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4 Ordem constitucional brasileira e o meio ambiente ecologicamente equilibrado. 4.1 O meio ambiente ecologicamente equilibrado e a exploração dos potenciais de energia hidráulica. Cumpre à norma constitucional, como lei fundamental, delinear os limites e o conteúdo da ordem jurídica, razão pela qual é nela que devemos encontrar o fundamento primeiro da proteção ao meio ambiente. A priori, então, somente através de uma análise detida e acurada do texto constitucional é que se torna possível visualizar um novo paradigma ético-jurídico presente na questão ambiental, que pretende fugir da “compreensão coisificadora, exclusivista, individualista e fragmentária da biosfera.” 1 Este novo paradigma, sensível à saúde coletiva, às expectativas das gerações futuras, à manutenção das funções ecológicas e ao adequado uso dos recursos naturais, permite a defesa de uma nova ordem pública que valoriza a responsabilidade da coletividade em relação aos problemas do planeta Terra. 2 Neste passo, partiremos do pressuposto da existência de um Estado de Direito Ambiental, introduzido pela Constituição Federal de 1988. Além de ser um Estado de Direito Democrático e Social é também regido por princípios de natureza ambiental. Esse novo Estado de Direito Ambiental aponta para formas novas de participação democrática na adoção das políticas públicas, sejam elas ambientais ou não. 34 1 BENJAMIN, Antonio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In CANOTILHO, J. J. Gomes. LEITE, Jose Rubens Morato ( org ). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 66. 2 Ibid. p. 66. 3 No mesmo sentido, doutrinadores brasileiros e estrangeiros. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional Ambiental Português e da União Européia. In CANOTILHO, J. J. Gomes. LEITE, Jose Rubens Morato ( org ). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 5, trata da ”ecologização da ordem jurídica portuguesa” e defende a existência de um “Estado de Direito Ambiental e Ecológico”. Ver, ainda, BENJAMIN. Antonio Herman. Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. In CANOTILHO, J. J. Gomes. LEITE, Jose Rubens Morato (org ). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 121-124; MORATO LEITE. José Rubens. AYALA, Patrick. Direito Ambiental na Sociedade de Risco. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 24.

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4

Ordem constitucional brasileira e o meio ambiente

ecologicamente equilibrado.

4.1

O meio ambiente ecologicamente equilibrado e a exploração dos

potenciais de energia hidráulica.

Cumpre à norma constitucional, como lei fundamental, delinear os limites

e o conteúdo da ordem jurídica, razão pela qual é nela que devemos encontrar o

fundamento primeiro da proteção ao meio ambiente.

A priori, então, somente através de uma análise detida e acurada do texto

constitucional é que se torna possível visualizar um novo paradigma ético-jurídico

presente na questão ambiental, que pretende fugir da “compreensão coisificadora,

exclusivista, individualista e fragmentária da biosfera.”1 Este novo paradigma,

sensível à saúde coletiva, às expectativas das gerações futuras, à manutenção das

funções ecológicas e ao adequado uso dos recursos naturais, permite a defesa de

uma nova ordem pública que valoriza a responsabilidade da coletividade em

relação aos problemas do planeta Terra.2

Neste passo, partiremos do pressuposto da existência de um Estado de

Direito Ambiental, introduzido pela Constituição Federal de 1988. Além de ser

um Estado de Direito Democrático e Social é também regido por princípios de

natureza ambiental. Esse novo Estado de Direito Ambiental aponta para formas

novas de participação democrática na adoção das políticas públicas, sejam elas

ambientais ou não.34

1 BENJAMIN, Antonio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In CANOTILHO, J. J. Gomes. LEITE, Jose Rubens Morato ( org ). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 66. 2 Ibid. p. 66. 3 No mesmo sentido, doutrinadores brasileiros e estrangeiros. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional Ambiental Português e da União Européia. In CANOTILHO, J. J. Gomes. LEITE, Jose Rubens Morato ( org ). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 5, trata da ”ecologização da ordem jurídica portuguesa” e defende a existência de um “Estado de Direito Ambiental e Ecológico”. Ver, ainda, BENJAMIN. Antonio Herman. Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. In CANOTILHO, J. J. Gomes. LEITE, Jose Rubens Morato (org ). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 121-124; MORATO LEITE. José Rubens. AYALA, Patrick. Direito Ambiental na Sociedade de Risco. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 24.

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Tal ordem, incorporada pelo Estado de Direito Ambiental, é assim

considerada: atribui organicidade, coerência interna, coercitividade externa e uma

direção finalística; integra, em um só sistema, imposições de natureza positiva

(obrigação de fazer) e negativa (obrigação de não fazer); e indica a limitação

estatal a atividades privadas, especialmente aquelas associadas ao direito de

propriedade e à livre iniciativa. Ela é pública por vincular toda a coletividade,

inclusive o próprio poder público, não podendo ser ditada pelo mercado ou pela

autonomia da vontade individual, além de exprimir, também, um conjunto de

regras de interesse público. E, por último, é ambiental, no sentido de que seus

componentes não podem ser analisados de forma fragmentada e isolada, mas, sim,

apreciados e salvaguardados a partir do todo.

Algumas consequências5 podem, assim, ser extraídas da adoção desse

entendimento. Podemos elencar as seguintes: 1) o reconhecimento de um dever

constitucional genérico de não degradar, base do regime de exploração limitada e

condicionada; 2) a proteção ambiental como direito fundamental; 3) a legitimação

constitucional da função de intervenção do Estado na economia; 4) a redução da

discricionariedade administrativa; 5) a ampliação da participação pública e a

imposição de limites ao direito de propriedade, reconhecendo a sua dimensão

ambiental; e 6) a conformação das políticas públicas no sentido da vedação ao

retrocesso ambiental. No presente estudo não nos preocuparemos em dar enfoque

a todas elas, buscando, no decorrer do trabalho, examinar somente alguns desses

aspectos.

O Estado de Direito Ambiental pressupõe uma concepção ampla ou

integrada6 de meio ambiente e, consequentemente, uma concepção também ampla

4 O doutrinador português Vasco Pereira da Silva, tratando da dimensão histórica dos direitos humanos, defende que o direito humano ao meio ambiente surge no chamado Estado Pós-social, através do qual se retorna à idéia de proteção do indivíduo contra o poder, de ameaças tanto de entidades públicas como privadas. No Estado Pós-social, há uma alteração da lógica da atividade administrativa, que deixa de ser orientada em função da resolução pontual de conflitos, para se tornar uma atividade conformadora da realidade social. In SILVA, Vasco Pereira. Verde Direito: o direito fundamental ao ambiente. DAIBERT, Arlindo ( org ). Direito Ambiental Comparado. Belo Horizonte: Fórum, 2008, pp. 21-24. 5 BENJAMIN. Antonio Herman. Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. In CANOTILHO, J. J. Gomes. LEITE, Jose Rubens Morato ( org ). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 69-76. O autor trata de tais conseqüências como “benefícios materiais da constitucionalização”. 6 CANOTILHO, J. J. Gomes. Estado Constitucional Ecológico e Democracia Sustentada. In FERREIRA, Heline Silvini. LEITE, José Rubens Morato. ( org ). Estado de Direito Ambiental: Tendências. Aspectos Constitucionais e Diagnósticos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 8.

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e integrada do direito ambiental. O meio ambiente deve ser considerado em seus

vários aspectos. Embora este conceito seja pertencente a uma daquelas “categorias

cujo conteúdo é mais facilmente intuído que definível, em virtude da riqueza e

complexidade do que encerra.”7 , adotaremos a posição, entre nós, exposta por

José Afonso da Silva.

O referido autor8 parte da idéia de um conceito unitário e globalizante de

meio ambiente, abrangente de toda a natureza original e artificial, bem como dos

bens culturais correlatos, compreendendo o solo, a água, o ar, a flora, as belezas

naturais, o patrimônio histórico, artístico, paisagístico, turístico e arqueológico.

Afirma, assim, ser o meio ambiente “a interação do conjunto de elementos

naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da

vida em todas as suas formas.”

Em decorrência, sinaliza para a existência de três aspectos do meio

ambiente: o artificial, constituído pelo espaço urbano construído (conjunto de

edificações e dos equipamentos públicos, tais como praças, ruas, áreas verdes,

espaços livres), o cultural, integrado pelo patrimônio histórico, artístico,

paisagístico, turístico e arqueológico (caracterizado como sendo fruto da obra do

homem, mas distinguindo-se do primeiro pelo valor especial que adquiriu ou de

que se impregnou), e o natural ou físico, constituído pela flora, fauna, água, ar (ou

seja, pela interação dos seres vivos e de seu meio).9

Portanto, no âmbito jurídico, adotaremos a perspectiva mais ampla de

meio ambiente, tal qual exposta acima, que abrange não só o meio natural ou

físico, mas também o artificial e os bens culturais correlatos.10 11

7 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 109. 8 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007, pp. 20-23. 9Aliás, é em consonância com este último aspecto que surge o conceito legal de meio ambiente constante do art. 3º da Lei n. 6938/81, segundo o qual, para os fins previstos na referida lei de política nacional do meio ambiente, “entende-se por meio ambiente o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.” 10 É bom lembrar que a Declaração do Meio Ambiente elaborada em Estocolmo, em 1972, já mencionava a existência dos dois aspectos relevantes do meio ambiente, senão vejamos: “Os dois aspectos do meio ambiente, o natural e o artificial, são essenciais para o bem-estar do Homem e para que ele goze de todos os direitos humanos fundamentais, inclusive o direito à vida mesma” e, mais adiante, “a proteção e melhora do meio ambiente é uma questão fundamental que afeta o bem-estar dos povos e o desenvolvimento econômico do mundo inteiro; é desejo urgente dos povos de todo o mundo e um dever de todos os governos.” 11 Válido também destacar o disposto na Lei n. 9795/1999 que institui a Política Nacional de Educação Ambiental, em seu art. 5º, inciso I, que apresenta como um dos objetivos fundamentais da educação ambiental “o desenvolvimento de uma compreensão integrada do meio ambiente em

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Ora, a concepção de um Estado de Direito Ambiental leva em conta

também a existência de um direito ambiental integrativo12 que enseja uma

significativa alteração no modo de regulação das atividades e projetos, pois não

busca, de forma isolada, fiscalizar uma determinada atividade ou instalação, mas

acompanhar todo o processo produtivo e de funcionamento desta sob o ponto de

vista ambiental. Além disso, essa nova forma proposta de direito ambiental não

apresenta preocupação monotemática, mas sim pluritemática, pois busca, em uma

avaliação de impacto ambiental, por exemplo, analisar não só os projetos

ambientais em sentido estrito, como também os de natureza urbanística ( planos

diretores, planejamento urbano ). Isto implica uma notável alteração das relações

de direito ambiental e urbanístico.

Por fim, esta idéia de um direito ambiental integrativo produz

conseqüências também na forma de atuação dos instrumentos jurídicos do Estado

de Direito Ambiental. Neste, diante da complexidade e conflituosidade subjacente

à ponderação dos interesses e direitos em uma perspectiva pluritemática, faz-se

necessário compatibilizar os instrumentos legais de direito ambiental e

urbanístico.

Assim, passemos ao exame do texto constitucional pátrio.

A Constituição Federal de 1988 define, no art. 225, caput13, o meio

ambiente ecologicamente equilibrado como direito de todos e lhe confere a

natureza de bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,

impondo uma co-responsabilidade entre o cidadão e o poder público pela sua

defesa e preservação.

Podemos dizer que, contrariamente às constituições brasileiras

anteriores14, a Constituição Federal de 1988 detém uma peculiaridade em relação

suas múltiplas e complexas relações, envolvendo aspectos ecológicos, psicológicos, legais, políticos, sociais, econômicos, científicos, culturais e éticos”. 12 Esta expressão foi utilizada pelo autor português CANOTILHO, J. J. Gomes. Estado Constitucional Ecológico e Democracia Sustentada. In FERREIRA, Heline Silvini. LEITE, José Rubens Morato. ( org ). Estado de Direito Ambiental: Tendências. Aspectos Constitucionais e Diagnósticos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, pp. 08-09. 13 Constituição Federal de 1988. Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. 14 A Constituição de 1824 não fez qualquer referência à matéria ambiental, prevendo apenas a proibição de indústrias que causassem mal à saúde do cidadão ( art. 179, n. XXIV ). O texto republicano de 1891 trazia competência legislativa à União para legislar sobre minas e terras ( art.

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ao tratamento específico e global dado ao tema do meio ambiente, dedicando-lhe

capítulo próprio, além das regras esparsas, o que tornou o direito ao ambiente

sadio como um direito fundamental do indivíduo.

A Carta Magna de 1988, em seu art. 3º, estabelece, ainda, os objetivos

fundamentais da República Federativa do Brasil, assegurando a construção de

sociedade livre, justa e solidária, em que seja garantido o desenvolvimento, com a

promoção do bem estar de todos. Paralelamente, ratifica a necessidade de

erradicação da pobreza e da marginalização, com a redução das desigualdades

sociais e regionais.

Fica evidente, desta maneira, a preocupação do legislador constituinte com

a ordem social, especialmente por não ser olvidada a realidade fática de nosso

país, ainda em desenvolvimento, em que a desigualdade social e a pobreza (além

de outros fatores de exclusão) estão presentes.

Como se pode observar da leitura do texto constitucional, o capítulo do

meio ambiente (Capítulo VI) está inserido no título relativo à ordem social (Título

VIII), que tem, como base, o primado do trabalho e, como objetivo, o bem-estar e

a justiça sociais ( art. 193 da CF/88 ). Assim, o social constitui a grande meta de

toda a ação do poder público e da sociedade e deve estar presente tanto na análise

das questões ambientais como econômicas15. A ordem econômica, por seu turno,

subordina-se à ordem social, o que faz com que o desenvolvimento econômico só

ocorra, realmente, se acompanhado do próprio desenvolvimento social.

34, n. 29). A Carta de 1934, por sua vez, se preocupou com a proteção às belezas naturais, ao patrimônio histórico, artístico e cultural (arts. 10, III, e 148) e estabeleceu a competência da União para as matérias de riquezas do subsolo, mineração, águas, florestas, caça, pesca e sua exploração ( art. 5º, XIX, f ). A Constituição de 1937 também apresentou preocupação com a proteção dos monumentos históricos, artísticos e naturais, bem como das paisagens e locais com características de natureza peculiar ( art. 134 ), conferindo competência à União para legislar sobre minas, águas, florestas, caça, pesca e sua exploração ( art.16, XIV ); tratou também da competência sobre o subsolo, águas e florestas no art. 18, a e e, onde também cuidou da proteção das plantas e rebanhos contra moléstias e agentes nocivos. Já a Constituição de 1946 manteve a defesa do patrimônio histórico, cultural e paisagístico ( art. 175 ) e a competência da União para legislar sobre normas gerais de defesa da saúde, riquezas do subsolo, das águas, florestas, caça e pesca. A proteção ao patrimônio histórico, cultural e paisagístico foi mantida pela Constituição de 1967 ( art. 172, parágrafo único ) e previu como competência da União legislar sobre normas gerais de defesa da saúde, sobre jazidas, florestas, caça, pesca e águas ( art. 8º, XVII, h ). A Constituição de 1969, constituída por emenda outorgada pela Junta Militar à Constituição de 1967, também manteve a defesa ao patrimônio histórico, cultural e paisagístico ( art. 180, parágrafo único ) e, no que diz respeito à competência, manteve as disposições da Constituição emendada. Trouxe, ainda, uma disposição inovadora sobre o aproveitamento agrícola de “terras sujeitas a intempéries e calamidades”, prevendo que a lei regulamentaria este aproveitamento, mediante prévio levantamento ecológico e que o “mau uso da terra” impediria o proprietário de receber incentivos e auxílio do governo ( art. 172 ). 15 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 149

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No caso do meio ambiente, como fator diretamente ligado ao bem-estar da

coletividade, as atividades econômicas não poderão ser desempenhadas de forma

a atentar, indiscriminadamente e sem aplicação de medidas mitigadoras ou

compensatórias, contra a qualidade ambiental e impedir o pleno alcance dos

escopos sociais.

A seu turno, a ordem econômica (Título VII da Constituição Federal de

1988) pressupõe a observância de vários princípios16, a fim de atender aos ditames

da justiça social, assegurando a todos existência digna. Dentre eles, a defesa do

consumidor e do meio ambiente, bem como a redução das desigualdades regionais

e sociais. (art. 170, incisos V, VI, VII da CF/88). Tais dispositivos também

sinalizam para o desenvolvimento da ordem econômica não ficar dissociado do

desenvolvimento social e da qualidade ambiental.

A avaliação de impacto ambiental (AIA), por exemplo, que será melhor

examinada em capítulo próprio, concebida como instrumento de implementação

da Política Nacional do Meio Ambiente, requer a análise tanto dos impactos

ambientais quanto sociais causados pela atividade econômica, sejam eles positivos

ou negativos17. Tal preocupação quanto à observância dos interesses sociais na

busca da preservação ambiental encontra-se também presente em outros diplomas

legais – Lei n. 9985/2000 e Lei n. 9433/97, por exemplo - razão pela qual reputa-

se necessária uma visão socioambiental, em que as duas vertentes – social e

ambiental – estejam interconectadas.

O chamado “socioambientalismo” aparece, por sua vez, na esfera

internacional e nacional como uma concepção teórica da questão ambiental

diferente e alternativa àquela gerada pelo ambientalismo clássico em que se

16 Constituição Federal de 1988. Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995) Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. 17 Art. 9º, inciso III, da Lei n. 6938/81 e art. 1º da Resolução CONAMA 01/86.

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preconiza a conservação ou preservação do ambiente, pura e simplesmente, sem a

preocupação social.18

Santilli19 afirma que o conceito foi construído com a idéia de que as

políticas públicas ambientais devem incluir e envolver as comunidades locais,

detentoras de conhecimentos e de práticas de manejo ambiental. E, mais do que

isso, estruturou-se com base na concepção de que, em um país desfavorecido

economicamente, com tanta desigualdade social, um novo paradigma de

desenvolvimento deveria promover não só a sustentabilidade ambiental (proteção

das espécies, dos ecossistemas e dos processos ecológicos), como também a

social, ou seja, deve contribuir para a redução da desigualdade social e da

pobreza, Concomitantemente, promoverá valores como justiça social e equidade.

Esse novo paradigma de desenvolvimento deve, ainda, promover e valorizar a

diversidade cultural e a própria consolidação do processo democrático no país,

com ampla participação social na gestão ambiental.

Ora, o socioambientalismo, tal qual acima afirmado, encontra pleno

respaldo no ordenamento jurídico brasileiro, sendo esta concepção fundamental

para o processo interpretativo das normas. A preocupação do legislador

constituinte em inserir o meio ambiente na ordem social - cujos objetivos

expressamente positivados são o alcance do bem-estar e da justiça social -

demonstra que não se pode tratar de forma separada os problemas ambientais e

sociais. Tal diretriz de matriz constitucional informa, assim, toda a legislação

infraconstitucional, ainda que não haja disposição expressa neste sentido.

18 Neste ponto, válido trazer a lição de Martínez-Alier, Joan, in O Ecologismo dos pobres. São Paulo: Contexto, 2007, p. 21-39. Segundo o autor, há pelo menos três correntes relativas à preocupação e ativismo ambientais: 1) a chamada “ culto ao silvestre” ou “ à vida selvagem”, mais preocupada com a conservação da natureza silvestre, sem se pronunciar sobre a indústria ou a urbanização, mantendo-se indiferente ou em oposição ao crescimento econômico, muito preocupada com o crescimento populacional e respaldada cientificamente pela biologia conservacionista; 2) a corrente intitulada “ credo da ecoeficiência”, voltada para o uso sustentável dos recursos naturais e com o controle da contaminação, não se restringindo aos contextos industriais, mas também incluindo em suas preocupações a agricultura, pesca e a silvicultura. Tal corrente se apóia na crença de que as novas tecnologia e a “ internalização das externalidades” constituem instrumentos decisivos da modernização ecológica; e está respaldada pela ecologia industrial e pela economia ambiental; e 3) a última corrente, identificada como movimento pela justiça ambiental, ecologismo popular ou ecologismo dos pobres, preocupada com os impactos ambientais causados pela expansão da atividade econômica capitalsita especialmente sobre as camadas mais desfavorecidas da população. Essa terceira corrente recebe apoio da agroecologia, da etnoecologia, da ecologia política e, em alguma medida, da ecologia urbana, da economia ecológica e de alguns sociólogos ambientais. 19 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. Proteção Jurídica à diversidade biológica e cultural. São Paulo. Peirópolis, 2005, p. 34-41..

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Além das referências explícitas existentes ao meio ambiente no texto

constitucional, antes já mencionadas, podemos citar também as referências não

expressas ou implícitas, importantes para o desenvolvimento do tema proposto.

A Constituição Federal define como bens da União lagos, rios e quaisquer

correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um estado,

sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou

dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais20, os

potenciais de energia hidráulica21, dentre outros.

Compete à União, então, explorar diretamente, ou mediante concessão,

permissão ou autorização, o aproveitamento energético dos cursos de água, em

articulação com os Estados, onde se situam os potenciais hidroenergéticos22;

instituir o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e definir

critérios de outorga de direito de seu uso23. Nesse ponto, a norma constitucional se

refere à forma de uso de um dos recursos ambientais e, ao mesmo tempo,

estabelece regras sobre um instrumento de controle da qualidade das águas.

No que diz respeito à competência para legislar, prevê a Constituição

Federal que cabe à União, privativamente, legislar sobre água, energia, jazidas,

minas e outros recursos minerais e metalurgia, atividades nucleares de qualquer

natureza, propaganda comercial24.

Já a norma sobre competência comum entre União, Estados, Distrito

Federal e Municípios, contida no art. 23, incisos III e IV da CF/88, traz consigo

valores ambientais, como os relativos à proteção histórica, cultural, artística e

paisagística. Além disso, tem-se a competência concorrente para legislar sobre

proteção do patrimônio histórico, cultural, artístico e paisagístico25, registrar,

acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de

recursos hídricos e minerais em seus territórios26.

Mencionem-se, ainda, as normas sobre a cultura27, que trazem,

implicitamente, uma proteção aos bens ambientais, através da garantia das

manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras, bem como dos 20 CONSTITTUIÇÃO FEDERAL. Art. 20, iinciso III. 21 CONSTITTUIÇÃO FEDERAL. Art. 20, iinciso VIII. 22 CONSTITTUIÇÃO FEDERAL Art. 21, inciso XII, alínea b. 23 CONSTITTUIÇÃO FEDERAL Art. 21, inciso XIX. 24 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 22, incisos IV, XII e XXVI. 25 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 24, inciso VII. 26 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 24, inciso XI. 27 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Artigos 215 e 216.

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bens de natureza material e imaterial, portadores de referência à identidade, à ação

e memória de tais grupos, dentre os quais se inclui o meio ambiente.

Após a leitura dos dispositivos acima mencionados, observa-se que a

Constituição Federal distingue dois tipos de titularidade: a dos recursos hídricos,

que pode ser tanto da União como dos Estados, e a da exploração de seus

potenciais energéticos – aproveitamento de energia hidráulica -, que pertence

somente à União. Cabe a esta, mediante concessão ou autorização, no interesse

nacional, repassar a brasileiros ou empresas constituídas sob as leis brasileiras,

com sede e administração no país, a exploração de tal potencial. Isto é o que se

extrai do art. 176, caput, e parágrafo 1º da CF/88.

Não prevê a Constituição Federal a possibilidade de aproveitamento ou

exploração dos potenciais energéticos hidráulicos pelos Municípios, porém a estes

é assegurada uma compensação pela exploração dos recursos hídricos, quando

estiverem localizados em seu território. De igual forma, esta compensação está

assegurada também aos Estados e à União.28

Importante estabelecer que, no tocante à natureza do direito ao meio

ambiente ecologicamente equilibrado, este constitui direito fundamental29,

assegurado constitucionalmente e, portanto, dotado de aplicação imediata,

conforme art. 5º, parágrafo 1º da CF/88.

Neste sentido, Ingo Sarlet30, enfrentando a controvérsia a respeito da

delimitação conceitual dos direitos fundamentais, parte da idéia de distinção

conceitual entre direitos fundamentais e direitos humanos, apesar de reconhecer

que, corriqueiramente, tais expressões são usadas como sinônimas. Esclarece o

autor que aqueles são reconhecidos ou positivados pelo direito constitucional

interno de cada Estado, enquanto estes são os direitos positivados na esfera do

28 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 20, parágrafo 1º da CF/88. 29 De uma maneira geral, a doutrina reconhece a existência de um direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Porém, não há consenso sobre a valoração dogmática de tal direito, sendo que uns entendem ser direito da personalidade e, ao mesmo tempo, direito e garantia constitucional; outros, o caracterizam como direito e princípio, ou ainda apresentam uma concepção de direito humano ou direito subjetivo ao meio ambiente. Tudo cf. BENJAMIN, Antonio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In CANOTILHO, J. J. Gomes. LEITE, Jose Rubens Morato ( org ). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 97. Esta distinção é apresentada para demonstrar a diversidade de entendimento, porém não aprofundaremos o assunto por não ser o objeto da pesquisa. 30 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, pp.35 – 41.

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direito internacional (dizem respeito a todos os seres humanos,

independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional).

No entanto, apesar dessa distinção, admite o doutrinador a existência de

uma estreita relação entre direitos humanos e fundamentais, já que a maior parte

das Constituições do pós-guerra se inspirou tanto na Declaração Universal de

1948 quanto nos diversos documentos internacionais e regionais que a sucederam,

de maneira que é possível vislumbrar aproximação e harmonização entre tais

direitos, rumo ao que parte da doutrina vem chamando de Direito Constitucional

Internacional.

No que diz respeito às dimensões31 dos direitos fundamentais, insere-se o

meio ambiente e a qualidade de vida entre os direitos de solidariedade e

fraternidade – os chamados direitos fundamentais de terceira dimensão -,

juntamente com os direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao

desenvolvimento e à conservação do patrimônio histórico e cultural e o direito de

comunicação.32 No entanto, a despeito de tal consideração, que marca a natureza

difusa do meio ambiente, deve ser considerado também o viés individual de tal

direito, pois a proteção ambiental objetiva, ao final e ao cabo, a proteção da vida e

da qualidade de vida do homem no âmbito de sua individualidade.33

Aliás, quanto a este aspecto, a Declaração do Meio Ambiente, adotada pela

Conferência das Nações Unidas, em Estocolmo, em junho de 1972, com seus

vinte e seis princípios, foi importante no sentido de influenciar as constituições

posteriores para o reconhecimento do direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado como um direito fundamental entre os direitos sociais do homem,

tanto na dimensão positiva como negativa.

Ainda neste sentido, José Afonso da Silva chama a atenção para a

consciência que se deve ter de que o direito à vida, como matriz de todos os

31 O autor reconhece a controvérsia também na nomenclatura usada, aduzindo que discorda daqueles que usam o termo “gerações de direitos fundamentais” por conferir a falsa idéia de substituição gradativa de uma geração por outra, porém afirma haver convergência de opiniões no sentido de admitir que os direitos fundamentais tiveram sua trajetória existencial inaugurada com o reconhecimento formal nas primeiras constituições escritas dos clássicos direitos de matriz liberal-burguesa. Mas se encontram em processo constante de transformação, o que culminou com a recepção, nos textos constitucionais e no Direito Internacional, de múltiplas e diferenciadas posições jurídicas, de conteúdo tão variável quanto às transformações ocorridas na realidade social, política, cultural e econômica ao longo dos tempos. In SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, pp. 52-53. 32 Ibid. pp. 56-57. 33 Ibid. p. 62.

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outros direitos fundamentais, é que deve orientar todas as atuações na tutela

ambiental, estando, portanto, acima de quaisquer outras considerações como as de

desenvolvimento, as de respeito ao direito de propriedade e as da iniciativa

privada, apesar de todos eles encontrarem guarida também no texto constitucional.

Assevera: “É que a tutela da qualidade do meio ambiente é instrumental no

sentido de que, através dela, o que se protege é um valor maior: a sadia qualidade

de vida.”.34

A fundamentalidade do direito ao meio ambiente se justifica: 1) pela

estrutura normativa do art. 225, caput, da CF/88, que traz, como sujeito, “todos”;

2) pelo fato de que nem todos os direitos fundamentais estão previstos no art. 5º

da Carta Magna, e, ainda, 3) por ser uma extensão do direito à vida, assegurado

pelo referido art. 5º, recebendo, por via reflexa, o seu abrigo jurídico.

Outro aspecto importante a ser examinado é quanto à natureza jurídica do

meio ambiente como bem juridicamente tutelado pela Constituição Federal.

Nesse passo, concordamos com Antonio Herman Benjamin35, para quem o

meio ambiente é caracterizado como um macrobem36, de natureza pública, não

porque pertença ao Estado, mas sobretudo por se apresentar no ordenamento,

constitucional e infraconstitucional, como "direito de todos" (satisfazendo suas

necessidades coletivas). É bem público em sentido objetivo e não em sentido

subjetivo, integrando uma dada "dominialidade coletiva", desconhecida do direito

tradicional público. É incapaz de apropriação exclusivista, porque destinado à

34 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 70. 35 BENJAMIN, Antonio Herman V.In Função Ambiental. Acessível em http://bdjur.stj.gov.br/dspace/bitstream/2011/8754/1/Fun%C3%A7%C3%A3o_Ambiental.pdf Último acesso em 26 de maio de 2008. 36 No mesmo sentido, LEITE, Jose Rubens. AYALA, Patrick de Araújo. Direito Ambiental na Sociedade de Risco. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2002, pp. 50-51. Afirmam os autores que o meio ambiente “ além de bem incorpóreo e imaterial, configura-se como bem de uso comum do povo “ e que, não obstante, o ordenamento jurídico brasileiro qualificar o meio ambiente como res communes omnium , não legitimou, de forma exclusiva, o poder público para sua tutela jurisdicional civil, como interesse difuso. Assim o fazendo, apartou o meio ambiente de uma visão de bem público stricto sensu, mas, por outro lado, elencou o bem ambiental como disciplina autônoma e a título jurídico autônomo. Acentuam a questão do caráter da indenização pelos danos ambientais causados, que se destina a um fundo que não é gerido e nem administrado exclusivamente pelo poder público. Por outro lado, a primeira finalidade do processo reparatório é a recuperação do bem ambiental degradado e, em segundo, a compensação pecuniária à coletividade que foi subtraída da qualidade ambiental deste bem, e não a reparação para seu proprietário, seja ele público ou privado. Assim, concluem que o bem ambiental (“macrobem”) é de interesse público, afeto à coletividade, entretanto, a título autônomo e como disciplina autônoma.

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satisfação de todos e por isso mesmo, de domínio coletivo, o que não quer dizer

de domínio estatal.

Apesar de apresentar uma terminologia distinta, José Afonso da Silva37

apresenta posicionamento praticamente no mesmo sentido: os bens ambientais

devem ser incluídos em nova categoria, os de interesse público. Nesta, inserem-se

tanto bens pertencentes a entidades públicas como bens de sujeitos privados,

subordinados a um regime jurídico particular, com a finalidade de consecução de

um fim público. Em função deste regime peculiar, o gozo e a disponibilidade dos

bens ambientais ficam subordinados a um peculiar regime de polícia de

intervenção e de tutela pública. Afirma, então, que “...essa disciplina condiciona a

atividade e os negócios relativos a esses bens, sob várias modalidades, com dois

objetivos: controlar-lhes a circulação jurídica ou controlar-lhes o uso, de onde as

duas categorias de bens de interesse público: os de circulação controlada e os de

uso controlado.”

Tais conceituações a respeito do bem ambiental apresentam relevância na

compreensão do seu real significado no contexto constitucional brasileiro,

especialmente quando se trata da ordem econômica. Isto porque, para que as

atividades econômicas, potencialmente poluidoras ou em que seja necessária a

apropriação (ou uso) de recursos naturais, possam ser desempenhadas, faz-se

necessário atender ao mandamento constitucional da preservação ambiental.

Por esta razão, impõe-se a adoção de instrumentos de controle e prevenção

de tais danos, quando se trata de implantação de atividades econômicas de tal

natureza. A avaliação e estudo de impacto ambiental, bem como o licenciamento

ambiental, cada um com suas particularidades, são exemplos de tais

instrumentos.38

Ora, quando se fala em apropriação de um bem ambiental para sua

exploração, ainda que haja a permissão, autorização ou concessão do poder

público, há de se ter em mente, sempre, que tal forma de apropriação deve

cumprir duas finalidades distintas, que importam, de um lado, na apropriação

privada dos atributos econômicos dos recursos apropriáveis e, de outro, na

satisfação das necessidades coletivas. Esta segunda dimensão da apropriação, de

natureza social, condiciona o comportamento dos titulares desses interesses,

37 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 83. 38 O item 4.4 deste capítulo analisará mais detalhadamente tais instrumentos.

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impondo a todos a obrigação de destinação e de uso do bem segundo finalidades

socioambientais.

Este ponto é de fundamental importância no processo decisório para a

implantação de hidrelétricas, seja quando a geração de energia se dá no regime de

autopromoção ou de produção independente, ou, ainda para o consumo coletivo.

Nessas hipóteses, é de suma importância que o uso e a apropriação dos recursos

hídricos, pela iniciativa privada harmonize-se com as finalidades socioambientais

previstas para tais bens.

A Constituição Federal contempla dois tipos de regimes de exploração de

recursos naturais: o regime de acesso a recursos renováveis e o de domínio e

detenção de recursos não renováveis.39

A exploração do potencial energético dos recursos hídricos encontra-se na

categoria de recursos renováveis, sendo que, na referida situação, a Constituição

Federal prevê um regime de dominialidade particularmente complexo, que atribui

à União a titularidade sobre a água. Reconhecendo, todavia, a autonomia jurídica

em relação ao solo e permite a exploração pelos agentes econômicos, mediante

autorização ou concessão. 40

A exploração dos recursos hídricos para geração de energia, no entanto,

não está relacionada meramente a uma atividade econômica, pois constitui

atividade empreendida na condição de serviço público. Assim, revela-se presente,

também, em tal atividade, a perspectiva social. Portanto, mesmo tendo havido

menção expressa da Constituição Federal quanto ao interesse econômico atrelado

ao potencial hidráulico, com a finalidade de exploração de energia, tais recursos

ambientais não deixam de estar condicionados ao regime especial de apropriação

a que estão sujeitos, devendo atender à dimensão social.41

Assim, sendo a água o recurso que será objeto de exploração econômica

por agentes específicos, importante trazer determinadas reflexões sobre o

exercício do direito a seu uso. 42 Este se caracteriza por ser um direito de

significado múltiplo, pois traz em si a variedade dos conflitos entre os interesses

relacionados ao modo da apropriação hídrica e uso. Por outro ângulo, proporciona

39 AYALA, Patrick. Deveres Ecológicos e regulamentação da atividade econômica na Constituição brasileira. In CANOTILHO, J. J. Gomes. LEITE, Jose Rubens Morato ( org ). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 264.. 40 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 176, parágrafo 1º . 41 AYALA, Patrick. op.cit, p. 290. 42 Ibid. p. 293.

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uma composição de diversos outros direitos, envolvendo aspectos econômicos,

sociais, culturais, de saúde, de proteção ambiental, entre outros.

É necessária, desta forma, uma gestão integrada das múltiplas

necessidades da água43, em virtude justamente de seus valores múltiplos – social,

econômico e cultural. A conseqüência de tal afirmação é que, para toda e qualquer

decisão sobre o assunto, deve haver a garantia de que todos aqueles que forem

atingidos sejam ouvidos no decorrer do processo.

Outro ponto a ser considerado diz respeito ao fundamento ético que

entendemos ser adequado para tratar da questão ambiental na Constituição

Federal.

Extrai-se do texto constitucional uma leitura que prioriza o chamado

“antropocentrismo alargado”, embora reconheçamos que o tema é bastante

discutível, havendo aqueles que defendem a existência de uma visão estritamente

antropocentrista44 e outros que são adeptos do biocentrismo45 ou do

ecocentrismo46.

43 Ibid. p.292. 44 O antropocentrismo revela-se como uma concepção teórica que faz do homem o centro do universo, ou seja, a referência máxima e absoluta de valores e vincula a proteção ecológica aos benefícios que trará exclusivamente ao homem. Isto o coloca sempre em uma situação de anterioridade e superioridade em relação à própria existência da sociedade. Tal corrente teve bastante força por ocasião do pensamento racionalista presente na modernidade ocidental, em que havia a primazia da visão da natureza-objeto versus homem-sujeito. É com Descartes que essa oposição homem-natureza, espírito-matéria, sujeito-objeto se consolidará. O homem, instrumentalizado pelo método científico, pode penetrar os mistérios da natureza e, assim, torna-se “senhor e possuidor da natureza” ( DESCARTES, R. Discurso sobre o Método. Coleção Os Pensadores, São Paulo: Editora Abril ). O antropocentrismo e a visão pragmático-utilitarista presente no pensamento cartesiano, que vigoraram a partir do Renascimento no século XVI, não podem ser vistos de forma dissociada do mercantilismo. Esta idéia do homem não-natural e fora da natureza se consolida com a civilização industrial inaugurada pelo capitalismo, estando presente até os dias de hoje. Cf. GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Os (dês) caminhos do meio ambiente. São Paulo: Contexto 2005, pp. 28-35. Na doutrina jurídica brasileira, vide FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 20. 45 O biocentrismo constitui concepção diferente em que o valor da vida passa a ser o referencial inovador para as intervenções do homem no mundo natural. O autor inglês Keith Thomas elaborou estudo sobre a relação do homem com a fauna e flora, especialmente na sociedade inglesa, durante o período compreendido entre os séculos XVI e XIX, tendo afirmado que por volta de 1800, o antropocentrismo na Inglaterra tinha dado lugar a um sentimento de questionamento nesta relação homem-natureza, em que se negava a afirmativa de que o mundo não mais podia ser visto como feito somente para o homem, pois a própria natureza teria seu valor espiritual intrínseco. Já no século XVII, conta o autor inglês, havia manifestações religiosas em que se defendia que “Deus está em todas as criaturas, homens e animais, peixes e aves, e tudo o que é verde.” In THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais ( 1500-1800 ). São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 356-357. 46 Na lição de MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 105-106 ecocentrismo é uma “cosmovisão” que não diz respeito somente à seara jurídica, que pretende ver o meio ambiente como “patrimônio da humanidade”, conferindo o valor intrínseco ao mundo natural, que deve ser preservado, pois tem um valor em si mesmo. Afirma o autor: “A

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A idéia de um antropocentrismo diferenciado que se infere da normativa

constitucional encontra respaldo no princípio da solidariedade entre gerações, que

impõe o dever de preservação ambiental e de desenvolvimento sustentável em

prol das presentes e futuras gerações.47

A questão de fundo relacionada à ética ambiental, que vai informar e

orientar o direito, é assunto de extrema importância para a concretização do

Estado de Direito Ambiental.

Há entre o homem e a natureza uma inegável relação de interdependência,

pois o homem precisa da natureza para sobreviver. Assim é que a noção de meio

ambiente integra tanto homem como natureza, ou seja, não estão em mundos

separados e estanques, sujeitos à dominação e à subordinação.

Falamos, entretanto, em proteção do meio ambiente do tipo

antropocêntrico alargado, pois ela está menos centrada no homem e mais voltada

para outros elementos naturais, não sujeitos à atividade antrópica, cujo valor

intrínseco deve ser reconhecido. Além da proteção à capacidade de

aproveitamento do meio ambiente, simultaneamente, busca-se tutelá-lo, para se

manter o equilíbrio ecológico e sua capacidade funcional, como proteção

específica e autônoma, independente do benefício direto - econômico ou não - que

advenha ao homem.

A concepção ampla de meio ambiente, já acima exposta, como bem de uso

comum do povo, de natureza difusa, indica o seu valor intrínseco e, em

conseqüência, de preservação necessária para se atingir a própria qualidade de

vida humana48.

natureza vale sempre, para além das suas gerações humanas, porque tem um valor em si mesma e vale pó si.”. Acrescenta, ainda, ao tratar das perspectivas globais para a ética ambiental, que a natureza, personificada na Terra, volta a ser chamada para seu grande papel de mediadora dos homens entre si e com o Planeta que é, a um só tempo, casa e sustento da sociedade humana. Cita Leonardo Boff, que ao cuidar da universalização do discurso ético, conclui pela existência de uma ética ecocentrada, em que são retomados valores éticos e princípios da Carta da Terra, documento aprovado na UNESCO, em Paris, em 14/03/2000, envolvendo 46 países, como: respeito e cuidado da comunidade de vida; integridade ecológica; justiça social e econômica; democracia, não-violência e paz; um ethos e muitas morais. ( pp. 137-139 ) 47 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 225. 48 Sobre a qualidade de vida no ordenamento jurídico brasileiro, vide DERANI, Cristiane. Afirma a autora que abrange dois aspectos concomitantes: o do nível de vida material e do bem-estar físico e espiritual, basendo-se na premissa de que um mínimo material é sempre necessário ao deleite espiritual. Às expressões sinônimas qualidade de vida e bem estar, a autora acrescenta a expressão usada por Aristóteles em “Política”, “bem viver”, quando trata do dinheiro e da insuficiência da sua conquista para a realização de um “bem viver”, que seria a possibilidade efetiva de um cidadão desenvolver suas potencialidades. Portanto, conclui a autora que o conceito de qualidade de vida pode ser desmembrado em dois níveis, uma mais geral, básico, e outro,

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Neste sentido, François Ost pondera49:

Passo a passo, o direito faz, assim, a aprendizagem do ponto de vista global. Num século, a evolução é significativa, conduzindo de uma posição estritamente antropocêntrica a uma maior tomada de consideração da lógica natural em si mesma, a evolução que é, também, a do ponto de vista local para o ponto de vista planetário, e do ponto de vista concreto e particular ( tal flor, tal animal ) para a exigência abstrata e global ( por detrás da flor ou do animal, o patrimônio genético ). Se nos primeiros tempos da proteção da natureza, o legislador se preocupava exclusivamente com tal espécie ou tal espaço, beneficiado dos favores do público ( critério simultaneamente antropocêntrico, local e particular ), chegamos hoje à proteção de objetos infinitamente mais abstratos e mais englobantes, como o clima e a biodiversidade.

Na doutrina brasileira, Paulo Leme Affonso Leme Machado50 adota tal

posicionamento. Vejamos:

O terceiro caminho coloca o homem como centro das preocupações do desenvolvimento sustentado. Onde há centro, há periferia. O fato de o homem estar no centro das preocupações, como afirma o mencionado princípio 1, não pode significar um homem desligado e sem compromissos com as partes periféricas ou mais distantes de si mesmo. Não é o homem isolado, ou fora do ecossistema, o agressor desse ecossistema.

Avançando um pouco mais na tutela constitucional ambiental, entendemos

como J. J. Gomes Canotilho51 que a força normativa da chamada constituição

ambiental dependerá da concretização do programa jurídico-constitucional, pois

qualquer constituição do ambiente só poderá lograr tal força se os vários agentes

públicos e privados, que atuem sobre o ambiente, colocarem-no como fim e como

medida das suas decisões.

particular, histórico. O basilar consiste no seu ideal ético, assentado em valores de dignidade e bem-estar. O particular é dado pela análise dos elementos da realidade que historicamente informam esses princípios, que vão informar o que é materialmente necessário para que esses ideais se concretizem. O segundo aspecto, histórico-material, deve abranger aspecto físico ( condições mínimas do meio físico e também as sensações psicológicas, estéticas ou estudos anímicos, beleza da paisagem, tranqüilidade do entorno, equilíbrio natural); a referência antropológica ( a verificação de como o acesso aos recursos naturais se dá e com que abundância eles servem às sociedades humanas, no momento presente e também futuro ); a tutela do bem-estar ( o conceito de qualidade de vida deve prever a obtenção de fatores necessários ao atendimento das necessidades básicas – alimentação, habitação, saúde e educação ). Cf. DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 77. 49 OST, François. A natureza á margem da lei: a ecologia à prova do direito pondera. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 112 50 MACHADO, Paulo Leme Affonso. Estudos de Direito Ambiental. São Paulo: Malheiros, 1994, p.18. 51 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional Ambiental Português e da União Européia. In CANOTILHO, J. J. Gomes. LEITE, Jose Rubens Morato ( org ). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 5.

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Diferentemente do que ocorre com os outros direitos sociais, que tratam de

criar ou realizar o que ainda não existe, o direito ambiental tem como objetivo

garantir o que já existe e recuperar o que foi degradado52.

Esta concretização da Constituição Federal está relacionada, em última

análise, à cidadania participativa, que compreende uma ação conjunta do poder

público e da sociedade na proteção ambiental. Para se estruturar e edificar um

Estado de Direito Ambiental, imprescindível é uma democracia ambiental que

imponha a participação de todos na defesa e preservação ambientais.

A seu turno, a participação no processo decisório ambiental, seja em que

esfera de poder for – Executivo, Legislativo ou Judiciário – acarreta transparência

e legitimidade da decisão proferida, contribuindo sobremaneira para a

conscientização da problemática ambiental.

Importante observar-se que a Carta Magna não fechou os olhos para tal

imperativo, ao prever no já citado art. 225, a necessária participação de todos, os

mais diversos atores sociais – grupos de cidadãos, ONG’s, cientistas, setor

privado, poder público, entre outros – na gestão ambiental.

A questão da cidadania ambiental, a ser abordada de forma mais específica

em capítulo próprio, é de fundamental relevância para a discussão a respeito das

decisões tomadas no processo de decisão da implantação das hidrelétricas. O que

se reclama, via de regra, em tais processos, é a existência de um deficit

democrático constante, com a priorização, no âmbito decisional, da vontade do

poder público e de setores privados da economia.

4.2

Direito Humano ao Meio Ambiente. Direitos econômicos, sociais e

culturais.

O desenvolvimento econômico subjacente à expansão do setor de geração

de energia hidrelétrica, a preservação ambiental e, ainda, o respeito aos direitos

sociais e culturais dos atingidos pelas barragens hidrelétricas são temas que

suscitam, naturalmente, o debate a respeito dos direitos humanos.

52 Cf. CANOTILHO, José. J. Gomes. MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada. 3ª Ed. Revisada. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, pp. 282 e 349.

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Como já mencionado anteriormente, a doutrina jurídica contemporânea

distingue os direitos humanos dos direitos fundamentais, reconhecendo estes

últimos como aqueles já consagrados pelo Estado como regras

constitucionalmente escritas.

A Declaração Universal de Direitos Humanos53, aprovada pela Assembléia

Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, retomando os ideais da

Revolução Francesa, representou a manifestação histórica do reconhecimento, em

âmbito universal, dos valores supremos da igualdade, liberdade e fraternidade

entre os homens, conforme determinado pelo art. I.54

Os três princípios axiológicos fundamentais, portanto, em matéria de

direitos humanos são a igualdade entre os homens, a liberdade e a fraternidade,

sendo que esta última hoje é tratada na concepção de “solidariedade”. Daremos

enfoque, então, a esse último.

O princípio da solidariedade está na base dos direitos econômicos e sociais

afirmados nos artigos XXII a XXVI da Declaração de 1948 e compreende os

direitos à seguridade social, ao trabalho e respectiva remuneração, ao lazer e

repouso, ao bem estar e saúde e à educação.

Após essa breve abordagem sobre os princípios relativos aos direitos

humanos, ateremo-nos ao conteúdo do Pacto Internacional sobre Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais, por representar o conjunto de direitos relativo à

proteção das classes ou grupos sociais menos favorecidos, contra a dominação

socioeconômica exercida pela minoria rica e hegemônica, sem perder de vista a

noção acerca da indivisibilidade dos direitos humanos.

Diversamente do que ocorre na defesa dos direitos civis e políticos em que

normalmente a violação a tais direitos se deve a uma ação abusiva do Estado, nos

direitos econômicos, sociais e culturais, a antijuridicidade consiste na inércia

estatal, ou seja, na recusa ou inação dos órgãos públicos em limitar ou controlar o

53 Embora tecnicamente seja a Declaração Universal dos Direitos Humanos uma recomendação da Assembléia Geral das Nações Unidas a seus membros, já que foi concebida como uma etapa preliminar à adoção posterior de um pacto ou tratado internacional sobre o assunto, hoje, abstraindo-se do excesso de formalismo, reconhece-se amplamente que a vigência dos direitos humanos independe de sua declaração em constituição, leis e tratados internacionais. Isto se justifica pois as previsões constantes da referida Declaração dizem respeito à dignidade humana, exercidas contra todos os poderes estabelecidos, oficiais ou não. Cf. COMPARATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2001, pp. 226-227 54 Art. I – Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

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poder econômico privado. Em razão disso, os direitos declarados neste pacto tem,

por objeto, políticas públicas ou programas de ação governamental; ou políticas

públicas coordenadas entre si.55

Os direitos econômicos, sociais e culturais priorizam a igualdade entre os

grupos ou classes sociais, no acesso a condições dignas de vida. Isto pressupõe a

constante e programada interferência do Poder Público na esfera privada, para a

progressiva eliminação das desigualdades sociais. Por tal razão, tais direitos

devem obediência ao princípio da solidariedade, o qual impõe a repartição das

vantagens ou encargos sociais em função das carências de cada grupo ou classe

social. Essa é, aliás, uma das dificuldades para a efetivação de tais direitos

previstos no pacto.56

Busca-se, portanto, através da garantia dos direitos econômicos, sociais e

culturais, o reforço da atuação do Poder Público, através da implementação de

políticas públicas com vistas à eliminação da dominação das classes proprietárias

e à realização da justiça social.

O art. 12 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais estabelece “o direito de toda pessoa de desfrutar do mais elevado nível

de saúde física e mental”, determinando aos Estados-Parte a adoção de medidas

com o fim de assegurar esse direito, o que inclui a tomada de providências para a

melhoria dos aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente. ( item 2, alínea

b do dispositivo citado )

Outros diplomas legais nacionais e internacionais fazem referência ao

direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito humano. A

Declaração de Estocolmo, de 1972, por exemplo, embora não tenha declarado o

direito humano ao meio ambiente, de maneira expressa concebeu a relação entre

direitos humanos e meio ambiente. Isto é o que se percebe da leitura do

preâmbulo, segundo o qual:

“O homem é ao mesmo tempo criatura e criador do meio ambiente, que lhe dá sustento físico e lhe oferece a oportunidade de desenvolver-se intelectual, moral, social e espiritualmente. A longa e difícil evolução da espécie humana no planeta levou-a a um estágio em que, com o rápido progresso da Ciência e da Tecnologia, conquistou o poder de transformar, de inúmeras maneiras e em escalas sem precedentes, o meio ambiente. Natural ou criado pelo homem é o meio ambiente

55 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Vol. I, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, pp. 446-447. 56 COMPARATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 337.

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essencial para o bem-estar e para gozo dos direitos humanos fundamentais, até o direito à própria vida.”

O principio I da referida Declaração também estabelece uma ligação clara

entre meio ambiente e direitos humanos civis e políticos, bem como com os

econômicos, sociais e culturais, ao prever que o homem tem direito fundamental

ao “desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade

tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar e é portador solene

de obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações

presentes e futuras.”

Outro diploma legal que merece ser citado, nesse âmbito, é a Declaração

sobre o Direito ao Desenvolvimento, datada de 1986, que é bastante clara ao

eleger o foco do desenvolvimento humano: “Artigo 2º. 1. A pessoa humana é o

sujeito central do desenvolvimento e deveria ser participante ativa e beneficiária

do direito ao desenvolvimento.” Orienta o desenvolvimento à realização plena dos

direitos humanos, atribuindo, aos Estados, a responsabilidade primária de criarem,

nacional e internacionalmente, as condições para a redução das desigualdades e a

garantia da paz;

Por sua vez, o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos

Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - Protocolo de

San Salvador, de 1988, ratificado pelo Brasil em 21 de agosto de 1996, explicita

em seu “Artigo 11: Direito a um meio ambiente sadio. 1. Toda pessoa tem direito

a viver em meio ambiente sadio e a contar com os serviços públicos básicos. 2.

Os Estados-partes promoverão a proteção, a preservação e o melhoramento do

meio ambiente.”

Podemos citar, ainda, a Declaração do Rio de Janeiro e outros documentos

aprovados pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o

Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em 1992, quando se consolidou

internacionalmente o reconhecimento de que a proteção ambiental é indissociável

da redução da pobreza.

Importante, também, a Convenção nº 169, da Organização Internacional

do Trabalho (OIT), relativa aos povos indígenas e tribais, adotada pela ONU em

Genebra, em 1989, ratificada pelo Brasil em 25 de julho de 2002, tendo entrado

em vigor no país doze meses depois, e finalmente, promulgada pelo Decreto nº

5051, de 19 de abril de 2004. Ela estabelece o dever de os Estados respeitarem a

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importância especial que, para as culturas e valores espirituais dos povos

tradicionais, possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos,

conforme o caso, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e,

particularmente, os aspectos coletivos dessa relação (art. 13.1). A Convenção

proíbe o deslocamento compulsório, salvo em situações excepcionais, desde que

obedecidas uma série de condições, como possibilidade de retorno. Sendo

impossível, prevê-se recuperação das condições de vida anteriores, o direito de as

populações escolherem suas terras, controlar seu desenvolvimento e participar das

decisões políticas.

Além disso, como já dito no capítulo anterior, a respeito da abordagem

constitucional do meio ambiente, a Constituição Federal de 1988, conhecida como

“Constituição Cidadã”, já apresentava o quadro institucional e os substratos

jurídicos que permitiam promover, no país, o direito ao meio ambiente, trazendo

diversos dispositivos que procuravam estabelecer um diálogo permanente entre a

ordem social e econômica, na busca da efetivação do Estado democrático de

Direito.

Não é sem razão: a dignidade humana e a cidadania são tidas como

fundamento da República já no artigo 1º da CF/88 (incisos II e III) e, no artigo 3º,

coloca-se, como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,

construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento

nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades

sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,

sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (incisos I a IV)..

A relação, portanto, entre o meio ambiente ecologicamente equilibrado e a

dignidade da pessoa humana é umbilical, já que a existência de um ambiente sadio

foi e continua sendo sempre essencial para a manutenção e perpetuação da vida

humana57.

57 Essa relação é reconhecida por um número crescente de órgãos da ONU, valendo ressaltar que a Subcomissão sobre a Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias da ONU adotou várias resoluções relativas a essa matéria, dentre elas a intitulada Direitos Humanos e Meio Ambiente, que indica um relator especial para estudar a conexão entre os dois temas, tendo a relatora especial, Fatma Zohra Ksentini, apresentado relatórios em que se destacava a relação existente entre direito humano ao meio ambiente saudável e os problemas introduzidos pelo desenvolvimento, bem como a preocupação com os povos indígenas e com a efetivação de outros direitos humanos. O relatório final da Subcomissão, concluído em 1994, incluiu uma minuta de declaração, tendo este sido o primeiro instrumento internacional a tratar do assunto. A minuta descreve a dimensão ambiental dos direitos humanos consagrados, como o direito à vida e à cultura, e os direitos à informação, à participação e aos remédios jurídicos necessários à defesa do

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A partir da constatação dessa estreita relação, surgiram três abordagens

diferentes no direito internacional: a primeira concepção reivindica a consagração

do direito ao meio ambiente saudável como fundamental para o gozo e o exercício

do direito à vida e dos demais direitos humanos; a segunda concepção reconhece a

superposição da proteção ambiental e dos direitos humanos em algumas situações

específicas, porém não acredita que o simples reconhecimento do direito

substantivo ao ambiente seja a melhor alternativa, preferindo apostar em que os

esforços para a preservação ambiental devam ser concentrados no

aperfeiçoamento dos direitos ambientais de ordem procedimentais. A terceira

concepção, de natureza moral, por sua vez, defende a mudança de paradigma para

o reconhecimento de um valor intrínseco do ambiente.58

Tal diversidade de entendimentos demonstra a grande controvérsia que

existe no campo do direito internacional sobre a relação entre meio ambiente e

direitos humanos59.

Os conflitos se estabelecem entre os próprios ambientalistas e entre estes e

os defensores de direitos humanos quanto à afirmação do direito ao meio

ambiente como direito humano. Entre os ambientalistas, há aqueles que defendem

a noção do meio ambiente em uma visão antropocêntrica dilargada, e que receiam,

portanto, que a atuação dos grupos de direitos humanos seja excessivamente

antropocêntrica, sem considerar a importância e o valor das outras espécies além

meio ambiente pelo cidadão. Cf. CARVALHO, Edson Ferreira. Meio Ambiente e Direitos Humanos. Curitiba: Juruá Editora, 2006, p. 146 58 Ibid. p. 48. 59 Ibid. pp. 157-162. Segundo o autor, dois importantes diplomas internacionais na área ambiental deixaram de mencionar o direito ao meio ambiente como direito humano. A Carta Mundial para a Natureza (1982) não fez qualquer referencia neste sentido, tendo procurado conciliar a preocupação com os seres humanos e o reconhecimento do valor intrínseco da natureza na preservação ambiental. Seu preâmbulo reconhece que a espécie humana e parte da natureza e que a vida depende do funcionamento ininterrupto dos sistemas naturais que asseguram o suprimento energia e nutrientes. Ao mesmo tempo, sustenta que toda a forma de vida deve ser respeitada, qualquer que seja a sua utilidade para o homem, devendo o homem guiar-se por um código de ação moral para reconhecer o valor intrínseco dos demais seres vivos. O outro diploma legal constitui o conjunto de documentos resultante da Conferencia das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento, celebrada no Rio de Janeiro, em 1992, que inclui a Declaração do Rio e a Agenda 21, onde houve apenas algumas referências isoladas a direitos humanos: a conclamação do fim da violação aos direitos humanos contra jovens; a previsão de que os povos indígenas e suas comunidades devem gozar, em toda a sua plenitude, dos direitos humanos e liberdades fundamentais sem constrangimento ou discriminação; e a previsão também da proteção ao direito à moradia, direito humano básico expressamente previsto na Declaração Universal de Direitos Humanos e no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. O autor prossegue para dizer que a ausência da previsão do direito ao meio ambiente como direito humano não foi decorrente de esquecimento involuntário, mas, em verdade, não houve consenso sobre a questão, tendo a Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento se concentrado nas questões referentes ao desenvolvimento econômico e a proteção global do ambiente.

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dos limites impostos pelos processos ecológicos. Porém, há outros ambientalistas,

adeptos da ecologia profunda, que criticam duramente o enfoque essencialmente

antropocêntrico dos direitos humanos, defendendo uma mudança de paradigma na

qual o foco estaria no ecossistema, independente dos benefícios trazidos ao

homem. Por outro lado, os defensores dos direitos humanos criticam os

ambientalistas por desconsiderarem as necessidades humanas básicas imediatas,

em prol da defesa do meio ambiente natural e dos interesses das futuras

gerações.60

Ora, se é correto que o Direito Ambiental, apesar da existência de suporte

normativo amplo e da previsão de diversos instrumentos para sua proteção,

interna ou externamente, carece de efetividade, a pergunta que se faz é se o

reconhecimento do meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito

humano tornaria a proteção ambiental mais efetiva.

Constatamos que sim.

Se o Direito Ambiental é marcadamente um ramo do direito

interdisciplinar, esta vinculação entre direitos humanos e meio ambiente torna-se

plenamente compatível, podendo a legislação internacional sobre direitos

humanos ser adotada para os casos em que houver sobreposição das duas

especialidades do direito.

Em verdade, embora sejam ramos distintos - Direito Ambiental e Direitos

Humanos - com características próprias e diferenciadas, podemos afirmar a

existência de um núcleo comum, na medida em que a melhoria da qualidade de

vida das pessoas depende de um ambiente preservado e sadio, capaz de prover

alimentos, abrigo e preservar os recursos naturais necessários à subsistência dos

seres vivos.

No entanto, a relação entre meio ambiente e direitos humanos não deixa de

ser ampla e complexa, podendo assumir formas diversas e também sofrer

influência da dimensão global das questões em jogo.

Neste sentido, quando fatores de violação ao direito ambiental envolvem

também questões de igualdade ao acesso e uso dos recursos naturais61, como no

60 Ibid. pp. 152-154. 61 CARVALHO, Edson Ferreira. Meio Ambiente e Direitos Humanos. Curitiba: Juruá Editora, 2006, p.140. O autor cita Jhonston ( 2000, p. 99), segundo o qual “ as crises ambientais, quando envolvem questões de igualdade ao acesso e uso dos recursos ou à exposição a condições

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caso do desenvolvimento de atividade hidrelétricas, em que o direito à vida e à

saúde das pessoas atingidas pela construção das barragens são também violados,

estamos tratando de questões de direitos humanos.

É Michel Prieur62 quem afirma que o desenvolvimento sustentável não

quer dizer apenas uma adoção (a) de uma nova política econômica e social em

relação aos recursos naturais e (b) de uma visão, longo prazo, da salvaguarda dos

direitos das gerações futuras - ele exige a consideração de haver um direito

humano ao meio ambiente sadio. O autor francês faz referência à Declaração do

Rio- 1992 (Princípio I) para salientar que houve o reconhecimento do direito

humano ao meio ambiente como uma condição necessária para alcançar o

desenvolvimento sustentável. Acrescenta, ainda, que apesar da Conferência de

Johannesburgo (2002) não ter sido assim expressa, o referido elo entre meio

ambiente e direitos humanos já seria uma realidade.

Assim, a despeito dos obstáculos teóricos e práticos na abordagem dos

direitos humanos em relação à proteção ambiental, os objetivos do Direito

Ambiental e dos Direitos Humanos convergem quando a degradação ambiental

ameaça o direito à vida, à saúde, ao bem-estar, ao trabalho e ao

desenvolvimento.63 Essa convergência, portanto, apóia-nos para aliar o direito

humano ao meio ambiente, cuja observância se faz de extrema relevância para o

alcance de sociedades sustentáveis do ponto de vista social, econômico, ambiental

e cultural.

degenerativas, tornam-se questões de direitos humanos no momento em que a experiência social da crise é diferenciada.” 62 PRIEUR, Michel. Droit de l’homme à l’environnement et développement durable, Acessível pelo site: http://www.francophonie-durable.org/documents/colloque-ouaga-a5-prieur.pdf. Último acesso em 28 de maio de 2008. No original: Mais le développement durable n’implique pas seulement une nouvelle politique économique soucieuse dês ressources naturelles et d’une vision à long terme sauvegardant les droits des générations futures. Il exige une prise en compte des droits fondamentaux de l’homme et plus particulièrement du droit nouveau de l’homme à un environnement sain. Comme l’a énoncé la Déclaration de Rio en 1992 dans son Principe 1 : « Les êtres humains sont au centre des préoccupations relatives au développement durable ». Il en résulte que la reconnaissance du droit de l’homme à lénvironnement est une condition nécessaire à la mise en oeuvre de l’objectif du développement durable (…)Bien que la Conférence de Johannesburg de 2002 n’ait pas été marquée par dês avancées notables mais plutôt par une stagnation des idées environnementales, le Plan d’application du sommet mondial pour le développement durable fait néanmoins référence aux liens entre environnement et droits de l’homme dans son paragraphe 169 en mentionnant quést entrain d’être examinée léxistence possible d’un rapport entre environnement et droits de l’homme. En réalité ce rapport est déjà une réalité, certes non pas à l’échelle universelle mais à l’échelle régionale et nationale.

63 CARVALHO, Edson Ferreira. Meio Ambiente e Direitos Humanos. Curitiba: Juruá Editora, 2006, p. 175.

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No caso das hidrelétricas, apesar dos benefícios à coletividade, trazidos em

razão do aumento da expansão da oferta de energia, em contrapartida, há custos

socioambientais graves que envolvem, especialmente, a remoção compulsória das

populações atingidas pelas barragens e a perda da biodiversidade, que merecem

ser analisados sob o prisma dos direitos humanos. Constata-se a ausência de uma

política governamental que garanta, minimamente, a observância dos direitos

básicos à população atingida.

Nesse sentido, o direito humano ao meio ambiente protege as bases

materiais de reprodução da vida, para garantir a sobrevivência com qualidade. Tal

proteção beneficia a todos indistintamente, na medida em que a manutenção

dessas bases e o equilíbrio ecológico mostram-se fundamentais a todos. Porém, a

proteção deve se dar de modo especial aos grupos populacionais dependentes

mais diretos do acesso a recursos naturais para sobrevivência. É o meio ambiente

sadio e a possibilidade de sua fruição que garantem às populações tradicionais,

por exemplo, certo nível de realização de direitos.

Assim, vinculando a proteção dos recursos naturais aos aspectos humanos

que os envolvem, com o reconhecimento do direito humano ao meio ambiente,

podemos afirmar que o acesso aos bens ambientais deve ser eqüitativo e atender

aos princípios de inclusão e justiça social.

Sob a ótica dos direitos humanos, então, devem ser verificadas as possíveis

formas, intensidade e finalidade da apropriação dos recursos naturais para se

implementarem opções mais favoráveis à sua realização. Nesse sentido,

considerando-se a água um bem fundamental para a sobrevivência e o sustento de

muitas populações locais ribeirinhas, a concessão de uso dos recursos hídricos

para a implantação de hidrelétricas deve ser analisada com cautela, sob pena de

violação grave aos direitos humanos de tais grupos populacionais.

4.3

Os Princípios de Direito: sua importância no processo de

interpretação jurídica.

Necessário destacar, primeiramente, a função dos princípios no

ordenamento jurídico, pois estes constituem as idéias centrais de um determinado

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sistema jurídico, dando-lhe um sentido lógico, harmônico, racional, coerente e de

unidade.

Enquanto alguns autores identificam os princípios com o direito natural,

outros o aproximam da equidade, corporificando o sentimento do justo no caso

concreto.64

Importa mencionar que, com a doutrina pós-positivista, a idéia da

normatividade definitiva dos princípios foi reconhecida, ou seja, os princípios

passam, de maneira expressa, a constituir o Direito. Neste particular, é de extrema

relevância a contribuição dada por Ronald Dworkin65, distinguindo regras e

princípios, e também pelo jurista alemão Robert Alexy66.

64 FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação. 5ª Ed. São Paulo: Atlas, 2007, p.247.

65 DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously, Cambridge: Harvard University Press, 1978, p. 70 e ss; Law’s empire, Cambridge: Harvard University, 1986, p. 220-226. O autor explica que os princípios, em sentido genérico, representam o conjunto de standards que não são normas. Estes podem ser subdivididos em: princípios em sentido estrito e diretrizes políticas. Enquanto as diretrizes políticas são modelos de standards que propõem um objetivo coletivo a ser alcançado, geralmente uma melhora no âmbito social, político ou econômico; os princípios em sentido estrito justificam uma decisão judicial, demonstrando que tal decisão assegura algum direito, individual ou coletivo, ou seja, são standards que devem ser observados por questões de justiça, equidade ou por alguma outra questão de dimensão moral. Ao distinguir os princípios das normas, R. Dworkin aponta como traços distintivos os seguintes: as regras são normas concretas, já determinadas para uma aplicação específica, enquanto os princípios são gerais e carentes de interpretação; os princípios têm uma dimensão de peso ou importância que falta às normas; os princípios se impôem pelo seu conteúdo moral, diferentemente da lei, que deve seguir suas formalidades; as regras ditam decisões, ao passo que os princípios ditam razões para decidir; no caso de existência de conflito entre normas, deve-se fazer um juízo de validez destas, a fim de saber qual norma será aplicada, por ser aquela dotada de validez. Assim, vale a regra do “ tudo ou nada”, em outras palavras, ou a regra será aplicada ou não. Já no caso de conflito entre princípios, este esquema lógico-formal não tem aplicação, devendo o juiz se valer de um processo de ponderação dos princípios relativos ao caso. Desta forma, segundo o autor, um princípio pode ter primazia sobre outro, porém não a ponto de anular a validade dos princípios que cedem o lugar.

66 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 86 e ss. Para o referido autor, os princípios são normas que exigem que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes, ao passo que as regras são normas que podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é valida, ela deve ser cumprida na sua integralidade, sem mais nem menos. Enquanto as regras contêm determinações em um âmbito fático e juridicamente possível, os princípios podem ser realizados em diferentes graus, de acordo com as possibilidades jurídicas e fáticas, dadas pelos princípios opostos. Assim, em caso de conflito entre princípios, através da consideração de pesos entre eles, deve ser elaborado um juízo de ponderação no caso concreto para verificar qual deve prevalecer.

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Os princípios dão coesão ao sistema normativo. Neles repousa a

obrigatoriedade jurídica de todo o repertório normativo.67 São considerados

normas de hierarquia superior às demais regras jurídicas do sistema.

Além disso, definem e cristalizam valores culturais, concepções ou

critérios que devem orientar a compreensão e a aplicação das regras diante do

caso concreto.68 Em virtude disso, estas “estão condicionadas pelo valor atribuído

à realidade por aqueles”69. Assim, não basta uma análise da lei em abstrato,

devendo o seu significado ser precisado em face da realidade e dos casos

concretos. O exame do desempenho da norma na prática fornece ao intérprete a

“possibilidade de relacionar os princípios com uma outra dimensão de significado

normativo, viabilizando uma compreensão critica da norma em uma perspectiva

concreta.”70 71

Dessa forma, CANARIS (2002), ao desenvolver a idéia do ordenamento

jurídico como um sistema, já indicava os princípios gerais do Direito como

elementos de conexão que, juntamente com as regras, contribuem para conferir

unidade e adequação à ordem jurídica. Ressalta o referido autor quatro

características dos princípios gerais do direito: 1) não valem sem exceção e podem

entrar em conflito ou em contradição entre si; 2) não têm a pretensão da

exclusividade; 3) eles ostentam o seu sentido próprio em uma combinação de

complementação e restrição recíprocas; e, por fim, 4) necessitam para a sua

realização de subprincípios e de valorações singulares com conteúdo material

próprio.72

Em decorrência, os princípios, na sociedade contemporânea, são fruto do

pluralismo e marcados pelo seu caráter aberto73, razão pela qual não se submetem

às mesmas diretrizes existentes em relação às regras e à hierarquização. Portanto,

abstratamente, não há hierarquia entre princípios, sendo que, no exame dos casos

67 FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação. 5ª Ed. São Paulo: Atlas, 2007, p.247. 68 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Madrid: Trotta, 2003, p. 110. 69 MARINONI. Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. Vol. 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 49. 70 Charles E. Clarck e David M. Trubek, The creative role of the judge: restraint na freedom in the common Law tradition, Yale Law Journal, v. 71, p. 255 apud MARINONI. Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. Vol. 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 49. 72 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 3ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 88 e ss. 73 MARINONI. Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. Vol. 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 52.

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concretos, deve se utilizar uma metodologia74 que permita a sua aplicação,

compatibilizando eventual tensão entre princípios ou levando um a prevalecer

sobre o outro.

Podemos destacar, ainda, na doutrina brasileira, o conceito de princípios

fomentado por José Afonso da Silva, segundo o qual os princípios são verdadeiros

mandamentos nucleares de um sistema.75

Neste passo, entendemos, como fonte normativa dos princípios, não

somente o texto constitucional, como as leis infraconstitucionais mas também as

Declarações Internacionais, de que são exemplo, no campo do direito ambiental, a

Declaração da ONU de Estocolmo de 1972 e a Declaração do Rio de Janeiro de

1992. Quanto às declarações internacionais, cumpre ressaltar que embora estas

não estejam ainda incluídas entre as fontes tradicionais do direito internacional e

não tenham a imperatividade própria dos tratados e convenções internacionais,

devem ser reconhecidas como instrumentos dotados de relevância jurídica.

Constituem importante método de cristalização de novos conceitos e princípios

gerais, o que influencia toda a sistemática do direito, tanto no plano internacional

como interno.76

Assim, passemos ao exame dos princípios de desenvolvimento sustentável

e da gestão democrática na tutela ambiental, sem desconsiderar as diretrizes do

Estatuto da Cidade.

Lembremos, ainda, a importância de outros princípios de Direito

Ambiental e Urbanístico que, todavia, não serão objeto de análise nesta

Dissertação. O princípio da função social da propriedade ( art. 5º, inciso XXIII e

art. 170, III da CF/88) e da cidade ( art. 182 da CF/88 e art. 2º do Estatuto da

Cidade - Lei 10.257/2001), os princípios da prevenção e da precaução (

74 Esta metodologia pode ser tanto a ponderação proposta por ALEXY, R. In Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 86 e ss; como a aplicação do principio da proporcionalidade, conforme afirma HABERLE. Peter. In La garantia del contenido esencial de los derechos fundamentales. Madrid, Editorial Dykinson, 2003; ou, ainda, o método do Diálogo das Fontes proposto por Erik Jayme, apud MARQUES, Claudia Lima. Diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil: do “diálogo das fontes” no combate às cláusulas abusivas. Revistas dos Tribunais, São Paulo, v. 45, jan.2003 (versão especial para as Jornadas “Québec-Brasil sobre Direito e Sociedade”, no Salão Nobre da Faculdade de Direito da UFRS, dia 07 de maio de 2003, do artigo publicado na Revista de Direito do Consumidor) 75 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1992, p. 95. 76 MIIRRA, Alvaro Luiz Valery. Princípios Fundamentais do Direito Ambiental. Revista de Direito Ambiental, Vol. 2, São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 52-53.

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Declaração do Rio/92, - princípio 15), princípio do poluidor-pagador ( Declaração

do Rio/92 – princípio n. 16 e art. 225, parágrafo 3º da CF/88) e o princípio da

solidariedade entre gerações ( art. 225, caput, da CF/88) são alguns deles.

4.3.1

O princípio do desenvolvimento sustentável.

Não há como falar de planejamento e gestão ambiental sem tratar do

princípio do desenvolvimento sustentável. Necessariamente as duas noções estão

intimamente vinculadas. A garantia de que uma política de planejamento e de

gestão ambiental seja eficaz é a adoção, como princípio, e também como meta, do

chamado desenvolvimento sustentável.

Mas logo vem a pergunta: O que podemos considerar como

desenvolvimento sustentável? Qual seria realmente o modelo de desenvolvimento

sustentável mais adequado para a realidade brasileira? Para nortear as respostas, é

preciso indagar, antes de tudo, em favor de quê ou de quem tal desenvolvimento

econômico se aproveita.

Nesse sentido, a expressão “desenvolvimento sustentável”, tanto abstrata

como ambígua, vem despertando diversas interpretações. Algumas são otimistas,

com a idéia de inauguração de um novo paradigma da sensatez, da justiça social,

de espírito de fraternidade entre os povos do mundo e, sobretudo, de uma

convivência harmônica. Outras, em contrapartida são pessimistas: consideram,

nas propostas incorporadas pela Rio 92, um novo estágio do neocolonialismo,

com a prevalência dos interesses hegemônicos dos países do hemisfério Norte

para dominar a biodiversidade e os recursos naturais e genéticos presentes no

hemisfério Sul.77

Pretendemos, então, nesse Capítulo, empreender uma abordagem

interdisciplinar da questão do desenvolvimento sustentável, trazendo, além dos

aspectos jurídicos, o ponto de vista da teoria econômica.

77 HERCULANO, Selene. Do desenvolvimento (in)suportável à sociedade feliz. In GOLDENBERG, Mirian (coord.). Ecologia, Ciência e Política, Rio de Janeiro: Editora Revan, 1992, pp. 9 – 48.

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Inicialmente, é preciso dizer que há diversas teorias para explicar o

fenômeno tanto do desenvolvimento quanto da sustentabilidade. Daí, poder-se

inferir que tal noção não apresenta contornos precisos e bem definidos.

Mas, a despeito de tal imprecisão, podemos destacar uma certeza. A

propalada oposição entre desenvolvimento econômico e proteção ambiental não se

verifica quando se considera o principio do desenvolvimento sustentável, já que

este concretiza a relação harmônica e integrativa que deve existir entre a

economia e a natureza.78 É a partir dessa noção que as questões tanto

econômicas79 como socioambientais se reúnem para serem debatidas de maneira

global e não fragmentada.

A - Algumas teorias econômicas sobre o desenvolvimento

sustentável.

A noção de desenvolvimento sustentável procura, assim, compatibilizar

duas outras idéias - a de crescimento econômico contínuo e de preservação

ambiental - e tem, por finalidade, buscar um novo modo de desenvolver

determinada região, estado ou país, com a utilização racional dos recursos naturais

para a satisfação das presentes e futuras gerações.

Para compreender a vinculação existente entre os dois temas, alguns

conhecimentos são fundamentais e eles se dão basicamente em três âmbitos, que

se relacionam, interagem e se sobrepõem, condicionando-se mutuamente. São

eles: o dos comportamentos humanos, econômicos e sociais, objeto da teoria

econômica e das demais ciências sociais; o da evolução da natureza, objeto das

ciências biológicas, físicas e químicas; e o da configuração social do território,

que é objeto da geografia humana, das ciências regionais e da organização do

espaço.80

Foi o canadense Maurice Strong quem, pela primeira vez, usou em 1973 o

conceito de “ecodesenvolvimento” para caracterizar uma concepção alternativa de

78 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p.86. 79 A economia se preocupa com duas grandes ordens de problemas: a questão de que as necessidades humanas, na atual sociedade de consumo, tendem a multiplicar-se; e, por outro lado, os limites e a escassez dos recursos naturais existentes no mundo para o atendimento das necessidades que se impõem. 80 SUNKEL, Oswaldo ( 2001 ) apud VEIGA, JOSÉ ELI DA. Desenvolvimento Sustentável. O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, pp. 187-188.

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política de desenvolvimento, mas coube a Ignacy Sachs formular os princípios

básicos desta nova visão, com base em seis aspectos: 1) satisfação das

necessidades básicas; 2) solidariedade com as gerações futuras; 3) participação da

população envolvida; 4) a preservação dos recursos naturais e do meio ambiente

em geral; 5) a elaboração de um sistema social garantindo emprego, segurança

social e respeito a outras culturas; e 6) programas de educação. Este trabalho

sobre ecodesenvolvimento capitaneado, entre outros, pelo autor precedeu a noção

de desenvolvimento sustentável.81

Em 1987, na esfera internacional, com o Relatório Brundtland, intitulado

Nosso Futuro Comum82, a proposta de um “desenvolvimento que satisfaz as

necessidades da geração presente sem comprometer as possibilidades das futuras

gerações para satisfazer as suas” veio a lume. Neste documento, o conceito de

desenvolvimento sustentável foi caracterizado como um “conceito político” e um

“conceito amplo para o progresso econômico e social”. Este relatório foi

deliberadamente um documento político que procurou estabelecer alianças

políticas entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, para a consolidação

de entendimentos que seriam decisivos para a realização da Rio-92.83

A Agenda 21, um dos documentos resultantes da Rio-92, afirma ter

consagrado o “conceito de sustentabilidade ampliada e progressiva”. Ampliada,

no sentido de abranger todas as dimensões da vida: econômica, social, territorial,

científica e tecnológica, política e cultural. Progressiva, porque significa não

reforçar os conflitos a ponto de torná-los inegociáveis, mas sim fragmentá-los em

porções menos complexas, para administrá-los melhor no tempo e no espaço.

Mas, observando a definição trazida pela legislação internacional, há de se

perguntar: quais são as necessidades das gerações presentes e quem as define?

Quando se fala em desenvolvimento sustentável é preciso estar atento para

as escolhas que se situam no nível das finalidades e dos instrumentos constantes

das políticas públicas. Três questões aparentemente simples, mas que envolvem

81 BRÜSEKE, Franz Josef. O problema do desenvolvimento sustentável. In CAVALCANTI, Clóvis (org) Desenvolvimento e Natureza. Estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003, p.31. 82 83 VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento Sustentável. O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, p. 191.

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temas complexos, devem ser formuladas: O que produzir? Como produzir? E para

quem produzir?84

Neste sentido, as relações de produção da sociedade é que vão determinar

como o meio ambiente será apropriado e como se vai gerar riqueza, através dele,

pois não há produção sem recursos naturais. E a destruição das bases naturais de

reprodução do sistema econômico não é um privilégio do capitalismo, pois ela se

verificou ainda na Baixa Idade Média, com a destruição de florestas primárias

européias; no período do mercantilismo, com a exploração incessante dos recursos

naturais das colônias pelos países europeus; e, também, com a destruição das

florestas de cedro pelos navegadores fenícios. 85

Leroy86 critica a forma como vem sendo desempenhada a noção de

desenvolvimento sustentável. Afirma que, de forma implícita, a Agenda 21, ao

anunciar no Capítulo I, intitulado “Cooperação Internacional para acelerar o

desenvolvimento sustentável dos países em desenvolvimento e políticas internas

correlatas”, reconhece que o desenvolvimento sustentável é entregue ao mercado,

sendo este o responsável por definir quais são as necessidades, seguindo critérios

como o da redução da pobreza e a melhoria do meio ambiente. Assim, afirma ele:

se o mercado objetiva o lucro e orienta o desejo dos consumidores, de um modo

geral, o conceito de desenvolvimento sustentável acaba por manter as bases do

modelo de produção e consumo atuais, sabidamente inadequado para enfrentar os

desafios ambientais deste século. Assim, o chamado “desenvolvimento

sustentável” seria uma mera mudança terminológica para retratar um fenômeno

antigo: o do crescimento econômico.

Reputamos, assim, a crítica acima bastante válida, porém, dissentimos, na

medida em que reconhecemos haver diversas formas de entendimento do que seja

desenvolvimento sustentável, sendo a da hegemonia do mercado apenas uma

dentre outras. Ora, há que se distinguir, nesse ponto, entre aquilo que a lei

preconiza e sua aplicação efetiva. O fato da inadequação prática dos princípios e

regras relativas ao tema não leva a crer que a idéia não seja eficaz e positiva para

o objetivo do desenvolvimento econômico, social e ambiental. Aliás, como

84 NUSDEO, Fábio. Economia do Meio Ambiente. In PHILIPPI JR, Arlindo. ALVES, Alaor Caffé ( org ). Curso Interdisciplinar de Direito Ambiental. p. 197 85 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 73. 86 LEROY, Jean Pierre. Prefácio. BERMANN, Celio. ( org ) As novas energias no Brasil. Dilemas da Inclusão social e programas de governo. Rio de Janeiro: FASE, 2007, p. 13.

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assinalado também pela Agenda 21, a sustentabilidade certamente não é algo

dado, mas uma construção social, um projeto a construir: o projeto de uma nova

sociedade, baseada na democracia e em outros valores, que não os vigentes no

mercado capitalista. A sustentabilidade não é - e nunca será - uma noção de

natureza precisa, discreta, analítica ou aritmética.87

Assim, somos no sentido de que a institucionalização da noção de

desenvolvimento sustentável foi um avanço positivo na legislação internacional

ambiental, ao revelar a tomada de consciência explícita de um problema ambiental

global relativo às limitações dos recursos naturais. Mas nem por isso o conceito

parece ser idealmente concebido para a solução de todos os problemas

socioambientais e econômicos. Um maior avanço em relação ao tema é preciso,

para se extrair maiores conclusões sobre a política de desenvolvimento válida a

ser adotada no contexto brasileiro, em especial quanto à questão energética.

Há diversas teorias econômicas para explicar o conceito de

desenvolvimento sustentável. Não há consenso, contudo, em relação à

classificação destas na esfera ambiental.88 Porem, não faz parte do objetivo desta

Dissertação expor e analisar todas as correntes existentes sobre o tema. Ateremo-

nos somente àquelas que reputamos mais adequadas para fornecer suporte ao

desenvolvimento do tema proposto.

Para abordagem das teorias econômicas sobre desenvolvimento

sustentável, vamo-nos valer do estudo realizado por José Eli da Veiga (2006) que

bem demonstra a diversidade de correntes de pensamento para explicar tal

fenômeno.89

Afirma o autor brasileiro que podemos identificar pelo menos três grandes

vertentes teóricas para explicar o desenvolvimento: uma que pretende o

desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico, o qual vem sendo

87 VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento Sustentável. O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, p. 165. 88 Várias são as tentativas de sistematização. Alguns teóricos, como AMAZONAS (2002) visualizam três blocos: neoclássicas, institucionais e ecológicas. Outros, como ROMEIRO (2003) preferem considerar dois campos: o da sustentabilidade “fraca” e “forte”, que opõem, respectivamente, os economistas neoclássicos e os que se dizem ecológicos. Há também quem destaque, como MUELLER(2001), a oposição entre economia ambiental neoclássica e a economia ecológica, mas subdividem esta última em cinco variantes: “fundamentalismo socioambiental”, “ambientalismo cepalino”, “ambientalismo dos pobres”, “marxismo verde” e “economia de sobrevivência”. Por último, há quem, como MONTIBELLER-FILHO, fale da corrente neoclássica, da ecológica e da “ecomarxista”. 89 VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento Sustentável. O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

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monitorado há várias décadas pelo aumento do PIB90; outra, situada no extremo

oposto, chamada de “pós-desenvolvimento”, cujos adeptos são absolutamente

contrários ao crescimento econômico, baseia-se em cinco dimensões básicas:

revalorização das sociedades não desenvolvidas, desvalorização da idéia de

progresso, critica dos vetores de desenvolvimento, critica das práticas

desenvolvimentistas e elogio dos modos de resistência dos perdedores que estão

abrindo para a “era do pós-desenvolvimentismo”91; e, por fim, uma terceira, que

seria o que chama de ”caminho do meio”, cujo expoente máximo é o Prêmio

Nobel de Economia Amartya Sem - que considera o crescimento econômico como

um fator histórico necessário, mas não perfeito com o qual a humanidade acabou,

mal ou bem, expandindo sua liberdade.92

Também no sentido desta terceira corrente, de evitar os extremos, está o

pensamento de Ignacy Sachs93. A idéia de que este autor parte não é o

desenvolvimento como o resultado da livre interação das forças do mercado, já

que este é somente uma dentre várias outras instituições envolvidas no processo.

Ignacy Sachs, portanto, não é contrário ao desenvolvimento, já que

enfatiza seus aspectos qualitativos. Além disso, para ele, o desenvolvimento pode

permitir que cada indivíduo revele suas capacidades, seus talentos e sua

imaginação na busca da auto-realização e da felicidade, mediante esforços

coletivos e individuais, combinação de trabalho autônomo e heterônomo e de

tempo gasto em atividades não econômicas. Nessa concepção, maneiras viáveis de

produzir meios de vida não podem depender de esforços excessivos e extenuantes

90 Desde 1990, no âmbito do PNUD ( Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento ), porém, foi desenvolvido o IDH – Índice de Desenvolvimento Humano - , índice capaz de fornecer a seus usuários uma espécie de medida do desenvolvimento, não alheia em relação aos aspectos sociais da vida humana. Os critérios utilizados para medir o progresso mundial na realização do bem-estar humano são quatro: vida longa e saudável, conhecimento, acesso aos recursos necessários para um padrão de vida digno e participação na vida da comunidade. Para se chegar ao cálculo do referido índice é realizada a soma aritmética dos três índices mais específicos que captam renda, escolaridade e longevidade. Embora não seja ainda o ideal, como o próprio PNUD reconhece, o IDH é um ponto de partida para avalizar o processo de desenvolvimento, tema característico pela complexidade e diversidade de seus fatores. 91 VEIGA, José Eli da. A emergência socioambiental.. São Paulo: Editora Senac, 2007, p.93. 92 Ibid. p. 94. 93 O autor é economista, nascido na Polônia, naturalizado francês, tendo vivido por quatorze anos no Brasil, onde graduou-se na Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas do Rio de Janeiro. Obteve doutoramento na Universidade de Delhi, na Índia. Lecionou de 1968 a 2004 na Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais ( EHESS ), em Paris. Dirigiu o programa de doutorado em Pesquisas Comparativas sobre o Desenvolvimento. Fundou e dirigiu o Centro Internacional de Pesquisas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CIRED) e o Centro de Estudos sobre o Brasil Contemporâneo (CRBC). Foi também assessor do Secretário Executivo da Cúpula da Terra realizada no Rio de Janeiro em 1992

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por parte de seus produtores, de empregos mal remunerados exercidos em

condições insalubres, da prestação inadequada de serviços públicos e de padrões

subumanos de moradia.

No tocante à sustentabilidade, José Eli da Veiga (2006) também identifica

outras três grandes correntes teóricas:

A primeira, mais otimista, não acredita existir um dilema entre

conservação ambiental e crescimento econômico: prefere sustentar que é factível

combinar essa dupla exigência. Entre estes, estão os adeptos do “fundamentalismo

de mercado”. Para eles, os males sociais e ambientais são “o preço inevitável do

progresso econômico”, ou seja, são questões inerentes ao próprio sistema

capitalista (desigualdade social, desemprego, degradação ambiental, etc), mas que

seriam compensados pela eficiência da economia capitalista de mercado e pela

produção de bens públicos, tais como a redução da pobreza e a proteção

ambiental. 94

Neste ponto vale destacar a teoria de R. Solow que, seguindo a tradição

econômica neoclássica, afirma que a natureza jamais constituirá um verdadeiro

obstáculo à expansão da atividade econômica, pois, a qualquer momento,

elementos naturais da biosfera serão substituídos em razão de mudanças na

combinação de seus três ingredientes: trabalho humano, capital produzido e

recursos naturais. O progresso científico-tecnológico sempre conseguirá introduzir

as necessárias alterações que substituam eventual escassez, ou comprometimento

dos recursos naturais, através de inovações dos outros dois ou de algum deles. A

sustentabilidade para Solow mostra-se como um requisito que devemos legar às

futuras gerações. Afirma, então, que a sustentabilidade é “O que quer que seja

necessário para gerar um padrão de vida pelo menos tão bom como o que temos e

para cuidar de maneira semelhante da próxima geração”95.

Esta sustentabilidade é considerada fraca, pois assume que, no limite, o

estoque de recursos naturais pode até ser exaurido, desde que esse declínio seja

progressivamente compensado por acréscimos proporcionais dos outros dois

fatores-chaves – trabalho e capital produzido -, muitas vezes agregados na

94 VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento Sustentável. O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, pp. 109-111. 95 SEN, Amartya. “Por que é necessário preservar a coruja-pintada”, Folha de São Paulo, 13.03.2004, “Caderno Mais”, p. 18.

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expressão “capital produtível”.96 Aqui, portanto, ignora-se tudo o que gira em

torno do valor de existência atribuído aos recursos naturais.

Esta lógica procura maximizar as compensações comerciais para uma

destruição do ambiente e não assegurar que o modo de desenvolvimento se faça

com prudência ecológica.97

Outra vertente dos economistas neoclássicos não concorda com a postura

de Solow, mas não traz definições mais precisas sobre o que é ser sustentável.

Esta segunda escola se diferencia da primeira, por ser menos otimista em relação

às possibilidades de “troca-troca” entre os fatores de produção, preferindo

propugnar o que chamam de “sustentabilidade forte”. Em geral, seguem a Escola

de Londres e os ensinamentos de David William Pearce. Entendem que o critério

de justiça entre gerações não deve ser a manutenção do capital total, mas sim sua

parte não reprodutível, que chamam de “capital natural” e pelo fato de saberem

que grande parte deste “capital natural” é exaurível, propõem que os danos

ambientais provocados por certas atividades sejam de alguma forma

compensados. Assim, para lidar com a referida problemática, esta escola se vale

de um sistema de preços ou de técnicas de valoração, capaz de exprimir a escassez

relativa dos bens e serviços, incorporados aos mercados relativos aos direitos de

poluir ou de cotas de emissões.98

Os esquemas de compensação, portanto, justificam-se na medida em que

haja uma equivalência, do ponto de vista do bem estar, entre bens ambientais e

produtos industriais de consumo ou que haja uma substituição recursos/capital,

que permita compensar as perdas de recursos naturais impostas às gerações

futuras.99

Os economistas ecológicos, porém têm uma visão diferente dos demais,

não baseada no uso de técnicas de valoração, mas, sim, na crítica básica de

Georgescu-Roegen à tese de R. Solow, segundo a qual os recursos naturais e

capitais são geralmente complementares e não substitutos. A substituição

preconizada por R. Solow contraria as duas leis da termodinâmica.

96 VEIGA, José Eli da. op.cit, p. 123. 97 TOLMASQUIM, Mauricio Tiommo. Economia do meio ambiente: forcas e fraquezas. In In CAVALCANTI, Clóvis (org) Desenvolvimento e Natureza. Estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003, p.336. 98 VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento Sustentável. O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, p. 125. 99 TOLMASQUIM, Mauricio Tiommo. op.cit, p.337.

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A segunda grande corrente no debate da sustentabilidade, mais fatalista,

tem nuances diversas e autores com teses distintas, como a do romeno Nicholas

Georgescu-Roegen e a de Herman Daly.

Nicholas Georgescu-Roegen, com base na lei da termodinâmica, assinalou

que as atividades econômicas gradualmente transformam energia em formas de

calor tão difusas que são inutilizáveis. A energia está sempre passando de forma

irreversível e irrevogável, da condição de disponível para não disponível. Quando

utilizada, uma parte da energia de baixa-entropia ( livre ) se torna de alta entropia

( presa ). Assim, para poder manter o seu próprio equilíbrio, a humanidade tira da

natureza os elementos de baixa entropia que permitem compensar a alta entropia

por ela causada. Isto faz com que o crescimento econômico moderno tenha

exigido a extração da baixa entropia contida no carvão e no petróleo. Acrescentou,

em atenção ao segundo princípio da termodinâmica, que a humanidade deverá

apoiar a continuidade de seu desenvolvimento na retração do crescimento.100

Para Herman Daly, entretanto, somente se pode falar em sustentabilidade

na chamada “condição estacionária”, que não corresponde ao crescimento zero.

Na citada condição, a economia continuaria a melhorar em termos qualitativos,

substituindo, por exemplo, energia fóssil por energia limpa. Mas, nas sociedades

mais avançadas, seria abolida a obsessão pelo crescimento do produto, que o autor

considera uma mania101.

Estes dois autores são apontados como adeptos da chamada economia

ecológica, que busca estabelecer uma conexão entre o sistema econômico e o

ambiente natural, através da integração de componentes do sistema econômico

com os do sistema ecológico, procurando, assim, compreender seu funcionamento

comum. Desse modo, distinguindo-se tanto da economia convencional quanto da

ecologia convencional, a Economia Ecológica pode ser definida como um campo

interdisciplinar que procura a integração entre as disciplinas da economia e da

ecologia com as demais disciplinas correlacionadas, para uma análise integrada

dos dois sistemas. Neste sentido, a Economia Ecológica não rejeita os conceitos e 100 VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento Sustentável. O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, p.121. 101 Para ilustrar sua teoria a respeito da condição estacionaria, Herman Daly apresenta a analogia entre economias de ponta – como a dos EUA e Japão – e o exemplo de uma biblioteca que está cheia de livros, sem espaço para novos exemplares. A melhor solução é a de estabelecer que um livro novo só poderá ser incluído na biblioteca se outro for retirado, em uma troca que somente poderia ser aceita se o novo livro fosse melhor do que o substituído. Ver em VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento Sustentável. O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, p.112.

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instrumentos da economia convencional e nem os da ecologia convencional, e irá

utilizá-los sempre que se fizerem necessários, mas reconhece sua insuficiência

para o propósito de uma análise integrada, apontando para a necessidade do

desenvolvimento de novos conceitos e instrumentos.102 103

A terceira corrente sobre sustentabilidade, de natureza intermediária, seria

algo ainda em construção, com Ignacy Sachs como um de seus defensores.

Segundo ele, a noção de desenvolvimento sustentável deve ser harmonizada com

objetivos sociais, ambientais e econômicos. A sustentabilidade verifica-se em suas

oito dimensões: social, cultural, ecológica, ambiental, territorial, econômica

política nacional e internacional. No que diz respeito à sustentabilidade ecológica

e ambiental, os objetivos se assentam sobre um tripé: 1) preservação do potencial

da natureza para a produção de recursos renováveis; 2) limitação do uso de

recursos não renováveis; e 3) respeito e estimulo para a capacidade de

autodepuração dos ecossistemas naturais.

Para ele, então, o crescimento econômico é uma condição necessária, mas

não suficiente para “alcançar a meta de uma vida melhor, mais feliz e mais

completa para todos” 104. A dimensão da sustentabilidade ambiental, acrescida à

sustentabilidade social, é baseada em “um duplo imperativo ético de solidariedade

sincrônica com a geração atual e de solidariedade diacrônica com as gerações

futuras”105.

Isto posto, realizada a apresentação das principais teorias econômicas para

explicar o desenvolvimento sustentável, entendemos que - levando em

consideração a realidade brasileira, de um país ainda em desenvolvimento, em que

fatores como a forte desigualdade econômica e a intensa exclusão social

encontram-se presentes - uma tradução jurídica de alguns pontos acima enfocados

102 VEIGA, José Eli da. A emergência socioambiental.. São Paulo: Editora Senac, 2007, p. 96. 103 Segundo CAVALCANTI ( 2003 ), de acordo com os adeptos da chamada economia ecológica, parte-se da premissa de que não é possível aceitar a existência de uma “rota de colisão” entre os seres humanos e o mundo natural. Assim, busca esta corrente expressar a noção de desenvolvimento econômico como fenômeno cercado por certas limitações físicas que ao homem não é dado elidir. Em outras palavras, “existe uma combinação suportável de recursos para realização do processo econômico, a qual pressupõe que os ecossistemas operam dentro de uma amplitude capaz de conciliar condições econômicas e ambientais”. In CAVALCANTI, Clóvis. Breve Introdução ã economia da sustentabilidade. In CAVALCANTI, Clóvis (org) Desenvolvimento e Natureza. Estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003, p. 17. Vide também o site da internet http://www.ecoeco.org.br/. 104 SACHS, Ignacy. Desenvolvimento includente, sustentável e sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2004, p. 13. 105 Ibid. p. 15.

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pode ser realizada, privilegiando a necessidade de integração de conceitos

econômicos e ecológicos para melhor delinear o campo de atuação do princípio do

desenvolvimento sustentável.

B - Economia e Meio Ambiente: uma relação de não oposição cuja

proteção é papel do direito ambiental.

Em primeiro lugar, é preciso dizer que a economia deve ser considerada

como um sistema sustentado por dois parâmetros: o ambiental e o ético106. O

primeiro demonstra as medidas a serem tomadas do ponto de vista biofísico e

social, enquanto que o ético indica o que é moralmente permitido fazer. Sachs107,

citando Amartya Sen (1990), também afirma que a economia e ética estariam

interligadas, desde Aristóteles, por duas questões centrais - a motivação humana (

como deveríamos viver ) e a avaliação das conquistas sociais - . Entretanto, com o

tempo, a outra origem da economia, constituída nas chamadas questões logísticas,

passou a ser preponderante, a ponto de fazer com que a ética fosse esquecida.

Portanto, deve haver uma reaproximação da economia com a ética, sem relegar a

política.

Para a tomada de decisões que envolvam a implantação de hidrelétricas,

por conseguinte, não se deve levar em consideração nem uma visão

unidimensional e nem a economicidade pode ser o único critério decisional. Ao

revés, importa considerar também as dimensões ética, política e ambiental.

Nesse sentido, é preciso também ficar atento à tendência avassaladora do

capitalismo de transformar tudo, inclusive as próprias condições de sua produção,

como, por exemplo, a natureza, em mercadoria108. Os bens ambientais possuem

106 CAVALCANTI, Clóvis. Sustentabilidade da economia: Paradigmas alternativos de realização econômica. In CAVALCANTI, Clóvis (org) Desenvolvimento e Natureza. Estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003, p. 155. 107 SACHS, Ignacy. Desenvolvimento includente, sustentável e sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2004, p. 13 108 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2006, p. 44. O autor considera que o capitalismo é constituído por uma dupla contradição: a taxa de exploração que evidencia o poder social e político do capital sobre o trabalho e a tendência do capital para as crises de sobre-producão; e por outro lado, a segunda contradição, envolvendo as condições de produção, ou seja, tudo aquilo que é considerado mercadoria apesar de não ser produzido como tal, como a natureza, consiste na tendência de o capital destruir as suas próprias condições de produção., sempre que estiver presente uma crise de custos

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valor intrínseco e não devem ser encarados como uma moeda de troca, mas, sim,

como bens que devem ser protegidos pelo valor de sua existência.

Outro aspecto de determinados bens ambientais que merece ser destacado

é a irreversibilidade, quando se trata de recursos não renováveis e seu

esgotamento mostra-se irreversível.

No caso do processo decisório para a implantação de hidrelétricas, deve-se

priorizar o valor de existência dos bens ambientais em jogo: os rios, as florestas

que terão de ser desmatadas para a construção do empreendimento, a fauna e flora

atingidas pelo desmatamento. Além disso, a irreversibilidade de determinados

bens ambientais deve ser sopesada na decisão a respeito da viabilidade do

empreendimento.

O Direito tem, assim, a capacidade de “assimilar normas de diferentes

sistemas como as leis econômicas e as leis da natureza, digeri-las e reapresentá-las

na sistemática própria do ordenamento jurídico”109, assumindo, com isso,

comprometimento com a prática social. Afastando-se do sistema fechado de sua

origem, as leis, agora traduzidas pelo Direito, submetem-se a outras variáveis que

lhe proporcionam um movimento diferenciado.

Portanto, as leis econômicas, após a tradução revelada pelo Direito (por

meio de uma interpretação sistemática das regras e princípios constitucionais,

infraconstitucionais e da normativa internacional) devem ser relativizadas pela

proteção do meio ambiente como bem jurídico protegido constitucionalmente e

internacionalmente, como direito humano.

Por outro lado, é de se destacar a vocação redistribuitiva do Direito

Ambiental110, já que uma das suas metas é corrigir as deficiências apresentadas

pelo sistema de preços, vigente no mercado, de maneira a incorporar os custos das

externalidades negativas111.

109 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 266. 110 ALSINA, Jorge Bustamante. Derecho Ambiental. Fundamentacion y normativa. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1995, pp. 50-51 111 Segundo Fábio Nusdeo, externalidades negativas são os custos e benefícios obtidos com a produção de determinada atividade econômica, não computados pelo mercado e, portanto, que sem qualquer preço ou valor a eles associado. Em razão disso, os tais custos e benefícios são desconsiderados pelo mercado, o que influencia no valor final do custo de produção. Constituem, portanto, os chamados custos sociais. NUSDEO, Fábio. Economia do Meio Ambiente. In PHILIPPI JR, Arlindo. ALVES, Alaor Caffé ( org ). Curso Interdisciplinar de Direito Ambiental. p. 209.

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Dentro do contexto econômico-ambiental, faz-se importante ter em mente

que o ordenamento jurídico constitucional pátrio buscou compatibilizar a questão

da livre iniciativa econômica e da liberdade das presentes (e futuras) gerações

com um ambiente ecologicamente equilibrado. Imprescindível considerar que

“sob o ponto de vista do direito, existem liberdades que não podem se anular, uma

vez que se encontram sob o mesmo grau de imperatividade”.112 Tal

imperatividade se consubstancia na própria existência digna, posto que tanto a

ordem econômica como o respeito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado

buscam atingir essa finalidade. Assim, o direito brasileiro não permite que um

princípio seja anulado em detrimento do outro.

Portanto, vislumbra-se como fundamental o desenvolvimento sustentável

nesta compatibilização entre a ordem econômica e a proteção ambiental,

funcionando como liame entre as questões econômicas e socioambientais.

Sob o ponto de vista jurídico, o desenvolvimento sustentável é tratado, por

vezes, como direito113, como princípio114, como critério básico para a gestão do

meio ambiente e de aplicação das normas legais destinadas a proteger ou

preservar os ecossistemas e os recursos naturais115. Pode ser encarado, ainda,

como uma política, um objetivo, uma meta ou diretriz. A despeito disso, há uma

idéia mais ou menos bem definida de que ele revela a necessidade de garantia da

preservação dos recursos naturais não renováveis, a fim de que não se esgotem, e

de um uso racional dos recursos naturais renováveis, para as presentes e futuras

gerações.

Adotaremos, assim, o desenvolvimento sustentável como princípio, na

forma proposta por Michel Prieur116, e tal qual prevista na Declaração do Rio-92,

que estabelece as condições para sua realização, quais sejam: a) eliminar a

112 DERANI,Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 233. 113 DERANI,Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, pp. 169-171. A autora fala em “direito do desenvolvimento sustentável” sem com isso querer dizer se tratar de ramo autônomo do direito, mas sim que há um “enfoque novo e inovador que assume necessariamente a coordenação das normas de direito econômico com os preceitos que visam uma utilização sustentável dos recursos naturais”. Conceitua este direito como o “conjunto de instrumentos “preventivos”, ferramentas de que se deve lançar mão para conformar, constituir, estruturar políticas, que teriam como cerne práticas econômicas, cientificas, educacionais, conservacionistas, voltadas à realização do bem-estar generalizado de toda uma sociedade.” 114 PRIEUR, Michel. Droit de lénvironnement. Paris: Dalloz, 2004, pp. 68-69. 115 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 71. 116 Na doutrina brasileira, podemos citar os seguintes autores que dão ao desenvolvimento sustentável expressamente o tratamento como princípio: MIRRA, Alvaro Luiz Valery. Princípios Fundamentais do Direito Ambiental. Revista de Direito Ambiental, Vol. 2, São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 58-59

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pobreza (princípio 5); b) reconhecer uma responsabilidade comum, mas

diferenciada entre os diversos Estados quanto à degradação ambiental (princípio

7); c) reduzir e eliminar os modos de produção e consumo não viáveis (princípio

8) e, sobretudo, d) integrar o ambiente a todas as outras políticas de

desenvolvimento (principio 4).

Analisando o texto constitucional, podemos dizer que tal princípio restou

contemplado, através do exame conjunto do art. 225 e do art. 170, inciso VI.

Ressalte-se, todavia, que a legislação infraconstitucional já previa a

compatibilização da preservação da qualidade ambiental e do equilíbrio ecológico

com o desenvolvimento econômico-social, conforme art. 4ª, inciso I, da Lei

6938/81.

Em decorrência, a relação existente entre o art. 225 e o art. 170 da CF/88

não é apenas “intranormativa”, mas uma relação entre os “elementos do mundo da

vida” presentes em cada um dos dispositivos normativos117.

Assim, a relação entre economia e meio ambiente não se apresenta como

sendo de oposição, ou seja, não há incompatibilidade entre produção econômica e

natureza, o que, todavia, não significa a existência de conflitos ou tensões entre os

dois campos.

Ora, a relação de não oposição deve ser interpretada no sentido de que a

atuação humana é uma só: as bases naturais, mesmo quando colocadas em

extinção, e a degradação decorrente de atividade econômica fazem parte de um

mesmo processo de atividade humana. Não podem ser tratadas como dois mundos

distintos e separados.

Para a efetivação do princípio do desenvolvimento sustentável, nos moldes

propostos pela legislação internacional já mencionada e pelos dispositivos

constitucionais pátrios (levando em consideração a premissa de que este possui

como finalidade última a preservação da existência digna), devemos ter em mente

o uso adequado dos recursos naturais.

Neste sentido, toda política pública deve considerar três fatores: a

preservação do ambiente, na mesma razão do incentivo à ordem econômica

fundada na livre iniciativa e na valorização do trabalho humano.

117 DERANI,Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, pp. 239-240

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Tomando estes fatores como norte, algumas diretrizes118 podem ser

traçadas no sentido de um planejamento ambiental estratégico, com vistas à

efetivação do desenvolvimento sustentável:

I) A integração de elementos ecológicos à “economia social de mercado”,

afastando a falsa idéia de oposição entre economia e meio ambiente119;

II) O desenvolvimento econômico do Estado Brasileiro deve pressupor um

aquecimento da economia limitado ao uso racional dos recursos naturais, com o

objetivo de aumentar a qualidade de vida. Nesse sentido, a prática econômica

deve ser pautada pela precaução contra os danos ambientais, busca da efetividade

da preservação ambiental, através da avaliação e do planejamento, a fim de

manter o equilíbrio dos ambientes naturais e, ao mesmo tempo, fomentar a

melhoria da qualidade de vida da sociedade – deve ser considerado, contudo, que

qualidade de vida não significa aumento do poder de consumo, mas um consumo

consciente;

III) Somente podem ser admitidos os danos ambientais reversíveis, ou seja,

passiveis de reparação;

IV) As atividades econômicas passiveis de aceitação são somente aquelas

necessárias e úteis à sociedade (relação do custo-beneficio social com o impacto

ambiental causado);

V) O desenvolvimento de atividades econômicas deve servir como garantia de um

melhor nível de vida, com distribuição de renda aliada a condições de vida mais

saudáveis (acesso à alimentação sadia, condições dignas de trabalho e de moradia,

etc), as quais compreendem outros benefícios além daqueles proporcionados pelos

bens de consumo, como, por exemplo, o exercício da liberdade de fruição dos

bens de uso comum, como áreas verdes, paisagens, lugares de recreação, praias120;

VI) O desenvolvimento de novas tecnologias deve estar afinado com a

preservação dos recursos naturais e com uma melhoria da qualidade de vida da

população;

118 Ibid. pp. 239-240 e nota de rodapé 366 119 Ibid. p. 242.. 120 DERANI,Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 239.

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VII) A procura da efetivação da justiça distributiva para as presentes e futuras

gerações;121

VIII) A busca da equidade social, assegurando-se que nenhum grupo de pessoas,

seja étnico, racial ou de classe, “suporte uma parcela desproporcional de

degradação do espaço coletivo.”122

Se, por um ângulo, o regime jurídico pátrio adotou a economia capitalista,

com base em relações de mercado (na medida em que protege como direito

fundamental a autonomia privada para a atividade econômica, a propriedade

privada e a livre iniciativa); de outro, o texto constitucional também busca dar

uma dimensão social a estes direitos, por meio do princípio da função social da

propriedade, da promoção pelo Estado da defesa do consumidor, do dever de

preservação ambiental, da busca da redução das desigualdades socais. Para tanto,

devemos falar em uma economia não só baseada no mercado, mas também no

planejamento estatal, ou seja, de uma “economia social de mercado” ou

“economia ecológica social de mercado”123. Não se pode aceitar, em decorrência,

a afirmação de que o ordenamento jurídico pátrio adotou o regime econômico

liberal.

C- O principio do desenvolvimento sustentável aplicado ao setor

energético.

Sob a perspectiva de que não se pode falar em desenvolvimento

sustentável sem pensar nas várias vertentes desta sustentabilidade, especialmente

a social e a ambiental, além da econômica - já que a relação estabelecida entre a

sociedade e o ambiente constitui a base da sustentabilidade – deve-se levar em

consideração a diversidade de formas sociais de apropriação e uso do ambiente;

de seus recursos e da conflituosidade existente entre elas.

121 Stober. R. Hunderbuch des Wirtschafts – Verwaltungs – und Umweltrechts. Stuttgart, Verlag W. Kohlhammer, 1989, apud DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, PP. 242-243. 122 ACSELRAD, Henri. HERCULANO, Selene. PADUA, Jose Augusto. A justiça ambiental e a dinâmica das lutas socioambientais no Brasil – uma introdução. In ACSELRAD, Henri. HERCULANO, Selene. PADUA, Jose Augusto. ( org ). Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 2004, p. 10. 123 As duas expressões são usadas por Derani ao trazer a doutrina alemã capitaneada por autores como R. Stober, M. Kloepfer e E. Rehbinder que reflete uma preocupação do Estado na orientação das políticas públicas. Vide DERANI,Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 242.

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Assim, sob o ponto de vista do setor energético, desenvolvimento

sustentável significa buscar uma política energética que integre a necessidade de

expansão da produção de energia e a indispensável preservação ambiental, aliada

à justiça social.

Nesse contexto, uma discussão sobre mudanças nos padrões de produção e

consumo torna-se fundamental. Inexiste desenvolvimento realmente sustentável,

se há manutenção das mesmas bases que privilegiam o aumento da produção e

consumo capitalistas, com a manifestação de um tipo de “ambientalismo”,

sustentado na tecnologia para gerir as questões ambientais.124

O desenvolvimento de um paradigma de “adequação ambiental”125 que

aposta na “modernização ecológica”126, próprio da lógica economicista e do

pensamento neoliberal, motiva decisões políticas que atribuem ao mercado a

capacidade de solucionar o problema da degradação ambiental. Este paradigma

vem na contramão da construção de um “paradigma transformador”127 para a

sustentabilidade que, por intermédio de mecanismos de participação, retire as

questões ambientais de um ambiente estritamente técnico e o traga para o debate

político.

Isso significa incorporar, ao planejamento energético, os princípios e

regras de direito ambiental, como a necessária participação pública no processo

decisório resultado de tal planejamento.

A questão energética não deve ser mais tratada separadamente,

desvinculada da questão socioambiental. Como articulador entre estes dois

campos, surge a gestão ambiental como um “complexo processo de tomada de

124 Sobre o referido tema, ZHOURI, LACHESFSKI e PEREIRA, (2005) esclarecem que a critica da ecologia ao desenvolvimento industrial cedeu lugar ao chamado “ambientalismo de resultados”, ou seja, o ambientalismo inserido na perspectiva economicista hegemônica que torna a natureza passível de ser “ manejada, administrada e gerida, de modo a não impedir o desenvolvimento”. ZHOURI. Andréa. LASCHEFSKI. Klemens. PEREIRA, Doralice Barros. Desenvolvimento, sustentabilidade e conflitos socioambientais. In ZHOURI. Andréa. LASCHEFSKI. Klemens. PEREIRA. Doralice Barros (org) A insustentável leveza da política ambiental. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, pp. 13-15. 125 Ibid. p. 17. 126 ACSELRAD, Henri. Justiça Ambiental – ação coletiva e estratégias argumentativas. In ACSELRAD, Henri. HERCULANO, Selene. PADUA, Jose Augusto. ( org ). Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 2004, pp. 23-24 127 Ibid. p.

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161

decisão no qual a opinião técnica não possui primazia sobre os argumentos dos

leigos”.128

Nesse sentido, a ampliação do debate dará ensejo ao reconhecimento da

luta social existente entre os diferentes modos de apropriação material e simbólica

dos recursos ambientais.129 Os grandes interlocutores desta luta social são os

movimentos e organizações sociais e ambientais, cuja participação mostra-se

imprescindível na discussão a respeito de sustentabilidade, através da

apresentação e discussão de modelos alternativos de desenvolvimento energético.

Importante, também, a atuação dos membros da academia para discutir o

fundamento de decisões tomadas pelo poder público, possibilitando a ampliação

da informação e, com isso, a crítica necessária ao processo de formulação das

políticas públicas energéticas.

Nesse contexto, a posição central - tomada pelo mercado e pelos interesses

econômicos na implantação dos grandes projetos hidrelétricos - deve ser

relativizada para dar lugar a outras manifestações (sociais, políticas, técnicas,

ambientais, culturais) com propostas diversas de desenvolvimento energético.

Inerente a tais propostas, procede-se ao debate político sobre as formas

alternativas de produção energética.

Na perspectiva do princípio do desenvolvimento sustentável, as propostas

de desenvolvimento do setor energético brasileiro devem, antes, priorizar a

diversidade socioambiental, bem como o aspecto qualitativo da geração de energia

elétrica (e não meramente quantitativo), por meio da reformulação da matriz

energética brasileira, objetivando outra, mais apropriada às condições físicas,

econômicas e socioambientais do país.

A matriz energética deve ser, ao mesmo tempo, limpa, econômica e capaz

de crescer de forma equilibrada, sempre orientada por dados reais e concretos para

o ajuste da necessidade de seu incremento.

A construção desenfreada de novas usinas hidrelétricas é, no mínimo,

discutível, diante dos graves prejuízos socioambientais e dos altos custos que

128 LIMA, Maira Luisa Milani de. O conflito entre leigos e peritos na gestão de riscos: o caso do licenciamento ambiental da usina hidrelétrica de Barra Grande. Direito, sociedade e riscos: A sociedade contemporânea vista a partir da idéia de risco: Rede Latino-Americana e Européia sobre Governo dos Riscos. VARELLA, Marcelo Dias. ( org ). Brasília: UniCEUB, UNITAR, 2006, p. 397. 129 O referido assunto já foi abordado no Capítulo 2, item 2.4, quando da abordagem a respeito dos conflitos socioambientais.

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acarreta. Outro ponto polêmico diz respeito ao destino final da energia gerada

pelas hidrelétricas, muitas vezes voltado para a autoprodução ou produção

independente de energia, e não para a coletividade em geral. Nesse caso, a falta de

um interesse público mais evidenciado (já que não há a prestação de um serviço

público pelo empreendimento) torna ainda mais problemática a ampliação da

matriz energética pautada nas referidas bases.

Faz-se necessária, pois, a busca de consensos em determinadas situações

como quanto ao reconhecimento de interesses divergentes que devem ser

incorporados e considerados no processo de decisão da política energética.

Práticas como essa, todavia, impõem a necessidade de um tempo maior para a

decisão, que não se coaduna com argumentos revelados no sentido de que há um

risco freqüente de deficit de energia,130 ou seja, trata-se da prudência ecológica de

que fala Ignacy Sachs.131

Nessas situações, a persistência das populações atingidas pelo

empreendimento e a resistência demonstrada pelos movimentos sociais e

ambientais, por ONG’s e associações, são tidas como uma ação contrária à

vontade de uma “maioria que quer energia”.

Por outro lado, medidas alternativas, de natureza técnica, como a

repotenciação das usinas hidrelétricas com mais de vinte anos de operação,

poderiam ensejar o aumento da capacidade hidrelétrica no pais em cerca de 12%,

otimizando, assim o potencial das usinas já existentes e aumentando a eficiência

na geração. A complementação da motorização de algumas usinas já instaladas,

em que a capacidade instalada não chega a atingir o limite da capacidade prevista

para o empreendimento (Usinas de Porto Primavera- SP, de Xingo e de Itaparica,

no Rio São Francisco, por exemplo); e a construção de Pequenas Centrais

Hidrelétricas (PCH’s)132 133, também são outras medidas alternativas que

poderiam ser estimuladas no processo de expansão energética brasileiro.134

130 BERMANN, Celio. Impasses e controversias da hidreletricidade. Acessível em: http://www.fem.unicamp.br/~seva/ArtCelioBERMANN_EstudAvan_ABRIL07.pdf. Ultimo Acesso em 25 de agosto de 2008. 131 VIEIRA, Paulo Freire ( org ). Ignacy Sachs. Rumo a ecossocioeconomia. Teria e prática do desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2007, p. 80. 132 Apesar de terem sido concedidos alguns benefícios pelo órgão regulador no sentido de incentivar a geração de eletricidade a partir das PCH’s como, por exemplo, a concessão de um desconto de 50% nas tarifas de transporte da eletricidade gerada por este tipo de usina, deve-se atentar para a necessidade de observância dos mesmos cuidados socioambientais exigidos para as centrais hidrelétricas de grande porte, já que as PCH’s, por vezes, podem gerar impactos socioambientais mais graves do que uma grande central.

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Logo, para incentivar a utilização de fontes alternativas de energia foi

criado, em 26 de abril de 2002, pela Lei nº 10.438, o Programa de Incentivo às

Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa)135, que previa, até dezembro de

2006, a instalação de 1.100 MW através de PCH’s. Este programa foi revisado

pela Lei nº 10.762, de 11 de novembro de 2003, que assegurou a participação de

um maior número de estados no Programa, o incentivo à indústria nacional e a

exclusão dos consumidores de baixa renda do pagamento do rateio da compra da

nova energia.

Ademais, a substituição de recursos naturais não-renováveis (por outros

renováveis) constitui princípio que deve orientar as opções energéticas136. O

incentivo e a implementação de políticas públicas para a diversificação da matriz

energética, com a adoção de energias alternativas coma a eólica, a solar137 e a

decorrente da produção de combustível a partir da biomassa, são hoje medidas

extremamente necessárias, dependendo do desenvolvimento de tecnologias

apropriadas, além, por óbvio, de condições climáticas e fisico-geográficas das

133 As PCH’S foram definidas pela Resolução 394 da ANEEL como centrais de potência instalada total de até 30.000 kW (30 MW) para aumentar a capacidade de geração privilegiando projetos de geração para sistemas isolados e atendimento às comunidades e propriedades urbanas ou rurais ainda não energizadas. 134 BERMANN, Célio. Impasses e controvérsias da hidreletricidade. Acessível em: http://www.fem.unicamp.br/~seva/ArtCelioBERMANN_EstudAvan_ABRIL07.pdf. Ultimo Acesso em 25 de agosto de 2008; VAINER. Carlos B. Recursos hidráulicos: questões sociais e ambientais. Revista Estudos Avançados n 59, Dossiê Energia. São Paulo: Instituto de Estudos avançados da USP, 2007. Disponível em < http://www.fem.unicamp.br/~seva/artVAINER_EstudAvan_abril07.pdf -> Último acesso em 31 de janeiro de 2009.

135 De acordo com o Ministério de Minas e Energia ( MME ) “O PROINFA é um importante instrumento para a diversificação da matriz energética nacional, garantindo maior confiabilidade e segurança ao abastecimento. O Programa, coordenado pelo Ministério de Minas e Energia (MME), estabelece a contratação de 3.300 MW de energia no Sistema Interligado Nacional (SIN), produzidos por fontes eólica, biomassa e pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), sendo 1.100 MW de cada fonte.” Disponível em: http://www.mme.gov.br/programs_display.do?prg=5. Ultimo acesso em 24 de novembro de 2008.

136 VIEIRA, Paulo Freire ( org ). Ignacy Sachs. Rumo a ecossocioeconomia. Teria e pratica do desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2007, p. 104. 137 Segundo Sachs, “as perspectivas da energia solar vão depender do progresso técnico na produção de células solares. As primeiras células, produzidas em escala comercial, surgiram nos anos 1950. Tinham um coeficiente de conversão de energia solar em eletricidade de 2% apenas. Com esse coeficiente, um metro quadrado de célula solar produz 20 watts. O coeficiente chegou a 33% no ano 2000 (330 watts por metro quadrado). A nova célula supereficiente, desenvolvida nos Estados Unidos, chega a um coeficiente superior a 40%. É possível que em poucos anos a eletricidade por energia solar venha a competir com a gerada em usinas termelétricas (Veja, 24.1.2007)”. In SACHS, Ignacy. A revolução energética do século XXI. Disponível em www.econ.fea.usp.br/nesa/artigo_SACHS.pdf. Ultimo acesso em 24 de novembro de 2008.

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regiões onde serão implantadas. Levando-se, inclusive, em consideração as

condições climáticas do Brasil e a grande ênfase na economia agrícola, observa-se

ser este um terreno fértil para uma adaptação a um modelo de promoção das

bioenergias e a substituição indireta das energias fósseis por bioprodutos.

No entanto, não bastam somente as condições naturais favoráveis, mas,

sim, incentivos financeiros e também de pesquisa para a adequação dos sistemas

integrados de produção de energia e alimentos adaptados aos diversos biomas.138

Refoge ao tema do presente estudo a análise aprofundada de cada uma das

alternativas, valendo apenas pontuar que essas são alternativas viáveis, já

amplamente discutidas pela comunidade científica139, e condizentes com o

princípio do desenvolvimento sustentável na esfera energética, conforme aqui

exposto.

Para melhor visualização do quadro energético no Brasil, seguem

abaixo os gráficos sobre a matriz energética brasileira.

138SACHS, Ignacy. A revolução energética do século XXI. Disponível em www.econ.fea.usp.br/nesa/artigo_SACHS.pdf. Ultimo acesso em 24 de novembro de 2008. 139 BERMANN, Celio. Impasses e controversias da hidreletricidade. Acessível em: http://www.fem.unicamp.br/~seva/ArtCelioBERMANN_EstudAvan_ABRIL07.pdf. Ultimo Acesso em 25 de agosto de 2008; VAINER. Carlos B. Recursos hidráulicos: questões sociais e ambientais. Revista Estudos Avançados n 59, Dossiê Energia. São Paulo: Instituto de Estudos avançados da USP, 2007. Disponível em < http://www.fem.unicamp.br/~seva/artVAINER_EstudAvan_abril07.pdf -> Último acesso em 31 de janeiro de 2009; TOLMASQUIM, Mauricio Tiomno. ( coord ). Alternativas Energéticas sustentaveis no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumara; COPPE; CENERGIA, 2004; SCHEER, Hermann. A solar manifesto, Earthscan/James & James, 2005; Relatório Wind Force 10, elaborado em conjunto por Greenpeace International, Fórum for energy and Developmento e European Wind Energy Agency. JACOBSON, Mark Z.. Review of solutions to global warming, air pollution, and energy security. Energy and Environmental Science. 2009, 2, 148 – 173.

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Figura 3: Capacidade de geração do Brasil

Capacidade de Geração do Brasil

O Brasil possui no total 1.767 empreendimentos em operação , gerando 102.236.110 kW de potência. » Matriz de Energia Elétrica

» Fontes de energia exploradas no Brasil

» Usinas e Centrais Geradoras

» Co-geração Qualificada

Tipo Quantidade

Potência

Outorgada (kW)

Potência

Fiscalizada (kW) %

CGH 227 120.009 119.387 0,12

EOL 17 272.650 272.650 0,27

PCH 320 2.399.598 2.339.404 2,29

SOL 1 20 20 0

UHE 159 74.632.627 75.051.031 73,41

UTE 1.041 25.202.520 22.446.618 21,96

UTN 2 2.007.000 2.007.000 1,96

Total 1.767 104.634.424 102.236.110 100

Tipo Quantidade

Potência

Outorgada (kW) %

CGH 1 848 0,01

EOL 22 463.330 6,26

PCH 67 1.090.070 14,73

UHE 21 4.317.500 58,34

UTE 19 1.528.898 20,66

Total 130 7.400.646 100

Tipo Quantidade

Potência

Outorgada (kW) %

CGH 74 50.189 0,15

CGU 1 50 0

EOL 50 2.401.523 7,21

PCH 166 2.432.568 7,3

UHE 18 15.865.300 47,64

UTE 165 12.552.801 37,69

Total 474 33.302.431 100

CGH

CGU

EOL

PCH

SOL

UHE

UTE

UTN

Fonte: Pesquisa realizada em 10/11/2008 no www.aneel.gov.br

Usina Termonuclear

Legenda

Pequena Central Hidrelétrica

Central Geradora Solar Fotovotaica

Usina Hidrelétrica de Energia

Usina Termelétrica de Energia

Está prevista para os próximos anos uma adição de 40.703.077 kW na capacidade de geração do País,

proveniente dos 130 empreendimentos atualmente em construção e mais 474 outorgadas.

Central Geradora Hidrelétrica

Central Geradora Undi-Elétrica

Central Geradora Eolielétrica

Empreendimentos Outorgados entre 1998 e 2008

(não iniciaram sua construção)

Os valores de porcentagem são referentes a Potência Fiscalizada. A Potência Outorgada é igual a considerada no Ato de

Outorga. A Potência Fiscalizada é igual a considerada a partir da operação comercisl da primeira unidade geradora.

Empreendimentos em Operação

Empreendimentos em Construção

Fonte: Aneel. Disponível em: www.aneel.gov.br

Figura 4: Gráfico sobre a distribuição (%) de mercado pelos principais segmentos

de consumo de energia

Fonte: EPE – período referência ano 2007. Disponível em: http://www.epe.gov.br/BoletimMensal/20071031_1.pdf

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Figura 5: Gráfico sobre a distribuição (%) de mercado pelos sub-sistemas elétricos

Fonte: EPE – período referência ano 2007. Disponível em: http://www.epe.gov.br/BoletimMensal/20071031_1.pdf

Figura 6: Gráfico sobre a distribuição (%) de mercado pelas regiões geográficas

Fonte: EPE – período referência ano 2007. Disponível em: http://www.epe.gov.br/BoletimMensal/20071031_1.pdf

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167

4.3.2

O princípio da gestão democrática140 na proteção ambiental e na

tomada de decisões no planejamento energético.

Se é reconhecida a indispensável e obrigatória intervenção do poder

público na defesa do meio ambiente, com a interferência, inclusive, no domínio

econômico para cumprir o mandamento constitucional em prol do ambiente, não

se pode afirmar que haja uma monopólio do Estado na gestão da qualidade

ambiental, já que ela deve ocorrer sempre com a participação direta da sociedade.

Trata-se de uma exigência para a consecução do Estado de Direito

Ambiental, tal qual já analisamos no item 4.1 deste capítulo.

A gestão democrática na tutela ambiental, por meio da participação

pública, está prevista no princípio 10 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente

e Desenvolvimento de 1992141. Também na esfera internacional, é fundamental a

menção à Convenção sobre acesso à informação, à participação pública no

processo de tomada de decisões e o acesso à Justiça em matéria ambiental,

elaborada em 1998, em Arhus, na Dinamarca (mas em vigor somente a partir de

outubro de 2001). Sua relevância se destaca pelo fato de ter estabelecido

princípios gerais a serem adotados não somente para a Comunidade Européia e

seus Estados-membros, mas para toda a comunidade internacional dos países. O 140 Cabe aqui uma explicação quanto à adoção desta nomenclatura. Embora a doutrina especializada em Direito Ambiental utilize nomenclatura diversa para acentuar a necessidade da participação democrática na tutela ambiental, tais como “principio da participação pública”, “principio da participação popular”, “principio da participação comunitária”, usaremos, neste trabalho, a nomenclatura “princípio da gestão democrática”, por estar mais consentâneo com a noção de gestão ambiental, que procuraremos enfatizar e, especialmente, por ser a nomenclatura adotada pelo Estatuto da Cidade – Lei. 10.257/2001, a ser interpretado juntamente com o texto constitucional e a legislação ambiental, em uma perspectiva urbano-ambiental necessária para a compreensão da complexidade da sociedade contemporânea.

141 Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. “Princípio 10 - A melhor maneira de tratar questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo deve Ter acesso adequado a informações relativas ao meio ambiente de que disponham autoridades públicas, inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar em processos de tomada de decisões. Os Estados devem facilitar e estimular a conscientização e a participação pública, colocando a informação à disposição de todos. Deve ser propiciado acesso efetivo a mecanismos judiciais e administrativos, inclusive no que diz respeito à compensação e reparação de danos.

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objetivo da Convenção142 foi o de garantir o amplo acesso às informações em

matéria ambiental, para que todos possam melhor ser informados e, desta forma,

promover de forma mais adequada a proteção ambiental. A referida Convenção,

desde que alcance a plena vigência, fará com que a Comunidade Européia seja a

primeira organização internacional a adaptar regras juridicamente vinculativas

relacionadas ao direito à informação ambiental.143

No âmbito constitucional interno, a gestão democrática na preservação

ambiental possui fundamentação genérica assentada no art. 1º, parágrafo único, da

CF/88, que estabelece o exercício do poder político pelo povo, intermediado por

representantes eleitos, ou diretamente, nos termos da própria constituição.

A fundamentação específica vem revelada no art. 5º, incisos XIV e

XXXIII da CF/88, que tratam do direito de todos à informação e do dever dos

órgãos públicos de prestar informações de interesse particular do cidadão ou de

interesse coletivo ou geral (com a garantia constante do art. 5º, XXXIV da

CF/88); no art. 37, parágrafo 3º, inciso II, da CF/88, que versa sobre o direito à

participação do usuário na administração pública (direta e indireta), a ser regulado

por lei específica e, além disso, há, também, o disposto no art. 225, caput e incisos

IV e VI da CF/88, que impõem ao poder público e à coletividade:

1) O dever de defesa e preservação do meio ambienta ecologicamente e

equilibrado;

2) Estudo prévio de impacto ambiental em caso de instalação de obra ou

atividade potencialmente causadora de significativa degradação ambiental; e

3) Promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a

conscientização pública ambiental.

142 Segundo a Convenção, constituem “ informações sobre o ambiente” qualquer informação sob a forma escrita, visual, oral, eletrônica ou qualquer outra forma material sobre: a) o estado dos elementos do meio ambiente; b) os fatores como substancias, energia, o ruído, as radiações ou os resíduos e outras liberações que afetem ou possam afetar o meio ambiente; c) medidas ( incluindo medidas administrativas ), políticas, legislação, planos, programas, acordos ambientais e atividades que afetem ou possam afetar de igual forma o meio ambiente e também medidas ou atividades concebidas para proteger tais os elementos ambientais; d) os relatórios sobre a aplicação da legislação ambiental; e) as análises de custos/benefícios e outras análises e pressupostos econômicos usados na esfera das medidas antes mencionadas; e f) o estado de saúde da população, a segurança desta, as suas condições de vida, os sítios e construções de interesse cultural. O acesso a informações, todavia, encontra limitações definidas também por ato normativo, conforme Diretiva 2003/4 CE, que estabelece em seu art. 4º as exceções ao dever de informar. 143 COUTO, Oscar da Graça. Alguns aspectos da “Lei da Transparência Ambiental”- Lei. N 10650/2003 em face do setor produtivo e, em especial, da Indústria do Petróleo (ou, ainda, “Adivinhe quem vem para Jantar?”)

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169

Já o art. 216, parágrafo 2º, da CF/88, que trata da proteção do patrimônio

cultural, também prevê o dever do poder público quanto à gestão da

documentação governamental, prevendo a permissão de consulta por aqueles que

dela necessitem.

Assim, de forma clara, a Constituição Federal optou pela adoção do

princípio da gestão democrática nas questões ambientais. Tais normas foram, no

mais das vezes, reproduzidas nas constituições estaduais.

Em se tratando de legislação infraconstitucional, por sua vez, menciona-se,

em termos de direito à informação e garantia de participação pública, as seguintes

leis: a) Lei 8159/91: instituidora da Política Nacional de Arquivos Públicos e

Privados e do respectivo Decreto 4073/2002; b) Lei 6938/81, sobre Política

Nacional do Meio Ambiente; c) Lei 9051/95, sobre a expedição de certidões para

a defesa de direitos; d) Lei 9433/97, pela instituição da Política Nacional de

Recursos Hídricos e, por fim, e) Lei 10.650/2003, sobre o acesso público aos

dados e informações existentes nos órgãos e entidades integrantes do SISNAMA.

Merecem ser ressaltados, ainda, alguns aspectos positivados pelas leis

anteriormente mencionadas, como a legitimidade conferida a todo e qualquer

interessado para obter informações do poder público (arts. 1º, 4º e 7º da Lei

8159/91), bem como a legitimidade das organizações sociais (art. 15 do Decreto

4073/2002); a garantia do acesso público à informação ambiental, salvo nas

hipóteses expressas de sigilo legal (art. 4º, V, art. 6º, parágrafo 3º; art. 9º, VII, X e

XI da Lei 6938/81 e art. 2º, parágrafo 1º da Lei 10650/2003) ou, também, o fato

de que todo cidadão é, em princípio, pessoa legitimamente interessada para

requerer informações pela natureza difusa do próprio bem ambiental (art. 2º, I da

lei 6938/81). Criou-se o Sistema de Informação sobre Recursos Hídricos (art. 25,

parágrafo único da Lei 9433/97) e fomentou-se a necessidade de dar publicidade

aos pedidos de licenciamento, renovação e respectiva concessão (art. 10,

parágrafo 1º da lei 6938/81 e art. 4º da lei 10650/2003).

Concomitante ao direito de exigir a defesa e preservação ambiental, a

coletividade tem também o dever de atuar diretamente nesse sentido. Três

mecanismos de participação, reconhecidos pelo Direito brasileiro144, colaboram

com tal atuação, incentivando a participação:

144 Ibid. Pp. 57-58

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170

1) no processo de criação do direito ambiental, com a iniciativa popular na

elaboração de projetos de leis145, a realização de referendos146 e a atuação

de representantes da sociedade civil em órgãos colegiados de poderes

normativos147;

2) na formulação e na execução de políticas ambientais, por intermédio da

atuação de representantes da sociedade civil (em órgãos colegiados

responsáveis pela formulação de diretrizes) e do acompanhamento da

execução de políticas públicas, por ocasião da discussão de estudos de

impacto ambiental em audiências públicas148 e nos casos de plebiscito149;

3) por meio do Poder Judiciário, com a utilização de instrumentos

processuais para obtenção da tutela jurisdicional em defesa do meio

ambiente.150

Nosso estudo dará enfoque mais relevante à participação pública na

formulação e na execução de políticas ambientais.

Neste ponto, é crucial partir da observação de que, para a solução dos

diversos problemas ambientais, torna-se fundamental que as estruturas sociais

sejam mobilizadas para uma participação efetiva nas políticas ambientais e nas

normas de organização das forças políticas, sociais e econômicas presentes na

sociedade. A sociedade civil, de forma direta (ou através de associações),

sindicatos e organizações não-governamentais, somente para citar alguns órgãos,

deve participar ativamente desse processo, exigindo um comprometimento das

funções do Estado e uma maior flexibilidade do mercado, com a finalidade de

assentar objetivos coerentes com um novo padrão de relacionamento com o

ambiente. 151

Neste sentido, a participação social nos programas decisórios, de

planejamento e de licenciamento de atividades econômicas, geradoras de impactos

145 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 61, caput, e parágrafo 2º 146 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 14, inciso II. 147 Um exemplo desta é a atuação no CONAMA, conforme previsto no art. 6º, inciso II, da Lei n. 6938/81, com redação dada pela Lei n. 7804/89 e alterada pela Lei. 8028/90. 148 CONAMA Resolução 001/86, art. 11, parágrafo 2o. 149 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art.14, inciso I. 150 Neste ponto, destacamos entre os instrumentos a ação civil pública, prevista no art. 129, inciso III da CF/88 e na Lei 7347/85. 151 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 89.

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ambientais, revela-se como um avanço na busca da democratização da realização

de políticas para a preservação ambiental.

Importante também mencionar que a participação pública efetiva depende

do maior número de informação previamente obtido, sobre os fatos e dados

existentes tanto nos setores públicos como privados. E, também, que tal

informação seja de qualidade. Daí, quanto maior a qualidade e a quantidade de

informação, maior será a intensidade da participação pública e, por conseguinte,

mais concretizados a democracia e o Estado de Direito. A informação deve ser

vista, sob dois ângulos: ao mesmo tempo em que cabe ao Estado promover a

transmissão de todo e qualquer tipo de informação, há um dever, por parte dos

cidadãos que agem no espaço público, de informá-lo e de transmitir diretamente

os dados aos usuários e consumidores152.

Visto sob outro prisma, o dever de informação denota a relação de

lealdade entre parceiros, permitindo que a legitimidade impere sobre a legalidade.

Paulo Leme A. Machado (2006) assevera que a proteção ao meio ambiente

somente será efetiva na medida em que “dois direitos caminharem juntos: o

direito à informação e o direito à participação.”153

Para gerar participação eficaz, a informação154 necessita ser contínua,

verídica, tempestiva e completa. Aliás, o dever de prestar informação adequada e

torná-la pública são exigências da observância de uma administração pública

transparente.

A seu turno, a idéia da gestão democrática está intimamente ligada à noção

de cidadania.

152 MACHADO, Paulo Leme Affonso. Direito à informação e meio ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 50. 153 Ibid, p. 265. 154 O direito à informação pode ser observado na ordem jurídica internacional já no século XVIII, mas foi a partir da década de 70 que passou a se acentuar a tendência de zelar pela relação entre particular e Administração, o que ensejou a criação de mecanismos para tutelar esta forma de relacionamento. Assim, o direito à informação passou a ser considerado direito universal do homem, após sua consagração na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que no art. 19, previu que “todo homem tem direito à liberdade de opinião e de expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.” Vide In COUTO, Oscar da Graça. Alguns aspectos da “Lei da Transparência Ambiental”- Lei. N 10650/2003 em face do setor produtivo e, em especial, da Indústria do Petróleo (ou, ainda, “Adivinhe quem vem para Jantar?”)

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172

O conceito ora sob crivo – “cidadania” - assumiu diferentes concepções

durante os vários períodos da história. 155

Na era moderna, surge a figura do Estado, cuja justificativa na visão de

Hobbes, é a garantia do direito de liberdade dos homens que se encontram em um

estado de “luta de todos contra todos”. Aqui, o direito à liberdade pré-existe ao

próprio Estado: trata-se de um direito considerado natural. Diante da presença do

Estado e do Governo, o individuo passa a ser sujeito de direitos civis, não apenas

como cidadão, mas também como homem.

No entanto, o conceito de cidadania, como o direito a ter direitos, tem

dado margem a inúmeras interpretações.

Há a concepção que se notabilizou afirmando que a cidadania é composta

por direitos civis, políticos e sociais156. Também há a distinção entre cidadania

ativa e passiva. Por fim, devemos mencionar, ainda, uma concepção mais restrita

de cidadania relacionada à nacionalidade.

Após este breve relato, adotaremos, para os fins da presente dissertação, a

noção contemporânea e ampliada de cidadania teorizada por José Maria

Gomez157, para quem cidadania é:

155 Na Grécia Antiga, por exemplo, os cidadãos atenienses participavam das assembléias, tinham plena liberdade de palavra e votavam leis que governavam a cidade (a polis), tomando decisões políticas. Neste período, estavam excluídos da cidadania os estrangeiros, os escravos e as mulheres. É bom lembrar o quão peculiar foi este período no que diz respeito aos direitos do homem, como cidadão em atuação na vida pública, e como membro da sociedade, na esfera privada. Os homens viviam juntos na família e a isso eram compelidos pela necessidade de sobreviver. Essa era a esfera privada, na qual imperavam as desigualdades naturais, já que os seres humanos eram diferentes entre si e se sujeitavam uns aos outros, em razão da necessidade vital. Por outro lado, na esfera pública, havia o domínio da liberdade, na qual imperavam a igualdade perante as normas ou a isonomia. Segundo a concepção grega, portanto, o ser político e integrante da polis significava que todas as decisões eram obtidas mediante palavras e persuasão – discurso - e não pela força ou violência: Estas últimas, entretanto, eram atributos inerentes à vida fora da polis, característicos do lar e da vida em família. Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 36. Já em Roma, a cidadania é um estatuto unitário, através do qual todos os cidadãos são iguais em direitos. Diferentemente da concepção grega, ser cidadão em Roma era ter direitos civis, políticos e de acesso à justiça, é ser membro de pleno direito da cidade. Por outro lado, ser cidadão implicava na possibilidade de votar e de ser votado, participando ativa ou passivamente do processo político, embora se reconheça que naquele período não houve uma democracia verdadeira. Cf. VIEIRA, Lizt. BREDARIOL, Celso. Cidadania e política ambiental. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 16. 156 MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967 apud VIEIRA, Lizt. BREDARIOL, Celso. Cidadania e política ambiental. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 22. 157 GÓMEZ, José Maria. Direitos Humanos, Desenvolvimento e Democracia na América Latina. In: Revista Praia Vermelha, Rio de Janeiro: UFRJ, n.º 11, 2005, p. 02.

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simultaneamente individual e social, passiva – como condição legal de proteção de direitos à igualdade e à diferença – e ativa – como prática desejante participativa e deliberativa nas decisões comuns -, cujo exercício abrange espaços locais, nacionais, transnacionais e global, de modo tal que assegure aos cidadãos a condição de membro pleno das comunidades políticas às quais pertencem (sejam elas infra-estatais, estatais ou supra-estatais).

Hoje, a construção de uma cidadania plena exige um equilíbrio entre os

dois espaços – o público e o privado – pois o predomínio excessivo de um pólo

pode inviabilizar o outro.

VIEIRA e BREDARIOL158 afirmam, então, que:

A prática da cidadania depende de fato da reativação da esfera pública onde indivíduos podem agir coletivamente e se empenhar em deliberações comuns sobre todos os assuntos, que afetam a comunidade política. Em segundo lugar, a prática da cidadania é essencial para a constituição da identidade política baseada em valores de solidariedade, autonomia e do reconhecimento da diferença. Cidadania participativa é também essencial para obtenção da ação política efetiva, desde que ela habilite cada indivíduo para ter algum impacto nas decisões que afetam o bem-estar da comunidade.(...) Amartya Sen fala da importância do “cidadão ecológico”159que, movido

por uma sensibilidade social e por uma reflexão ponderada, amplia suas

responsabilidades cívicas para lidar com os desafios ambientais.

E a cidadania ambiental é um importante pilar da sustentabilidade

socioambiental, compatível com a proposta de implantação do Estado de Direito

Ambiental, pois cumpre duas funções: a de advertência quanto ao déficit

democrático e a de compromisso em relação à constituição de uma nova

cidadania, não meramente formal, mas real e efetiva.

Para que esta cidadania ambiental se concretize, é preciso, pois, construir

uma nova racionalidade ambiental ou ecológica que fundamente o conceito de

cidadania ambiental, a partir de uma retomada do sentido republicano e pluralista

de uma sociedade. Esta nova racionalidade exige a participação efetiva e

compartilhada dos sujeitos políticos potencialmente afetados pelas decisões, não

só na fiscalização do procedimento como na própria formação da vontade

decisória. Assim, não é satisfatória a mera garantia de intervenção dos sujeitos

políticos no procedimento, mas, ao revés, devem ser criadas as condições para que

158 VIEIRA, Lizt. BREDARIOL, Celso. Cidadania e política ambiental. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 29. 159 DOBSON, Andrew. Citizenship and the Environment. Oxford. apud SEN, Amartya. “Por que é necessário preservar a coruja-pintada”, Folha de São Paulo, 13.03.2004, “Caderno Mais”, p. 18.

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o cidadão possa se posicionar como agente de colaboração na prestação de

informações, dados e elementos necessários à formulação da decisão.160

Esta cidadania ambiental, que difere substancialmente da cidadania

decorrente do modelo de democracia representativa, somente pode tornar-se

possível na medida em que se estabelece a conexão entre democracia e ecologia,

ou seja, em que se fixam as bases de uma verdadeira democracia ambiental, na

qual os direitos ambientais estejam em uma posição de interdependência com os

direitos políticos (ambos como parte integrante dos direitos relativos à cidadania)

e em que os direitos e interesses das gerações futuras sejam preservados através da

“reserva da decisão à participação de seus legítimos interessados”161.

Tal concepção de cidadania exige, por outro lado, uma cooperação entre

Estados e cidadãos e, ainda, a mudança de paradigma em relação à própria

conduta do poder público, menos capitalista e com enfoque predominante na

esfera social, produzindo transformações no modo de produção, do conhecimento

científico e de consumo, de forma a incentivar um consumo sustentável, solidário

e consciente com relação às futuras gerações.162

Importante remarcar a necessidade de superação do modelo de democracia

representativa, em que a população se manifesta somente através de seus

representantes, para que se possa implantar a verdadeira democracia ambiental.

No Estado de Direito Ambiental, é preciso haver, por conseguinte, uma cidadania

ativa, permanente e direta - sem intermediários. Para isso impõe-se, em

contrapartida, a abertura de canais de comunicação entre poder público e

sociedade, possibilitando o diálogo constante entre estes e outros atores sociais

envolvidos também na questão energética.

No Estado de Direito Ambiental, não é possível ignorar ( ou minimizar )

os interesses coletivos ou de grupos, pois isto seria “desconhecer a natureza

humana e lutar contra o inevitável”163, cabendo ao Estado, legítimo representante

do interesse público latu sensu, aceitar a coexistência de interesses privados e

160 LEITE, José Rubens Morato. AYALA, Patrick de Araújo. Direito Ambiental na Sociedade de Risco. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, pp. 311-312. 161 Ibid. p. 316. 162 Ibid. pp. 321-322. 163 MANCUSO, Rodolfo Camargo. Interesses Difusos. Conceito e legitimação para agir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 43.

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coletivos na gestão da coisa pública, de maneira que todos esses interesses

interajam e se influenciem mutuamente.164

Nesse ponto, a Constituição Brasileira parece ter atendido a este reclamo

jurídico-sociológico, quando acenou para uma democracia participativa (e não

apenas representativa) permitindo aos modernos grupos intermediários

(sindicatos, associações, órgãos de classe) integrarem-se na gestão da coisa

pública, atuando tanto nas instâncias primárias (cf. o disposto nos arts. 1º, V e

parágrafo único; 205, 216, parágrafo 1º, e 225 todos da CF/88), como na via

judicial, pelo ajuizamento de ações coletivas, em que se tem um alargamento da

legitimação ativa para a defesa dos interesses transindividuais (arts. 5º, XXI e

LXX; 103, VII, VIII e IX, 129, III e parágrafo 1º da CF/88).165

O reconhecimento de um conceito de cidadania ampliado pressupõe, antes,

um conceito mais amplo também de legitimidade democrática. Nesse sentido,

Pierre Rosanvallon166 propõe, na obra La légitimité démocratique. Impartialité,

réflexivité, proximité, uma legitimidade tal que abranja novas formas de

manifestações democráticas na sociedade ocidental contemporânea, para além da

legitimidade eleitoral representativa - baseadas nos valores da imparcialidade, da

pluralidade, da compaixão ou da proximidade.

164 Ibid. p. 43. 165 Ibid. p. 43. 166 Pierre Rosanvallon é historiador e intelectual francês, nascido em 1948. Professor do Collège de France (titular da cadeira de Historia moderna e contemporânea da política). É diretor de estudos na École des hautes études en sciences sociales, e também presidente do ateliê intelectual international La République des idées. Seus trabalhos de historia e filosofia política são desenvolvidos em três direções: a historia intelectual da democracia de longa duração, com as obras Le Sacre du citoyen. Histoire du suffrage universel en France, 1992 ; Le Peuple introuvable. Histoire de la représentation démocratique en France, 1998 ; La Démocratie inachevée. Histoire de la souveraineté du peuple en France, 2000; a historia do modelo político francês e das relações entre o Estado e a sociedade com as obras Le Moment Guizot, 1985 ; L'État en France de 1789 à nos jours, 1990 ; Le Modèle politique français. La société civile contre le jacobinisme de 1789 à nos jours, 2004; e o problema da justiça social no mundo contemporâneo, com as seguintes publicações: La Crise de l'État-providence, 1981 ; La nouvelle question sociale. Repenser l'État-providence, 1995 ; Le nouvel âge des inégalités, (en collaboration avec J. P. Fitoussi), 1996. Seus trabalhos atuais são sobre as transformações da democracia contemporânea, em uma perspectiva comparada com os espaços não-ocidentais. Informações obtidas na pagina do autor junto acessível em http://www.college-de-france.fr/default/EN/all/his_pol/biographie.htm. Ultimo acesso em 26 de dezembro de 2008.

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4.3.2.1

A legitimidade democrática segundo Pierre Rosanvallon:

Para que possamos melhor entender a dinâmica das manifestações

democráticas no Estado de Direito contemporâneo, antes é preciso admitir que ele

é construído sobre as bases de uma “generalidade social”167 essencialmente plural,

que sugere que há inúmeras maneiras de agir ou de falar em nome da sociedade e

de ser representativo.

Isto significa dizer que o processo eleitoral e a legitimidade através das

urnas são relativizados e assumem uma função mais reduzida dentro do processo

democrático como um todo, já que as eleições têm o papel de validar um modo de

designação de governantes.

Trata-se de uma legitimação a priori dos políticos eleitos que, para se

consolidar posteriormente, precisa atender a outros valores, expectativas e

práticas. As eleições não garantem mais que um governo esteja a serviço do

interesse geral que se espera ver realizado. E, dentro desse contexto, a noção de

povo deve ser tida não mais como uma massa homogênea de indivíduos, mas

como uma “sucessão de histórias singulares” - uma “soma de situações

específicas”. Assim, a compreensão da sociedade contemporânea se faz, cada vez

mais, a partir da idéia da minoria, pois esta não é mais a “pequena parte”, mas

uma das múltiplas expressões fragmentadas da totalidade social. A noção de povo,

assim reconfigurada, passa a ser também o “plural de minoria”168.

Portanto, um poder, para ser considerado como plenamente democrático,

deve ser submetido a testes de controle e de validação, instrumentos concorrentes

e complementares ao da expressão através das urnas, de natureza majoritária.

Por outro lado, no contexto contemporâneo, o poder executivo perde

legitimidade, muito em função da retórica neoliberal que retira a respeitabilidade

do Estado, priorizando o mercado como novo instituidor do bem estar coletivo.169

É possível, então, identificar diferentes maneiras de expressão da

“generalidade social”: 1) uma generalidade positiva, manifestada não só pelo

sufrágio universal como também por meio dos serviços públicos; 2) uma

167 ROSANVALLON, Pierre. La légitimité démocratique. Impartialité, reflexivité, proximité. Paris, Seul, 2008, p. 13. 168 Ibid. p. 14. 169 Ibid. Pp. 14 e 15.

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“generalidade negativa” (assim nominada por não ser possível a ninguém dela se

apropriar), caracterizada por uma identificação das particularidades sociais e pela

distância que deve haver entre as várias partes envolvidas em uma questão - o fato

de ser independente e de manter a distância e o equilíbrio define a posição das

instituições170 e as distingue do poder eleito -; 3) a “géneralité de

démultiplication”171, uma generalidade que se realiza por meio indireto, através da

pluralização das expressões da soberania social - para corrigir as imperfeições

decorrentes da adoção do regime eleitoral representativo, em que a vontade geral

de uma maioria de eleitores predomina sobre as minorias; e 4) a “generalidade de

atenção à particularidade”172, em que se leva em conta a multiplicidade de

singularidades sociais, com o reconhecimento das particularidades dos indivíduos,

para que se possa ter uma maior abrangência possível das situações existentes.

A “géneralité de démultiplication” se verifica, de uma forma concentrada,

na atuação de instituições como as cortes constitucionais ( que exercem o

chamado controle de constitucionalidade) e, de uma maneira mais disseminada,

pela própria sociedade.

Por via de conseqüência, três novas figuras de legitimidade começam a se

desenhar, cada uma associada à evidência de um dos aspectos da generalidade

social: a legitimidade da imparcialidade (ligada à evidência de uma generalidade

negativa); a legitimidade da reflexividade (associada à generalidade de

démultiplication) e a legitimidade da proximidade (ligada à generalidade da

atenção à particularidade). Esta revolução da legitimidade participa de um

movimento global de descentralização das democracias. Coloca nesse terreno a

perda de centralidade da expressão eleitoral já observada dentro da ordem da

atividade cidadã. O poder político deve-se dobrar a este triplo imperativo.173

170 Segundo o autor francês, as instituições dotadas no sistema francês de tais características seriam as chamadas Autorités de Surveillance ou de Régulation. ROSANVALLON, Pierre. La legitimité democratique. Impartialité, reflexivité, proximité. Paris, Seul, 2008, p. 17. 171 A expressão démultiplication não possui correspondente na língua portuguesa, mas o seu sentido é de aumento da potência de qualquer coisa pela multiplicação dos meios utilizados. Cf. Dicionário Le Petit Larousse Illustré,, 2005, verbertes démultiplication e démultiplier. No contexto acima, significa dizer que a pluralização das expressões de soberania social se vê potencializada pela atuação tanto de certas instituições como da própria sociedade. 172 ROSANVALLON, Pierre. La légitimité démocratique. Impartialité, reflexivité, proximité. Paris, Seul, 2008, pp. 17 e 18. No texto original, a expressão “generalidade de atenção à particularidade” é encontrada da seguinte forma: généralité d’attention à la particularité”. 173 Ibid. p. 18.

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Essas novas figuras refogem à concepção clássica, bastante presente no

século XX (até meados da década de 80), que distingue a legitimidade derivada do

reconhecimento social de um poder político (procedimental) e a legitimidade

como adequação a uma norma e a valores (substancial).174As mencionadas

legitimidades de imparcialidade, de reflexividade e de proximidade, por seu

caráter híbrido superpõem-se às duas dimensões. Derivam das características das

instituições, de sua capacidade de apreender os valores e princípios, mas, ao

mesmo tempo, ficam dependentes da necessidade de serem socialmente

percebidas como tal.

Vão, em decorrência, complementando-se por este sistema para definir de

forma “mais exigente o ideal democrático”.175

A legitimidade, como a confiança entre indivíduos, é uma instituição

invisível. Ela permite o estabelecimento sólido da relação entre governantes e

governados, tecendo ligações mais construtivas entre o poder e a sociedade, sua

função mais exigente. Ela contribui para dar corpo àquilo que faz a essência

mesmo da democracia: a apropriação social dos poderes. A legitimidade

democrática produz um movimento de adesão dos cidadãos, indissociável de um

sentimento de valorização deles mesmos. Condiciona a eficácia da ação pública e

determina, ao mesmo tempo, a maneira como se apreende a qualidade

democrática do país em que se vive. Ela é uma instituição invisível e um

indicador sensível das atenções políticas da sociedade e da maneira como isto é

respondido. Como resultado, uma definição mais ampla e mais exigente de

legitimidade exige um aprofundamento das democracias.176

Um duplo dualismo se forma na complexidade da noção de democracia na

sociedade contemporânea: um dualismo entre as instituições eleitorais

representativas e as da democracia indireta177, estruturando a democracia como

174 Ibid. pp. 13 e 14. 175 ROSANVALLON, Pierre. La legitimité democratique. Impartialité, reflexivité, proximité. Paris, Seul, 2008, p. 19. 176 Ibid. p. 21. 177 A democracia indireta, nos termos do pensamento do autor citado, forma-se, paralelamente, à democracia eleitoral representativa, através da atuação de organismos da estrutura do sistema administrativo Francês, as chamadas “autoridades independentes de controle e regulação” (no original autorités independantes de surveillance et regulatio ) e também das cortes constitucionais. No sistema da administração pública francesa foram criadas no final dos anos 70 as chamadas autoridades administrativas independentes, refletindo a adoção de um modelo de descentralização da administração pública que estava sendo implantado. O objetivo da nova sistemática era dotar a administração pública de organismos céleres e técnicos para permitir o desenvolvimento

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regime, de um lado; e de outro, o dualismo existente entre o universo dos

procedimentos e das condutas e aquele das decisões, formando a chamada

democracia como governo. Estes dois, em conjunto, superpõem-se à tensão entre

democracia eleitoral e contra-democracia, organizando a esfera da atividade dos

cidadãos. Este conjunto forma, assim, a nova ordem democrática

contemporânea.178

Dentro deste novo panorama, apresentado pelo autor francês, importa, de

forma específica para o desenvolvimento da presente Dissertação, trazer a

abordagem das três formas de legitimidade democrática - pela imparcialidade,

pela reflexividade e pela proximidade -, que demonstram que a cidadania

ambiental, de caráter mais ampliado (e que se busca ver efetivada) está em estreita

consonância com este aporte teórico. Embora não seja possível fazer uma

correlação adequada e clara entre a atuação das instituições francesas e as

brasileiras, (e também não configura objeto deste estudo) torna-se importante,

para abalizar, mais adequadamente, a idéia de cidadania ambiental e democracia

no Estado de Direito Ambiental, trazer as noções da doutrina francesa acima

referidas, que contextualizam a nova ordem democrática contemporânea,

indicando um novo caminho a ser seguido.

A - A legitimidade por imparcialidade:

Além da característica de imparcialidade exigida das autoridades

independentes, há no mundo, atualmente, uma demanda social cada vez mais

exigente quanto a uma sociedade imparcial, preocupada em tomar distância das

posições partidárias, dos interesses particulares e na qual os indivíduos não sejam

prejulgados pelo seu passado. Esta imparcialidade recusa as posições fechadas,

econômico do Estado face às exigências internacionais. Elas equivalem às chamadas Non-departemental Public Bodies (Reino Unido) ou Independent Regulatory Agencies (Estados Unidos). Note-se que a razão do legislador francês para a criação das AAI se assemelha com as justificativas dadas para instituir no Brasil as agências reguladoras. Assim, a idéia principal é de fornecer tratamento mais adequado a certas matérias estruturais técnicas e politicamente sensíveis, por meio de entidades que não estejam submetidas à hierarquia clássica tradicional da Administração direta e que tenham uma grande autonomia de funcionamento e de decisão. Vide maiores detalhes In DIREITO, Carlos Gustavo. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 113-119, 2007. Acessível em http://www.ugf.br/files/editais/Vol%2013%20n2-art4.pdf. Ultimo acesso em 26 de dezembro de 2008. 178 Ibid. pp. 26-30.

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180

esforça-se para superar as deficiências, busca dar consistência ao projeto de uma

igualdade dos possíveis e adquire, assim, uma significação política e democrática.

Ela é considerada, assim, como um promessa aberta, como “histórica”, o que

redefine a liberdade como um “direito permanente à liberdade de escolha”179.

Esta abordagem propriamente política da imparcialidade possui um

conteúdo diretamente democrático, pois dá sentido e forma à antiga noção de

sociedade democrática. A idéia de igualdade de condições - entre cidadãos,

presente no estado democrático de direito - remete à circunstância de não estar

fechado quanto ao destino ou, à possibilidade de nele mudar determinadas

condições. Mas a característica mais importante da sociedade imparcial é que ela

consiste também em redefinir o sentido mesmo da ação social como intervenção

preventiva, evitando que as desigualdades de capacidade ocorram, garantindo

instrumentos para o futuro dos indivíduos.

A referida categoria se impõe na ordem política como o vetor de uma

pretensão à formação de um espaço público mais fundamentado e mais

transparente. Ela é uma das chaves do novo pensamento social que exprime uma

profunda mutação na forma de apreender a emancipação e na vontade de

transformar o mundo. É possível, portanto, falar-se em uma perspectiva mais

abrangente de imparcialidade como verdadeira política.180

É essa imparcialidade que precisa ditar as relações entre poder público,

setor privado e sociedade civil na discussão das políticas, programas e planos que

tenham grande repercussão no destino dos cidadãos, sejam eles maioria ou

minoria. Por via de conseqüência, deve a imparcialidade também guiar a tomada

de decisões no plano político-administrativo para a implantação de políticas

energéticas que envolvam a implantação de usinas hidrelétricas.

179Ibid. p. 169. 180 Ibid. pp. 171-172. No original: “La categorie d’impartialité n’est donc desormais plus seulement refereé à l’ordre judiciaire. Elle s’est imposée dans l’ordre politique comme le vecteur d’une aspiration à la formation d’un space public plus argumenté et plus transparent. Elle est aussi dorénavant l’une des clefs d’une nouvelle pensée du social. Bien loin de correspondre restrictivemente à une < juridicisation du monde >, la montée em puissance de la demande d’impartialité exprime une profonde mutation dans la façon d’apprehender l’emancipation. Elle est pour cela au coeur de la formation d’une nouvelle culture indissociablement politique et sociale. Cette impartialité s’inscrit dans un souci du monde et dans une volonté de lê transformer. Il est possible de parler dans cette perspective elargie de l’impartialité comme véritable politique.”

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181

B - A legitimidade por reflexividade

A legitimidade por reflexividade está, como já mencionado antes,

associada à generalidade de démultiplication. A reflexividade é considerada,

assim, como uma qualidade da democracia que consiste em corrigir a

incompletude da democracia eleitoral representativa, instaurando mecanismos de

correção e de compensação da falsidade dos três pressupostos sobre os quais

repousa esta última: como a identificação da escolha eleitoral à expressão da

vontade geral, a assimilação dos eleitores pelo povo e a inscrição durável da

atividade política e parlamentar na continuidade do momento eleitoral. Estes são,

então, os contornos da généralité de démultiplication. Busca-se, por meio dela,

multiplicar as abordagens particulares, implementando uma estratégia de

pluralização da generalidade social.181 Devem, portanto, ser levadas em conta as

expressões plurais do bem comum. Neste sentido, é preciso considerar uma

complicação das formas e dos sujeitos da democracia.

A soberania, como “forma política adequada de uma expressão bem fiel do

povo, porque funcionalmente e materialmente potencializada”182, somente se

manifesta como uma potência em três espécies distintas: a do povo eleitoral, a do

povo social e a do povo princípio183, cada um com uma dimensão limitada de

atuação.

Assim, a vontade geral, manifestada pelo povo, nessas diferentes vertentes,

caracteriza-se como duplamente complexa. Longe de ser um dado preexistente à

atividade política, ela resulta de um processo de interação contínua entre o povo e

seus representantes e, por isso, passa a ser redefinida.

Ora, enquanto o chamado “povo eleitoral” se manifesta imediatamente nas

urnas, na divisão de uma maioria e de uma minoria, o social se apresenta como

uma sucessão ininterrupta de minorias, ativas ou passivas, em que estão presentes

as formas de protestos e as iniciativas de toda natureza; ‘”é um povo-fluxo, um

povo-história, um povo-problema”.184 Caracteriza-se com uma força vital, uma

contradição em movimento, sendo seu campo de expressão natural o contra-

democrático.

181 Ibid. pp. 195-196. 182 Ibid. pp. 203-205. 183 Ibid. p. 206. 184 Ibid. p. 207

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182

Já o povo princípio não é de ordem substancial: sustenta-se na igualdade

includente de todos e se manifesta na proteção dos direitos fundamentais. É nos

direitos fundamentais que se ligam o todo e as partes. O sujeito de direito

materializa-se como a figura representativa do povo-princípio e sensível a todos

os que são discriminados, excluídos e esquecidos. É ele que dá visibilidade à idéia

de comunidade política.

A redefinição da vontade geral passa pela “apreensão aritmética” conferida

pelo povo eleitoral, fazendo com que a generalidade seja apenas um número. A

seu turno, o povo princípio lhe dá consistência sob o modo de uma igualdade

includente, fundada na possibilidade de cada indivíduo ser plenamente

considerado na sua existência e dignidade. Aqui, a generalidade significa o

acolhimento de todos, que corresponde a um trabalho da sociedade sobre ela

mesma, para fazer reduzir tudo o que discrimina e o que exclui.

Outro aspecto a ser ressaltado quanto à caracterização da vontade geral é

que ela não pode ser considerada de uma forma imediatista. A vontade geral

resulta de uma construção do tempo, do fruto de uma experiência, da expressão de

uma projeção do ser. Ela é um dado da existência e não uma categoria imediata da

ação. Assim, deve-se insistir na pluralização da temporalidade da democracia,

articulando e confrontando os vários tempos – tempo da memória, da constituição,

tempo limitado pelo mandato parlamentar, tempo da opinião – de forma a dar

consistência ao ideal democrático.

A pluralização do tempo da política configura uma segunda dimensão

essencial da formação de uma généralité de démulitplication.185

Importante ressaltar que a reflexividade se manifesta de uma maneira

generalizada através da atuação das numerosas organizações da sociedade civil no

momento em que denunciam o descompasso existente entre a realidade e o ideal

de democracia. Respalda também movimentos sociais que reintroduzem

permanentemente as figuras do povo princípio e do povo social dentro do jogo

político. Há, ainda, as múltiplas expressões de uma “representação de

conhecimento”, de ordem mais científica, que contribuem para este movimento de

reflexividade no seio da sociedade. Esta concerne aos experts que devem, através

de seu conhecimento, proporcionar às sociedades contemporâneas uma

185 Ibid. p. 211.

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183

compreensão mais adequada das decisões públicas, questionando a vantagem da

ação dos governantes. 186

No entanto, essa perspectiva somente atende ao ideal democrático se ela é

inserida em uma visão mais abrangente em relação à participação cidadã e

deliberação pública. A exigência de reflexividade não pode se limitar a uma

intervenção maior de peritos. Ela deve levar em conta, também, as incertezas que

contornam a formulação mesma de sua expertise. Ela implica, sobretudo, que

estas expertises saiam do lugar fechado de sua produção. Daí a necessidade de se

multiplicarem os fóruns híbridos de discussão entre os cientistas e cidadãos para

debater as questões essenciais e incentivar novos tipos de expressão cidadã, por

meio do desenvolvimento de agências públicas e “cidadãos de avaliação” que

possam analisar as leis e as políticas públicas.187

C - A legitimidade por proximidade:

Um terceiro ponto que merece ser destacado diz respeito à questão da

proximidade que deve haver entre os governantes e governados. Os cidadãos são

cada vez mais sensíveis ao comportamento dos governantes. Eles desejam ser

ouvidos e também que seu ponto de vista seja considerado e validado. Esperam

que o poder seja atento à suas dificuldades, estando verdadeiramente preocupado

com o modo como vivem as pessoas comuns.

Sempre associada à idéia de participação, articulada com uma valorização

do local, a proximidade é o sintoma de uma preocupação crescente havida entre os

cidadãos. Demonstra que a linguagem e os conceitos políticos usuais não são mais

tidos como adequados para exprimir as demandas de tais cidadãos.

Sob a variável de posição, ser próximo define uma postura do poder em

relação à sociedade, manifestando-se, por intermédio da presença, da atenção, da

empatia, da compaixão, mesclando dados físicos e elementos psicológicos. Sob a

ótica da interação, a proximidade corresponde a uma qualidade da relação entre

governados e governantes, sendo que cabe a estes últimos a conduta de ser

acessível, receptivo, estar em situação de escuta. Mas é também ser reativo,

aceitando se explicar sempre que demandado, sem usar de subterfúgios; é estar

186 Ibid. p. 237. 187 Ibid. pp. 236-238.

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184

preparado para se expor e agir de maneira transparente sob o olhar do público; é

um retorno dado à sociedade sobre a possibilidade de entender sua voz, de levá-la

em consideração. Já sob o aspecto da intervenção, a proximidade evoca uma

atenção à particularidade de cada situação. Ser próximo significa agir levando em

conta a diversidade dos contextos, preferir o arranjo informal à aplicação

mecânica da lei.188

A proximidade, em todas estas vertentes, evoca o reconhecimento de todas

as singularidades presentes na sociedade. A conduta - revelada na aproximação

física e solicitude do governante -, após o pleito eleitoral, oferece consistência

imediata e efetiva à atuação deste, indicando que os governantes compreendem

como vivem os governados.

Portanto, a forma de manifestação popular centralizada no depósito do

voto nas urnas, já não se mostra mais suficiente. Os cidadãos assumem a direção

de um “processo permanente de expressão e de reação”189. Sua participação se

constitui, de outra parte, por um modo de atuação “contra-democrático” de

controle, veto e julgamento e, também, por uma demanda de informações,

constrangendo o poder a se explicar e a justificar sua ação, assumindo o papel de

uma testemunha sempre atenta e pronta para contestar ou validar as decisões

tomadas.

Essas formas difusas de participação possuem basicamente duas funções

políticas: a de um trabalho de justificação que se realiza no confronto das

explicações dadas pelo poder em relação às intervenções da sociedade e a de uma

troca de informações entre poder e sociedade, o que encurta a distância entre as

duas instâncias, fazendo com que os cidadãos se sintam ouvidos e que a sociedade

seja menos imprevisível para os governantes. Esta dinâmica informal tem um

efeito positivo, de natureza não só cognitiva como também psicológica.190

Estes dois processos interativos - trabalho de justificação e troca de

informações - desenham um relação muito mais forte, densa e permanente que

aquela que é estabelecida em um mandato. Uma certa apropriação social do poder

se opera pela exigência de justificação do próprio poder e pela troca de

informações, aproximando-o este da sociedade. Por outro lado, o cidadão se sente

188 Ibid. pp. 268-269. 189 Ibid. p. 328. 190 Ibid. pp. 329 e 330.

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185

igualmente mais forte quando ele compreende melhor o mundo, os desafios do

momento, ou seja: um poder onde os objetivos são claros, mais apropriáveis, é

menos arrogante, mais transparente. Quando os cidadãos se sentem mais

engajados no círculo de informações e de conhecimento, eles estabelecem uma

nova relação com os governantes.

Em decorrência, uma decisão pública somente será legitima se ela tiver,

antes, sido discutida, testada e preparada em um quadro público de tal natureza.

4.3.2.2

A concretização da cidadania ambiental fora dos limites da

democracia representativa.

Como já dito anteriormente, nosso ordenamento jurídico, especialmente na

esfera de direito ambiental, previu a possibilidade do exercício de uma cidadania

ambiental, com legítimos e ampliados poderes de atuação, que não simplesmente

através de seus representantes eleitorais, na busca da preservação ambiental.

De acordo com a doutrina acima referenciada, essas outras formas de

legitimidade democrática não se restringem, no entanto, à esfera ambiental. Cabe

em todo (e qualquer) processo decisório que importe na tomada de providências

pelo poder público que afetem substancialmente o destino da sociedade.

As formas de legitimidade caracterizadas como de imparcialidade, de

reflexividade e de proximidade dão ensejo à formação, não somente de uma

cidadania cada vez mais forte, firme e esclarecida, mas, de outra parte, a um poder

político mais acessível, aberto ao diálogo, sujeito a interferências através das

manifestações sociais, imparcial, mais presente e menos distante da sociedade.

Assim, para que programas, planos e políticas de governo, especialmente

na área de energia sejam eficientes, de fato, (incluindo-se aí a discussão acerca da

implantação de novos empreendimentos hidrelétricos) faz-se necessário que o

poder público seja imparcial, tomando distância de posições já consolidadas a

respeito da prevalência da hidroeletricidade como matriz energética. Deve levar

em conta, também, os interesses de determinados grupos, reabrindo a discussão,

para evitar futuros erros, como os já acontecidos no passado191 e, ainda, as

191 A construção da hidrelétrica de Balbina é apenas um exemplo.

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186

injustiças sociais que vem ocorrendo com a remoção compulsória de populações

ribeirinhas afetadas por tais empreendimentos.

Ademais, em tais discussões, devem-se multiplicar as abordagens

particulares e não manter a posição hegemônica no sentido de priorizar a

implantação de usinas hidrelétricas, sem que interesses - configurados como

minoritários - sejam considerados. A idéia é implementar uma estratégia de

pluralização da generalidade social, caracterizando, assim, a chamada sociedade

reflexiva, que deve levar em conta as expressões plurais do bem comum.

A referida característica da reflexividade, no contexto brasileiro, revela-se

pela atuação dos movimentos sociais – Movimento dos Atingidos por Barragens-

MAB, Movimento dos Sem Terra – MST, Comissão Pastoral da Terra – CPT

(entre outros), além de organizações não governamentais, de associações e de

comissões formadas por membros da academia e de outros segmentos da

sociedade. São eles os responsáveis por fazer o contraponto, questionar as

decisões tomadas, argumentar e criticar o poder público e exigir a apresentação de

argumentos transparentes e convincentes para justificar a conduta dos

governantes.

Em uma sociedade reflexiva, também é relevante a discussão das decisões

ambientais em relação a gerações futuras, em respeito ao princípio da

solidariedade entre gerações. Neste ponto, fundamental é o aperfeiçoamento do

conhecimento sobre as questões complexas que afetem as presentes e futuras

gerações além da maior publicidade em torno das informações obtidas. Deve-se

incentivar, pois, a formação de fóruns híbridos, interdisciplinares e em matéria

ambiental, com a presença de acadêmicos e de cidadãos (como os fóruns sociais,

em nível local), a fim de exigir do poder público uma prestação de contas

antecipada e uma melhor argumentação acerca das escolhas públicas realizadas,

com a apresentação de diversas hipóteses sobre as conseqüências futuras.

Assim, para que providências sejam tomadas em relação ao distanciamento

existente entre os tomadores de decisões político-administrativas e os cidadãos,

nos processos de implantação de barragens hidrelétricas, o requisito da

proximidade, em todas as suas vertentes, é de fundamental observância. Através

da proximidade, o poder público demonstra necessário o reconhecimento de todas

as singularidades presentes na sociedade, compreendendo o modo como vivem os

cidadãos e a forma como cada decisão afetará sua vida. Os órgãos responsáveis

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187

pelo licenciamento ambiental precisam revelar, ainda, a plena acessibilidade,

abertura, receptividade ao outro. Esta proximidade pressupõe uma certa

imediatidade na relação e uma ausência de formalismo. Ao mesmo tempo, o poder

político instituidor dos programas, planos e políticas que envolvam a esfera

ambiental e energética não pode ser dito próximo se ele 1) mantiver-se isolado e

fechado em suas prerrogativas e competências; 2) não aceitar a discussão e a

crítica; 3) não solicitar a opinião pública; e 4) não instaurar um estilo de relação

mais direto com os cidadãos.

A proximidade também deve ser considerada sob o ponto de vista do

cidadão. Para a formação de um ser social mais próximo das questões ambientais,

este deve buscar a participação tanto individual, pelos diversos canais, como

através da participação em fóruns de discussão, associações e outros organismos

de natureza coletiva e social, em um processo permanente de expressão e reação,

imprimindo manifestações de demanda por informações e de constricção do poder

a se explicar e a justificar sua ação.

Não deve o cidadão ficar restrito à participação em audiências públicas, no

processo de licenciamento ambiental, pois tal atuação - como ato isolado e único -

não tem o condão de tornar efetiva a proximidade.

Essas formas difusas de participação cumprem a função de exigir a

justificação das decisões tomadas pela administração pública e, também, de trocar

informações entre poder e sociedade, o que encurta a distância entre eles,

tornando a relação mais informal: certa apropriação social do poder opera-se neste

esquema, ora mais transparente, acessível e aberta. Em contrapartida, forma-se um

cidadão mais forte e mais participativo, por compreender melhor as questões

complexas e os desafios do momento.

Por conseguinte, qualquer decisão pública a ser tomada quanto à

implantação de hidrelétricas somente será legítima se observados tais requisitos de

legitimidade, que incluem discussão, testes e preparação.

Para finalizar, a cidadania ambiental necessita além de uma postura

diferenciada por parte dos cidadãos, mais reflexiva, participativa e próxima,

também de uma conduta por parte do poder público que priorize a imparcialidade,

a abertura à reflexividade da sociedade e a proximidade para com os cidadãos.

Sem essas duas condições, o seu pleno exercício resta prejudicado.

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188

4.4

Instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente.

4.4.1

O Licenciamento ambiental sua abrangência e procedimento.

Neste tópico, buscaremos refletir sobre a articulação dos instrumentos

previstos na legislação ambiental, tais como o licenciamento, o estudo de impacto

ambiental, a avaliação de impacto ambiental, bem como sua utilização na

implantação das hidrelétricas, visando demonstrar sua relevância para a aplicação

do planejamento estratégico ambiental.

O licenciamento e a avaliação de impacto ambiental são instrumentos

previstos na legislação brasileira de importância induvidosa no desenvolvimento

das políticas públicas ambientais e, por outro lado, são também mecanismos

eficazes para a concretização do desenvolvimento sustentável.

Ora, embora não tenha havido referência expressa no texto constitucional

acerca do licenciamento ambiental, podemos inferir, por meio de interpretação

sistemática (entre os princípios e as regras constitucionais em matéria ambiental),

que tal instituto tem plena consagração constitucional.

Essa afirmação se justifica na medida em que, em um Estado de Direito

Ambiental, a atuação do poder público se caracteriza por uma necessidade de

intervenção na economia. O objetivo será limitar as atividades econômicas

potencialmente causadoras de significativa degradação ambiental, com vistas à

obtenção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado e uma sadia qualidade

de vida para as presentes e futuras gerações.

Aliás, o licenciamento ambiental, apontado por muitos doutrinadores como

o mais importante instrumento de gestão ambiental utilizado pelo poder

público192, contribui para a efetividade dos valores consagrados

constitucionalmente na referida esfera, especialmente os constantes do art. 225 da

CF/88.

Importante ressaltar que o licenciamento guarda relação – direta ou

indireta – com o estabelecido nos incisos do parágrafo único do art. 225 da CF/88,

192 A afirmação consta de FARIAS, Talden. Licenciamento Ambiental. Aspectos teóricos e práticos. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 36.

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189

pois constitui mecanismo fundamental para o controle preventivo das atividades

econômicas potencialmente causadoras de impactos ambientais.

Por outro lado, a expressa menção constitucional à necessidade de estudo

prévio de impacto ambiental para a instalação de obra ou atividade potencialmente

capaz de gerar significativa degradação do ambiente (art. 225, parágrafo 1º, inciso

IV) é a manifestação cabal de que o legislador constituinte voltou sua atenção para

o licenciamento, já que o EIA costuma ser elaborado dentro de tal procedimento.

A referência feita à defesa do meio ambiente, como princípio da ordem

econômica, condicionando o exercício de atividade econômica à observância

deste (art. 170,, inciso IV da CF/88) - e também aos casos expressos em lei (art.

170, parágrafo único da CF/88) - abre espaço para a aplicação da Lei 6938/81 que

previu o licenciamento e, de igual forma, coroa a afirmação acima no sentido do

respaldo constitucional desse instrumento.

Ora, o licenciamento ambiental193 é obrigatório para as atividades

potencial (ou efetivamente) causadoras de impacto ambiental, desde 1981,

conforme dicção do art. 9º, inciso IV e art. 10 da Lei 6938/81.

Aliás, o não cumprimento da referida exigência para o estabelecimento de

obra ou serviço potencialmente poluidor, quando a licença ou autorização for

necessária, constitui crime previsto no art. 60 da Lei 9605/98.

Além disso, a Resolução CONAMA 237/97, que dispõe expressamente

sobre o licenciamento ambiental, estabeleceu que localização, construção,

instalação, ampliação, modificação e operação de empreendimentos e atividades

utilizadoras de recursos ambientais consideradas efetiva ou potencialmente

193 Sobre o assunto, foi editada Medida Provisória n°. 366/07, convertida na Lei Federal 11.516/07, que introduziu mudanças relacionadas à responsabilidade técnica, administrativa e judicial no que refere à emissão de licenças ambientais. A referida MP dispõe sobre a criação do Instituto Chico Mendes, sob a forma de autarquia vinculada ao MMA, tendo recebido proposta para incluir novo artigo, abordando a responsabilidade técnica, administrativa e judicial sobre o conteúdo de parecer técnico conclusivo visando à emissão de licença ambiental pelo IBAMA. O novo dispositivo tratou da transferência exclusiva dessa responsabilidade para órgão colegiado, no âmbito do próprio IBAMA, o que parecer ser importante medida para despersonalizar pareceres técnicos imprescindíveis à emissão das licenças. Tal medida – que penaliza menos os técnicos e mais o Instituto – será aplicada aos licenciamentos ambientais e estabelecida em regulamento próprio. Outra proposta da MP é incumbir aos órgãos públicos responsáveis pelo licenciamento ambiental nas distintas esferas de governo (federal, estadual e municipal) a tarefa de estabelecerem prazos para manifestação pública, elaboração de pareceres e emissão de licenças ambientais, visando aprimorar o processo de licenciamento. Em 28 de agosto de 2007, a Medida Provisória foi convertida na Lei Federal 11.516. Com efeito, a partir da regulamentação dessa lei, a responsabilidade técnica, administrativa e judicial sobre o conteúdo de parecer técnico conclusivo visando à emissão de licença ambiental prévia por parte do IBAMA será exclusiva de órgão colegiado do IBAMA.

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190

poluidoras - bem como os empreendimentos capazes, sob qualquer forma, de

causar degradação ambiental - dependerão de prévio licenciamento do órgão

ambiental competente, sem prejuízo de outras licenças legalmente exigíveis (art.

2º), tendo previsto no Anexo I da resolução os empreendimentos e as atividades

sujeitas ao licenciamento. (art. 2º, parágrafo 1º).

Dentre as atividades elencadas no referido anexo da resolução CONAMA

237/97 e na Resolução CONAMA 01/86194, que estão sujeitas ao licenciamento

ambiental, encontra-se a construção de barragens hidrelétricas sendo, portanto,

obrigatório o licenciamento de tal empreendimento.

Cumpre ressaltar que, hoje, no Brasil, o licenciamento é composto de uma

seqüência de fases, porém, embora possa ser segmentado, não se deve perder de

vista a noção de seu conjunto e que a etapa anterior sempre condiciona a posterior.

Ele deve ser precedido do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e do respectivo

Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) sempre que a obra ou atividade possa

causar significativo impacto ambiental, conforme estabelecido na Constituição

Federal. O art. 19 do Decreto Federal n° 99.274/90, complementado pela

Resolução CONAMA n° 237/97 ( art. 8º ), estabeleceu o processo de emissão de

licenças195 em três fases, a saber: a) a fase preliminar da licença prévia (LP), onde

194 Art. 2º da Resolução CONAMA 01/86. Dependerá de elaboração de estudo de impacto ambiental e respectivo relatório de impacto ambiental - RIMA, a serem submetidos à aprovação do órgão estadual competente, e do IBAMA e1n caráter supletivo, o licenciamento de atividades modificadoras do meio ambiente, tais como: (...) VII- obras hidráulicas para exploração de recursos hídricos - barragem para fins hidrelétricos, acima de 10MW, de saneamento ou de irrigação, abertura de canais para navegação, drenagem e irrigação, retificação de cursos d'água, abertura de barras e embocaduras, transposição de bacias, diques. ( Art. 2º, inciso VII )

195 A utilização do termo licença ambiental será feita em consonância com o que dispõe a Resolução CONAMA 237/97, que trata do licenciamento ambiental. Não faz parte do presente estudo, a controvérsia sobre a natureza jurídica de tal ato administrativo, se autorização ou licença, assunto este já amplamente debatido na doutrina jurídica, valendo mencionar, todavia, que há autores que defendem ser a licença ambiental uma autorização administrativa, outros que falam em licença administrativa e, por fim, os que sustentam que a licença ambiental constitui uma nova espécie de ato administrativo, com características tanto de autorização quanto de licença. Compartilhamos do entendimento de que a licença ambiental é um ato administrativo próprio, podendo ser vinculado ou discricionário, já que possui características de ambos os institutos. A discricionariedade se vê estampada na medida em que ao decidir sopesando os impactos ambientais positivos e negativos, a distribuição do ônus e benefícios sociais e tantos outros aspectos inerentes ao licenciamento, a decisão está baseada na conveniência do projeto, o que o aproxima mais da autorização neste aspecto. Por outro lado, não há como admitir, sob pena de se criar um quadro de extrema insegurança jurídica, que a licença ambiental, como autorização administrativa, possa ser revogada a qualquer momento. Também não se pode admitir que a preservação ambiental reste prejudicada com a idéia de que, uma vez concedida a licença, esta tenha caráter definitivo, não podendo ser revogada, independentemente das conseqüências ao meio

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são aprovados a localização e concepção do projeto e, também, atestada a sua

viabilidade ambiental; b) a da licença de instalação (LI), em que se autoriza a

instalação do empreendimento de acordo com as especificações dos planos,

programas e projetos aprovados na fase anterior, incluindo as medidas de controle

ambiental; e c) a da licença de operação (LO), em que é finalmente autorizada a

operação do empreendimento.

Como acima mencionado, uma licença está necessariamente vinculada à

emissão da licença anterior, ou seja, a licença de instalação somente poderá ser

deferida caso tenham sido efetivamente cumpridas as condicionantes constantes

da licença prévia.

No entanto, ainda se discute, na doutrina a natureza jurídica do

licenciamento ambiental, entendendo alguns que seria um mero procedimento

administrativo, conforme já descrito pela própria resolução CONAMA; outros,

um processo administrativo, pautado por “alto grau de complexidade e de

litigiosidade”196, necessitando, para tanto, em atenção ao disposto no art. 5º, inciso

LV da CF/88, atender aos princípios do contraditório e ampla defesa. Somos do

entendimento, portanto, que o licenciamento ambiental tenha natureza de

verdadeiro processo administrativo, já que dada à sua grande complexidade,

necessita de ampla participação pública e do implemento do contraditório e ampla

defesa das partes envolvidas e dos interessados, tais como movimentos sociais e

ambientais, Ong’s, associações, sociedades civis e Ministério Público.

Especialmente no tocante ao licenciamento de hidrelétricas, em que questões

extremamente conflituosas são decididas, como as relativas à remoção

compulsória da população, não há como entender de modo diverso197.

Cumpre ressaltar, ainda, que o licenciamento ambiental de

empreendimentos do setor elétrico recebeu disciplina específica através das

resoluções CONAMA 01/86 e 06/87, do art. 225, parágrafo 1º, IV da Constituição

Federal, da Lei n. 6938/81 e do Decreto 99.274/90.

ambiente. Neste sentido, FARIAS, Talden. Licenciamento Ambiental. Aspectos teóricos e práticos. Belo Horizonte: Fórum, 2007, pp. 234-235. 196 FARIAS, Talden. Licenciamento Ambiental. Aspectos teóricos e práticos. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 189. 197 Neste sentido, também MEDAUER, Odete. Direito Administrativo moderno. 12ª Edição revista e atualizada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 171, que na apresentação de uma tipologia dos processos administrativos, classifica o licenciamento ambiental expressamente como processo administrativo de outorga.

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192

Após a crise energética ocorrida em 2001, foram estabelecidas novas

regras para licenciamento ambiental de empreendimentos que objetivavam

reforçar o setor elétrico brasileiro, a fim de permitir maior celeridade ao processo

de licenciamento. Isto posto, editaram-se a Medida Provisória 2198 e a Resolução

CONAMA 279/2001 e, a partir da vigência de tais atos normativos, passam a

existir dois sistemas de licenciamento: um “comum”198, não simplificado, em que

devem ser obedecidas todas as formalidades do processo de licenciamento

previstas na Resolução CONAMA 06/87; e outro, “especial”199 ou simplificado,

para o licenciamento dos empreendimentos do setor elétrico de impacto ambiental

de pequeno porte ou de pequeno potencial de impacto ambiental. Por seu

intermédio, admite-se a dispensa pelo órgão ambiental da realização de

EIA/RIMA e da audiência pública. Neste segundo caso, o EIA/RIMA e a

audiência pública dão lugar ao Relatório Ambiental Simplificado (RAS) e à

Reunião Técnica Informativa, respectivamente, com prazo máximo de sessenta

dias para a tramitação do processo.

Assim, de acordo com o disposto no art. 2º, VI, VII e XI da Resolução

01/86, nas hipóteses de usinas hidrelétricas com potencial acima de 10 MW, o

licenciamento ambiental deverá ser precedido de EIA/RIMA, garantida a

realização de audiência pública.

Em verdade, nessa nova sistemática, não se deve perder de vista os

parâmetros constitucionais para exigência do estudo prévio de impacto ambiental.

Nesse sentido, a Constituição Federal previu a necessidade de se exigir tal estudo,

na instalação de “obra ou atividade potencialmente causadora de significativa

degradação do meio ambiente”200. Por sua vez, as novas regras introduziram novo

conceito, o de “empreendimentos de pequeno potencial de impacto ambiental”,

que produziriam “impacto ambiental de pequeno porte”.

Como se percebe, o texto constitucional não estabeleceu nenhuma

categorização relativa aos impactos ambientais para fins de realização do

EIA/RIMA. Portanto, seria obrigatória a realização do EIA/RIMA em todos os

empreendimentos de significativa degradação ambiental, independentemente do

porte do impacto da obra ou atividade. O mandamento constitucional fixa-se no

198 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Impacto Ambiental. 4ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2008, p. 154. 199 Ibid. p. 155. 200 Constituição Federal de 1998. Art. 225, parágrafo 1º, inciso IV.

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sentido de que - se a atividade ou obra for potencialmente impactante - estará

sujeita ao EIA/RIMA e, portanto, a interpretação mais consentânea com a norma

constitucional seria entender que o procedimento não simplificado se aplica à

usinas hidrelétricas com potência acima de 10 MW: há presunção absoluta de que

são empreendimentos potencialmente causadores de significativa degradação

ambiental. A seu turno, somente estarão sujeitos ao procedimento simplificado de

licenciamento ambiental previsto no art. 8º, parágrafo 3º, da Medida provisória

2198 e da Resolução CONAMA 279/2001 os empreendimentos do setor elétrico,

não identificados como impactantes na Resolução CONAMA 01/86, ou seja, as

hidrelétricas de 10 MW ou menos que, todavia, no caso em espécie, não sejam

potencialmente causadores de significativa degradação ambiental.

Importante esclarecer, igualmente que, na presente dissertação,

setorizaremos nosso interesse somente nos casos de implantação de hidrelétricas

em que se dê o licenciamento ambiental comum, com a exigência de Estudo de

Impacto Ambiental ( EIA/RIMA ) e conseqüente audiência pública.

4.4.2

O Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental.

Na primeira fase do licenciamento ambiental, após apresentação do

Estudo de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental

chega-se à concessão da licença prévia pelo órgão licenciador.201Neste momento,

o empreendedor manifesta perante o órgão ambiental sua vontade de realizar tal

obra, apresentando sua concepção e localização do projeto, bem como alternativas

ao projeto. Após a análise, discussão e aprovação dos dados analisados, a

autoridade administrativa responsável atestará a viabilidade ambiental do projeto e

concederá (ou não) a licença ambiental.

201 O órgão licenciador será o IBAMA, o órgão estadual competente ou o Município, conforme disposto no art. 5º, Parágrafo Único, in verbis: Ao determinar a execução do estudo de impacto ambiental o órgão estadual competente, ou o IBAMA ou, quando couber, o Município, fixará as diretrizes adicionais que, pelas peculiaridades do projeto e características ambientais da área, forem julgadas necessárias, inclusive os prazos para conclusão e análise dos estudos. Não abordaremos aqui a enorme controvérsia existente em torno da competência para o licenciamento municipal, por não fazer parte do escopo do presente trabalho.

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194

Aliás, tal exigência decorre do próprio texto constitucional que determina

a realização do EIA e sua aprovação antes da instalação de uma obra ou atividade

potencialmente causadora de significativa degradação ambiental. Esta observação

é necessária para os casos de realização de obras sem o referido estudo, em que o

empreendedor providencia o EIA posteriormente, com o intuito de legitimar o

empreendimento, procurando garantir que as conclusões do estudo sejam

favoráveis à implantação do projeto, utilizando-se da conhecida “estratégia do fato

consumado”202.

Logo, para a implantação de projetos de usinas hidrelétricas, exige-se a

apresentação do correspondente EIA/RIMA no licenciamento ambiental. O estudo

de impacto ambiental para fins de licenciamento constitui, pois, uma ferramenta203

imprescindível ao próprio licenciamento ambiental. Está previsto no art. 225,

parágrafo 1º, inciso IV da CF/88 e no art. 9º, inciso III da Lei 6938/81,

caracterizando-se como verdadeiro mecanismo de planejamento de obras e

atividades potencialmente causadoras de significativa degradação ambiental e de

prevenção quanto aos danos ambientais causados por estas.

Dessa forma o EIA deve ser exigido, elaborado e aprovado antes da

expedição da licença prévia, como condição desta, pois, nesta primeira fase, em

que se realizam os estudos de viabilidade do projeto, nenhum outro estudo é mais

adequado para tal finalidade do que o EIA. Para a sua elaboração, o órgão

licenciador deve emitir o termo de referência que norteará o empreendedor quanto

aos requisitos a serem observados na confecção de tal documento.204

Antonio Herman Benjamin205 preleciona com bastante clareza o papel do

EIA na atuação da administração pública:

O EIA, como veremos, atua, fundamentalmente, na esfera de discricionariedade da Administração Pública. Seu papel é limitar, no plano da decisão ambiental, a liberdade de atuação do administrador. Se o EIA é limite da decisão administrativa, não se confunde, pois, com a decisão administrativa em si. Sendo momento preparatório da decisão, o EIA a orienta, informa, fundamenta e restringe, mas, tecnicamente falando, não a integra como um dos seus elementos

202 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Impacto Ambiental. Aspectos da legislação brasileira. 4ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2008, p.45. Sobre a referida teoria, uma abordagem mais minuciosa será realizada quando da análise do caso-referência de Barra Grande. 203 OLIVEIRA, Antonio Inagê de Assis. Introdução ä Legislação Ambiental Brasileira e Licenciamento Ambiental. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p. 427. 204 Ibid. p. 49. 205BENJAMIN, Antônio Herman. Os princípios do estudo de impacto ambiental como limites da discricionariedade administrativa. Revista Forense 317/25 e ss, Rio de Janeiro, Forense, 1992.

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internos. É parte do procedimento decisório mas não é componente interior da decisão administrativa.

Deve realizar, então, uma série de análises e avaliações, seguindo algumas

diretrizes de caráter geral, além de outras que o órgão ambiental julgue

pertinentes, em conformidade com o que dispõe o art. 5º da Resolução CONAMA

01/86, a saber:

1 - Contemplar todas as alternativas tecnológicas e de localização de projeto,

confrontando-as com a hipótese de não execução do projeto;206

2 - Identificar e avaliar sistematicamente os impactos ambientais gerados nas fases

de implantação e operação da atividade207.

3 - Definir os limites da área geográfica a ser direta ou indiretamente afetada pelos

impactos, denominada área de influência do projeto, considerando, em todos os

casos, a bacia hidrográfica na qual se localiza.208 Deve ser levada em

consideração, especialmente, em projetos de hidrelétricas, devendo haver um

planejamento coordenado das ações de todos os órgãos de governo envolvidos

tanto no licenciamento como na gestão das bacias209.

4 - Considerar os planos e programas governamentais, propostos e em

implantação na área de influência do projeto, bem como sua compatibilidade210.

Além das referidas diretrizes, o EIA, assim como o RIMA, deve conter um

conteúdo mínimo, definido por lei, sem o qual o poder público não pode aceitá-lo

validamente211 para análise e discussão no licenciamento ambiental.

206 Art. 5º, I da Res. CONAMA 01/86. Essa discussão acerca das alternativas tecnológicas e de localização é fundamental no EIA, pois, com isso é possível que se discuta a melhor opção para o projeto, inclusive a de sua não-execução, em função dos custos sociais e ambientais elevados. 207 Art. 5º, II da Res. CONAMA 01/86. 208 Art. 5, III da Res. CONAMA 01/86. 209 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 382. 210 Art. 5, IV da Res. CONAMA 01/86. 211 Segundo MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Impacto Ambiental. Aspectos da legislação brasileira. 4ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2008, pp. 100-101, com base em posicionamento adotado pela jurisprudência dos tribunais administrativos franceses, a inadequada realização do EIA, da mesma forma que sua ausência, gera vício de natureza insanável no licenciamento ambiental, acarretando a possibilidade de invalidação de todo o processo de licenciamento, em andamento ou já concluído. Consequentemente, gera vicio na instalação, operação ou funcionamento da obra ou atividade licenciada. No mesmo sentido, PRIEUR, Michel. Droit de l’environnement. Paris: Dalloz, 2004, pp. 94-95, ressaltando, inclusive, jurisprudência francesa que anulou ato administrativo no curso do licenciamento por insuficiência do estudo de impacto ambiental.

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Basicamente, deve o EIA apresentar os seguintes requisitos técnicos212

indispensáveis à correta avaliação de impactos ambientais sujeitos a essa

modalidade de estudo: 1) o diagnóstico ambiental da área de influência do projeto,

apresentando os aspectos ecológicos - que englobam tanto o meio físico como o

meio biológico e os ecossistemas naturais -, e os sócio-econômicos, como o uso e

ocupação do solo, os usos da água e as atividades econômicas exercidas na área;

2) a análise dos impactos socioambientais do projeto e de suas alternativas,

através de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos

prováveis impactos relevantes; 3) a definição das medidas mitigadoras dos

impactos negativos, avaliando a eficiência de cada uma delas; e 4) a elaboração do

programa de acompanhamento e monitoramento dos impactos positivos e

negativos, indicando os fatores e parâmetros a serem considerados.

A confusão entre o Estudo de Impacto Ambiental e a Avaliação de

Impacto Ambiental é freqüente, o que é atribuído especialmente à imprecisão

terminológica constante da legislação, que acabou tratando de forma expressa

apenas do estudo de impacto ambiental e de seu referido relatório213. O EIA é

espécie do gênero “avaliação de impacto ambiental” e esta é um dos instrumentos

da Política Nacional de Meio Ambiente. O EIA, portanto, é bem mais restrito que

a AIA, mais abrangente. Serve como instrumento aglutinador de todas as

informações obtidas, após a AIA, e a partir da utilização dos métodos desta, para

que o órgão ambiental possa decidir sobre o licenciamento do empreendimento.

Assim, o escopo jurídico do EIA é mais específico.

Para cumprir o objetivo preventivo de evitar a ocorrência de degradação

ambiental e social, sujeita-se o EIA a três condicionantes básicos: a transparência

administrativa, a consulta aos interessados e a motivação da decisão ambiental.214

Assim, a transparência administrativa considera os efeitos ambientais de

um determinado projeto e é revelada no momento em que o órgão licenciador e o

empreendedor liberam todas as informações sobre o projeto.

A consulta aos interessados, de sua vez, significa a efetiva participação

pública e fiscalização da atividade administrativa pela sociedade, dotando-a do

212 Art. 6º da Res. CONAMA 01/86 e art. 17 do Decreto 99274/90. 213 FARIAS, Talden. Licenciamento Ambiental. Aspectos teóricos e práticos. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 83; MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 355 a 358 e 360 a 363. 214 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.365.

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direito de influenciar no processo decisório, manifestando-se sobre o EIA/RIMA,

expondo suas dúvidas e críticas.

Já a motivação da decisão do órgão ambiental decorre do princípio de que

o poder público deve motivar todo ato que dê ensejo à situação desfavorável ao

administrado. Em verdade, a idéia é que o EIA sirva de base para a decisão a ser

proferida pelo órgão licenciador, devendo, de maneira necessária e efetiva, influir

no processo decisório, sob pena de se transformar em mera formalidade a ser

cumprida pelo empreendedor. “Sua vocação é alterar o espírito mesmo da decisão

administrativa.”215 E essa meta somente será atingida por meio da motivação da

decisão ambiental, em que o poder público demonstrará se levou em conta a

preocupação com a preservação ambiental.

Por conseguinte, o objetivo preventivo final do EIA é alcançado de duas

formas: por um lado, ao obrigar-se o administrador, em seu processo decisório, a

considerar os valores ambientais; e, de outro, ao propiciar-se ao público e a certos

órgãos de representação de interesses transindividuais — através de divulgação de

seu conteúdo e facilidade de intervenção — instrumental hábil de controle dos

atos da Administração Pública com repercussão ambiental.216

Quanto à participação pública, importante mencionar, ainda, que, no

processo de licenciamento ambiental, ela se verifica em dois momentos distintos:

o da consulta pública e o da audiência pública217. No primeiro, o Relatório de

Impacto Ambiental ( RIMA ) fica à disposição dos interessados em lugar de fácil

acesso público e no órgão licenciador, podendo haver a manifestação por escrito

dos interessados. Esgotada esta fase, é convocada a audiência pública,

oportunidade oferecida à sociedade para poder influir na gestão ambiental, em

resposta à consulta formulada.

A realização de audiência pública vem regulada pela Resolução

CONAMA 09/1987 e é instrumento de informação e consulta da população a

respeito de atividade sujeita ao estudo de impacto ambiental. Não pode, assim, ser

usada como forma de induzir a população a aceitar o empreendimento, pois, nesse

215 PRIEUR, Michel. Droit de l’environnement. Paris: Dalloz, 2004, apud BENJAMIN, Antônio Herman. Os princípios do estudo de impacto ambiental como limites da discricionariedade administrativa. Revista Forense 317/25 e ss, Rio de Janeiro, Forense, 1992. 216 BENJAMIN, Antônio Herman. Os princípios do estudo de impacto ambiental como limites da discricionariedade administrativa. Revista Forense 317/25 e ss, Rio de Janeiro, Forense, 1992. 217 CONAMA. Resolução n. 09/87.

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caso, haverá desvio de finalidade, vício que compromete o processo de

licenciamento como um todo.218

A convocação da audiência pública para discussão do estudo de impacto

ambiental ocorre nos casos em que o órgão ambiental “julgar necessário” ou

quando houver solicitação de entidade civil, do Ministério Público ou de mais

cinqüenta cidadãos219.

4.4.3

Críticas ao licenciamento ambiental das hidrelétricas no Brasil.

Feitos os principais apontamentos sobre o funcionamento do licenciamento

ambiental no ordenamento jurídico brasileiro - e reconhecida a sua relevância para

a concretização da política nacional do meio ambiente ( lei n. 6938/81 ) - forçoso

reconhecer a existência de falhas e contradições no uso de tal instrumental para a

implantação de projetos hidrelétricos no Brasil.

Estudos específicos, como o de Carlos B. Vainer220, no âmbito da

sociologia do ambiente, criticam o modelo de licenciamento ambiental adotado

até os dias de hoje, afirmando que os relatórios de impacto ambiental não são

capazes de prever o surgimento de movimentos de resistência, de lutas e

organização das populações atingidas pelas barragens. Haveria um “ponto cego”

no instrumental teórico-conceitual que ambientaliza ou naturaliza as populações,

tornando-as sujeitos incapazes de se conceberem como portadores de direitos e

interesses e, em decorrência, de se constituírem em atores em condições de atuar

de forma autônoma “na transformação do ambiente de implantação das barragens

em arena de conflito social e político.” As populações atingidas, “naturalizadas,

reificadas, destituídas de subjetividade e, consequentemente, impossibilitadas de

se constituírem em sujeitos” não podem ser pensadas como agentes sociais

coletivos, portadores de reivindicações e ativos politicamente.

218 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Impacto Ambiental. Aspectos da legislação brasileira. 4ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2008, pp. 126-127. 219 CONAMA. Resolução n. 009/1987, Art. 2º, caput. 220 VAINER, Carlos B. Água para a vida, não para a morte. Notas para uma história do movimento de atingidos por barragens no Brasil. In: ACSELRAD, Henri (org). Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004, p. 185-208.

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Portanto, a falta do reconhecimento de tal subjetividade específica provoca

uma assimetria no tocante à posição tomada pela população atingida em relação

aos empreendedores para efetivarem suas vontades políticas.

Embora esteja o licenciamento ambiental mais vinculado a análises técnicas,

as decisões tomadas no referido processo tem natureza tanto técnica quanto

política, sendo certo que a decisão sobre a concessão (ou não) da licença

ambiental é, em verdade, uma decisão política, baseada em argumentos técnicos

que servem para fundamentá-la.221

Todavia, para a tomada de tal decisão política não são observados (e

garantidos) métodos e procedimentos que assegurem de maneira efetiva a

participação das populações atingidas, principais interessadas na causa.

Ao revés, em alguns casos, ocorre verdadeiro “processo de oligarquização”

do poder deliberativo do órgão licenciador, caracterizado por um controle de

ingresso de novos membros e pela concentração de poder decisório nas mãos de

uma minoria, que estabelece uma visão hegemônica do que sejam as

possibilidades de uso dos recursos naturais a partir da lógica do mercado. Essa é a

análise elaborada por Andréa Zhouri et al222 quanto à atuação do órgão licenciador

de Minas Gerais223 – COPAM ( Conselho de Política Ambiental ), nos

licenciamentos ambientais de hidrelétricas naquele estado.

Além disso, frequentemente observa-se uma ausência de avaliação de

sustentabilidade socioambiental da obra hidrelétrica, pautando-se o licenciamento

ambiental pelo “paradigma da adequação”, ou seja, restringindo o desempenho do

licenciamento ambiental à discussão sobre as melhores medidas mitigadoras e

compensatórias necessárias para adaptação do projeto às exigências do órgão

licenciador.224

Por outro lado, a falta de participação pública efetiva, tanto na elaboração

dos termos de referência para a preparação do EIA/RIMA (que contribui para a

ausência de transparência durante a sua confecção), bem como após a sua entrega

221 REZENDE, Leonardo Pereira. Avanços e Contradições do Licenciamento Ambiental de Barragens Hidrelétricas. Belo Horizonte: Fórum, 2007, pp. 69-70. 222 ZHOURI. Andréa. LASCHEFSKI. Klemens. PEREIRA. Doralice Barros. Uma sociologia do licenciamento ambiental: o caso das hidrelétricas em Minas Gerais. In ZHOURI. Andréa. LASCHEFSKI. Klemens. PEREIRA. Doralice Barros (org) A insustentável leveza da política ambiental. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, pp. 89/113. 223 No estado de Minas Gerais, encontram-se três das maiores bacias hidrográficas do Brasil, sendo o estado alvo da política de expansão de hidroletricidade. 224 Ibid. pp. 99-101.

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ao órgão licenciador, é sempre salientada como um dos pontos mais críticos do

processo de licenciamento ambiental. Outros pontos problemáticos são a

dificuldade de acesso físico do público às informações constantes do RIMA e de

entendimento da linguagem técnica utilizada nos estudos.225

Como já mencionado, a falta de participação e informação adequadas

prejudica a transparência que deve ficar evidente no processo de licenciamento

ambiental. Muitas vezes, quando a população interessada toma conhecimento do

projeto, aquele já está em fase avançada de análise, o que acaba por inviabilizar a

efetividade da participação pública.

No que diz respeito à fase da consulta pública, de absoluta importância para

que a população em geral tome conhecimento do teor do projeto hidrelétrico, esta

fica limitada ao depósito dos estudos ambientais nos órgãos públicos, sem que

haja uma conduta mais específica, através da formulação do chamado “plano de

comunicação social”.226

Com relação às audiências públicas propriamente ditas, momento em que o

projeto hidrelétrico será exposto à comunidade e que estará sujeito a

questionamentos, críticas, sugestões e novas informações, o que se verifica nos

processos de licenciamento ambiental, é que a participação deixa de ser

incorporada efetivamente ao processo. O ato da audiência pública passa a

configurar-se como modo de cumprimento de normas legais.227

Ademais, não há, no modelo institucional de licenciamento ambiental

existente, uma fase exclusiva para a discussão acerca da viabilidade do projeto e

outra para, após a demonstração da sua viabilidade, o debate sobre as medidas

mitigadoras e compensatórias necessárias, já que, na fase preliminar, estas duas

questões, em princípio, contraditórias, devem ser discutidas paralelamente. Não

há, também, previsão sobre a constituição de espaços institucionais próprios de

participação após a fase da concessão de licença prévia - o que seria bastante

225 Ibid. pp. 103-106. 226 REZENDE, Leonardo Pereira. Avanços e Contradições do Licenciamento Ambiental de Barragens Hidrelétricas. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 75. 227 ZHOURI. Andréa. LASCHEFSKI. Klemens. PEREIRA. Doralice Barros. Uma sociologia do licenciamento ambiental: o caso das hidrelétricas em Minas Gerais. In ZHOURI. Andréa. LASCHEFSKI. Klemens. PEREIRA. Doralice Barros (org) A insustentável leveza da política ambiental. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, pp. 106-107.

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201

oportuno, considerando que os conflitos socioambientais se intensificam nas fases

de instalação e operação do projeto.228

Outro ponto que merece ser registrado é a baixa qualidade dos estudos

ambientais, revelada por informações superficiais ou, mesmo, pela falta de

informações necessárias, em que é constante a exigência de complementação de

informações. Isto gera uma demora no deslinde do processo de licenciamento, em

razão das idas e vindas entre pedido de complementação de informações pelo

órgão licenciador, entrega de estudos/informações complementares pelo

empreendedor e a realização de nova análise pelo órgão ambiental.229

A partir das observações acima, conclui-se que o processo de licenciamento

ambiental e o conjunto de regras e princípios que o amparam não têm cumprido a

finalidade para a qual foram previstos. Constata-se apenas o cumprimento formal

das normas e não o atendimento substancial da finalidade das normas.

Com efeito, as críticas realizadas ao licenciamento ambiental não o

descredenciam como instrumento de grande relevância na prevenção de impactos

causados por atividades potencialmente poluidoras, fato este que deve ser

enaltecido230. Arriscamos afirmar que a ausência de um debate amplo e

participativo nas fases anteriores ao próprio licenciamento - abrangendo as etapas

dos estudos hidrelétricos e de viabilidade técnica e ambiental - sobrecarregam a

fase de licenciamento ambiental. Tal circunstância, somada à existência de

imperfeições no aludido processo, gera as incongruências e contradições

apontadas pela doutrina.

O pano de fundo de tais críticas, em grande medida, diz respeito à falta de

eficácia social da norma. No dizer de Rosângela Cavallazzi, a eficácia social das

normas está diretamente vinculada ao alcance do direito instituído e “designa a

capacidade de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos, ao regular,

desde logo, as situações, relações e comportamentos nela indicados.”231 Norteada

pelos critérios da legitimidade, incidência e finalidade, a eficácia social da norma

228 REZENDE, Leonardo Pereira. op.cit. p. 241. 229 Ibid, p. 236. 230 É bom lembrar que, em meio à lógica mercantilista, que prioriza o crescimento econômico a qualquer custo e enfatiza a necessidade de aumento da produção energética, o licenciamento ambiental de hidrelétricas é visto como verdadeiro “entrave burocrático”. 231 CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Novas fronteiras do Direito Urbanístico. In: TEPEDINO, Gustavo. FACHIN, Luiz Edson. ( Coord )O Direito e o Tempo: embates jurídicos e utopias contemporâneas. Estudos em homenagem ao professor Ricardo Pereira Lira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 691.

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202

está relacionada à necessária aplicabilidade das normas jurídicas pelos indivíduos

destinatários das mesmas e, também, à capacidade de garantir os direitos dos

cidadãos.232

Nas situações acima apontadas, o direito posto não alcança plenamente a

sua finalidade, que é a de garantir que a participação da sociedade influencie no

processo decisório, pois, por força de mandamento constitucional233, cabe à

coletividade, juntamente como o poder público, o dever de preservar o meio

ambiente.

Assim, questões como a da falta de informação adequada, de participação

pública efetiva - especialmente nas fases anteriores ao licenciamento ambiental e

posteriores à licença prévia – da motivação da licença com base em informações

trazidas pelo público por ocasião da audiência pública, ou em qualquer outra fase

do processo, não dependem da proteção formal de instrumentos para sua garantia,

mas, sim, do estabelecimento de condições concretas de eficácia desses

instrumentos.234

A seu turno, na fase de planejamento energético, não se verifica uma

articulação com o setor ambiental.

De fato, o aparato administrativo governamental no setor energético

construiu um modelo energético altamente centralizado e inflexível a outras

interferências.235 Daí, certos questionamentos, como, por exemplo, quanto à

manutenção da matriz energética baseada na implantação de fontes hidrelétricas

ou quanto à definição do aproveitamento ótimo do potencial hídrico, que

deveriam ser realizados na etapa de planejamento, somente serão abordados

formalmente no processo de licenciamento ambiental. Na fase anterior a este,

quando decisões importantes são tomadas pela administração pública, a

participação pública, obrigatória na política ambiental, não se verifica.

232 Ibid, p. 691. 233 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 225. 234 AYALA, Patryck de.Araújo. O princípio da transparência e a participação pública no procedimento administrativo ambiental. Problemas e perspectivas no Direito brasileiro. Revista Jurídica do Ministério Público do Mato Grosso. Cuiabá: Entrelinhas, Ano 2, Vol. 3, jul/dez, 2007, p. 89. 235 ZHOURI. Andréa. LASCHEFSKI. Klemens. PEREIRA. Doralice Barros. Uma sociologia do licenciamento ambiental: o caso das hidrelétricas em Minas Gerais. In ZHOURI. Andréa. LASCHEFSKI. Klemens. PEREIRA. Doralice Barros (org) A insustentável leveza da política ambiental. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p. 102.

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203

A partir das próximas páginas, buscaremos, através do estudo da avaliação

ambiental estratégica, explicitar tal problemática e examinar em que medida este

instrumento pode contribuir, de forma decisiva, para reduzir os obstáculos gerados

pela burocracia inerente ao processo de licenciamento ambiental.

4.4.4

A Avaliação de Impacto Ambiental

Dentre os instrumentos de gestão ambiental instituídos pela lei 6938/81,

encontra-se a avaliação de impacto ambiental (art. 9º, inciso III), instrumento este

que materializa uma ação preventiva a cargo do poder público.

Como já dito anteriormente, o campo de aplicação da AIA é bem mais

amplo do que o do EIA/RIMA, pois além do controle preventivo da atividade ou

obra efetiva (ou potencialmente causadora de degradação ambiental): a AIA

também constitui importante instrumento para o planejamento nesta área.

Influenciada pelo direito norte-americano (National Environmental Policy

Act – NEPA), a AIA foi introduzida no Brasil pela lei 6.803/1980, que dispõe

sobre as diretrizes básicas para o zoneamento industrial nas áreas críticas de

poluição. De acordo com este diploma legal, a AIA somente seria exigível na

aprovação de limites e autorizações de implantação de zonas de uso estritamente

industrial destinadas à localização de pólos petroquímicos, cloroquímicos,

carboquímicos, bem como de instalações nucleares.

Todavia, após a luta dos movimentos sociais e ambientais desenvolvida no

decorrer das décadas de 70 e 80, foi editada a lei 6938/81 que forneceu mais

relevo à AIA, apontando-a como um dos instrumentos para consecução da política

nacional do meio ambiente, sem, no entanto, indicar qualquer tipo de limitação ou

condicionante, pois é exigível tanto nos projetos públicos como nos privados,

industriais (ou não), urbanos (ou rurais), em áreas já degradadas (ou não). Hoje, a

AIA ganha o nível constitucional, ao ser apresentada no art. 225, parágrafo 1º,

inciso IV da CF/88.

O Decreto n. 88.351, de 01 de junho de 1983, depois substituído pelo

Decreto n. 99274/1990, vinculou a avaliação de impactos ambientais aos sistemas

de licenciamento, outorgando, ao CONAMA, competência para “fixar os critérios

básicos segundo os quais serão exigidos estudos de impacto ambiental para fins de

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204

licenciamento”236, com poderes para baixar resoluções necessárias à tal

regulamentação.

A partir daí, o CONAMA criou normas para o licenciamento ambiental de

obras e atividades mediante avaliação de impacto ambiental, estabelecendo, para

cada caso, um tipo de estudo capaz de aferir o meio mais adequado e correto de

tornar visíveis as interferências negativas no ambiente. Editou, assim, as

Resoluções 001/86, 006/87, 009/87 e 237/97, regulamentadoras, respectivamente,

do estudo de impacto ambiental, do licenciamento de obras ou atividades

potencialmente poluidoras, da realização de audiências públicas e da alteração do

licenciamento ambiental.

O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA (

UNEP, 1987 ), por sua vez, define a AIA como “uma investigação, análise e

avaliação de atividades planejadas com vistas a assegurar um desenvolvimento

sustentável ambientalmente sadio.”

A Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e

Desenvolvimento também consagrou a adoção da AIA, estabelecendo em seu

princípio 17 que “A avaliação de impacto ambiental deve ser empreendida para as

atividades planejadas que possam vir a ter impacto negativo considerável sobre o

meio ambiente, e que dependam de uma decisão de autoridade nacional

competente.”

Ressalte-se que a definição de AIA, constante do vocabulário básico do

meio ambiente237, é a seguinte:

Instrumento de política ambiental, formado por um conjunto de procedimentos capaz de assegurar, desde o início do processo, que se faça um exame sistemático dos impactos ambientais de uma ação proposta (projeto, programa, plano ou política) e de suas alternativas, e que os resultados sejam apresentados de forma adequada ao público e aos responsáveis pela tomada de decisão, e por eles considerados. Além disso, os procedimentos devem garantir a adoção das medidas de proteção ao meio ambiente determinadas, no caso de decisão sobre a implantação do projeto.

Após a análise das definições fornecidas pela legislação, podemos inferir

que a AIA é instrumento técnico de análise de impactos socioambientais, mas,

para que seja considerada eficiente, possui outros quatro papéis complementares,

236 Art. 48. 237 Vocabulário Básico do Meio Ambiente. Rio de Janeiro. Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente, 1990, p. 33.

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205

servindo como instrumento 1) de ajuda à tomada de decisão política; 2) de

concepção de projetos e de planejamento; 3) de negociação social e, por fim, 4) de

gestão ambiental.238

Assim, a AIA pode ser efetivada no interior do processo de licenciamento

ambiental ou fora dele, o que já não ocorre com o EIA/RIMA, que está atrelado ao

referido processo. Isto é o que fica bastante claro com a resolução CONAMA

237/97, que chama de “estudos ambientais” aquilo que, em verdade, é a AIA. A

AIA é gênero de que são espécies todos e quaisquer estudos relativos aos aspectos

ambientais apresentados como subsídios para a análise da licença ambiental, tais

como o relatório ambiental, plano e projeto de controle ambiental, relatório

ambiental preliminar, diagnóstico ambiental, plano de manejo, plano de

recuperação de área degradada e análise preliminar de risco. 239

Portanto, a AIA tem extrema relevância como medida de planejamento

ambiental240, já que auxilia o poder público na tomada de decisões, ao levar em

consideração a variável ambiental em qualquer ação ou decisão que possa causar

qualquer efeito negativo ao meio ambiente. E como qualquer instrumento de

planejamento, possui - entre suas características - lidar com a incerteza tanto da

variabilidade do ambiente natural, como das próprias condições sócio-

econômicas.

Diante do fator da incerteza, deve se considerar a AIA como um processo

contínuo241 que não termina com a simples aprovação do projeto ou atividade,

238 SÁNCHEZ, L. E. ( 1991 ) Apud VIEIRA, Paulo Freire. Gestão Patrimonial de Recursos Naturais: Construindo o Ecodesenvolvimento em Regiões Litorâneas. In CAVALCANTI, Clóvis (org) Desenvolvimento e Natureza. Estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003, p.303. 239 MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 361-362. 240 “Planejar para um desenvolvimento sustentável, nos ensina Archibugi, significa essencialmente um gerenciamento de recursos, pelo qual a direção e qualidade das condições ambientais são permanentemente monitoradas, de modo a obter a mais completa quantidade de informações para uma resposta política efetiva. O planejamento para sustentabilidade requer uma mudança no modo de pensar o desenvolvimento. Há uma necessidade evidente para um pensamento mais estratégico, mais coeso e mais multidimensional, a fim de assegurar a compatibilidade dos interesses econômicos e ambientais. Localizo nesta descrição o “espírito” da Avaliação de Impacto Ambiental: um processo que comporta planejamento para a sustentabilidade das atividades econômicas, integrado por um conjunto de ações estratégicas visando uma melhoria e melhor distribuição da qualidade de vida.” Cf. DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, pp. 172-173. 241 A AIA inclui as seguintes etapas: A) o procedimento de avaliação inicial (screening) para identificar se um projeto pode resultar, em sua implementação, em impactos socioambientais significativos e, assim, merecer ser objeto de avaliação de impacto ambiental; B) a identificação de aspectos econômicos, sociais e ambientais significativos do projeto para a elaboração de uma AIA

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206

mas que esteja sempre sendo reavaliada242, através de monitoramento e auditoria

ambiental, como forma de aprimoramento sistemático da gestão ambiental.

No entanto, após mais de trinta anos da implantação da AIA por diversos

países como instrumento de política do meio ambiente, apesar dos inúmeros

resultados positivos, algumas deficiências são identificadas, mesmo onde o

processo de AIA é considerado como adequadamente implantado e utilizado. Entre

essas deficiências, a mais importante é que o processo de AIA tende a ocorrer muito

tarde no processo de planejamento e de desenho de um empreendimento, o que torna

difícil assegurar que todas as alternativas possíveis e relevantes ao projeto sejam

adequadamente consideradas. Uma razão para isso é detectar que o processo de AIA

não seja compatível com a prática de planejamento dos empreendimentos.243

Para superar essas deficiências e outras, tais como a não consideração dos

impactos cumulativos e sinergéticos, além dos impactos regionais e globais, diversos

autores estrangeiros244 e organizações internacionais – Banco Mundial e Comissão

Econômica Européia - têm apoiado o uso da Avaliação Ambiental Estratégica – AAE.

Nesse contexto, apresentaremos o exame mais detalhado da AAE no

Capítulo a seguir.

(scoping); C) a preparação de Estudo de Impactos Ambientais – EIA, que deve conter a descrição do empreendimento e suas diferentes alternativas, o ambiente passível de ser afetado, a natureza dos efeitos no ambiente e os meios para minimizar os efeitos (impactos) negativos; D) a revisão do EIA por agências governamentais e, normalmente, o público, por meio de um processo participativo de representatividade democrática; E) a preparação de um relatório final, que deve incluir as respostas e soluções apresentadas durante o processo de revisão do EIA; e F) a implementação de um sistema de monitoramento para verificar se as medidas de mitigação foram implementadas e averiguar como se comportará o ambiente após a implantação do empreendimento. 242 MACEDO, Ricardo Kohn de. A importância da avaliação ambiental. In TAUK-TORNISIELO, Sâmia Maria; GOBBI, Nivar; FOWLER, Harold Gordon ( org ). Análise Ambiental: uma visão multidisciplinar. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista-UNESP, 1995, p. 16. 243 EGLER, Paulo César Gonçalves. Perspectivas de uso no Brasil do processo de Avaliação Ambiental Estratégica. 2002. Disponível em: http://www.mct.gov.br/CEE/revista/rev11.htm . Último acesso em 19 de outubro de 2008. 244EGLER, Paulo César Gonçalves. Perspectivas de uso no Brasil do processo de Avaliação Ambiental Estratégica. 2002. Disponível em: http://www.mct.gov.br/CEE/revista/rev11.htm. Último acesso em 19 de outubro de 2008. O autor cita como autores estrangeiros especialistas no tema os seguintes: Thérivel e Partidário, 1996; Lee e Hughes, 1995; Sheate e Cerny, 1993; Lee e Walsh, 1992; Wood e Dejeddour, 1992; Thérivel et al, 1992; e Sadler e Verheem, 1996)

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