC-Rio, número 3, jan-abr.1956, pp.46-49 e Anelli, Renato. Rino Levi. 103 Trata-se de um monumento dedicado à memória do ex-presidente Humberto de Alencar Castello Branco (1964-7). A edificação tem 270 m2 de área útil e se ergue sobre espelho d`água

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1974), a fibra de vidro (Hotel em Paquetá, 1980104) ou o plástico (Pavilhão de São

Cristóvão, Rio de Janeiro, 1957-8).

O entusiasmo com que Sergio Bernardes lida com esses novos materiais,

passando de um a outro sem perder em nada a tensão própria à sua obra, salta aos

olhos em vários projetos subseqüentes ao Pavilhão da CSN. A malha/retícula

poligonal usada na cobertura da Schering, por exemplo [fig.173], não tardará a

reaparecer no Aeroporto Castro Pinto e no Espaço Cultural da Paraíba [fig.174],

ambos em João Pessoa (1981 e 1979-83, respectivamente), e está na origem da

gigantesca cúpula geodésica, com 300 m de diâmetro, do Hotel em Manaus

(1963-70), com a qual o arquiteto pensou colocar a Amazônia sob uma redoma

semelhante àquela proposta por Buckminster Fuller para Manhatan em 1962, e

concretizada por este – em escala menor - no pavilhão norte-americano da

Exposição Universal de Montreal, em 1967 [fig.186-187]105. São projetos em

vários sentidos distintos e, no entanto, todos eles definem-se por variações da

estrutura triangulada e como tal pertencem, de algum modo, à investigação

desdobrada por Sergio Bernardes a partir da viga treliçada da casa de Lota, na

esteira das pesquisas iniciadas ainda no final do século XIX por Alexander

Graham Bell e desenvolvidas principalmente por Buckminster Fuller, Frei Otto e

Konrad Wachsmann entre as décadas de 1950 e 1970 [fig.175-176]. Porque tanto

a estrutura espacial (sistema estrutural que consiste basicamente duas ou mais

grelhas poligonais paralelas, superpostas e interligadas) quanto a cúpula geodésica

(domo hemisférico constituído por uma rede de poliedros) constituem coberturas

leves que partem, a rigor, de um mesmo princípio estrutural: a repetição de

elementos lineares de pequeno comprimento, articulados nas duas extremidades

por meio de articulações ou nós, configurando triângulos que, por sua vez,

com balanço de 30 m, no extremo do qual localiza-se a capela-mausoléu. O projeto estrutural é de Ronaldo Vertis. ver Vasconcellos, Augusto Carlos de. O concreto no Brasil. Pré-fabricação, monumentos, fundações. 104 ver AB/Arquitetura do Brasil 12, 1980, pp.16-21. 105 ver Baldwin, B. Bucky Works. Buckminster Fuller’s ideas for today. Note-se que a maior cúpula geodésica realizada por B.Fuller foi a de Montreal (1967), com cerca de 76 m de diâmetro – ou seja, quatro vezes menor que a cúpula proposta por Sergio Bernardes para Manaus. Em função das dificuldades inerentes a este projeto, a solução, apresentada pelo engenheiro Jayme Mason, consistiu numa calota dupla treliçada (obtida mediante a justaposição de vigas treliçadas planas, de 3 m de comprimento e 1 m de altura), razoavelmente distinta, portanto, da malha tetraédrica das geodésicas de Fuller. Sobre o projeto em Manaus ver Vieira, Mônica P. Sergio Bernardes: arquitetura como experimentação e Mason, Jayme. “Limit analysis of a sandwich lattice spherical shell with application to Manaus Dome”.

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constituem redes, sistemas acentrados, não-orientáveis e virtualmente sem

começo nem fim, que podem ser traduzidos como objetos-topológicos 106.

A modulação triangular justifica-se, no caso, pela alta resistência à

deformação do triângulo, da qual resulta a rigidez do sistema estrutural, e logo,

sua leveza e economia. Valer-se da treliça plana ou de um reticulado

tridimensional (treliça espacial) significa, por sua vez, pensar em termos de barras

articuladas entre si e submetidas somente a forças nodais. Pois ainda que a treliça

espacial tenha comportamento distinto da treliça plana, ambas constituem um

sistema estrutural esbelto, leve e quase imaterial, de dimensões ilimitadas,

particularmente adequado à cobertura de grandes áreas livres de apoios e cujas

barras são solicitadas ou por esforços normais de tração ou de compressão.107

E é justamente à cobertura suspensa de grandes vãos que Sergio Bernardes

consagra sua exploração dos cabos, a partir da solução estrutural do pavilhão

paulista: inicialmente, no Pavilhão do Brasil em Bruxelas (1958) [fig.156-157] e

no Pavilhão da Feira Internacional de Indústria e Comércio, dito Pavilhão de São

Cristóvão, no Rio de Janeiro (1957-8) [fig.161-168]. Ambos foram calculados

pelo engenheiro Paulo Fragoso - um dos primeiros a dedicar-se ao cálculo da

estrutura metálica para a construção civil no Brasil108 - e se distinguem pela ênfase

posta na cobertura, problematizando seu sentido tradicional como elemento de

proteção e abrigo, em relação quase sempre de dependência recíproca com a

parede. As coberturas suspensas de Sergio Bernardes podem funcionar como um

varal (Pavilhão da CSN), ou como uma cesta de cabos protendida (Pavilhão de

São Cristóvão); o mais importante, seja como for, é o grau de inconformismo que

aí se revela no tocante à relação entre parede e cobertura, relação essa que durante

séculos determinou aspectos morfológicos e tipológicos da arquitetura.

106 Reportamo-nos aqui à definição de rede de Pierre Rosenstiehl, como um objeto-topológico constituído antes de mais nada por nós e ligações duas a duas, aos quais se podem associar variáveis e assim “modelizar uma vastíssima gama de situações concretas, valorizando certos aspectos e prescindindo de outros” (cf verbete para Enciclopédia Einaudi, vol.13. Lisboa, Imprensa Nacional, 1988,p.246). Vale notar que encontramos este mesmo princípio topológico nos exercícios propostos por A.Fröschaug no Curso Básico da HfG, em 1959. (ver capítulo 2) 107 ver Maragrait, J. e Buxadí, G. Las mallas espaciales en arquitectura. 108 Paulo Fragoso foi responsável pela organização e direção do escritório de cálculo da Usina de Volta Redonda, na década de 1940, e ao mesmo tempo manteve escritório próprio que se notabilizou pelo domínio da técnica da estrutura metálica, sem deixar de lado o concreto armado. Para informações biográficas sobre o engenheiro, ver Vasconcelos, Augusto Carlos de. O concreto no Brasil. v.1. São Paulo, Pini, 1992. pp.34-35.

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Com o pavilhão carioca pretendeu-se reproduzir, no centro do Campo de

São Cristóvão, a façanha estrutural da recém-construída Arena de Raleigh, nos

Estados Unidos [fig.169], concebida pelo arquiteto polonês Matthew Novicki e

calculada pelo engenheiro norueguês Fred Severud (1951-2): o pavilhão carioca

teria a mesma cobertura suspensa sobre planta elíptica, porém – e isso,

evidentemente, seria determinante - com área três vezes maior (cerca de 30.000

m2, contra 9.000 em Raleigh)109. O que Sergio Bernardes se propunha, na

verdade, era antes um problema de natureza eminentemente técnica-construtiva

que formal. Segundo Paulo Fragoso, “o arquiteto, ao procurar o engenheiro, ainda

não tinha compromissos de ordem plástica para resolver seu problema, que

consistia em cobrir uma grande área, sem apoios intermediários, criando o maior

espaço livre possível, com o máximo de eficiência e economia”110

O projeto estrutural foi resolvido em duas partes articuladas entre si:

estrutura de suporte de concreto armado (constituída basicamente por dois arcos

perimetrais inclinados, pilares trapezoidais e dois maciços onde são ancorados os

cabos) e estrutura da cobertura (formada por uma rede de cabos de aço em espiral

com diâmetro entre 1/1” e 3/8”, ancorados nos arcos e nos seus encontros). E foi

nesta, como seria de esperar, que se apresentaram desde logo os maiores desafios

ao projeto: pouco depois de finalizada a obra, verificou-se a perda de resistência,

sob a ação do sol, das placas de plástico translúcido responsáveis pelo sistema de

vedação original, o que levou à substituição dos cerca de 28.000 m2 da cobertura

por telhas de alumínio de perfil trapezoidal com apenas 0,8 mm de espessura,

rebitadas entre si e vedadas com massa de asfalto-amianto. Essa solução, visando

melhorar as condições acústicas da área coberta, foi projetada especialmente por

Hans Eger, arquiteto e engenheiro de origem austríaca responsável pelo

desenvolvimento de várias estruturas pioneiras de alumínio no Brasil, dentre elas

a cúpula geodésica do Conjunto Nacional, em São Paulo [fig.183], que assinou

junto com Gregori Warchavhick (projeto arquitetônico de David Libeskind,

1956)111, pouco depois da realização da Ford Rotunda Dome, de Buckminster

109 A planta de ambos os pavilhões é elíptica, sendo que na arena americana o eixo maior tem 92 m, enquanto que no pavilhão carioca tem 250 m. ver Miret, Eduardo Torroja. Razon y Ser de los tipos estructurales. 110 Fragoso, Paulo. “Considerações sobre as coberturas suspensas”. p.52. 111 O trabalho pioneiro de Hans Eger (1920-2002) no campo das estruturas de alumínio ainda está por ser investigado em profundidade. Consta do seu currículo o projeto e execução, em 1952, do que seria a primeira estrutura de alumínio da América Latina: a cobertura em shed da Garagem

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Fuller (1953)112 e do Pavilhão do Centenário do Alumínio, de Jean Prouvé (Paris,

1954).

O alumínio, material muito usado na fabricação de aviões durante a guerra,

começava a ser explorado na construção civil justamente naqueles anos: sua

leveza viabilizava grandes coberturas e seus diferentes processos de fabricação

ofereciam nova e variada gama de produtos à indústria da construção. Atento a

essas propriedades, Eger estudou, em conjunto com Bernardes, uma solução

específica para a cobertura do Pavilhão de São Cristóvão, onde os problemas iam

se somando: primeiro foram as dificuldades de importação, que levaram à

substituição dos cabos de aço originalmente especificados com alma (ou núcleo)

de aço por cabos com alma de cânhamo, os quais, embora equivalentes em termos

de resistência, são mais deformáveis ao longo do tempo e por isso exigem uma

manutenção freqüente, trabalhosa e onerosa, que inclui a lubrificação dos cabos e

seu reesticamento periódico (embora medições posteriores das trações dos cabos,

realizadas pela equipe do Laboratório de Estruturas da Escola de Engenharia de

São Carlos, da Universidade de São Paulo, tenham indicado que a estrutura de

concreto poderia não resistir à protensão necessária dos cabos113). Somou-se a isso

a falta de instrumentos adequados para prever o desempenho dos elementos e a

intensidade da protensão dos cabos. E além disso, a execução da cesta revelou-se

extremamente complexa: uma série de peças metálicas, como grampos, ganchos e

parafusos, trabalhando em conjunto com os cabos tracionados, fizeram da

montagem uma operação delicadíssima, verdadeiro “trabalho de relojoeiro”114 que

Leblon, no Rio de Janeiro. No mesmo ano, Eger fundou a Alumisa (Estrutura de Alumínio S.A), onde teve como sócio, até meados da década de 60, o arquiteto Gregori Warchavhick. Na década de 1980, Eger patenteou no Brasil o “nó Eger”, elemento de ligação usado em estruturas espaciais de alumínio. Para detalhes sobre a colocação da cobertura do Pavilhão de São Cristóvão, ver Acrópole, 265. pp. 18-21. 112 A cúpula geodésica foi patenteada por Buckminster Fuller em 1954, um ano depois da execução da Ford Rotunda Dome, que tinha 93 pés de diâmetro e foi projetada, testada e instalada em 4 meses. Apesar de ter sido popularizada por Fuller, a primeira cúpula com estrutura poliédrica do mundo foi construída ainda em 1922-3, em Jena, Alemanha, segundo projeto de Walter Bauersfeld e Franz Dischinger, da firma de Carl Zeiss. Ver Meller, James (ed) The Buckminster Fuller Reader e Addis, Bill. Building: 3000 Years of Design Engineering and Construction. 113 entre meados dos anos 1960 e 1981, a equipe do Laboratório de Estruturas da Escola de Engenharia de São Carlos/ USP - fundado pelo engenheiro Dante Martinelli - realizou seis medições das trações nos cabos. Martinelli, que esteve à frente das medições iniciais, chegou a projetar um instrumento especialmente para tal fim. Embora as medições tenham mostrado a necessidade de reesticamento periódico dos cabos, isso nunca foi feito (segundo depoimentos à autora, em 16.04 e 14.08.2007, do engenheiro Roberto Barbato, que participou de algumas medições, e a quem somos especialmente gratos por vários esclarecimentos aqui incorporados) 114 A expressão foi usada pelo engenheiro Roberto Barbato em conversa com a autora, em 14.08.2007.

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exigia mão-de-obra, equipamentos e prática construtiva inexistentes então no

Brasil (conforme atestam as fotos tomadas pela equipe da USP e por Eger, nas

quais se vê a impressionante precariedade com que trabalharam os operários na

obra).

Enfim, uma seqüência de dificuldades de cálculo, orçamento e montagem,

somados à problemática manutenção da obra acabaram por selar a sorte do

pavilhão, que depois de ter sofrido ainda o rompimento de alguns cabos num

incêndio, permaneceu – para muitos, inexplicavelmente - como uma ruína

moderna no coração da cidade115. Pode-se, portanto, questionar essa experiência

do ponto de vista de seu fracasso, desde que se entenda que ele foi proporcional à

ousadia do projeto – e convém registrar a inexistência, na época, dos modelos

matemáticos e métodos computacionais hoje reconhecidos como indispensáveis

para o projeto de uma estrutura retesada116 como a do pavilhão (os quais só

começariam a ser empregados mais de uma década depois, no projeto do estádio

olímpico de Munique, de 1972117). [fig.155]

De fato, foi por meio de um procedimento meio intuitivo, quase tateante,

que Sergio Bernardes e Paulo Fragoso deram origem a uma obra sob vários

aspectos surpreendente, cujo ponto mais forte coincide também com seu aspecto

mais frágil. A relativa falta de domínio sobre o material de modo algum impediu,

contudo, que os cabos voltassem a ser empregados por Sergio Bernardes: nas

coberturas do estádio do Corintians em São Paulo (1968, não executado118) [fig.

172] e do Espaço Cultural de Brasília (1972), na segunda proposta para o Hotel de

Manaus (final da década de 60) ou no projeto de uma colônia de férias pendurada

sobre a mata atlântica, em Parati (“ForYou”, 1987, não executado). Se bem

observarmos esses últimos projetos, junto com os pavilhões citados anteriormente,

veremos que, embora tenham sido precedidos no uso da malha espacial no Brasil 115 Depois do incêndio, todos os cabos foram retirados. O Pavilhão permanece descoberto até hoje, e atualmente abriga o Centro de Tradições Nordestinas. 116 Embora os termos “tensoestrutura” e “estrutura tensionada” sejam mais comumente empregados no Brasil para definir estruturas de cabos e membranas, ambos têm sido questionados por estudiosos no tema, como os engenheiros Roberto Barbato e Ruy Pauletti, uma vez que o termo “tensão” abrange, genericamente, todos os estados de solicitação interna das estruturas. Por esse motivo, seguimos aqui o termo adotado pelo engenheiro Ruy Marcelo Pauletti em “História, Análise e Projeto das Estruturas Retesadas” 117 Ibid. O projeto arquitetônico do estádio é assinado por Günther Behnisch e Frei Otto (cobertura), e o cálculo por Leonhard, Andrä and Partners. 118 Note-se a semelhança desse projeto com o Yale Hockey Rink, de Eero Saarinen (1956-8), com projeto estrutural de Severud-Elsad-Kruegen. Este último, porém, tem sua estrutura definida por um arco com cerca de 23 m de altura, enquanto o de Sergio Bernardes teria 90 m.

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pelo Parque Anhembi [fig.178] de Jorge Wilhem e Miguel Juliano (projeto

contemporâneo ao pavilhão de Frei Otto na IBA/Internationale Bauaustellung em

Berlim, de 1957), a eles cabe o mérito de ter definido uma via de pesquisa inédita

no Brasil, fazendo uso inovador dos cabos de aço aos quais a maior parte dos

arquitetos brasileiros – à exceção do já citado Jayme Luna dos Santos, que assina

também o projeto do edifício até hoje mais alto de Porto Alegre (o edifício Santa

Cruz, projetado com estrutura de aço em meados da década de 1950) - havia

recorrido até então sobretudo para resolver tirantes internos, a exemplo do bloco

de exposições do MAM-RJ, projeto desenvolvido a partir de 1953 por Affonso

Eduardo Reidy. [fig. 170]

Isso não quer dizer que o emprego de cabos de aço na construção civil fosse

novidade. Cordas de fios de aço torcidos já eram amplamente utilizadas no

começo do século XIX119, seja nos elevadores que possibilitaram os primeiros

arranha-céus americanos, seja em estruturas suspensas como a Ponte do Brooklyn,

em Nova York (John Roebling, 1869-75) [fig.171] , à qual Wachsmann atribuiu

papel decisivo por demonstrar “a importância do cabo de aço como material de

construção” e permitir “uma visão grandiosa e sem precedentes de estruturas

reticulares suspensas, incorpóreas e lineares que produzem espaço sem espaço.”120

(argumento este que não por acaso faz lembrar aquele usado por Argan para

definir a “arquitetura infinita” do próprio Wachsmann como uma possibilidade

construtiva ilimitada que “não deixa margem a um espaço naturalístico”, e por

isso mesmo não se concebe no espaço, mas como espaço121). Quanto ao Brasil, se

aqui os fios de aço não foram produzidos antes da década de 1950122, os cabos já

pertenciam à paisagem carioca desde a instalação do teleférico do Pão de Açúcar,

meio século antes (1912). Muito embora não se houvesse ainda atentado para o

potencial arquitetônico desse material delgado e flexível, cuja forma deve sua

existência a uma tensão, como já veremos.

119 segundo K.Frampton, a utilização de cabos de aço em vez de correntes na construção de pontes teve início nos Estados Unidos, em 1816, numa ponte de pedestres sobre uma queda d’água na Pensilvânia. ver Frampton, K. Historia crítica de la arquitectura moderna. pp. 30-31. 120 Wachsmann, K. Wendepunkt im Bauen, p.34. Tradução e grifo são nossos. 121 Argan, G. C. “Prefazione”. 122segundo Augusto Carlos de Vasconcelos, em 1952 a Companhia Belgo-Mineira iniciou a fabricação do fio de aço de diâmetro de 5 mm, visando a utilização específica em obras de concreto protendido. (ver Vasconcelos, A.C. O Concreto no Brasil, v. 1. p.123.) Já os cabos de aço propriamente ditos começaram a ser produzidos no Brasil em 1953, pela CIMAF.

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O fato do Pavilhão da CSN ter sido resolvido como uma ponte é mais

significativo, em todo caso, do que a princípio se pode supor. Não só porque as

pontes costumam ser identificadas, do ponto de vista estrutural, com a vanguarda

da construção (caso da já citada Ponte do Brooklyn e das pontes de Robert

Maillart, estas estudadas a fundo por Max Bill123). É preciso igualmente

considerar que o pavilhão se inscreve num longo histórico da utilização dos cabos

de aço e potencializa a perda do vínculo secular com o solo provocada pela

arquitetura pré-fabricada de ferro, que por sua própria natureza, logo mostrou-se

adequada a deslocamentos (a exemplo do “Palácio de Cristal” de J.Paxton,

montado primeiramente em Southhampton – como sede da Primeira Exposição

Universal, realizada em Londres em 1851 - e depois remontado em Sydenham). É

como se o arquiteto, reconhecendo o caráter provisório dos pavilhões expositivos,

se recusasse a enraizar o seu projeto no solo, bastando-lhe “acampar” a estrutura

no chão, de maneira que ela se mostre sempre pronta para ser desmontada e

remontada a qualquer tempo, em qualquer lugar124. A chave do projeto é, pois, a

idéia de montagem – i.e., uma operação conduzida pela própria lógica do processo

industrial, identificada, pelo menos teoricamente, com a idéia correlata de

desmontagem, e vinculada ao deslocamento da produção do canteiro de obras para

a fábrica, de acordo com o princípio mesmo da pré-fabricação.

Ao se constituir como estrutura pênsil, o pavilhão se contrapõe, por sua vez,

ao sistema tradicional de escoamento das cargas para o chão no qual Sophia Telles

localizou o eixo central da arquitetura brasileira125. Em vez de "fazer cantar os

pontos de apoio"126, ao modo de Niemeyer ou Artigas, por exemplo, o projeto de

Sergio Bernardes ganha um impulso para o alto equivalente, no fundo, a uma

inversão do raciocínio vinculado ao cálculo do concreto armado. A tal ponto a

estrutura é tracionada que a própria lei da gravidade parece ser colocada à prova.

Não resta dúvida, afinal, de que há aí uma espécie de provocação da natureza que,

123 Bill, Max. Robert Maillart.. 124 Com efeito, o pavilhão foi desmontado dois anos depois de ter sido construído, dele só restando uma das pontes em arco, que permanece no local até hoje. 125 A idéia de que no Brasil, na ausência de uma tradição clássica, constituiu-se uma tradição do concreto, que dá ênfase aos pontos de apoio por partir do cálculo estrutural (e não da geometria), foi exposta por S.Telles em seminário interno no Departamento de História da PUC-Rio, em setembro de 2005. 126 A expressão é atribuída ao arquiteto francês Auguste Perret (1874-1954), e foi usada por Flavio Motta na sua arguição de Vilanova Artigas, em concurso para professor titular da FAU-USP, em junho de 1984.

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se pensada do ponto de vista heideggeriano, concerne à essência mesma da técnica

moderna127. De modo que poderíamos mesmo dizer, com Heidegger, que o tipo de

relação que se estabelece com a natureza implica a idéia de requisitá-la e levá-la a

expor-se como “um sistema operativo e calculável de forças”128.

Na verdade, trabalhar com cabos de aço significa pensar em termos de

transferência de carga e deslocamento de esforços (no limite, em todos os sentidos

e direções), antes que de escoamento de cargas para o chão. E uma vez que as

forças tendem a ser desviadas de seu caminho natural (a vertical), o verbo a ser

conjugado passa a ser antes “pendurar” que “apoiar”. Daí que se possa pensar o

pavilhão a partir da interrogação que ele lança à natureza por meio de um

processo de formalização que só se realiza enquanto desafio ao que Argan

chamou de "princípio naturalista do equilíbrio estático dos pesos e resistências"129.

Deve-se notar que o cabo de aço é um tipo específico de barra (elemento

estrutural cuja maior dimensão é o comprimento) que implica uma identificação

completa entre forma e trabalho. Isso significa que sua forma é determinada por

um tracionamento correspondente às forças a que é submetido130. É a trajetória

dessas forças o que define a linha desenhada no espaço pelo cabo; linha essa que

se nega a ser identificada com a linha de contorno associada à tradição da

escultura, para impor-se como trabalho. Tal aspecto, aliás, vem a ser essencial: a

linha como trabalho já não pode ser medida em termos de artisticidade ou

desenvoltura do traço do autor, e nesse sentido perfila-se com uma orientação

essencialmente construtiva, retendo a sugestão de que as técnicas industriais

possam servir “como corretivo do caráter arbitrário do ‘feito a mão”131.

O que se postula, em última instância, é nada menos que uma reorientação

da própria concepção de espaço, num claro desafio àquilo que Siegfried Giedion

chamou de “um dos fatos constituintes da arquitetura moderna”132: uma

concepção de espaço definida essencialmente pela ênfase nos planos verticais e

horizontais e linhas ortogonais, de evidente ascendência neoplástica (basta pensar

na casa projetada em 1922-3 por Theo van Doesburg, um dos fundadores do 127 Heidegger, M. “A questão da técnica” pp. 11-38. 128 Ibid. p.29 129 Argan, G.C. Arte Moderna, p.86 130 Pode-se comparar esse procedimento com o encurvamento do arame que gerou o clips, patenteado na Alemanha em 1901. 131 Fer, Briony. “A linguagem da construção” in: Realismo, Racionalismo, Surrealismo. A arte no entre-guerras. São Paulo, Cosac & Naify, 1998. p.113. 132 Giedion, S. Espaço, Tempo e Arquitetura. São Paulo, Martins Fontes, 2004. p. 178

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grupo De Stijl). A rigor, os cabos de aço abrem uma possibilidade para que o

espaço deixe de ser pensado prioritariamente a partir dos conceitos euclidianos de

ponto-reta-plano e da estática de planos ortogonais (parede-pavimento-teto) para

ser pensado em termos de superfície (i.e., segundo os princípios da topologia).

Isso envolve uma concepção fundamentalmente inovadora de espaço, intimamente

referenciada à “revolução do pensamento”133 empreendida na primeira metade do

século XIX pelas geometrias não-euclidianas. O ponto de partida é justamente a

ordem de problemas apresentados por matemáticos como Gauss, Bolyai,

Lobatchevsky e Riemann, em torno dos quais artistas como Max Bill vinham

encontrando os pontos de referência básicos para defender a incorporação radical

de princípios matemáticos à prática artística (vejam-se as variações de Bill sobre a

fita de Möbius – objeto de estudo por excelência da topologia - e seu conhecido

texto sobre “o pensamento matemático na arte do nosso tempo”, de 1950134).

De fato, quando comparados às lâminas que definem – a despeito de todas

as suas diferenças - a espacialidade do Pavilhão de Barcelona de Mies van der

Rohe (1929) ou da Fallingwater de F.L.Wright (1936-7), por exemplo, os cabos

de aço mostram um raciocínio estrutural de outra ordem, a partir da consideração

da não-linearidade e da instabilidade do seu comportamento – e

conseqüentemente, da forma - e dos meios, em certo sentido mais físicos que

matemáticos, para garantir sua estabilização. É preciso ter em conta, além disso,

que o escoamento das cargas se dá, no suporte vertical (seja este uma parede

estrutural, uma coluna ou pilar), através de esforços normais simples (compressão

e tração), enquanto o cabo de aço responde exclusivamente por esforços de tração,

sem apresentar resistência nem à compressão nem à flexão. Isso significa dizer

que numa estrutura retesada não serão mais necessariamente as verticais e

horizontais a conduzir as forças, e sim um admirável, e até certo ponto

imprevisível jogo de equilíbrio dentro do qual assumem grande importância as

forças vetoriais.

É nesse sentido que deve ser entendida a afirmação de Paulo Fragoso:

“Forma significa moldagem das forças”.

133 Cassirer, Ernst, “El problema del espacio y el desarrollo de la geometría no euclidiana” in: El problema del Conocimiento en la Filosofia y en la Ciencia modernas. p.33. 134 ver Bill, M. “El pensamiento matemático en el arte de nuestro tiempo”. in: Amaral, A. (org). Projeto construtivo brasileiro na arte. pp.50-54.

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154

A definição surge, não por acaso, num artigo sobre coberturas suspensas

no qual são destacados três projetos de Sergio Bernardes: os Pavilhões da CSN e

de São Cristóvão e o Clube Caiçaras, de Santos135. Mas poderia ser estendida a

toda uma linhagem experimental que inclui as “construções espaciais” de Karl

Ioganson (1920-1), as estruturas tensegrity (“tensegridade”)136 de Buckminster

Fuller e David Georges Emmerich e o Aviário do Jardim Zoológico de Londres,

de Cedric Price (1963), e tem um de seus pontos mais altos no estádio olímpico de

Munique, de Frei Otto (1972) [fig.151-155]. Todas essas obras se caracterizam

como sistemas estruturais flexíveis, pois sofrem “mudanças drásticas de forma

quando o padrão de carregamento a que estão submetidas é alterado”137. O que

significa dizer que a condição da sua forma é um estado de tensão. Opera-se,

enfim, com uma noção de forma que se faz no enfrentamento da estabilidade da

forma platônica, i.e., uma forma que se redefine e se reapresenta constantemente,

em sua instabilidade, como forma-no-mundo – vale dizer, dentro da perspectiva

finita de um ser em ato, que só se constitui na contingência e na indeterminação.

4.6 Brasília, industrialização e planejamento

Depois do Pavilhão da CSN, e em grande parte impulsionado pela

estratégia de divulgação à qual ele soube tão bem vincular-se, começaram a surgir

na então capital federal edifícios de múltiplos andares com estrutura em aço: o

edifício-sede do Jockey Clube, projeto de Lucio Costa (1956) [fig.195]138, o

edifício-sede do Montepio dos Funcionários Municipais, projeto de Affonso

Eduardo Reidy (1957) [fig.196] e o edifício Av Central, de Henrique Mindlin

135 Fragoso, Paulo. “Considerações sobre as coberturas suspensas”. 136 O termo tensegrity (“tensegridade”) resulta da contração de tensile integrity ( “integridade tensional”) e deve sua origem aos experimentos de Buckminster Fuller e do artista Kenneth Snelson (seu aluno no Black Mountain College nos anos 40), que levaram adiante as investigações do artista russo Karl Ioganson e desenvolveram um tipo específico de estrutura espacial reticulada composta por barras comprimidas que não se tocam, interligadas por cabos tracionados, resultante do equilíbrio entre tração e compressão. 137 Em contraposição aos sistemas rígidos, como vigas e cascas, que não apresentam deformações consideráveis em função da variação do carregamento. Cf Pauleti, Ruy. História, análise e projeto das estruturas retesadas. 138 Na verdade, apenas o miolo do edifício, ocupado por 13 pavimentos de garagem, foi construído com estrutura metálica, enquanto os blocos periféricos são de concreto armado.

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155

(1957), sobre o qual nos deteremos mais adiante. Um quarto edifício de grande

porte (com 24 pavimentos) em estrutura metálica foi, por assim dizer, atropelado

pela chamada “meta-síntese” do governo JK – a construção de Brasília – e não

chegou a sair do papel: o Senado Federal, projeto de Sergio Bernardes e Rolf

Hüther para concurso realizado meses antes da posse de Kubitschek na

presidência da República139 [fig.194]. Os quatro edifícios (assim como o Garagem

América, em São Paulo) também foram calculados pelo escritório de Paulo

Fragoso. E despertaram atenções, desde logo, por sua localização central na

cidade do Rio de Janeiro: o primeiro na Esplanada do Castelo, o segundo na Av

Pres Vargas, o terceiro na Av Rio Branco e o último na Cinelândia.

Se construído, o edifício do Senado certamente redefiniria o skyline do

centro carioca, que ia ganhando nova escala naquele momento. Os arquitetos

propunham a construção de uma seção de pirâmide com 24 pavimentos e 110

metros de altura, que ultrapassava em muito o gabarito permitido pela

municipalidade (75 metros) e tomava como parâmetro, em vez disso, o limite de

altura fixado pelo Ministério da Aeronáutica. O projeto implicava uma série de

modificações e intervenções na área, inclusive a demolição do Palácio Monroe

(pavilhão eclético abatido nos anos 70, em meio a acirrada polêmica no interior do

IPHAN/Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional140). Depois de

expor uma análise comparativa entre as estruturas metálica e de concreto armado,

os autores do projeto do novo Senado chegavam a enumerar as “vantagens

flagrantes” da primeira sobre a segunda: “40% de rapidez da construção, 30% na

economia da área ocupada por colunas, 25% do peso total da construção e maior

facilidade na adaptação das instalações”. Assumiam, além disso, um ponto de

vista crítico em relação ao veio central da arquitetura brasileira, ao atacar o brise-

soleil, elemento construtivo tão caro ao repertório da primeira geração de

arquitetos modernos no Brasil, agora reduzido a mero “artifício incapaz de

resolver o problema da insolação”141. E em vez de recorrer a estudos de incidência

dos raios solares e resolver separadamente cada uma das fachadas, simplificavam

139 Sobre o projeto, ver Habitat 34, set 1956, Módulo 4, março 1956, Acrópole 301, dezembro de 1963 e Revista do Clube de Engenharia 232, dez.1955. 140 A proposta de demolição do Palácio Monroe criou uma polarização dentro do IPHAN/Instituto Histórico e Artístico Nacional, entre os arquitetos Lucio Costa e Paulo Santos – o primeiro foi favorável à sua demolição, enquanto o último saiu em defesa da sua preservação. ver Pessoa, José (org). Lucio Costa: Documentos de Trabalho. Rio, IPHAN, 1999. pp.272-283. 141 Módulo 4, março 1956, p.23

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156

o detalhamento ao máximo ao adotar, para todas elas, um só tipo de esquadria -

com janelas tipo guilhotina e vidros especiais (tipo “Termolux”) –, além de ar

condicionado central. O argumento, afinal, era a de que “um edifício com ar

condicionado (...) prescinde de qualquer orientação.”

Tanto o projeto do Senado quanto os edifícios do Jockey Clube, do

Montepio e Av Central são contemporâneos do concurso para a escolha do plano-

piloto de Brasília, em que mais de uma proposta apostou explicitamente no uso de

estrutura metálica. Entre os projetos classificados, o da equipe de Rino Levi

apresentava a proposta sem dúvida mais arrojada em termos estruturais, não por

acaso também calculada por Paulo Fragoso: edifícios residenciais laminares de

300 m de altura conectados em linha por treliças metálicas de grandes dimensões

(4 m de altura, 37 m de vão e 400 m de comprimento), perfazendo quatro

conjuntos de 8 edifícios cada. [fig.126] Apesar de suas dimensões descomunais, o

conjunto resultava bastante esbelto graças ao atirantamento dos pisos nas treliças e

ao espaçamento de 15 m entre os edifícios, providenciado também em função da

necessidade de reduzir o impacto do vento. Neste caso, treliças, pilares e tirantes

seriam obtidos mediante a composição de perfis laminados fabricados pela

Companhia Siderúrgica Nacional – os únicos com os quais se podia contar à

época142. Já o projeto assinado por Palanti e Mindlin não chegava ao mesmo nível

de detalhamento, mas recomendava, “em todas as construções em que fosse

possível, o uso de estrutura metálica substituindo a estrutura de concreto

armado”143. [fig.127]

Nenhum dos dois projetos foi selecionado – o de Levi foi classificado em

terceiro lugar, o de Palanti-Mindlin em quinto. Mesmo assim, entre as primeiras

obras de Brasília, várias foram erguidas com estrutura metálica, se bem que

apenas o Palace Hotel (Oscar Niemeyer, 1956) e a torre de rádio e TV (Lucio

Costa, 1958) com estrutura inteiramente fabricada e montada no Brasil, pela FEM

[fig.197]. Os edifícios ministeriais e os dois blocos gêmeos do Congresso

Nacional - respectivamente com 9 e 25 pavimentos -, foram construídos, a partir

de projeto arquitetônico de Niemeyer, com estrutura projetada e fabricada por

142 Só mais tarde começariam a ser produzidas no Brasil as chapas dobradas e soldadas, que permitem dimensões maiores e peças não padronizadas. 143 ver Arquitetura e Engenharia número 44, março-abril de 1957. Este projeto, classificado em quinto lugar, contou com uma equipe que incluía Walmyr Amaral, Marcos Fondoukas, Anny Sirakoff, Olga Verjovsky, Gilcon Lages e André Gonçalves.

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157

uma empresa norte-americana, a Bethlehem Steel Company [fig.198]. As

dificuldades encontradas no decorrer da montagem da estrutura destes edifícios

tornam-se ainda mais espantosas se considerarmos que a produção de aço da

mesma Bethlehem Steel havia servido de base para a definição do sistema

taylorista de organização científica do trabalho, modelo exemplar do processo

moderno de produção144. De fato, quando confrontada com valores intrínsecos à

perspectiva taylorista, como eficiência, rendimento e produtividade, chega a ser

ainda mais gritante, e mesmo dramática, a disparidade flagrada entre os meios e

processos técnicos disponíveis e o plano de industrialização do país145. O

despreparo da mão-de-obra, basicamente não-instruída e em grande parte

proveniente das regiões mais pobres do país146, deixou um saldo de 19 mortes só

no canteiro do Congresso Nacional. Já nos Ministérios, o descuido nas operações

de transporte das peças no Brasil, aliado às adversidades encontradas no canteiro

da nova capital, quase inviabiliza a obra: embora a estrutura metálica tenha sido

embarcada nos Estados Unidos com um plano de montagem que incluía a

identificação e numeração de cada uma das peças, a definição de seu

posicionamento e da seqüência de montagem, as peças foram descarregadas

aleatoriamente em Brasília, o que custou dias de trabalho até que fosse possível

localizá-las em meio às pilhas de metal dispersas pelas margens do Eixo

Monumental.147

Por aí se vê que o aço se mostrou, pelo menos para o meio da arquitetura,

como uma faca de dois gumes: se por um lado prometia maior velocidade de

produção e coadunava-se com o propósito de construir uma cidade-capital no

curtíssimo prazo de três anos, por outro dava sinais claros das condições precárias

da indústria da construção civil no país. É incontestável que antes de Brasília

nunca havíamos contado com um volume tão significativo de obras, concentrado 144 Frederick Taylor ingressou em 1896 na Bethlehem Steel Works e foi responsável pela completa reorganização da empresa, visando o aumento da eficiência na produção. O método aplicado é resumido num dos capítulos de seu célebre livro, Princípios da Administração Científica [1911] (São Paulo, Atlas, 1960) 145 A montagem destas estruturas foi confiada a outra empresa norte-americana (a Reymond Pill, estabelecida no Brasil como Construtora Planalto), que por sua vez subcontratou duas empresas brasileiras: a Setal/Sociedade de Engenharia e Terraplenagem Alberto e a Monag/Montagens Industriais. cf Dias, Luís Andrade de Mattos. Edificações de Aço no Brasil. pp.198-99. 146 Pesquisa realizada pelo IBGE em março de 1958 encontrou 28.800 pessoas morando na área do Distrito Federal (incluindo-se aí o Plano Piloto, o Núcleo Bandeirante e os diversos acampamentos ligados à construção civil). Essa população era proveniente, em sua maioria, do estado de Goiás (39%), seguido de Minas Gerais, Bahia, São Paulo, Pernambuco e Piauí. ver IBGE. Brasília. 147 cf Dias, Luís Andrade de Mattos. Edificações de Aço no Brasil. p 199.

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num só ponto e por encomenda do Estado (motivo da presença maciça de

empresas estrangeiras no canteiro da nova capital, que chegou a gerar um protesto

público formulado no âmbito do V Congresso Brasileiro de Arquitetos148). Assim,

se por um lado pode-se admitir que o Programa de Metas seja considerado um

“marco na consolidação e desenvolvimento da indústria da construção” no

Brasil149, no que diz respeito à concentração, no canteiro da nova capital, de

sistemas construtivos inovadores (como o concreto protendido empregado na

Rodoviária de Lucio Costa e sistemas pré-fabricados concebidos no âmbito do

Ceplan / Centro de Planejamento da Universidade de Brasília), por outro lado

pode-se também questionar até que ponto daí decorreu um posicionamento mais

efetivo, por parte dos arquitetos brasileiros, em relação aos problemas inerentes à

concepção de projeto industrial.

Em todo caso, Brasília haveria de se tornar referência crucial nos debates

sobre arquitetura e urbanismo que acompanharam a discussão sobre o processo de

industrialização brasileira nos anos 50-60. Seja porque ali se intensificou o desafio

de testar soluções projetuais capazes de permitir a produção em massa de uma

arquitetura de qualidade, seja porque sua construção forçou a interrogação de um

processo de racionalização que, ao se cruzar com o esforço de superação do

subdesenvolvimento do país, muitas vezes tendeu a se confundir com propostas de

industrialização da construção, às vezes até limitando-se a apontar a pré-

fabricação como alternativa para a construção convencional. O fato é que o

investimento em pesquisas tecnológicas, a busca de soluções econômicas, a ênfase

na organização do canteiro e a preocupação política e programática com a

habitação de baixa renda tornaram-se, na esteira das obras de Brasília, temas

centrais de um debate que, mesmo quando forçado por uma orientação mais

ideológica que técnica, conduziu a um repertório significativo de experiências

arquitetônicas que tanto abriu caminho para a produção em larga escala dos

grandes escritórios e empreiteiras quanto fomentou o programa estético-político

estabelecido por Sérgio Ferro (com Flávio Império e Rodrigo Lefèvre) com base

na crítica marxista à alienação do trabalhador no sistema capitalista150.

148 Chaves, Marilena. A indústria da construção no Brasil: desenvolvimento, estrutura e dinâmica. p.124. 149 Chaves, Marilena. A indústria da construção no Brasil: desenvolvimento, estrutura e dinâmica. Rio de Janeiro, Instituto de Economia Industrial da UFRJ, 1985. p.135. (dissertação de mestrado) 150 ver Ferro. Sergio. Arquitetura e Trabalho Livre.

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Por mais que limitada pela chave ideológica na qual se inscrevia, nos

termos do conflito entre forças revolucionárias e reacionárias, a crítica destes

arquitetos à associação entre desenvolvimento e industrialização contribuiu para

apontar para os limites que a estrutura social brasileira, fundada sobre o regime

escravocrata-senhorial, desde logo impunha à racionalização dos processos

produtivos no Brasil151. Quer dizer, se por um lado nosso sistema político-social

negava, de saída, qualquer aspiração reformista contida na idéia de modernidade,

por outro lado o patrimonialismo estatal no qual mantinha-se ancorado fazia-o

fundamentalmente refratário à economia capitalista moderna, “de índole

industrial, racional na técnica e fundada na liberdade do indivíduo”152, conforme

Raymundo Faoro. Daí os problemas que ainda podiam ser verificados, na segunda

metade do século XX, na relação desconexa entre prática projetual e meios de

produção, ou entre projeto, fábrica e canteiro – i.e., entre operações sucessivas na

cadeia de produção, a contrapelo da lógica intrínseca a qualquer processo

industrializado. E isso a despeito do interesse manifestado então pela produção

seriada por parte de um número significativo de arquitetos brasileiros que incluía,

a despeito de todas as suas diferenças - e elas decerto não eram poucas -, Sergio

Bernardes, Arthur Lício Pontual, Henrique Mindlin, Affonso Eduardo Reidy, os

irmãos Roberto, Oscar Niemeyer, Eduardo Kneese de Mello, Sergio Rodrigues,

Sérgio Ferro, Rodrigo Lefevre, Paulo Mendes da Rocha, Vilanova Artigas, Rino

Levi, Hélio Duarte e Ernst Mange (este, aliás, engenheiro). E claro, João

Filgueiras Lima, dito “Lelé”, caso extremo e único de quem acabaria optando por

assumir o controle de toda a cadeia de produção, ao custo de se manter fora do

mercado e sob a égide do Estado153.

Vejamos o sistema de pré-fabricação em madeira concebido por Sergio

Rodrigues em 1959, cujo primeiro protótipo – uma casa de dois quartos - foi

exposto nos jardins do MAM no ano seguinte, acompanhado de painéis e catálogo

151 Schwarz, Roberto. "As idéias fora de lugar" in: Ao vencedor as batatas. 152 Faoro, Raymundo. Os donos do poder. p.819. 153 A partir da experiência adquirida no canteiro de obras de Brasília, Lelé dedicou-se ao desenvolvimento de sistemas construtivos pré-fabricados, utilizados na maior parte das vezes na implantação de escolas, saneamento e equipamentos comunitários públicos em várias cidades do Brasil. Desde o início da década de 90, sua atuação tem se dado prioritariamente no âmbito do projeto e produção dos hospitais da Rede Sarah Kubitschek – graças a uma associação entre uma entidade privada e o Governo Federal, pela qual é permitido produzir, mas não comercializar os componentes industrializados projetados pelo arquiteto e fabricados sob a sua supervisão no CTRS/ Centro de Tecnologia da Rede Sarah, em Salvador. ver Latorraca, G. João Filgueiras Lima, Lelé.

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projetados por Goebel Weyne, Arthur Lício Pontual e Marcos Vasconcellos, como

mencionado antes [fig.73-77]. Tratava-se de um projeto modulado com base nas

dimensões das placas de compensado disponíveis no mercado (1,22 x 2,50 m),

com estrutura de peroba maciça de 3 polegadas (0,075 m) e cobertura plana, em

placas de feltro asfáltico revestidas de alumínio e fixadas ao fôrro de réguas de

madeira. Embora o sistema pudesse servir a diferentes usos e arranjos, foram

apresentadas três versões de plantas para casas de um, dois e três quartos

(respectivamente com 25, 47 e 65 m2, além da área livre resultante da elevação do

piso único da casa).

Convocado a escrever o texto de apresentação, Mário Pedrosa saudou a

proposta “surgida não de um projeto a priori, ou muito menos de um exercício de

composição, mas de normas industriais prevalecentes nas fábricas, de normas e

módulos de materiais em circulação no mercado.” Destacou a afinidade do projeto

com o pensamento alemão - embora reconhecendo que ainda lhe faltasse “a

extraordinária flexibilidade de montagem” do sistema de pré-fabricação aberto154

de Gropius e Wachsmann, o “General Panel System”155, cujo alto grau de

liberdade nos arranjos combinatórios atribuiu à definição de um conceito não

planar de módulo [fig. 199]. E afirmou:

“uma das graves deficiências dessa nossa tão louvada arquitetura é a de ter sido, até hoje, salvo um ou outro ensaio social, de que Pedregulho (infelizmente não acabado!) é o exemplo mais alto, atividade puramente aristocrática, estritamente

154 Os sistemas de pré-fabricação podem ser classificados em abertos e fechados. Sistema fechado é aquele em que os elementos construtivos são produzidos para obras específicas, exigindo mão-de-obra qualificada na sua montagem. Já o sistema dito aberto define-se pela produção de elementos padronizados destinados ao mercado, que podem ser combinados entre si de várias maneiras, com resultados distintos. Nesse caso, a montagem é feita por terceiros. ver Bruna, Paulo. Arquitetura, industrialização e desenvolvimento. 155 O desenvolvimento do sistema de pré-fabricação em madeira testado originalmente por Wachsmann na Alemanha beneficiou-se dos incentivos do chamado “Programa Wyatt” – programa habitacional conduzido por Wilson Wyatt, diretor da National Housing Agency no governo Truman (1945-53), com vistas a estimular a economia norte-americana e promover a produção de habitação econômica (com o objetivo primordial de prover abrigo aos veteranos da II Guerra). É neste contexto que Gropius e Wachsmann criam a “General Panel Corporation”, empresa sediada na Califórnia e destinada a produzir um sistema de painéis pré-fabricados de madeira concebido pelos dois arquitetos. Os painéis seguem um único módulo de 3’ 4” (aproximadamente 101,6 cm) e são articulados, tanto vertical quanto horizontalmente, por um mesmo elemento cruciforme de aço. Apesar da redução dos componentes ao mínimo e da não-diferenciação de elementos verticais e horizontais, o sistema permite grande flexibilidade, conforme demonstra a variedade de casas projetadas por arquitetos como Gropius e Richard Neutra. Vale ressaltar que todo o processo de fabricação dos painéis é mecanizado graças às máquinas projetadas pelo próprio Wachsmann. Ver “The industrialized house: General Panel Corporation” in: Architectural Forum, vol. 86 (1947), pp.115-120 e Wachsmann, Konrad. Wendepunkt in Bauen.

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reservada a milionários ou ao poder público. Esperemos que Brasília seja a oportunidade não apenas para estimular o brilho da imaginação criadora de alguns dos nossos grandes arquitetos, como Oscar Niemeyer, mas para que se afirmem, também, com o mesmo brilho, e, sobretudo, com viva flama, as solicitações do social e do humano na construção das superquadras residenciais do plano urbanístico de Lucio Costa”156.

Como se vê, a simultaneidade da exposição no MAM com a inauguração

de Brasília tinha sua razão de ser: acreditava-se numa convergência entre o

sistema pré-fabricado de Sergio Rodrigues e a construção da nova capital, visto

que ambos projetos podiam ser enquadrados, afinal, dentro da mesma perspectiva

de industrialização do país. Pois bem, a resposta de Lucio Costa veio nas vésperas

da inauguração de Brasília, em carta a Israel Pinheiro (presidente da Novacap), na

qual o arquiteto sugeriu que fosse aberta uma exceção para que pudesse ser

construída no Plano Piloto “a pequena casa pré-fabricada do arquiteto Sergio

Rodrigues e Oca-Arquitetura, Interiores Ltda”. Ora, a carta dá bem a medida de

como Lucio Costa concebia a pré-fabricação, pelo menos no tocante à habitação

unifamiliar. Em princípio, casas pré-fabricadas não eram admitidas no Plano

Piloto; no máximo, podia-se abrir uma brecha para uma solução considerada

pontual, circunstancial e de caráter provisório, aceitável em função da “urgência

de morar em Brasília”. Quer dizer, Lucio Costa consentia em dar uma espécie de

“licença” às casas de Sergio Rodrigues e até destacava algumas de suas

qualidades: o padrão de acabamento, a simplicidade, as possibilidades de

agenciamento, a rapidez de montagem. Deixava claro, porém, que não as entendia

senão como “pavilhões de morar”, os quais antecederiam a construção da “casa

grande definitiva” e “depois serviriam de casa de hóspedes ou de apartamento

independente para os rapazes da família”.157

Mas se o aval de Lucio Costa era um tanto ambíguo, por outro lado ele

abriu as portas de Brasília para a arquitetura pré-fabricada de Sergio Rodrigues, e

não só no setor residencial (construiu-se com esse sistema, por exemplo, a

primeira sede do Iate Clube, inaugurada em 1960 e ainda existente). A inevitável

pressão pela provisão de habitação em Brasília levaria também Oscar Niemeyer a

propor dois tipos de solução estandardizadas: um bloco de 7 pavimentos com

colunas, lajes e paredes inteiras pré-fabricadas, e uma unidade alveolar de 50 m2,

156 Pedrosa, Mário. “Casa pré-fabricada e individual” in: MAM-RJ. Casa individual pré-fabricada. 157 Costa, Lucio. Carta a Israel Pinheiro. 18.abr.1960.

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a ser usada isoladamente ou superposta a outras (neste caso configurando

habitações coletivas de até 4 pavimentos, com vazios entre as unidades usados

como jardins). [fig.200] Visava-se claramente enfatizar a natureza industrial do

projeto – daí que Niemeyer não tenha deixado de incluir, num de seus croquis,

uma grua transportando uma unidade pré-fabricada. Além disso, o arquiteto

frisava que a característica principal do projeto era a “flexibilidade de utilização”

158 – embora essa na verdade se limitasse à introdução de divisórias e

equipamentos no interior de uma caixa fechada, conforme sugeria o próprio autor

do projeto em seu texto de apresentação.

Havia, como se percebe, dois tipos de abordagem em jogo: por um lado, o

projeto de Niemeyer era como que a expressão (ainda que atualizada) da

“moradia-estojo” descrita por Walter Benjamin em sua caracterização da casa

burguesa do séc.XIX159. Quer dizer, aqui também uma das premissas básicas da

arquitetura era a definição de um invólucro, uma caixa/estojo/casulo destinada a

acondicionar (e a bem dizer, preservar) um conteúdo dificilmente acusado pelo

seu exterior. Como os estojos do século XIX, que chamaram a atenção de

Benjamin justamente por guardar objetos e instrumentos técnicos - compassos,

relógios de bolso, termômetros – produzidos em ritmo crescente pela indústria

porém ainda vistos com alguma suspeição por seus próprios usuários, as casas de

Niemeyer se apresentam, em suma, como uma caixa-container a ser produzida em

massa, cuja possibilidade de repetição (mesmo que virtualmente ao infinito) não

exclui seu caráter de forma fechada em si mesma, no sentido wölffliano de

ideação de uma totalidade estável e oferecida à admiração de um sujeito

heterônomo, à qual não são previstas intervenções posteriores. Ou melhor, onde

qualquer alteração do todo, seja por adição ou subtração, tende a se caracterizar

como uma mutilação – o que equivale a dizer, uma deformação.

Por outro lado, o sistema de Rodrigues recorria a elementos suscetíveis de

combinação, assim promovendo - ao menos potencialmente - um certo grau de

mutabilidade dos espaços e da própria forma construída. Ainda que operasse com

um conceito planar de módulo, e encerasse o problema da conectividade dos

elementos com a opção pela estrutura tipo balloon-frame (em montantes de 158 “Habitação pré-fabricada em Brasília” in: Módulo 27, março de 1962, p. 30. Um protótipo dessa unidade chegou a ser executado, e funciona hoje como barbearia. cf Khoury, Ana Paula. Arquitetura construtiva. 159 Kapp, Silke. “Síndrome do estojo”.

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madeira fixados apenas com pregos), o projeto revelava-se até certo ponto mais

próximo da prática ulmiana, no sentido da aposta numa concepção

fundamentalmente mais aberta de forma (basta pensar que em princípio tanto a

configuração da planta quanto da fachada dependeriam menos da prescrição do

arquiteto que das decisões do proprietário/usuário).

Ora, por mais que essas duas abordagens seguissem claves distintas, elas

sem dúvida apresentavam, naquele ambiente, alguma complementaridade, motivo

pelo qual ambas encontraram espaço privilegiado no campus universitário de

Brasília, onde o emprego de técnicas de construção mais racionalizadas, e

particularmente de sistemas de pré-fabricação, acabou se concentrando. O

primeiro alojamento de professores foi construído com o sistema de Sergio

Rodrigues, e pouco depois Niemeyer assumiu a dianteira de um pesado

investimento em pré-fabricação conduzido pelo Ceplan/Centro de Planejamento

da Universidade de Brasília (cuja seção de arquitetura reuniu João Filgueiras

Lima, Sabino Barroso, Glauco Campello e outros160). Além de projetar vários

edifícios no campus – dentre eles o próprio escritório técnico do Ceplan e o

Instituto Central de Ciências (ambos projetados por Niemeyer e desenvolvidos por

Filgueiras Lima a partir de 1962-3), e o alojamento de professores da Colina

(Filgueiras Lima, 1963) - o Ceplan envolveu-se com outros projetos na cidade,

como o bloco de apartamentos para a embaixada da França (Glauco Campello,

1963). Foi também no Ceplan que Niemeyer concebeu uma escola primária “de

fácil aplicação por todo o País”, com “elementos pré-fabricados [que] se

subordinam às condições de transporte (caminhão) e à possibilidade de ser

montada em qualquer lugar em poucas horas”161. Com paredes internas

pivotantes, a escola poderia também servir, de noite, a outras atividades. [fig.201-

204]

Todos estes projetos, desenvolvidos em concreto e definidos em função do

princípio da pré-fabricação pesada (i.e., fazendo uso de peças com limite de peso

dado em função da capacidade de máquinas de transporte e içagem162), foram

160 O Ceplan foi criado em 1962, e sua equipe inicial contava ainda com Virgilio Sousa Gomes, Evandro Pinto, Abel Accioly e Hilton Costa, e na seção de urbanismo, com Lucio Costa, Jayme Zettel e Ítalo Campofiorito. 161 “Ceplan - Centro de Planejamento Universidade de Brasília” in: Módulo 32, abril 1963, p.47. 162 A rigor, a distinção entre pré-moldados e pré-fabricados só se definiu nos anos 80 – segundo os termos da NBR 9062 (a primeira norma brasileira de estruturas metálicas, que entrou em vigor em 1985), aqueles pressupõem uma instalação temporária, enquanto estes dependem de instalações

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desenvolvidos no começo da década de 60, no tumultuado período que antecedeu

o golpe militar163. Verificou-se, assim, uma série de esforços que pareciam

convergir para o equacionamento da crise urbana e habitacional através da ênfase

no binômio industrialização e planejamento – o que levou uma parcela

significativa de arquitetos reunidos no Seminário de Habitação e Reforma Urbana,

em 1963, a incluir, em seu conjunto de propostas, “o incremento da indústria de

materiais de construção e o desenvolvimento de processos tecnológicos tendo em

vista a padronização, a estandardização desses materiais e a possibilidade de

processos de pré-fabricação”164 Mas no fundo, nem a construção de Brasília nem

as ações governamentais destinadas a estimular a industrialização do país foram

suficientes para aglutinar propostas de produção de arquitetura em larga escala

intensificadas na segunda metade da década de 1950 - período em que o produto

industrial acusou um crescimento extraordinário, a uma taxa média anual de mais

de 10%165. E sequer a demanda crescente por habitação, canalizada já no regime

militar para o Banco Nacional de Habitação, mostrar-se-ia suficiente para garantir

a demanda contínua considerada imprescindível para sustentar a perspectiva de

desenvolvimento industrial da construção civil no Brasil. Com poucas exceções,

iniciativas conseqüentes – como o programa de construções escolares

empreendido pelo governador Carvalho Pinto em São Paulo (1959-63) - e até

experiências inovadoras, caracterizadas pela proposta de racionalização de

processos construtivos vernaculares – como a proposta de Acácio Gil Borsói para

a construção em série de casas em taipa166 -, permaneceram, assim, quase como

fixas com controle de qualidade apurado e sistemático da produção, visando garantir as propriedades da peça, tanto em termos dimensionais quanto de resistência. 163 Com a invasão da universidade e a demissão coletiva dos professores do curso de arquitetura, em 1965, as atividades do Ceplan se reduziram ao mínimo e só foram retomadas a partir de 1968, quando se reabriu o curso. Cf Khoury, Ana Paula. Arquitetura construtiva. 164 O Seminário foi promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), com apoio do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Servidores do Estado (IPASE) e foi realizado em julho de 1963, entre Rio de Janeiro e São Paulo. Registrou-se a participação de cerca de 200 profissionais de diversas áreas, em sua maior parte de arquitetos. ver Arquitetura ( revista do IAB-RJ) números 12 a 15 (junho a setembro de 1963). apud Bonduki, Nabil e Koury, Ana Paula. “Das reformas de base ao BNH: as propostas do Seminário de Habitação e Reforma Urbana”. 165 Cf Fausto, Boris. História do Brasil. São Paulo, Edusp, 2000, p. 540. 166 O projeto para Cajueiro Seco (PE) propunha a conjugação de técnicas de pré-fabricação com sistemas construtivos vernaculares. O projeto previa a produção em série, em instalação fabril, de 3 tipos de esquadrias e 4 tipos de painéis de madeira, os quais seriam posteriormente montados no canteiro pelos próprios moradores. Uma vez amarrados entre si, estes requadros seriam preenchidos por barro, segundo a técnica tradicional da taipa, e cobertos por uma esteira de palha ou capim. ver Arquitetura número 40, outubro de 1965, pp.6-9.

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“balões de ensaio”, no máximo considerados em segundo plano em relação às

obras consagradas nos compêndios de arquitetura no Brasil167.

167 Um esforço de identificação dessas obras foi levado a cabo por Ana Paula Khoury em sua tese de doutorado: Arquitetura construtiva: Proposições para a produção material da arquitetura contemporânea no Brasil.

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