4. o pacto global: dez anos de responsabilidade social

36
4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social corporativa na Organização das Nações Unidas Mais de dez anos já se passaram desde que a idéia de um Pacto Global foi lançada por Kofi Annan, então Secretário-Geral das Nações Unidas, no Fórum Econômico Mundial. Desde então, a estrutura do Pacto Global foi aperfeiçoada, novos procedimentos foram criados, novas parcerias foram consolidadas. Mesmo assim, o Pacto foi e segue sendo objeto de duras críticas por parte de ativistas e acadêmicos, os quais objetam, sobretudo, a parceria da ONU com as corporações transnacionais e as limitações que essa parceria, sob um prisma de responsabilidade social, traz para a resistência dos movimentos sociais que exigem um efetivo marco regulatório de conduta das corporações. O Pacto Global é descrito pelos principais líderes que o apóiam como a única verdadeira iniciativa global de cidadania corporativa, como um fórum internacional de aprendizado e diálogo ou, ainda, como uma tentativa de rearranjar o contrato moral entre empresas e sociedade (McIntosh, Waddock and Kell, 2004, 13-26). Senão a única, o Pacto Global representa minimamente “a mais ampla iniciativa de cidadania corporativa no mundo” (Gregoratti, 2007, 02), além de ser “uma iniciativa sem precedentes na ONU” (Ruggie, 2003). Pelo menos, o Pacto Global é percebido como o máximo acordo que foi possível até então da ONU com as empresas, superando as críticas que a organização havia recebido quando da tentativa de construção de Códigos de Conduta, os quais eram percebidos como uma atuação da ONU contra as empresas (May, 2006, 273-279). No presente capítulo, primeiramente tem-se a descrição do contexto de surgimento do Pacto Global. Em seguida, observa-se a estrutura e a evolução do Pacto Global, assim como as contradições, limitações e desafios verificados em tal processo. Apresenta-se então a análise crítica, com base em artigos publicados por acadêmicos e ativistas, juntamente ao debate gerado pelas respostas dos líderes do Pacto Global às críticas. O capítulo é concluído com uma análise sobre

Upload: others

Post on 30-Jun-2022

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

4.

O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

corporativa na Organização das Nações Unidas

Mais de dez anos já se passaram desde que a idéia de um Pacto Global foi

lançada por Kofi Annan, então Secretário-Geral das Nações Unidas, no Fórum

Econômico Mundial. Desde então, a estrutura do Pacto Global foi aperfeiçoada,

novos procedimentos foram criados, novas parcerias foram consolidadas. Mesmo

assim, o Pacto foi e segue sendo objeto de duras críticas por parte de ativistas e

acadêmicos, os quais objetam, sobretudo, a parceria da ONU com as corporações

transnacionais e as limitações que essa parceria, sob um prisma de

responsabilidade social, traz para a resistência dos movimentos sociais que

exigem um efetivo marco regulatório de conduta das corporações.

O Pacto Global é descrito pelos principais líderes que o apóiam como a

única verdadeira iniciativa global de cidadania corporativa, como um fórum

internacional de aprendizado e diálogo ou, ainda, como uma tentativa de

rearranjar o contrato moral entre empresas e sociedade (McIntosh, Waddock and

Kell, 2004, 13-26). Senão a única, o Pacto Global representa minimamente “a

mais ampla iniciativa de cidadania corporativa no mundo” (Gregoratti, 2007, 02),

além de ser “uma iniciativa sem precedentes na ONU” (Ruggie, 2003). Pelo

menos, o Pacto Global é percebido como o máximo acordo que foi possível até

então da ONU com as empresas, superando as críticas que a organização havia

recebido quando da tentativa de construção de Códigos de Conduta, os quais eram

percebidos como uma atuação da ONU contra as empresas (May, 2006, 273-279).

No presente capítulo, primeiramente tem-se a descrição do contexto de

surgimento do Pacto Global. Em seguida, observa-se a estrutura e a evolução do

Pacto Global, assim como as contradições, limitações e desafios verificados em

tal processo. Apresenta-se então a análise crítica, com base em artigos publicados

por acadêmicos e ativistas, juntamente ao debate gerado pelas respostas dos

líderes do Pacto Global às críticas. O capítulo é concluído com uma análise sobre

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 2: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

92

como o Pacto Global, sendo a principal instituição de responsabilidade social

empresarial, tem desempenhado um papel de legitimação do capital transnacional

ao mesmo tempo em que o próprio Pacto, passados dez anos de sua existência,

vive uma crise de legitimidade, seja por não preencher as demandas de

organizações sociais, seja por enfrentar a competição de outras iniciativas de

caráter semelhante.

4.1.

Sobre boas intenções: o contexto do surgimento do Pacto Global

Em janeiro de 1999, Kofi Annan, então Secretário-Geral das Nações

Unidas, defendeu no Fórum Econômico Mundial, em Davos, Suíça, que a

globalização se encontrava seriamente ameaçada e que a resposta estaria na

promoção de valores sociais, discurso que refletiria os objetivos comuns de todos

os segmentos da população mundial. Com essa mensagem, propunha um Pacto

Global, o qual foi traduzido em princípios das Nações Unidas para a

responsabilidade social das empresas. Justificava, assim, a necessidade de um

novo pacto para lidar com os desafios da globalização e fazer a globalização

funcionar para todos (Annan, 1999).

Como observa o próprio diretor do Pacto Global, Georg Kell, o Pacto

surge diante de um contexto político marcado por sucessivas críticas à

globalização econômica, endereçadas sobretudo à Organização Mundial do

Comércio (OMC) e culminariam com os protestos em massa em Seattle durante a

Conferência Ministerial da OMC de 1999 (Kell, 2008, 182). Observe-se ainda

que, em 1998, apenas alguns meses antes de Annan propor o Pacto Global ao

FEM, um processo que representava outro enfoque começava a tomar corpo

dentro da própria ONU, ainda que em um nível periférico: a Sub-Comissão de

Direitos Humanos designava um Grupo de Trabalho para produzir normas de

responsabilidade em direitos humanos para as corporações transnacionais. Ou

seja, o Pacto e o processo de construção de Normas surgiram de forma paralela,

como diferentes respostas diante das diversas censuras à globalização do capital.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 3: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

93

Mas porque o Pacto Global surge a partir de uma iniciativa da Organização

das Nações Unidas? Três fatores foram essenciais para desencadear o processo na

ONU. Primeiro, a experiência frustrada nas décadas de 1970 e 1980 da Comissão

de Corporações Transnacionais da ONU em propor Códigos de Conduta para as

empresas. Em segundo lugar e conectado com o primeiro fator, está a

preocupação crescente expressada por Estados e ONGs diante da ONU quanto à

grave situação de pobreza e violação de direitos humanos acelerada com a

transnacionalização do capital na década de 1990, na chamada globalização

neoliberal. Um último fator de destaque, mas que não deve ser menosprezado em

sua relevância, diz respeito à crise financeira enfrentada pela ONU, em grande

parte devido ao não pagamento dos Estados Unidos do montante significativo de

sua parcela de apoio e com impacto intenso no orçamento da organização. Em um

mundo em que os Estados pareciam perder poder diante das corporações e a

principal superpotência se opunha a pagar sua alta dívida com a ONU e a arcar

com outros custos desta cooperação multilateral (por exemplo, em ações de ajuda

humanitária da ONU), seria mais do que oportuno para a ONU investir em um

maior estreitamento com o mundo corporativo, o que não só geraria uma melhor

recepção junto aos setores isolacionistas dos Estados Unidos, como abriria portas

de financiamento privado para a ONU. Esta era uma oportunidade única de

conseguir o apoio político e financeiro de empresas norte-americanas (Martens,

2007, 15; Traub, 2006, 132). Some-se a esses fatores o próprio projeto político de

Kofi Annan como Secretário-Geral em sua busca pelo estreitamento de laços com

o setor privado1 e tem-se então as bases explicativas do surgimento do Pacto

Global por iniciativa da ONU. Como explica James Traub em sua biografia de

Kofi Annan:

Annan and his advisers believed that the United Nations, with

its history of establishing global norms on the treatment of

women and children, or on population or the environment, was

the one setting in which this contract could be hammered out.

(…) The Global Compact became one of Annan´s favorite

initiatives, since it answered both to his moral and to his

managerial impulses (Traub, 2006, 145-146).

1 A colaboração de Annan com o setor privado é observada desde o começo da gestão de Annan a frente da ONU com apoios políticos e/ou financeiros de empresas como CNN, AOL Time Warner e

Bill and Melinda Gates Foundation. Duas fundações foram especialmente criadas para receber fundos da iniciativa privada: a UN Foundation (UNF) e a United Nations Fund for International

Partnerships (UNFIP) (Martens, 2007, 14-16).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 4: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

94

Antes de iniciar seu mandato como Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan

já vislumbrava a possibilidade de um maior estreitamento nas relações entre as

organizações internacionais e as corporações transnacionais. Havia uma

preocupação de Annan e alguns assessores próximos em conseguir que a

comunidade empresarial mudasse a visão negativa que tinha da ONU, depois de

esforços seguidos da Organização em estabelecer mecanismos de controle do

capital transnacional. Além da questão da reputação da ONU diante das empresas,

havia uma pretensão ainda maior: que a comunidade empresarial se engajasse de

forma positiva nas atividades da ONU, ou seja, no cumprimento de sua Missão

(Ruggie, 2008, 172)2. Annan e sua equipe perceberam que naquele momento o

“investimento externo direto estava excedendo a ajuda oficial ao desenvolvimento

em uma proporção de 6 para 1 (Ruggie, 2008, 172)”. Além disso, verificavam que

a ONU se defrontava com um constante dilema: objetivos praticamente ilimitados

diante de capacidades bastante limitadas. Vislumbraram, então, como explica

Ruggie, a oportunidade de contar com os recursos e as capacidades institucionais

do setor privado (Ruggie, 2008, 172), o que efetivamente conseguiram mediante

parcerias em várias frentes e envolvendo diversas agências da ONU nos anos

seguintes. Nessa perspectiva, tanto Ruggie quanto Kell enfatizam o novo desafio

que a ONU se auto-impunha, o de superar os limites do internacional e tornar-se

uma organização efetivamente global com base em uma leitura de que as próprias

corporações e organizações sociais já atuavam globalmente, tendo assim

transposto em larga escala os limites de ação estritamente no âmbito estatal.

[...] the UN is an intergovernmental organization and it is

fundamentally constrained by virtue of the fact that it operates

within an intergovernmental framework and an interstate

system. Companies have gone global and we are still struggling

to respond to global challenges through intergovernmental

means. I think one of the things that Kofi Annan had in mind

was to essentially ride on the back of truly global efforts, both

civil society and transnational corporations, in order to make

the UN itself more global (Ruggie, 2008, 172).

2 Neste capítulo e no seguinte, as referências a Ruggie e Kell datadas de 2008 resultam das entrevistas concedidas por eles ao autor desta Tese (ver Anexos I e II).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 5: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

95

Em sua análise sobre a necessidade de globalizar a ONU, o diretor do

Pacto, Georg Kell, vai além. Ele observa que, desde sua fundação, a ONU se

depara com o conflito de ter uma estrutura política reduzida à esfera

intergovernamental, o que acaba prevalecendo, diante de um mandato com vistas

a uma representatividade global, traduzida pelo sujeito “Nós, os povos das Nações

Unidas”, com que é iniciada a Carta da ONU (Kell, 2008, 184). Ele, inclusive,

defende que as empresas tinham um claro interesse na ONU desde o começo da

organização, mencionando o telegrama enviado por Philip Reed, então presidente

da General Electric, ao Congresso e o Senado dos Estados Unidos, conclamando

o legislativo a aprovar a Carta da ONU3. Para Kell, a convergência entre a ONU e

as empresas foi abalada justamente pelo desvio ideológico representado pela Nova

Ordem Econômica Internacional (Kell, 2008, 185). Ele entende, portanto, que o

surgimento do Pacto Global simboliza um recomeço, um retorno à tradição de

articulação com as empresas observada nas origens das Nações Unidas (Kell,

2008, 185).

A oportunidade de costurar uma efetiva aliança com as corporações

ocorreu a partir das visitas de Kofi Annan a reuniões e eventos de grupos que

articulavam a comunidade empresarial, com destaque para o Fórum Econômico

Mundial (doravante FEM). Em 1998, quando de sua segunda participação no

FEM, Annan fez um discurso no qual esclarecia que as capacidades e a atuação

global das corporações transnacionais se articulavam com a missão da ONU no

mundo, buscando estreitar laços com o setor privado. Os participantes do FEM

convidaram Annan para que comparecesse em 1999 com propostas que

traduzissem um marco concreto de articulação entre a ONU e as corporações

transnacionais (CTNs). Mas, afinal, como surgiu a proposta de um Pacto Global?

Em entrevista, Ruggie descreve o processo de criação do Pacto como algo

“embaraçoso” e “divertido” (Ruggie, 2008, 179). Ele explica que Kofi Annan

estava preocupado com o que deveria apresentar no FEM de 1999 e que foi ele,

Ruggie, como Conselheiro Estratégico Principal, quem insistiu para que Annan

comparecesse e, para tanto, escreveu com Georg Kell o discurso que deu origem

ao Pacto (Ruggie, 2008, 179). Nas palavras de Ruggie:

3 Ele complementa: “... because, as a business person, he saw no more noble and useful thing could be done than ratifying the UN and getting it into existence” (Kell, 2008, 184).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 6: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

96

So, he was invited back in 1999, and he said ‘I just went last

year. I don’t see the need to go again. I don’t want to become

over exposed. I don’t want people to think I am running after

the business community’. And I was his chief strategic adviser

at the time and I said ‘I don’t think you should worry about

over exposure to the business community. There is a lot of bad

blood to overcome, and there are a lot of opportunities to be

explored’, and I kept bugging him. And he finally said ‘Ok, if

you can come up with a good idea that I can present to the

business community as a challenge, come back and we will talk

about it. So Georg and I, I think as late as October or

November, started writing a draft speech, and we presented it

to the Secretary General. And the speech (…), the January 1999

speech, it was a challenge to the world, to the business. It did

not propose a program. It was a challenge. We did not have

time to think about whether this was going to lead to a

program. We had to write the bloody speech and had many

other things to do. So, he went off to Davos. We did a lot of

publicity around, because we thought it was an exciting idea.

And the reaction was so positive; people said ‘Now what? What

do we do now? You have launched this challenge, Mr.

Secretary-General, so what do you want us to do? And how do

we do it?’(…) The speech took six weeks, the next step took a

year (Ruggie, 2008, 179).

E foi assim, a partir da recepção positiva dos participantes do FEM diante

do discurso de Kofi Annan, preparado por Ruggie e Kell, que surgiu o Pacto

Global. Cumpre observar que no discurso estão presentes elementos emblemáticos

de uma leitura que reforça tanto a globalização econômica quanto as capacidades

e recursos das empresas transnacionais, além de um explícito clamor pela

colaboração dos líderes de negócios para assegurar uma nova etapa de liberalismo

enraizado (conceito explicativo de Ruggie) agora em âmbito global. No discurso,

Annan inicialmente convida os líderes de negócios a se engajarem na Missão da

ONU:

I am delighted to join you again at the World Economic Forum.

This is my third visit in just over two years as Secretary-

General of the United Nations. On my previous visits, I told you

of my hopes for a creative partnership between the United

Nations and the private sector. I made the point that the

everyday work of the United Nations -- whether in

peacekeeping, setting technical standards, protecting

intellectual property or providing much-needed assistance to

developing countries -- helps to expand opportunities for

business around the world. And I stated quite frankly that,

without your know-how and your resources, many of the

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 7: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

97

objectives of the United Nations would remain elusive (Annan, 1999).

Além de insistir que a Missão da ONU não poderia ser efetivada sem o

apoio das empresas, Annan ainda destaca que as empresas e a ONU podem se

apoiar mutuamente, com vistas a que os objetivos de ambas possam ser

alcançados (Annan, 1999). Em tal perspectiva, propõe então um Pacto Global, o

qual garantiria uma face humana ao capitalismo:

This year, I want to challenge you to join me in taking our

relationship to a still higher level. I propose that you, the

business leaders gathered in Davos, and we, the United

Nations, initiate a global compact of shared values and

principles, which will give a human face to the global market (Annan, 1999).

Para justificar tal proposta, o Secretário-Geral reivindica um entendimento

de fragilidade da globalização e defende a necessidade de construir um

liberalismo enraizado em âmbito global, a partir de uma análise histórica. Fica

mais evidente aqui a contribuição de John Ruggie, quem reconhece que a base

teórico-conceitual que fundamenta o Pacto Global remete diretamente ao artigo

por ele escrito em 1982 sobre a crise do “liberalismo enraizado” e o imperativo de

reconstruí-lo em outras bases (Ruggie, 2008). Tal leitura transparece no discurso

de Annan ao FEM:

Globalization is a fact of life. But I believe we have

underestimated its fragility. The problem is this. The spread of

markets outpaces the ability of societies and their political

systems to adjust to them, let alone to guide the course they

take. History teaches us that such an imbalance between the

economic, social and political realms can never be sustained

for very long. The industrialized countries learned that lesson

in their bitter and costly encounter with the Great Depression.

In order to restore social harmony and political stability, they

adopted social safety nets and other measures, designed to limit

economic volatility and compensate the victims of market

failures. That consensus made possible successive moves

towards liberalization, which brought about the long post-war

period of expansion. Our challenge today is to devise a similar

compact on the global scale, to underpin the new global

economy. If we succeed in that, we would lay the foundation for

an age of global prosperity, comparable to that enjoyed by the

industrialized countries in the decades after the Second World

War. Specifically, I call on you -- individually through your

firms, and collectively through your business associations -- to

embrace, support and enact a set of core values in the areas of

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 8: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

98

human rights, labour standards, and environmental

practices.(…) What we have to do is find a way of embedding

the global market in a network of shared values (Annan, 1999).

Annan ainda critica os que entendem que deveriam ser impostas barreiras

ao comércio global, sugerindo que uma articulação política conjunta da ONU com

as empresas teria o potencial de garantir a expansão do comércio global e a

abertura de mercados:

There is enormous pressure from various interest groups

to load the trade regime and investment agreements with

restrictions aimed at reaching adequate standards in the

three areas I have just mentioned. These are legitimate

concerns. But restrictions on trade and impediments to

investment flows are not the means to use when tackling

them. Instead, we should find a way to achieve our

proclaimed standards by other means. (…) More

important, perhaps, is what we can do in the political

arena, to help make the case for and maintain an

environment which favours trade and open markets (Annan, 1999).

Coloca, por fim, a ONU e suas agências à disposição dos líderes de

negócios:

Indeed, I believe the United Nations system does have

something to offer. The United Nations agencies -- the United

Nations High Commissioner for Human Rights, the

International Labour Organization (ILO), the United Nations

Environment Programme (UNEP) -- all stand ready to assist

you, if you need help, in incorporating these agreed values and

principles into your mission statements and corporate

practices. And we are ready to facilitate a dialogue between

you and other social groups, to help find viable solutions to the

genuine concerns that they have raised (Annan, 1999).

Como o discurso de Kofi Annan, propondo um Pacto Global, foi bem

recebido pelo FEM, nos meses seguintes do ano de 1999 Ruggie e Kell tiveram

que transformar o discurso em um conteúdo programático, construindo assim os

primeiros nove princípios que constituem o Pacto. Não ocorreram trabalhos

preparatórios envolvendo Estados-parte e outros atores, apenas um processo

informal de consultas, sobretudo com agências da própria ONU, já que a

justificativa para o texto dos princípios que compõem o Pacto está no fato de que

estes derivam do acúmulo normativo da própria ONU naqueles temas, ou seja, em

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 9: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

99

direitos trabalhistas com base na Declaração de Princípios e Direitos

Fundamentais no Trabalho (1998)4, da Organização Internacional do Trabalho,

em direitos humanos com base na Declaração Universal de Direitos Humanos

(1948), e em proteção ambiental com base na Declaração da Conferência da ONU

sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992) no Rio de Janeiro (Ruggie,

2008). Em suma, o Pacto Global propõe que as empresas se comprometam a

adotar as seguintes diretrizes ou princípios básicos que indiquem sua

responsabilidade social5:

Princípios de Direitos Humanos 1. Respeitar e proteger os direitos humanos; 2. Impedir violações de direitos humanos;

Princípios de Direitos do Trabalho 3. Apoiar a liberdade de associação no trabalho; 4. Abolir o trabalho forçado; 5. Abolir o trabalho infantil; 6. Eliminar a discriminação no ambiente de trabalho;

Princípios de Proteção Ambiental 7. Apoiar uma abordagem preventiva aos desafios ambientais; 8. Promover a responsabilidade ambiental; 9. Encorajar tecnologias que não agridem o meio ambiente.

Princípio contra a Corrupção6

10. Combater a corrupção em todas as suas formas inclusive extorsão e propina.

Em torno de um ano e meio depois do lançamento do Pacto, em 26 de

julho de 2000, a ONU organizou a primeira Cúpula de Líderes do Pacto Global,

contando então com a adesão de 50 grandes empresas e líderes de organizações

que atuam nas áreas de trabalho, meio-ambiente e desenvolvimento. Instalado o

Pacto, dava-se início ao principal processo de responsabilidade social das

4 Adotada apenas alguns meses antes do lançamento do Pacto Global (Bull and McNeill, 2007, 98). 5 Os dez princípios universais do Pacto Global são derivados da Declaração Universal de Direitos Humanos, da Declaração da Organização Internacional do Trabalho sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção. 6 Este último princípio foi acrescentado pela ONU em 2004.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 10: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

100

empresas no âmbito das Nações Unidas. Ainda que Kofi Annan tenha buscado

através de diferentes agências da ONU se aproximar do setor privado, o Pacto

Global representa a principal iniciativa de cooperação entre a ONU e as empresas.

Trata-se do marco de referência de que a ONU não estaria atuando contra as

empresas transnacionais, mas com elas (May, 2006, 273)

Cumpre ressaltar que ainda que críticos como o CETIM reclamem de que

Kofi Annan teria sugerido o Pacto Global em Davos sem um mandato legítimo

concedido pelos governos dos Estados-parte da ONU, nos anos seguintes foram

muitas as menções de apoio ao Pacto Global por parte de governos, garantindo ao

Pacto um apoio intergovernamental expresso, ou seja, legitimando a posteriori as

ações do Secretário-Geral e demais órgãos da burocracia das Nações Unidas. O

suporte dado ao Pacto Global pelo governo da Alemanha, na Assembléia Geral da

ONU, serviu de justificativa para que a Assembléia Geral incluísse o tema da

parceria público-privado anualmente em sua agenda permanente sob o título

Towards Global Partnerships (Martens, 2007, 16).

Analisando seu papel de principal proponente do Pacto Global como

estratégia da ONU diante do aprofundamento da globalização econômica, Ruggie

entende que este se articula com sua reflexão acadêmica caracterizada por um

construtivismo social que enfatiza o papel das normas e o poder das idéias em

processos de soft power que engendram legitimidade social, o que seria o desafio

permanente para a própria viabilidade das organizações internacionais, já que

estas não possuem exércitos ou a faculdade de taxar (Ruggie, 2008, 176). Trata-

se, portanto, de discutir

The way in which you can pursue, or develop and then pursue,

a change agenda, if you are not the most powerful kid on the

block. If I am a superpower, I’ve got lots of resources to draw

on in order to get my way in the world. But if I am just the UN,

without an army and without the power of taxation, I have got

to have better ideas than other people, and I have got to figure

out how to build on shared identities and notions of legitimacy,

which of course a superpower should also do, and if (it) doesn’t

it can get into trouble, but at the UN that is your daily bread.

(…) So, at the UN you deal with soft power, you deal with

social norms and ideas (Ruggie, 2008, 176).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 11: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

101

Para Georg Kell, o enfoque é ainda mais pragmático. Trata-se do fato de

que os governos são lentos e as empresas são rápidas na hora de tomar medidas e

implementá-las, já que elas já têm uma visão global e vêem os Estados tanto como

presos a um passado, com dificuldades para encarar desafios de investimentos

futuros, quanto como presos a uma abordagem de soberania territorial, com

dificuldades para tratar de agendas globais que fujam do âmbito

nacional/internacional (Kell, 2008, 184). Destarte, Kell sobrepõe a afinidade da

ONU com as empresas àquela entre a ONU e os Estados:

In many ways, I would argue, global business, which goes

beyond Nation-States, has a greater affinity to the UN issues,

because they have to face these issues whether they like it or

not. There is a risk and a downside: if some of these issues are

not solved, business viability won’t be assured either. So, the

affinity is very strong (Kell, 2008, 184).

Embora reforce o quão importante é para ONU trabalhar com as empresas,

ao ser questionado sobre o significado da emergência de uma autoridade privada,

Kell esclarece que esta não substitui de forma alguma o papel dos governos, ou

seja, que muitas vezes o internacional prevalece diante do global quando se pensa,

por exemplo, em negociações de acordos ou em intervenções militares. O que ele

considera o ideal estaria distante ainda da realidade. Deste modo, o Pacto Global,

os atores globais e as iniciativas voluntárias deveriam ser vistos, no entender do

diretor do Pacto Global, como potenciais incentivadores de tendências positivas

ou como aqueles que preenchem e remediam espaços de governança global, ainda

não cobertos pelos Estados (Kell, 2008, 191). É o que ele descreve como “little

islands of better improvements”, diante da grande lacuna ainda existente na

governança global (Kell, 2008, 182). Ele resgata, entretanto, o avanço que a

integração global das empresas representa para o mundo, fazendo com que elas

transcendam o pensar e o agir para além do Estados:

They are becoming globally integrated – something I personally

love, because it means they are no longer vested in one

government, they have to pay attention to many governments. I

think this is a good trend – what IBM has done, what GE is

doing, what all the others are doing, they are globally

integrated. Look, IBM has more engineers in India than they

have in the U.S. Is IBM still an American company? Yes,

someway it is – sure the culture and so on. But the binding, the

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 12: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

102

ownership, is increasingly diffused globally. I think it is great

because brings nations and people closer together. It

transcends the traditional Nation-State rivalry and thinking. It

builds bridges (Kell, 2008, 191).

Ao ser questionado sobre o porquê de o Pacto Global não aparecer na

página web do FEM, tendo sido este o espaço inicial de lançamento da proposta

do Pacto, Kell analisa que o FEM é apenas um fórum, um espaço de encontro

anual, um grande show, o qual foi utilizado por Annan para gerar uma

aproximação com a comunidade empresarial (Kell, 2008, 190), mas sem maiores

pretensões de parceria.

Além do FEM, cumpre observar ainda o papel desempenhado pela Câmara

de Comércio Internacional (CCI) nos bastidores do Pacto Global. Sob a

presidência de Helmut Maucher, o presidente da Nestlé, a partir de 1997, a CCI

vivenciava uma busca de legitimidade similar à da ONU com a nova Secretaria-

Geral nas mãos de Annan. Coincidiam os interesses de aproximação entre uma

CCI, desejosa de uma aceleração da globalização do capital, e a ONU, as duas

organizações querendo aprofundar a sua relevância e influência na política

mundial. A convergência entre as duas foi garantida, no contexto imediatamente

anterior ao lançamento do Pacto, através do encontro Diálogo de Negócios de

Genebra (Geneva Business Dialogue) com vários seminários durante dois dias,

articulando empresas e funcionários da ONU, evento que foi concluído com uma

Declaração (Geneva Business Declaration), a qual clamava por uma aceleração da

globalização (Hocking & Kelly 2003, 219-220). Mesmo assim, a CCI manteve

uma relação de certa desconfiança com o Pacto Global, verificada em sua postura

vigilante para que o Pacto não fosse apropriado por ONGs, tornando-se assim

uma das principais responsáveis por garantir de que as empresas se mantivessem

em posição superior à das ONGs neste espaço, através de uma relação

instrumental de neutralização da participação das ONGs, incluindo-as e

excluindo-as quando necessário (Hocking & Kelly, 2003, 223-224).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 13: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

103

4.2.

A estrutura e a evolução do Pacto Global

Compõem o Pacto Global seis agências da ONU e em torno de 8000

participantes, sendo 6000 empresas e 2000 representantes de sindicatos e

organizações da sociedade civil, sediados em mais de 135 países7. Desde 2005, as

empresas vinculadas devem apresentar periodicamente Comunicações de

Progresso (COP) informando o que tem feito para cumprir com os princípios do

Pacto. As que não apresentam essas Comunicações podem ser suspensas ou

retiradas definitivamente da relação de empresas filiadas ao Pacto. No sítio web

do Pacto Global, pode-se ter acesso tanto à lista de empresas que não tem

apresentado as Comunicações de Progresso, em torno de 50% do total de

empresas participantes, quanto às Comunicações das que enviam os relatórios

periodicamente (2452 empresas no ano de 2009). No final de 2009, o escritório do

Pacto já havia comunicado a suspensão do vínculo de mais de 1000 empresas com

o Pacto.

Além do Escritório do Pacto Global, a estrutura do Pacto é composta por

seis outras instâncias: a Cúpula de Líderes do Pacto Global, as Redes Locais, o

Fórum Anual de Redes Locais, o Conselho do Pacto Global, a Equipe Inter-

agências da ONU e o Grupo de Doadores do Pacto Global. A Cúpula de Líderes

ocorre a cada três anos (a última se realizou em junho de 2010) e é o maior fórum

de participantes do Pacto Global, reunindo os principais representantes das

organizações que compõem o Pacto e gerando, assim, uma renovação constante

do compromisso dos participantes em torno dos princípios do Pacto Global. Esse

espaço permite uma discussão mais ampla sobre os desafios de implementação do

Pacto, oferecendo as bases do direcionamento estratégico e apontando as ações

prioritárias para os anos seguintes.

Na trajetória do Pacto Global, um dos momentos mais marcantes foi a

Cúpula dos Líderes do Pacto Global, em 2004. A cúpula contou com a

participação de mais de 400 líderes empresariais e consolidou não apenas o Pacto

Global, mas a cooperação da ONU com as corporações transnacionais.

7 Dados do Annual Review 2010 – Anniversary Edition 10 Years (June 2010).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 14: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

104

It was the largest summit of this kind that has ever happened at

the UN. Kofi Annan himself drew attention to the symbolism of

the final event of the conference: for the closing plenary, the

business leaders gathered in the General Assembly Hall and sat

in the seats normally occupied by government representatives.

Not least because of this symbolism, the summit marked a

climax in the new definition of the relationship between the

United Nations and the private sector – the conflict of previous

years is abandoned in favour of cooperation and partnership (Martens, 2007, 17).

Para além do Pacto Global, observa-se o papel desempenhado pela Cúpula

de 2004 em assinalar um novo estágio de parceria da ONU com as empresas, com

ambos os lados assumindo o compromisso de cuidar conjuntamente de temas

essenciais da agenda social global. Foi a partir da Cúpula de 2004 que foi

estabelecida a obrigatoriedade de as empresas apresentarem anualmente

Comunicações de Progresso (COPs), como parte de procedimentos que garantam

Medidas de Integridade do Pacto.

Organizadas nacionalmente ou em uma região geográfica específica, as

mais de 90 Redes Locais emergentes ou já existentes tem como propósito

acompanhar a expansão do Pacto pelo mundo, assim como motivar um fórum de

diálogo e ação local na perspectiva, inclusive, da adesão de novos membros. Elas

cumprem, de um lado, um papel de apoio e incentivo às empresas locais e às

subsidiárias de empresas estrangeiras para uma progressiva implementação dos

princípios do Pacto e, por outro lado, de suporte ao escritório do PG quando se faz

necessário um acompanhamento local sobre as comunicações de progressos e as

medidas de integridade. As Redes Locais estão diretamente interligadas com as

outras instâncias de governo do Pacto Global: oferecem subsídios para a agenda

da Cúpula de Líderes e para as atividades do escritório do Pacto Global, indicam

candidatos para as eleições do Conselho do Pacto Global e organizam o Fórum

Anual de Redes Locais:

The Annual Local Networks Forum is the main occasion for

Local Networks from around the world to share experiences,

review and compare progress, identify best practices, and adopt

recommendations intended to enhance the effectiveness of Local

Networks (Global Compact website, 2010).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 15: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

105

O Conselho do Pacto Global é a instância de acompanhamento do

planejamento e da execução de políticas do Pacto Global. Ainda que os membros

do Conselho sejam os representantes diretos dos sindicatos, empresas,

organizações da sociedade civil ou agências da ONU que compõem o Pacto, eles

têm sua participação ironicamente descrita como heróica pelo compromisso

“pessoal” que implica em dedicar-se ao Conselho:

The 20 Board members are champions willing and able to

advance the Global Compact’s mission. Members of the Board

act in a personal, honorary and unpaid capacity. Their Board

membership does not render them UN officials (Global

Compact website, 2010).

Cabe ao Conselho, em suas reuniões anuais, fazer recomendações ao

Escritório do Pacto Global, observar o cumprimento das medidas de integridade e

monitorar as políticas e estratégias do processo de aprofundamento do Pacto

Global. Os membros do Conselho estão divididos em quatro grupos constitutivos

que atuam conjuntamente, mas também reportam em separado ao Escritório:

empresários (13 representantes), organizações internacionais de trabalhadores ou

de empresários (4 representantes, 2 de cada), sociedade civil (4 representantes).

Além disso, o Secretário-Geral da ONU, o presidente da Fundação para o Pacto

Global e o diretor executivo do Escritório do Pacto Global têm assentos ex-officio

no Conselho.

A estrutura central de apoio ao Pacto Global no âmbito da ONU é o

Escritório do Pacto Global (EPG). No edifício da ONU em Nova York, o

Escritório sedia um grupo de funcionários diretamente envolvidos na execução e

ampliação do Pacto8. Com limitações de orçamento e de pessoal, o EPG é um

setor especial do escritório do Secretário-Geral e atua como pólo de aglutinação,

diálogo e informação para os atuais e potenciais participantes, assim como no

fomento de parcerias e estudos relativos aos princípios e aos desafios de

fortalecimento do Pacto. Sob a direção zelosa de Georg Kell desde o início

8 Os dados sobre o Pacto Global aqui apresentados foram retirados do sítio web do Pacto Global (<http://www.unglobalcompact.org>), o qual é bastante completo e permanentemente atualizado pelo escritório do pacto.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 16: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

106

(Sagafi-nejad, 2008, 196), o escritório do Pacto é, em outras palavras, a sua base

operacional.

O Escritório representa a Equipe Inter-Agências da ONU e a si próprio no

Conselho. Também dá o suporte operacional para a realização da Cúpula de

Líderes, das reuniões do Conselho e do Fórum Anual de Redes Locais. Endossado

pela Assembléia Geral da ONU, o EPG desenvolve diversos papéis de “partilha

de boas práticas no sistema ONU”, assim como “responsabilidades de advogar e

liderar questões, fomentar o desenvolvimento de redes e manter as comunicações

do Pacto Global” (sítio web do Pacto Global, tradução livre). Tem ainda “total

responsabilidade pelo gerenciamento da marca e implementação das medidas de

integridade” do Pacto Global (Global Compact website, 2010, tradução livre).

Seis agências da ONU formam a Equipe Inter-Agências: o Escritório do

Alto-Comissariado para os Direitos Humanos, a Organização Internacional do

Trabalho, o Programa das Nações Unidas para o Meio-Ambiente, o Escritório das

Nações Unidas para Drogas e Crime, o Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento e a Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento

Industrial. Essa Equipe tem o papel de disseminar o Pacto dentro da ONU e junto

aos demais participantes, assim como de aconselhar no acompanhamento dos

procedimentos de queixas de descumprimento de medidas de integridade. Como

descrito anteriormente, a Equipe Inter-Agências é representada no Conselho pelo

Escritório do Pacto Global.

Por último, o Grupo de Doadores do Pacto Global é constituído pelos

governos de Estados que contribuem voluntariamente para um Fundo de

Confiança (Trust Fund) da ONU. Reúne-se duas vezes ao ano para revisar o

cumprimento efetivo eficiente das contribuições, revisando os avanços obtidos

pelo Pacto Global. Atualmente, contribuem para o Fundo os governos da China,

Colômbia, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Itália, Coréia do Sul,

Noruega, Espanha, Suécia, Suíça e Reino Unido.

Em paralelo ao Grupo de Doadores e fora da estrutura formal do Pacto, foi

criada uma Fundação para o Pacto Global, a qual recebe apoios financeiros das

empresas que são parte do Pacto, perante contribuições anuais voluntárias. O

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 17: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

107

dinheiro arrecadado por esta Fundação (1.7 milhão em 2009) é investido em

programas, eventos e publicações do Pacto Global. A empresa que mais dá

suporte financeiro ao Pacto é a SAP, do ramo de softwares de gestão de negócios,

a única com contribuição acima de 100.000 dólares. Entre as 10 empresas que se

destacam por uma contribuição financeira ao Pacto Global entre 20.000 e 99.999

dólares, encontram-se Nestlé, Coca-Cola, Dow Chemical, Unilever,

Bosch/Siemens e Vale do Rio Doce, entre outras. Além destas, outras empresas

conhecidas oferecem uma contribuição expressiva (entre 10.000 e 19.999 dólares)

como é o caso de Accenture, Allergan, Banco Bradesco, Lindt, De Beers,

CEMIG, Deustche Telekom, General Mills, Hewlett-Packward, Intel, JCPenney,

Novartis, entre outras. Neste grupo, deve-se destacar a presença de empresas

chinesas como a China Mobile Communications Corporation, a China National

Offshore Oil Corporation (CNOOC), a PetroChina Company Limited, a Shanghai

Baosteel Group Corporation, entre outras.

Desde o começo, está lançada a questão da necessidade de desenvolver

mais os instrumentos de monitoramento a fim de garantir um efetivo

comprometimento (enfoque moral) por parte das empresas (Sagafi-nejad, 2008,

197). Em 2001, em uma fase piloto de implementação do Pacto, quando ainda não

haviam sido desenvolvidos mecanismos, 42 empresas responderam a uma

solicitação para descrever livremente como agiam para garantir o cumprimento

dos princípios do Pacto. Entre essas empresas, estavam algumas de grande peso

global como a British Telecom, a Shell, a Basf, a SAP, a Unilever, entre outras

(Sagafi-nejad, 2008, 197). Observa-se que, no final das contas, mesmo com o

desenvolvimento de mecanismos como a Comunicação de Progresso, as empresas

seguem tendo apenas uma obrigação para se manterem como parte do Pacto:

relatar periodicamente sobre como seu comportamento guarda adequação com os

princípios do Pacto Global (May, 2006, 274). Em outras palavras, os avanços têm

sido mais procedimentais do que com relação ao caráter voluntário e ao perfil de

espaço de aprendizagem e conscientização. Quer-se, portanto, priorizar uma

construção conjunta em torno de princípios e não investir em processos de

denúncia e enfrentamentos que poderiam gerar mais afastamento do que adesão da

comunidade empresarial a uma cultura de direitos humanos.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 18: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

108

4.3.

O diagnóstico do Pacto para Ruggie e Kell, os principais

responsáveis pela iniciativa

Para aprofundar a análise sobre o papel desempenhado pelo Pacto Global

nas transformações da ordem mundial, serão observadas primeiramente as

interpretações de aspectos positivos e negativos do Pacto apontadas pelos próprios

responsáveis por sua elaboração. Convencidos em termos gerais do êxito da

iniciativa, Ruggie e Kell identificam vitórias, resultados inesperados, deficiências,

limitações e desafios no processo de construção institucional do Pacto. Desde

logo, deve-se observar que, para Ruggie, o Pacto Global se insere em sua

perspectiva de construção de uma esfera pública global, de uma crise do

liberalismo enraizado nos Estados para a possibilidade de que esse liberalismo

enraizado se dê agora em uma dimensão global.

Em artigo publicado em 2003 sob o título “Taking Embedded Liberalism

Global: The Corporate Connection”, Ruggie situa o Pacto Global como a

oportunidade para as empresas transnacionais, principais responsáveis pelas

lacunas produzidas na governança global, estabelecerem uma ponte entre a

globalização da economia e as comunidades nacionais, visando inclusive ao

engajamento dos Estados no desafio de produzir uma esfera pública global, o que

se justificaria diante da insuficiência e do enfraquecimento das organizações

internacionais, assim como da ausência de um governo global (Ruggie, 2003, 02):

Specifically, I focus on the contribution of the dynamic

interplay between civil society, business and the public sector

over the issue of corporate social responsibility. (…) The

burden of my argument, with due appreciation for the irony, is

that the corporate sector, which has done more than any other

to create the growing gaps between global economy and

national communities, is being pulled into playing a key

bridging role between them. In the process, a global public

domain is emerging, which cannot substitute for effective action

by states but may help produce it (Ruggie, 2003, 02).

À análise de Ruggie sobre o Pacto Global como uma oportunidade de

enraizar o liberalismo globalmente, deve-se somar outras avaliações trazidas pelos

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 19: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

109

autores que estiveram por trás da elaboração da proposta e da síntese de princípios

do Pacto. Optou-se aqui por sistematizar as outras facetas identificadas no

diagnóstico realizado por Ruggie e Kell a partir de dez eixos específicos de

análise.

a) A convergência em torno de um enfoque de responsabilidade

social das empresas

No entendimento de Ruggie, o Pacto Global se tornou o ponto focal, o

âmbito de convergência em torno de uma cultura de responsabilidade social das

empresas (RSE) (Ruggie, 2008, 172). Antes do Pacto, ele observa que havia entre

as empresas e outros atores apenas uma cacofonia sobre RSE, não um discurso.

Foi a ONU que conferiu legitimidade à agenda de RSE com o Pacto Global, já

que este se sustenta em princípios universais consagrados pelos Estados na

Organização. Assim, ele defende que as outras iniciativas existentes sobre RSE

(como as diretrizes da OCDE e as da OIT, e outras como SA8000, ISO26000,

GRI, etc.) deveriam convergir para o Pacto Global, já que elas têm perfis mais

específicos enquanto o Pacto tem um caráter mais geral, ou, como o nome mesmo

diz, global (Ruggie, 2008, 174; Kell, 2008, 185-186). Portanto, Ruggie analisa

que o Pacto Global conseguiria legitimar uma agenda global de RSE justamente

por não ser uma iniciativa isolada de empresas ou de ONGs, e sim uma iniciativa

da ONU proporcionando um ambiente favorável a convergências com base nos

princípios universais da própria ONU (Ruggie, 2008, 172). Mais do que isso,

trata-se de uma oportunidade de impacto histórico, pois visa a “enraizar o

mercado global em valores sociais e práticas institucionais partilhados” (Ruggie,

2003, 02), implicando precisamente as corporações, as quais seriam as

responsáveis pelas lacunas entre “a economia global e as comunidades nacionais”,

para que assumam sua quota de responsabilidade e se articulem na perspectiva de

construir formas mais inclusivas de governança global (Ruggie, 2003, 02). Essa é

também a percepção de Kell, que compara a relação entre o Pacto Global e as

outras iniciativas com a de uma nave-mãe e seus satélites:

In the architecture of voluntary initiatives, the Compact -

because of its UN branding, because of its principles that

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 20: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

110

arrived from international frameworks - has a very special

place. We consider ourselves to be like a mothership, which is

very happy to see satellites grow and then offsprings (Kell, 2008: 186).

Kell ainda defende que o Pacto Global garantiu um lugar de destaque ao

tema de RSE dentro das empresas, quando muitas vezes tais temas não-

financeiros eram tratados de forma marginal (Kell, 2008, 183). No entanto, ainda

que enalteça o papel de convergência do Pacto diante de outras iniciativas, Kell

compreende que a arquitetura da responsabilidade das empresas se encontra em

um processo de evolução e muito ainda está sendo construído nesse sentido (Kell,

2008, 185). Contudo, Ruggie observa que, passados vários anos de

implementação do Pacto, já se pode perceber limitações de uma agenda restrita de

responsabilidade social das empresas em algumas partes do mundo, embora para

outras partes tal agenda ainda é percebido como nova e útil (Ruggie, 2008, 172).

b) A acolhida nos países em desenvolvimento, com destaque

para os emergentes

Uma das principais surpresas para Ruggie e Kell durante o processo inicial

de implementação do Pacto foi sua ampla absorção e difusão nos países em

desenvolvimento, algo que era esperado, mas em intensidade menor do que a por

eles verificada (Ruggie, 2008, 171; 173; Kell, 2008, 183). Ruggie observa de

forma anedótica que para as empresas dos países em desenvolvimento o

significado da adesão ao PG era de razão extremamente prática: “to signal to the

international market place that they understood what CSR is and that they,

therefore, are reliable partners in global supply chains” (Ruggie, 2008, 173). Ele

narra que participantes de empresas de países em desenvolvimento vêem ainda o

Pacto como uma oportunidade de enfrentar uma cultura ultrapassada de relação

entre empresas e governos no âmbito nacional, apontando o Pacto como um

exemplo de cooperação na esfera global que deveria dar o tom da relação

governos – empresas na busca de garantir conjuntamente resultados de objetivos

de desenvolvimento nacionais (Ruggie, 2008, 173).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 21: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

111

Para Georg Kell, o Pacto Global é uma iniciativa global e não uma

iniciativa dos Estados do Norte. Ele destaca o peso da participação dos mercados

emergentes no Pacto, pois mais da metade das empresas que participam do Pacto

vêm desses mercados. Empresas de países como Brasil, Índia, África do Sul,

Tailândia e China são percebidas como cada vez mais orientadas para fora e,

portanto, partilhando de interesses comuns com o Pacto em termos de querer

impulsionar a globalização (Kell, 2008, 183). Entre esses países, o caso chinês é

resgatado por Kell de forma especial, sendo a utilização do Pacto por grandes

empresas chinesas identificada como “uma pequena realização histórica”,

representando “a integração da China no mercado global” e “uma contribuição

genial para a evolução dos mercados globais” (Kell, 2008, 183).

c) A materialização de um discurso moral

Na fase inicial do Pacto Global, os princípios eram percebidos como uma

espécie de código moral a ser observado. Contudo, os novos mecanismos de

comunicação, as parcerias realizadas e o envolvimento da comunidade de

investidores permitiram dar aos princípios uma dimensão efetivamente material.

No processo de implementação do Pacto, tem sido possível articular as dimensões

moral e material, principalmente depois do Pacto lançar o documento “Princípios

de Investimento Responsável” (PRI) na Bolsa de Valores de Nova York.

Constrói-se assim uma espécie de cláusula de adesão ao PG para que as empresas

garantam sua viabilidade financeira (Kell, 2008, 182). Esta questão do êxito em

encontrar a dimensão material do Pacto, ressaltada por Kell na entrevista,

encontra-se também destacada no Relatório 2010 do Pacto Global.

d) O enfoque horizontal englobando vários atores envolvidos

O Pacto Global é descrito como uma iniciativa multi-stakeholder, ou seja,

envolve as diversas partes interessadas na agenda de responsabilidade das

empresas (Sagafi-nejad, 2008, 198). Para Ruggie, um dos principais êxitos da

implementação do Pacto está no enfoque horizontal dado ao mesmo, por envolver

não apenas o capital transnacional mais evidente - as indústrias de setores como

“mineração, calçados e vestuário”, mas também “diferentes setores como a

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 22: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

112

comunidade de investimentos, os fundos de pensão”, entre outros (Ruggie, 2008,

171). Como exposto no item anterior, o PRI foi um divisor de águas, por trazer a

dimensão de investimentos de longo prazo em articulação com a participação de

empresas no Pacto (Kell, 2008, 182). Em que pese o enfoque horizontal, Kell

reconhece que há uma grande lacuna entre as performances das sedes das

empresas e de suas subsidiárias, o que representa um desafio para a

implementação do Pacto (Kell, 2008, 183).

Quanto à questão de como as ONGs se inserem no PG, uma crítica

recorrente ao Pacto, Kell faz uma avaliação positiva. Ele analisa que a relação do

Pacto Global com as ONGs vem se fortalecendo, tanto pela presença de ONGs no

Conselho do PG, quanto pelas parcerias verificadas nas redes locais. Ele

menciona a Anistia Internacional e a Transparência Internacional como dois bons

exemplos de ONGs contribuindo para aprofundar a aprendizagem sobre como

utilizar os princípios do Pacto. Contudo, Kell também reconhece a existência (e,

para ele, o equívoco) de um movimento de justiça global que mantém uma

resistência ideológica ao Pacto, insistindo em ver a comunidade empresarial como

um grupo de inimigos que de forma alguma poderiam ser parceiros da ONU (Kell,

2008, 189).

e) O impacto dentro da ONU

Na apresentação do Relatório Anual 2010, que celebra os 10 anos do Pacto

Global, o Secretário-Geral Ban Ki-moon destaca o impacto que a ONU e suas

agências vivenciam na cooperação com o mundo empresarial, através de parcerias

e podendo contar com os recursos e capacidades de que as empresas dispõem. Ele

afirma que as empresas têm contribuído para difundir e consolidar a Missão da

ONU no mundo.

Os reflexos do Pacto Global internamente na ONU são apontados por

Ruggie como algo extremamente positivo para a Organização (Ruggie, 2008,

171). Durante os primeiros anos de implementação do Pacto, houve uma grande

desconfiança de setores e agências de dentro da Organização, mas eles acabaram

cedendo ao potencial que as parcerias público-privadas representavam para o

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 23: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

113

próprio fortalecimento das atividades da ONU. O caso mais paradigmático talvez

seja o surgimento do setor privado do PNUD, já apontado no capítulo anterior na

ótica da crítica desenvolvida por Catia Gregoratti. Ruggie conta que recebeu a

visita do Diretor do setor privado do PNUD, o qual destacou a relevância do Pacto

Global na condução da transformação da própria visão e estratégia de

desenvolvimento da ONU:

(He) was here and said essentially that the Global Compact

provides the inputs and the framework for varies arms or varies

branches of the UN including in the development area to

construct business engagement strategies of their own and to

think of business not simply either as an object of regulation or

as a source of funds, but as a stimulus to growth and

development, as a source for institutional and organizational

capacity, technology and alike (Ruggie, 2008, 171).

Percebe-se, assim, que a visão partilhada por Ruggie e Annan de

aproximar a ONU da comunidade empresarial, redimensionando a Organização de

um caráter internacional para um patamar mais global, vem sendo gradativamente

alcançada, a partir do engajamento crescente dos setores e agências da ONU na

realização de parcerias “promissoras” com o setor privado.

f) A facilitação de diálogo mediante redes locais

Por não dispor de uma grande estrutura de monitoramento das

Comunicações de Progresso, nem ter sido constituído como um espaço de

regulação da conduta das empresas, o Pacto Global tem se apoiado bastante no

trabalho das redes locais, descritas como “vibrantes”, pelo Diretor do Pacto (Kell,

2008, 183). Kell informa que o monitoramento da veracidade das COPs é feito

pelas redes locais com base em um procedimento de “facilitação de diálogo”.

Deste modo, os atores envolvidos com o Pacto deixam de se referir a queixas

contra as empresas e passam a tratar de uma facilitação de diálogo exercitada no

âmbito das redes locais, as quais teriam o poder, inclusive, de vetar previamente a

adesão de uma empresa ao Pacto e de recomendar a retirada de empresas da lista

de participantes:

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 24: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

114

When a company is joining now, there is some primarily vetting happening. We ask our networks if there is any real reason they have why the company should not be allowed to join the Compact (…). And we give networks increasingly the power. We have a few cases right now which are pending where some networks want to throw out some companies because of their abuse of the association with the Compact. The networks make the recommendations to us and we endorse it. So, this is our caretaking of the brand (Kell, 2008, 188).

Kell ainda ressalta o fato de que a transparência e difusão pública das

COPs na página web do PG é o que garante justamente a possibilidade de

monitoramento externo por parte das redes locais (Kell, 2008, 183; 187).

g) Absorção e aplicação diferente dependendo da cultura

político-econômica de cada país.

Ainda que Kell assinale um ótimo balanceamento Norte-Sul entre os

participantes do Pacto Global (Kell, 2008, 188-189), faz-se necessário notar que

há diferentes características e tempos no processo de absorção e aplicação do

Pacto em cada país, como explica Ruggie (Ruggie, 2008, 172). Desde o começo,

houve a adesão, sobretudo de empresas européias ao Pacto, sendo a Nike um caso

à parte, em virtude das peculiaridades das denúncias contra a empresa à época. As

empresas européias que aderiram no começo vinham principalmente da

Escandinávia e, em seguida, da Alemanha e da França. Notava-se aí, de acordo

com a análise de Ruggie, uma perspectiva de identificação dessas empresas

européias como uma forma de transposição da experiência histórica da social-

democracia nacional para a esfera global. Nesse sentido, ele analisa que o perfil de

adesão das empresas está freqüentemente relacionado com a construção política

de cada sociedade em cada país (Ruggie, 2008, 173; 180).

Chama a atenção nesse aspecto a baixa adesão de participantes dos

Estados Unidos, o que Ruggie e Kell entendem estar relacionado justamente ao

fato de a ONU não ser tão respeitada nos Estados Unidos como em outros países

do mundo (Kell, 2008, 189; Ruggie, 2008, 180) e, sobretudo, ao fato de as

empresas estadunidenses olharem com desconfiança para qualquer processo

governamental e intergovernamental de ingerência no setor privado, ainda mais

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 25: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

115

quando se suspeita que processos assim poderiam levar a um futuro marco

regulatório global para as empresas (Ruggie, 2008, 173).

h) Deficiências no monitoramento e no processo de

aprendizagem: as limitações de recursos humanos

Um dos problemas principais para o aprimoramento do PG estaria nas

limitações de recursos humanos (Ruggie, 2008, 172-173), ou seja, no quadro

reduzido de funcionários operando no Escritório do Pacto Global. Essa deficiência

gera, para Ruggie, uma ainda maior: o Pacto se descreve como um espaço para

conscientização e aprendizagem com relação aos princípios. Porém, como não há

pessoal suficiente para trabalhar com base nas Comunicações de Progresso, estas

terminam não sendo aproveitadas como instrumentos de aprendizado coletivo

(Ruggie, 2008, 177; Kell, 2008, 187). A falta de um monitoramento mais

sistemático seguiria possibilitando a crítica de que há mais quantidade do que

qualidade nas empresas envolvidas, embora a prática recente de retirada de

empresas do rol das participantes (delisting) tenha certo potencial de evitar os free

riders9 (Kell, 2008, 183). Para Kell, a parceria com a Global Reporting Initiative

poderia ajudar a melhorar a questão da análise qualitativa das COPs (Kell, 2008,

183). Contudo, Kell deixa transparecer seu pragmatismo técnico e a lógica

empresarial com que avalia o Pacto ao analisar que aprendizagem, diálogo e

parcerias são apenas conceitos, pois o importante mesmo é obter resultados de

impacto (Kell, 2008, 187).

i) Dificuldades específicas em lidar com os temas

Dois dos temas que englobam os princípios do Pacto Global, direitos

humanos e anticorrupção - são percebidos por Kell como mais difíceis de serem

aplicados, por falta de uma maior precisão com relação a esses temas. Fala-se

muito desses temas, mas há uma grande complexidade na hora de operacionalizá-

los (Kell, 2008, 183). No âmbito específico dos direitos humanos, esta questão

vem sendo solucionada pela interface do Pacto Global com o Mandato de Ruggie

9 Aventureiros morais, na linguagem filosófica, significa aquelas pessoas, entidades ou grupos que buscam apenas os bônus sociais e comunitários, procurando fugir dos ônus que os acompanham.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 26: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

116

como Representante Especial para Empresas e Direitos Humanos, o que será

aprofundado no próximo capítulo. Contudo, Ruggie identifica avanços nas

próprias atividades e parcerias realizadas pelo Pacto em termos de lidar com o

tema de direitos humanos em zonas de conflito. (Ruggie, 2008, 171).

4.4.

As críticas ao Pacto Global

Ao projetar e desenvolver o Pacto Global, as Nações Unidas passam a

estabelecer uma relação mais estreita com as grandes corporações transnacionais,

reconhecidos como agentes privilegiados na luta contra a pobreza. O Pacto Global

não exige, apenas sugere e recomenda o mínimo de conduta responsável para as

empresas, sendo um documento simbólico de boas intenções (Linnecar, 2005). Os

conflitos econômicos e políticos entre Estados e classes sociais são substituídos

por uma noção de interdependência solidária, com caráter eminentemente

neoliberal, e a cidadania cada vez mais se afasta da esfera do público, sendo

redimensionada como cidadania corporativa, conceito associado ao de

responsabilidade social das empresas e aos princípios do Pacto (McIntosh,

Waddock and Kell, 2004).

Desde o seu lançamento, o Pacto Global tem sido alvo de duras críticas por

parte de acadêmicos e ativistas10. De certa forma, a aproximação da ONU com as

corporações transnacionais já vinha sendo criticada por organizações como a

CorpWatch durante a década de 199011. Como são diversas e numerosas as

críticas ao Pacto, elas estão aqui elencadas em separado ainda que alguns autores

10 Uma das principais fontes de críticas ao Pacto Global é o sítio web <http://www.globalcompactcritics.net>, o qual traz as principais notícias que contestam o Pacto Global e compila os principais artigos de acadêmicos, de ativistas e da mídia com análise crítica, expondo as diversas preocupações quanto à existência e limitações do Pacto Global 11 Com base em São Francisco, EUA, Corporate Watch (Corpwatch) foi criada pelo Tides Center, organização que dá suporte a iniciativas sem-fins lucrativos, com a finalidade de desenvolver pesquisa e jornalismo investigativo sobre violações cometidas por empresas e exigir a transparência e mecanismos de accountability internacional das empresas. Corpwatch lançou em setembro de 2000, dois meses após o primeiro encontro do Pacto Global, o documento Tangled Up

in Blue - Corporate Partnerships at the United Nations, o qual se tornou referência pelo uso da expressão bluewashing para indicar o como as empresas se utilizariam do Pacto para lavar sua imagem na bandeira (azul) da ONU. (www.corpwatch.org). Em 2000, Corpwatch ainda era chamada de Transnational Resource and Action Center (TRAC).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 27: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

117

apresentem certos argumentos conjuntamente. São cinco os eixos centrais de

crítica: (a) os fundamentos ou leitura de mundo em que o Pacto se assenta; (b) o

vínculo institucional com a ONU; (c) as limitações estruturais; (d) os resultados

ineficientes; e (e) o esvaziamento da agenda alternativa de regulação.

4.4.1.

A crítica aos fundamentos que justificam a iniciativa

Primeiro, no que se refere aos fundamentos que justificam o Pacto Global,

critica-se a falsa percepção de que o processo de globalização e a elite econômica

mundial são os impulsores do desenvolvimento. Junto a isso, está o problema da

adesão voluntária como presunção de que o interesse das empresas corresponde ao

interesse de longo prazo da sociedade em termos de alcançar padrões ideais

ambientais, sociais e de direitos humanos (Martens, 2004). Como os interesses das

empresas estão voltados para o lucro, torna-se difícil acreditar na sua auto-

regulação. Seja percebido pelos críticos como um acordo institucional para

fortalecer o neoliberalismo, seja para dar ao neoliberalismo uma face mais

humana (Knight & Smith, 2008), o arranjo não discute o desnível fundamental de

autonomia assim como de poderes regulatórios e disciplinadores entre Estados e

empresas transnacionais (Knight & Smith, 2008). Tal desnível, porém,

corresponde a um dos pressupostos de um novo tipo de “governança global” que

seria mais apropriado para os interesses do estágio atual da globalização

neoliberal (Richter 2003, 40-42), ou seja, um processo de governança que tem

como base uma agenda de hegemonia do capital transnacional que impede

mecanismos de regulação e outras formas de freio à sua expansão termina

cumprindo a função de garantir, em última instância, o suporte político ao sistema

capitalista nas instituições internacionais.

4.4.2.

A Estratégia de bluewashing

O segundo eixo de crítica trata do vínculo institucional com a ONU, de

onde surge e onde se localiza a base operacional do Pacto Global. Como já

destacado no lançamento do Pacto Global, Kofi Annan assume um expresso

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 28: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

118

compromisso da ONU com o mundo corporativo e em defesa da globalização do

capital (Martens, 2004). Logo após o primeiro encontro oficial do Pacto Global, o

coletivo Corporate Watch, que articulava várias ONGs, lança um manifesto no

qual clama por uma ONU livre das corporações (Toward a Corporate Free UN) e

denuncia a estratégia das corporações de lavarem sua imagem na bandeira azul da

ONU (bluewashing)12. Além da crítica ao uso da imagem, a Corporate Watch

ainda denuncia a parceria da ONU com empresas reconhecidas publicamente por

violar os princípios do Pacto, o fato de a ONU estabelecer a relação com as

empresas na base de parcerias (e não apenas regulação ou contratação de

serviços), e o equívoco de a ONU aceitar que as empresas assumam

compromissos voluntários não-vinculantes (CorpWatch, 2000). Tal estratégia de

bluewashing por parte das empresas, as quais almejam melhorar sua imagem

pública vinculando-se à Missão da ONU, compromete uma suposta neutralidade

político-ideológica da ONU e permite que a reputação da ONU seja utilizada para

a promoção do capital (Knight & Smith, 2008).

4.4.3.

As limitações estruturais e a insuficiência de resultados

As limitações estruturais e a insuficiência de resultados representam um

terceiro eixo crítico, referindo-se à ausência de mecanismos de controle que

possam garantir que as empresas cumpram com os princípios afirmados no Pacto

(Knight & Smith, 2008). Como o monitoramento se dá, sobretudo, pelo envio

periódico de relatórios de progresso elaborados pelas próprias empresas, e como o

próprio escritório do Pacto Global reconhece suas limitações para verificar a

veracidade de tais relatórios, torna-se difícil assegurar a legitimidade do Pacto

Global em termos de monitoramento e garantia de cumprimento dos princípios.

Para as corporações transnacionais, seria bastante oportuna a adesão a um rol de

princípios com monitoramento limitado ou flexível.

4.4.4.

A cooptação das ONGs

12 Tangled Up in Blue. TRAC- Transnational Resource & Action Center. P. 3.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 29: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

119

O desnível de poder entre empresas e organizações da sociedade civil é

aqui percebido como uma quarta etapa de críticas. O Pacto Global se apresenta

como multi-stakeholder, mas são poucas as ONGs que participam e as que entram

só o conseguem depois de passar pelo filtro dos membros do Pacto (Martens,

2004). Por outro lado, percebe-se uma incipiente reação do escritório do Pacto

Global na ONU à pressão para excluir violadores sistemáticos de direitos

humanos que são constantemente denunciados por ONGs e movimentos sociais

(Richter, 2003)13. De diferentes maneiras, portanto, são utilizadas estratégias de

disciplinamento das ONGs para que não ameacem o bom funcionamento das

atividades do Pacto, ou seja, para que se portem de forma apropriada, sob risco de

não serem bem-vindas. É o que explica Gregoratti após extensa pesquisa sobre os

bastidores das reuniões do Pacto Global:

The Compact’s network is composed, run and legitimised by

neoliberal elites, organic intellectual, MaNGOs (Market Non-

Governmental Organisations) and globalizing bureaucrats.

Participation in the Compact structures and engagement

mechanisms is dependent, amongst others, on material

resources, status, profession, gate keeping and geographical

location. More subtly, the research has identified a tendency by

the Compact Office to ostracise and depoliticize counter-

hegemonic social forces by sanctioning their inability and

unwillingness to work with the Compact, by screening

attendance to Dialogues and Policy Forums, and by setting

agendas for discussion which hold appeal to a narrow, and

mostly corporate, audience (Gregoratti, 2009).

Nesse contexto, nota-se que o fortalecimento das empresas como parceiros

estratégicos no Pacto Global é acompanhada de um processo de deslegitimação de

atores que não são se encaixariam no formato proposto pelas agendas das reuniões

e fóruns de discussão do Pacto. Portanto, cumpre-se um papel de esvaziar a

participação política de certos atores como etapa crucial para o esvaziamento de

propostas alternativas.

4.4.5.

13 É o caso, entre outras, das empresas Nestlé, Nike, Shell, Rio Tinto, Novartis, BASF e Aracruz.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 30: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

120

O esvaziamento de propostas alternativas: marginalizando as

demandas por normas obrigatórias

Um último eixo de crítica que se articula com os anteriores, diz respeito ao

Pacto Global como uma estratégia de esvaziamento de propostas alternativas de

regulação das corporações nas Nações Unidas. O fato de já existir um marco

flexível de diálogo com as empresas dentro da ONU, dificulta avançar e

desacredita a agenda das organizações sociais que demandam “regras vinculantes”

(Martens, 2004; Soederberg, 2007). Ora, se a sociedade internacional reforçou o

poder do mercado com a criação da Organização Mundial do Comércio, na década

de 1990, com vistas a estimular o livre comércio e a entrada do capital

transnacional em todo o mundo, não há contraponto similar que submeta o

mercado a responsabilidades diante dos efeitos colaterais de sua expansão (Knight

& Smith, 2008). Ou seja, o Pacto Global não representa os anseios de um

empoderamento dos Estados e das pessoas diante do aumento do poder das

empresas, mas representa para a ONU e para as corporações a afirmação conjunta

de um mecanismo flexível indicando que algo está sendo feito.

4.5.

Os líderes do Pacto Global em debate com os críticos

O diretor do escritório do Pacto Global responde as críticas feitas ao Pacto,

observando que este não é nada mais do que um processo de aprendizagem e

conscientização para as corporações e demais participantes envolvidos. O

problema estaria então naqueles críticos que projetam expectativas que nunca

estiveram entre os objetivos do Pacto. Respondendo às críticas de Bart Slob,

pesquisador da organização holandesa SOMO14 e principal articulador do sítio

web Global Compact Critics, em um debate promovido pela revista Ethical

Corporation, Kell observa que o ponto central da crítica recebida é mais uma vez

a demanda por um mecanismo que submeta as corporações a normas obrigatórias,

o que o Pacto nunca quis ser:

14 O Centre for Research on Multinational Corporations (SOMO) é uma organização de pesquisa com sede na Holanda. Monitora as políticas e ações de corporações multinacionais e a expansão mundial do capital (<http://www.somo.nl>).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 31: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

121

Your main point is the old argument that the Compact does not

work as a compliance-based system. As a matter of fact, the

Compact never pretended to do so, nor was it designed as one.

The fact that some observers continue to criticize the Compact

for something it never pretended to be is remarkable. Ever since

the inaugural launch on 26 July 2000, we have been very clear

that the Compact is about learning, dialogue and partnerships.

The UN does not endorse companies or their performance.

Rather, it seeks to promote collaborative efforts, transparency

and public accountability (Kell and Slob, 2008).

Nesse sentido, o papel do Pacto Global seria mais o de promoção dos

princípios, do que de proteção e garantia dos mesmos. Ora, como descreve

Ruggie, tanto os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, processo que surge

concomitantemente ao Pacto Global e com base em premissas similares, quanto o

próprio Pacto cumprem um papel mais que todo instrumental como “ferramenta

de mobilização social e política” (Ruggie, 2004). Mais relevante do que os

resultados é a possibilidade de legitimar princípios de conduta globalmente, cujo

impacto não é necessariamente sentido na esfera global tanto quanto na local:

“UN norms, whether on the rights of women or on sustainable development,

rarely cause anything directly; rather, they escape into the world, bearing the

bright seal of legitimacy” (Traub, 2006, 149).

Entretanto, o aspecto positivo de difusão dos princípios do Pacto Global de

uma esfera global para os âmbitos nacional e local, é visto pelos críticos como um

risco de propagação de um modelo elitista neoliberal de governança que,

reproduzido em redes locais e nacionais, gera impacto sobre a estrutura

democrática nesses espaços: “Replication of the Global Compact model all over

the world risks creating new networks of elite governance, entrenching corporate-

led neoliberal globalization and eroding democratic structures” (Richter, 2003,

44).

Percebe-se, portanto, que o Pacto Global se apresenta como um espaço de

diálogo e aprendizagem, com vistas a uma mudança na sensibilidade das

corporações, em oposição a um enfoque regulatório, sendo estruturado em um

formato de rede, uma nova estrutura organizacional de relacionamento mais

flexível e horizontal, em oposição a uma forma tradicional, vertical e burocrática,

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 32: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

122

de governança (Ruggie, 2004, 33). Porém, a descrição do Pacto Global como um

mero espaço de aprendizagem e conscientização entra em contradição com a

caracterização do Pacto como a principal iniciativa global de cidadania

corporativa, capaz de redimensionar a relação entre empresas e sociedades.

A participação de organizações não-governamentais entre os membros

filiados do Pacto Global gera controvérsias internas dentro dessas organizações e

entre as que estão e as que não estão filiadas. Interessa ao Pacto Global da ONU

ter tanto ONGs que atuam globalmente e assim legitimem o pacto qua global

quanto ter organizações mais locais que cumpririam a função de mobilizar as

redes locais monitorando o cumprimento dos princípios conjuntamente com os

representantes das empresas nessas localidades. Isso não significa que as ONGs

que fazem parte do Pacto se mostrem satisfeitas com os resultados até então

obtidos. ONGs como a Anistia Internacional seguem pressionando para que o PG

apresente resultados concretos e dê suporte a um marco regulatório com respeito

às empresas que violam direitos humanos (Richter, 2003, 22-23).

Mas qual deveria ser a postura das ONGs diante do Pacto Global? As

grandes ONGs envolvidas percebem que o Pacto apresenta avanços tímidos e

resultados ainda insatisfatórios, se distancia de um marco regulatório e busca

basicamente cumprir um papel de longo prazo de aprendizado das empresas sobre

como agir para não violar os princípios e aprimorar seu desempenho em termos de

responsabilidade social. Elas diferem entre si, porém, em propostas de reforma ou

de dissolução do Pacto Global. Note-se que caso fosse realizada a principal

reforma almejada pelas ONGs que ameaçam se retirar do Pacto Global, se este

não avançar em mecanismos de controle das empresas, haveria o risco de retirada

de corporações filiadas ao Pacto (Richter, 2003, 43).

4.6.

O Pacto Global como mecanismo de legitimação do capital

transnacional

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 33: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

123

A proposta do Pacto Global foi apresentada há mais de dez anos por Kofi

Annan no Fórum Econômico Mundial e consolidada em um primeiro encontro de

líderes em julho de 2000. Como já exposto, o Pacto foi lançado como uma

tentativa de resposta da ONU diante de um intenso processo de crítica e

contestação popular enfrentado pela classe capitalista transnacional, somado à

insatisfação com as organizações internacionais, e colocando em risco o processo

de globalização econômica. Em meio a essa crise do processo de expansão do

capital transnacional e à marginalização dos espaços de cooperação multilateral, a

articulação entre empresas transnacionais e a ONU se tornou ainda mais

estratégica para os dois lados. Em diferentes níveis de atuação, a ONU conseguiu

ampliar a colaboração com o setor privado, em grande parte graças ao amplo

diálogo gerado pela participação de sua Secretaria Geral e de suas agências com

empresas de grande relevância econômica no mundo.

Whether or not this new social contract actually reduced the

incidence of forced labor or job discrimination, it clearly

accomplished Annan´s original goal of repairing the UN´s

relationship with the corporate world and changing its

reputation as a nest of socialism. Virtually all UN agencies now

work with the private sector and seek to encourage public-

private partnerships (Traub, 2008, 147).

Note-se que as corporações, representadas principalmente pela Câmara

Internacional de Comércio, na reunião da então Comissão de Direitos Humanos15

da ONU, lograram a rejeição da proposta de Rascunho de Normas da Sub-

Comissão de Direitos Humanos. O debate se concentrava, então, na estrutura já

existente do Pacto Global, priorizando o enfoque de responsabilidade social diante

das demandas de responsabilização legal, possibilitando, portanto, que as

empresas pudessem capitalizar sua imagem com base em princípios sociais.

Não obstante, a crise financeira, que eclodiu em setembro de 2008, ainda

que remetesse mais aos bancos do que às indústrias, se tornou uma nova

oportunidade para o clamor das ONGs e movimentos sociais por um efetivo

controle do capital global. A descrença ampliada quanto à auto-regulação do

15 Em 2006, a Assembléia Geral da ONU criou o Conselho de Direitos Humanos, o qual substituiu a Comissão de Direitos Humanos, antes subordinada ao Conselho Econômico e Social.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 34: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

124

capital tem gerado a renovação do discurso que demanda uma maior regulação

global do sistema capitalista. Exige-se, assim, uma governança global não tão

flexível e capaz de enfrentar os excessos cometidos pelos dirigentes das empresas

capitalistas que atuam globalmente. Para o Pacto Global, as crises econômicas

representam ao mesmo tempo uma oportunidade, pelo aumento na demanda de

princípios éticos que guiem as condutas das empresas, mas também uma ameaça,

já que um ambiente positivo para a implementação pelas empresas de práticas de

responsabilidade social depende de um bom funcionamento do sistema (Kell,

2008, 183; 189).

Como observado no começo do capítulo, o próprio diretor do Pacto Global

reconhece que a iniciativa surge como uma resposta aos movimentos contra o

neoliberalismo, representado sobretudo pelos protestos contra a OMC, mormente

o de Seattle em 1999. Trata-se de uma estratégia de mudança de discurso da classe

capitalista transnacional que, para garantir uma nova etapa de legitimação em face

da contestação, passa a adotar uma postura de sensibilidade solidária e busca de

diálogo em lugar de apenas celebrar a vitória do capitalismo neoliberal (Robinson,

2004, 171).

No entanto, a estratégia de priorização de um enfoque voluntário na ONU

passa pelo reconhecimento de que alternativas de estabelecimento de uma

regulação extensiva ou de códigos de conduta foram derrotadas graças à

habilidade das corporações de inviabilizá-las, caracterizando tais iniciativas como

difíceis ou impossíveis (May, 2006, 274;276). A eficiência legitimadora do Pacto

estaria, portanto, em despolitizar a resistência, através da institucionalização de

um marco normativo que se coaduna com o paradigma de desenvolvimento nas

bases do neoliberalismo. Trata-se, pois, de um instrumento essencial para o

projeto de hegemonia da classe capitalista transnacional e sua agenda neoliberal

na ordem mundial, já que assume e afirma a liberalização do comércio, práticas

corporativas de auto-regulação, além de sobrepor a lógica de mercado à

intervenção governamental (Soederberg, 2007, 508).

Como exposto, uma das principais críticas de acadêmicos e de ONGs ao

Pacto Global se refere ao fato de que o destaque dado a tal iniciativa na ONU

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 35: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

125

termina por afastar alternativas de normas vinculantes, obrigatórias, com efetivos

mecanismos de controle das violações de direitos humanos cometidas pelas

empresas transnacionais. Ou seja, torna-se relevante notar que as organizações

não-governamentais que criticam o Pacto Global, tanto de dentro quanto de fora

dele, demandam que a Organização das Nações Unidas assuma um papel de maior

controle quanto às responsabilidades das empresas transnacionais, legitimando

então a ONU como o espaço por excelência onde essas normas deveriam ser

construídas. Contudo, a convergência de empresas, ONGs e agências da ONU em

torno do Pacto Global desfavorece possibilidades de surgimento, dentro da ONU,

de um marco regulatório global para as corporações transnacionais, ou seja,

medidas para além do formato de auto-regulação que é característico do Pacto. Se

em seus dez anos de existência o Pacto Global não conseguiu preencher as

expectativas de organizações e movimentos sociais que o contestam, há que se

aprofundar o debate refletindo sobre estratégias de reforma do Pacto ou de

esvaziamento deste por parte das grandes ONGs internacionais que participam

dele, com vistas a efetivar uma maior articulação em torno de normas obrigatórias

e mecanismos de responsabilidade e responsabilização das corporações, tanto na

ONU e outras organizações internacionais quanto nos Estados.

Ao passo em que cumpre uma função de legitimação de um discurso de

adesão voluntária e de convergência acerca de uma agenda de responsabilidade

social das empresas, inviabilizando outras alternativas, o Pacto Global segue

também enfrentando desafios referentes a sua própria legitimidade, pois evidencia

uma clara disputa entre alternativas de soft e hard power como as que seriam mais

adequadas não só para atender as demandas de organizações sociais, mas até

mesmo para permitir no longo prazo a manutenção global de uma ordem mundial

capitalista.

The UN Global Compact comes closest to a unified system, but

it lacks sufficient legitimacy and acceptance; perhaps in time it

will gain its rightful place as an overarching system of values.

(…) However, research also needs to be done to determine the

opportunity costs and unintended consequences of pursuing soft

power in the face of hard realities (Sagafi-nejad, 2008, 200).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA
Page 36: 4. O Pacto Global: dez anos de responsabilidade social

126

Em sua tese doutoral defendida em 2009 na Universidade de Manchester,

Catia Gregoratti reforça que a própria legitimidade do Pacto segue sendo precária,

pois este não consegue garantir a cooptação dos críticos, o que Gramsci chamava

de transformismo, ou seja, não consegue cooptar as forças contra-hegemônicas.

Assim, embora identifique uma disputa interna que fez gerar o “Novo Modelo de

Governança” e as “Medidas de Integridade”, observa que a batalha por hegemonia

é travada dentro do Pacto e que assim, ainda em termos gramscianos, o mesmo se

constitui como “um momento e um espaço no qual a revolução passiva se

desenrola” (Gregoratti, 2009, 265-266).

Questiona-se, no entanto, quais outras iniciativas poderiam ser observadas

na ONU no que se refere a um aprofundamento do debate sobre responsabilidade

das corporações, sobretudo buscando entender se realmente não há outras

perspectivas sendo pautadas em termos da construção de normas mandatórias na

ONU para as transnacionais. No capítulo anterior, foram elencadas algumas

tentativas frustradas (o Código de Conduta) e exitosas (o Acordo de Leite

Materno, o Pacto de Tabaco) no âmbito de uma ONU ainda sob influência da

Nova Ordem Econômica Internacional. Na década de 2000, diante do rechaço do

Rascunho de Normas por parte da então Comissão de Direitos Humanos, a ONU

coloca como resposta o mandato de John Ruggie como Representante Especial do

Secretário-Geral para Empresas e Direitos Humanos. O próximo capítulo se

dedica a analisar quais são as implicações do mandato de Ruggie para o processo

de legitimação do capital transnacional pelas mãos das Nações Unidas.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610638/CA