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    A influncia do gosto da cozinha portuguesa na Histriada alimentao no Brasil de Cmara Cascudo

    The influ ence of Portuguese cuisine taste on History offood in Brazil by Cmara Cascudo

    Mariana Coro

    O tema alimentar, entendido inicialmente enquanto necessidade vitaldo indivduo, revestido de sentido coletivo dentro da obraHistria da alimenta-o no Brasilde Lus da Cmara Cascudo, que foi publicada em 1967. Desde o in-cio do sculo XX, perodo em que a sociedade brasileira comeou a sentir os efei-tos da modernizao, j se apresentavam discursos contrrios influncia es-trangeira nos hbitos alimentares, seja em defesa do que se entendia como culi-nria tradicional, seja em defesa da organizao de uma cozinha brasileira. Cas-cudo esteve atento aos hbitos alimentares brasileiros desde o incio dos seus es-

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    Mariana Coro doutoranda em Histria da Universidade Federal do Paran ([email protected]). Apesquisa presente no artigo foi viabilizada pela bolsa concedida pela CAPES de estgio de doutoradosanduche, realizado na Universidade de Lisboa entre setembro de 2011 e junho de 2012.Artigo recebido em 21 de maio e aprovado para publicao em 6 de setembro de 2012.

    Est. Hist., Rio de Janeiro, vol. 25, n 50, p. 408-425, julho-dezem bro de 2012.

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    tudos no campo cultural na d cada de 1920. No con texto da dcada de 1950, ob-servou a intensificao da influncia da modernizao nos hbitos alimentares,consequncia da expanso da indstria alimentcia em todo o mundo ocidentalatravs das campanhas demarketing de fato, possvel afirmar que as propagan-

    das exerceram forte influncia nas preferncias alimentares de diferentes grupossociais (Rozin, 2001: 1483). Conjugando a vivncia desses dois momentos hist-ricos, Cascudo defende em sua histria da alimentao uma historicidade ali-mentar que delineia uma culinria tradicional brasileira.

    O perodo colonial destacado em sua obra enquanto contexto incuba-dor das tradies alimentares que experimentou em sua juventude. A cozinhados colonizadores portugue ses, nessa direo, recebe o papel central no processohistrico de elaborao da cozinha brasileira.

    Um dos traos mais marcantes da escrita de Cascudo a liberdade comque realizou exerccios etnogrficos, o que se associa sua identificao com o es -

    pao do qual partem suas anlises (Gonalves, 2008: 2). A leitura do conjunto desua obra, nessa direo, oferece o esboo de um autorretrato que tem como peainicial sua vivncia da infncia no serto do Rio Grande do Norte. Assim, se porum lado a memria individual motivou Cascudo e deu direcionamento a seus es-tudos, por outro, a cultura popular enquanto objeto de pesquisa fez com que en-contrasse a si prprio no contexto analisado de tal forma que sua identidade pes-soal aparece fundida na identidade coletiva apresentada em sua obra(Byington,2000: 27).

    A relevncia concedida continuidade de elementos culturais justifica aabordagem do presente artigo a partir das articulaes entre tempo e distncia

    como meio deressignificao dos alimentos. Ressalta-se que dessa relao entretempo e distncia despertada a saudade. Enquanto expresso nica da lnguaportuguesa, a saudade remete ao perodo das navegaes portuguesas e se integra escrita histrica na luta contra o esquecimento assumido pelo romantismo eu-ropeu do sculo XIX (Albuquerque, 2010: 1, 7). Seguindo uma perspectiva ro-mntica, Cascudo apresenta marcas nostlgicas em seus escritos. Entende-seque tais marcas exaltam elementos caractersticos da leitura do passado do con-textocascudiano, que consequncia da instabilidade diante da modernizao ese refere busca de uma identidade nacional brasileira (Albuquerque, 2010:1-2).

    Considerando que a formao do gosto alimentar individual congregainfluncias culturais e experincias pessoais (Rozin, 2001: 1479), o presente arti-go prope uma articulao de relatos da viagem de Cascudo a Portugal em 1947com textos e memrias pessoais referentes cozinha portuguesa em suaHistriada alimentao no Brasil, de forma a identificar influncias de experincias gusta-tivas individuais na narrativa histrica alimentarcascudiana.

    Est. Hist., Rio de Ja neiro, vol. 25, n 50, p. 408-425, julho-dezembro de 2012.

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    Uma confis so a fazer

    Cmara Cascudo j havia apresentado interesse pela cultura alimentarbrasileira anteriormente escrita daHistria da alimentao no Brasil. A primei-

    ra obra em que faz apontamentos sobre o tema Viajando o serto, cuja primeiraedio de 1934. Neste livro o autor identifica na cultura sertaneja, alheia, nocontexto, s influncias da modernizao, uma essncia nacional pela preser-vao de aspectos histricos na vida cotidiana. A partir desse argumento, escre-ve em defesa da cozinha sertaneja, cuja preservao deveria passar por sua valo-rizao dentro da cultura brasileira (Cascudo [1934] 2009: 40). A partir do ex-posto, considera-se que entre 1934 e 1963 Cascudo reuniu informaes e dis -cusses sobre a alimentao brasileira que foram compiladas em suaHistria daalimentao no Brasil, trabalho de carter mais amplo e unificador escrito em fa-vor da promoo da historicidade de alimentos que comporiam uma cozinha

    nacional. Ao longo desse perodo, destacam-se a influncia de dois momentoshistricos no direcionamento das discusses apresentadas por Cascudo a mo-dernizao brasileira do incio do sculo XX e o desenvolvimentismo da dca -da de 1950.

    possvel afirmar que a sensibilidade de Cascudo despertada diante dacrescente transformao dos hbitos alimentares um dos principais fatores queo levaram a eleger a temtica alimentar. O autor nasceu em Natal, no Rio Grandedo Nor te, em 1898, pas sou a vida nes se es pao que ca rac teri zava como pro vn -cia e l faleceu em 1986. Situado, portanto, s margens do desenvolvimento eco-nmico brasileiro do perodo (que era irra diado a partir da regio Sudeste), assis-

    tiu com pesar, ao longo da vida, transio de uma sociedade de costumes marca-damente rurais para uma sociedade urbanizada.Atento ao carter tradicional da alimentao brasileira, Cascudo desen-

    volve no primeiro volume da obra uma hist ria alimentar dividida em trs cap-tulos, nomeadamente: o cardpio indgena, a dieta africana e a ementa portugue-sa. A cozinha brasileira, que analisa no segundo volume, apresentada comouma miscelnea de alimentos e costumes relacionados ao perodo colonial, emque teria ocorrido a fuso de trs grupos formadores, os quais so referidos comoraas formadoras. A organizao da pesquisa revela o alinhamento de Cascudocom o mito das trs raas fundadoras oriundo de estudos interpretativos da iden-

    tidade brasileira realizados no sculo XIX. Destaca-se tambm a influncia dosestudos folclricos de Slvio Romero (Cascudo, 1954: 29).No contex to do incio do sculo XX, Cascudo dialo gou com dois gru pos

    de pensadores brasileiros que marcaram de forma significativa seu pensamentosobre a cultura brasileira. O primeiro grupo foi o Movimento Modernista, com oqual estabeleceu contato a partir de 1922, quando ainda cursava medicina no Rio

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    de Janeiro. O segundo foi o Movimento Regionalista de Recife, cuja atividadecomeou em 1926 e foi encabeado por Gilberto Freyre. O Movimento Moder -nista do Sudeste despontou como resposta ao desejo de modernizao da elitebrasileira, que vinha desde meados do sculo XIX e se fortaleceu no incio do s-

    cu lo XX (Doin, 2007: 95). Intelectuais e artistas desse movimento dialogavamcom ideais de modernidade da elite brasileira, abarcando contribuies artsti-cas de outros pases, e repensando-as no sentido de constituir algo essencialmen-te nacional. J os intelectuais do Movimento Regionalista do Nordeste, geografi -camente localizados s margens do desenvolvimento brasileiro, exaltaram a tra-dicionalidade de cada regio enquanto matria essencial da unidade nacional(Albuquerque, 2009: 51). As tradies advindas dos tempos de riqueza colonialganharam relevncia ao serem integradas base da cultura nacional ento iden-tificada nos tempos coloniais. Nessa perspectiva, Gilberto Freyre, no I Congres-so Regionalista realizado em 1926, apontou o declnio dessas tradies comoconsequncia do encantamento pelo moderno, destacando a questo a partir daculinria: Toda essa tradio est em declnio ou, pelo menos, em crise, no Nor-deste. E uma cozinha em crise significa uma civilizao inteira em perigo: o peri -go de des carac terizar-se (Freyre, [1926] 1996: 54).

    Para os intelectuais modernistas do Sudeste, Cascudo se tornou umafonte de informaes sobre a cultura nortista brasileira. Dessa forma, tornou-secorrespondente e amigo de Mrio de Andrade, com quem intercambiou ideias einformaes a respeito do desafio da consolidao da cultura nacional. Sobre suarelao com esses dois movimentos, Cascudo afirmou numa entrevista revista

    Veja, em 1972:

    Pertencia ao grupo do Recife, mas vale lembrar que a re-vista Antropofgica e o verde-amarelismo valorizaram muito o folclore,o ndio, o cotidiano, tupy or not tupy, di zia o doido mor Oswald deAndrade em plena confu so de 22, e que me abraou com muito ca ri nhopela minha preocupao em descrever o dia a dia do brasileiro.

    Entende-se, a partir do exposto, que seu pertencimento ao grupo de Re-cife se deu como consequncia de sua identidade pessoal, fundada em suas rela-es pessoais com a regio. Cascudo demonstrou essa identificao, por exem-plo, no prefcio da primeira edio de Vaqueiros e cantadores, em que es creveu:Reno nesse livro quinze anos da minha vida. (...) O material foi colhido direta-mente na memria duma infncia sertaneja, despreocupada e livre (Cascudo,1939: 5). Para Humberto Hermegenildo Arajo, so raros os momentos em que a

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    produo de Cascudo se encontra em sintonia com o pensamento regionalista deGilberto Freyre (Arajo, 2012: 90). Nesse sentido, consideramos que o registroda experincia etnogrfica do lugar ao qual pertence, uma regio estranha inte-lectualidade modernista do Sudeste, motivou e autorizou a obracascudiana. Sua

    ateno s particularidades do mundo que o envolvia esteve marcada tanto pelasubjetividade quanto pelo contraste de quem buscava uma universalidade nasdiferentes manifestaes culturais.

    Segundo essa perspectiva, ao identificar a relevncia da cultura portu-guesa na formao da cozinha brasileira, Cascudo pensa no somente em catego-rias sociolgicas, etno grficas e histricas, como tambm numa dimenso psico-lgica que inclui a no o de gosto. O pa la dar entendido como um me ca nismoque associa a me mria de sabores com a qumica corporal da identificao destes(Cascudo, [1967] 2004a: 370). As preferncias alimentares dos grupos sociais es-to diretamente ligadas s tradies culinrias desses grupos. Destaca-se, nesse

    sentido, que Cascudo reconhece a presena da cozinha colonial luso-brasileirano serto das eras de se tecentos que vivenciou na infncia (Cascu do, 1939: 5).A noo de gosto em Cascudo funde indivduo e coletivo. Ao se reconhe -

    cer enquanto membro do coletivo, inclui fragmentos de sua memria pessoal naanlise que elabora das tradies culinrias brasileiras. Dessa forma, confessaemHistria da alimentao no Brasil: e eu, ainda que me valha a confisso os de-sagrados de alguma leitora elegante, francamente declaro aqui que, para mim, acozinha portuguesa das melhores cozinhas do mundo ([1967] 2004a: 330).

    Tempo: condimento essencialO gosto pela cozinha portuguesa se associa marca tradicionalista com

    que Cascudo a identifica. Manifesta sua admirao por ela por sua humildade eobstinao diante dos apelos da modernidade da indstria alimentcia em ex-panso ([1967] 2004a: 334). A continuidade dos alimentos no tempo aparece naobracascudiana como fator determinante na constituio do paladar social. Nes-se sentido, pode-se ponderar sobre o papel conferido s tradies em sua histriada alimentao na determinao das preferncias alimentares brasileiras.

    Por ocasio do I Congresso Luso-Brasileiro de Folclore, em 1947, Cas-

    cudo pisou em solo portugus pela primeira vez. Sua viagem por Portugal duroucerca de um ms. Partiu do Brasil pelo porto do Rio de Janeiro, desembarcou naEspanha e seguiu de trem at Portugal. Assim, Valena, vila do extremo norteportugus, marcou sua primeira experincia portuguesa. Ao longo da estada emPortugal, Cascudo enviou textos relatando o dirio da viagem que foram publi-cados noDirio de Natal. No quarto bilhete, publicado em 15 de setembro de

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    1947, registrou sua primeira refeio portuguesa em Valena: almoo com vinhover de, galinha de arroz ao forno e pes cada frita (apud Marinho, 2004).

    De Valena seguiu at Lisboa, passando por Vila Nova de Cerveira, Ca-minha, Viana do Castelo, Barcelos, Esposende (onde, na diviso administrativa

    da poca, aca bava a regio do Mi nho e comeava a regio do Douro), Pvoa deVarzim, Mindelo, Lonz, Bouas, Porto, Vila Nova de Gaia, Leixes, Praia doEspinho, Ovar (onde comea a regio da Beira), Angeja, Albergaria-a-Velha,Aveiro, Vagos, Figueira da Foz, Leiria, Batalha, Porto de Ms (onde tem incio aEstremadura), Alcobaa, Caldas da Rainha, Vila Franca de Xira e Sacavm. Du-rante sua estada em Lisboa conheceu Sintra, Torres Vedras, Varatojo, Palhav eQueluz. Seguiu em viagem por uma rota desde Lisboa at o interior do pas, pas-sando por Alenquer, Caldas da Rainha, Alcobaa, Batalha, Ftima, Tomar,Abrantes, Proena-a-Nova, Castelo Branco (entocapital da regio da Beira Bai-xa), Monsanto, Nisa, Alpalho, Portalegre, Monforte, Estremoz, Borba, Vila Vi-osa, Redondo, vora, Montemor-o-Novo, Vendas Novas, Setbal, Portinho daArrabida, CaboEspichel, Sesimbra e Cacilhas. Passou o perodo final na cidadedo Porto, de onde partiu para co nhe cer Vila do Con de, P voa do Var zim, Vianado Cas telo, Co imbra, Ponte do Lima e Barcelos (Marinho, 2004: 11-13).

    Nas expresses de suas experincias manifestadas em seus bilhetes deviagem possvel visualizar alguns aspectos relevantes de sua anlise alimentar.No dcimo bilhete escreveu: S meus dias europeus (excusez...) podem daruma impresso que impossvel no continente americano. Impossvel mesmopara a compreenso psicol gica. a im presso do Tempo, o Tem po como umadimenso, um elemento real, verdico, sensvel, material (apudMarinho, 2004).

    O tempo uma problemtica muito cara na vida e na obra de Cascudo.Tinha 27 anos quan do manifes tou numa corres pondncia de 1925 a Mrio deAndrade: Perdoe V. o papel. Estou no meio de vaqueiros e cantadores. No hluz eltrica. A coisa que me lembra, e detestavelmente o progresso, o meuFordque est parado debaixo do telheiro (apud Moraes, 2010: 60). O comentrio su -gere uma viso pessimista da noo de progresso, este ltimo entendido comoum meio de renovao da cultura ma terial e dos hbitos e como um fator que ma-terializa e desta ca o contraste da passagem do tempo. Cascudo associa o progres-so a um movimento de uniformizao e banalizao de uma cultura moderna

    que reinventa o serto tradicional de sua infncia. Um serto, segundo seu relato,onde se vivia at a invaso da modernidade costumes e hbitos sobreviventesdesde o sculo XVIII (Cascudo, 1939: 5-6). Entre esses hbitos, Cascudo identi-fica a culinria como a tradio mais fiel, conforme posteriormente afirmou noprefcio daHistria da alimentao no Brasil: Para o povo no h argumento pro-bante, tcnico, convincente, contra o paladar" (Cascudo, [1967] 2004a: 15).

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    Identificar na comida popular um dos meios de permanncia de tradi-es mais persistentes num contexto de crescente transformao dos hbitos de-corrente da modernizao no um privilgio da anlisecascudiana. No Brasil,Gilberto Freyre j havia chamado a ateno para relevncia das tradies ali-

    mentares noManifesto regionalista de 1926, conforme j citado.Da desestabilidade resultante da moder nizao decorreu que pensado-res focassem nos costumes em processo de transformao. A alimentao, nessecontexto, foi percebida como o meio mais resistente de tradies. Dessa forma,destacam-se inicialmente, entre a produo de folcloristas no incio do sculoXX, os estudos relacionando tradio e alimentao.

    Os estudos de folclore despontaram na Inglaterra em meados do sculoXIX, num contex to em que se bus ca va uma iden tidade do povo como meio de le-gitimar a democracia na Europa (Ramos, 2003: 25). Assim, os modos de vida po-pulares, as lnguas, os usos e os costumes so ressaltados em associao ao valor

    romntico da cultura camponesa. Marcado fundamentalmente por uma essnciaruralista, o movimento folclrico se institucionaliza e se reproduz em quadrosurbanos em diferentes pases (Castelo Branco e Branco, 2003: 7). A instituciona-lizao do movimento est associada a dois elementos simblicos relevantes parao nacionalismo do perodo, o valor concedido s memrias do passado comum ea preocupao com a perpetuao do legado identitrio de grupos sociais (Ca -bral, 2011: 61). Os trabalhos sobre alimentao provenientes desse meio apre-sentam um carter etnogrfico, consistindo num levantamento de caractersti-cas da alimentao popular, identificada na correlao entre ageografia do pas eo cultivo das terras e nos hbitos e costumes alimentares tradicionais.

    No I Congresso Internacional de Folclore realizado em Tours, na Fran-a, em 1938, destacam-se duas apresentaes que enfatizama alimentao po-pular, a do historiador Lucien Febvre e a do grupo brasileiro da Sociedade deEtnografia e Folclore. No estudo apresentado sobre as reparties geogrficasdos fundos da cozinha na Frana, Febvre argumentava que a estabilidade daali men tao re la tiva mente fixa, uma vez que no sem dificuldade que os ho -mens aceitam um alimento novo (Febvre, 1938: 124). O grupo brasileiro, enca-beado por Mrio de Andrade e Dina Lvi-Strauss, apresentou uma pesquisacartogrfica sobre tabus alimentares e danas populares brasileiras (Shimabu-kuro et al., s.d.: 7).

    Apesar das influncias da produo intelectual do contexto, as pesquisasrealizadas por Cascudo apresentam caractersticas muito prprias. Esse fato serelaciona com a perspectiva com que trabalha, no sobre a cultura popular, mas apartir desta (Gonalves, 2004: 2). possvel afirmar, nessa perspectiva, que seusestudos sejam motivados pela sensibilidade despertada pela fluidez da vida ma-terial e dos costumes tradicionais observados em tempos de renovao.

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    O tempo, dessa forma, tido nas anlisescascudianas como um fa tor decaracterizao e descaracterizao da cultura popular. na dinmica da passa-gem do tempo que se fun da sua fala em favor das tra dies (Silva, 2006: 202).Assim, o costume popular enriquecido ao longo da passagem dos anos, conver-

    tendo-se em contedo folclrico. A experincia de Cascudo com os pastis deBelm da tradicional pastelaria de Lisboa, fundada em 1832, revela essa tendn-cia: o tempo valoriza esses pastis de tal forma que ir com-los o mesmo quepraticar um ato de proclamada inteligncia reverenciadora (Cascudo, 1947,apud Marinho, 2004: 52-53).

    relevante destacar que no contexto da estada de Cascudo em Portugal apoltica do Estado Novo portugus (1933-1974), encabeada por Salazar, promo -via estudos folclricos como meio de divulgao de ideologias do regime associa -das a uma nos talgia ru ral (Branco, 2003: 234). Desde a d cada de 1930, o regimesalazarista mobilizava-se para institucionalizar aportugalidade atravs da valori-

    zao do tesouro comum constitudo por imagens, objetos, ritos e crenas popu-lares, que tinha como base as narrativas histricas (Serro e Marques, 1992: 394).Aproximaes ideolgicas entre o Estado Novo brasileiro (1937-1945) e o portu -gus estreitaram os laos entre as duas naes. Nesse sentido afirma JoaquimSerro que em poucas pocas da histria luso-brasileira se fez sentir tanto a ir-mandade do sentimento basea do na lngua comum, como no decnio de 1940(2003: 364). Dentro desse contexto, a valorizao da herana cultural dacolonizao portuguesa na obra de Cascudo foi bem recebida, por ir ao encontrodas polticas culturais do Estado portugus.

    Fundamentado pela trade Deus, ptria e famlia, o Estado Novo portu-

    gus, atravs de polticas educacionais, incentivou a produo agrcola do pas,assim como instigou o mundo feminino a assumir com destreza as tarefas decasa. Esses dois fatores cooperaram para a permanncia de tradies culinrias.Assim, apesar da crescente modernizao no mundo ocidental, muitos portu-gueses do perodo estavam convencidos de que a alimentao rural era melhor emais humanizada que a da cidade (Casco, 2011: 62).

    O governo salazarista promoveu, no ensino bsico feminino, a economiadomstica enquanto cincia da felicidade e da prosperidade da famlia (Braga,2008: 120-121). A matria era destinada s alunas da terceira e quarta classes(atuais terceiro e quarto anos do ensino bsico), sendo que no quarto ano todo o

    contedo da matria estava relacionado alimentao. As alunas aprendiam aescolher os alimentos, maneiras de conserv-los, receitas de ovos, sopas, carnes epeixes, alm de receber conselhos sobre compras (Braga, 2008: 121).

    A ideolo gia do regime se fa zia pre sente at mesmo nos livros de co zinhapublicados no perodo. Ressalte-se que em Portugal, at o incio do sculo XX, aspublicaes de matria gastronmica eram assinadas por homens (os consagra-

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    1982, novas maneiras de cozinhar elementos presentes na cultura alimentar por-tuguesa (como sopa, bacalhau e ovos, por exemplo) foram apresentadas, em asso-ciao com os valores de poupana, nutrio e higiene (Braga, 2008: 128). Dessaforma, a alimentao tradicional no somente foi valorizada, como permaneceuno cotidiano das famlias portuguesas. Entre os alimentos que agregaram fortesignificado social nesse contexto, destacou-se a doaria tradicional portuguesa.Pela originalidade, sobretudo no que se refere cozinha conventual, a doaria foiconsagrada como elemento da identidade nacional portuguesa.

    A doaria portuguesa atingira seu auge ao longo do sculo XVIII, comoconsequncia da simbiose mercantilista da produo aucareira do Brasil no pe-

    rodo (Algranti, 2005: 147), e revelava tambm uma ligao significativa entre acozinha e a agricultura portuguesas. Nesse sentido, alm da presena de algunsprodutos do alm-mar, como o acar e as especiarias, canela e cravo, por exem-plo, destacavam-se os produtos regionais do campo portugus, como ovos, fari -nha de trigo, manteiga, queijo fresco, mel, amndoas, nozes, chila,1 feijo bran-co,2 limo e laranja, como os principais componentes dos doces tradicionais.Entre os autores portugueses que elaboraram estudos etnogrficos sobre a doa-ria tradicional citados por Cascudo emHistria da alimentao no Brasil, desta-cam-se Emanuel Ribeiro, autor de oDoce nunca amargou (1923), e Lus Chaves,autor do artigo O significado social da doaria (1948).

    Em seu livro, Emanuel Ribeiro caracteriza o povo portugus como tra-

    dicional por no dispensar o consumo cotidiano dos doces tradicionais. O autordestaca que esse hbito, fixado ao longo do sculo XVIII, permaneceu mesmoaps a revoluo liberal que fechou grande parte dos conventos no sculo XIX.As receitas dos conventos foram vendidas na ocasio, e os doces passaram a sercomercializados nas pastelarias. A presena da tradio culinria, contudo, con-viveu no incio do sculo XX, segundo Emanuel Ribeiro, com um crescente pro-ces so de desnacionalizao a partir da influncia modernizadora estrangeira(Ribeiro [1923], s.d.: 53-54)

    Tratando do mesmo objeto, Lus Chaves destaca em seu artigo aspectossociais da doaria tradicional, como a importncia da apresentao dos doces, as

    ocasies em que so feitos, as diferenas entre a doaria rstica e a doaria re-quintada. Na perspectiva desse autor, a doaria acompanhou as transformaesdos costumes, e por isso continuou a ter uma ntima relao com a sociedade por-tuguesa mesmo em tempos de comercializao pelas pastelarias. Numa anliseotimista, Chaves argumenta que as casas tradicionais de comrcio resguardam oreceiturio antigo e promovem relaes sociais (Chaves, 1948: 320).

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    Em dilogo com esses autores, Cascudo afirma no captuloEmenta portu-guesa de sua histria da alimentao que quem viaja a Portugal na segunda me-tade do sculo XX verifica a capitosa perseverana de sua culinria conservado-ra (Cascudo, [1967] 2004a: 334). Nessa perspectiva, entende-se que o reconheci -

    mento que faz da cozinha portuguesa como uma das melhores cozinhas do mun-do est relacionado com a identificao de sua tradicionalidade e de suasimplicidade, no sentido de que se mantm ligada produo agrcola local.

    Entre os diversos doces que Cascudo experimentou em sua viagem aPortugal, destacam-se os fartes, ou farteis, doce classificado emHistria da ali-mentao no Brasil como histrico (juntamente com as queijadinhas de amn-doas, o manjar-branco e o po-de-l). Esse doce de tradio medieval, feito de fa-rinha de trigo, especiarias e mel, recorrentemente citado na literatura histricaportuguesa listada pelo pensador potiguar. Entre as menes, a mais relevantenessa histria alimentar brasileira a carta de Pero Vaz de Caminha. Tendo por

    fundamento esse documento histrico, os farteisso destacados por Cascudocomo o primeiro doce que um brasileiro comeu no Brasil (Cascudo, [1967]2004a: 311).

    A relevncia histrica dos farteis, nesse sentido, parece influenciar a ex-perincia do gosto, segundo se pode observar no relato de Cascudo ([1967]2004a: 311): quando, em no vembro de 1947, o comi em Por tugal, senti-me con-temporneo de todos os amerabas tupiniquins do meu pas. Essa frase denotauma relao entre a conscincia da historicidade do alimento com a sensaodespertada pela experincia gustativa. Entende-se, nesse sentido, que a expe-rincia vivenciada por Cascudo ao experimentar os farteis se deve a uma

    conscincia prvia que tinha do carter histrico desse doce.O valor da historicidade dos alimentos identificada na obra de Cascudose associa ao seu entendimento do discurso histrico enquanto base referencialdo valor simblico anexo s tradies. interessante ressaltar no caso dos farteisque, apesar de constarem nas primeiras referncias da doaria portuguesa noBrasil, no tinha seu consumo associado s tradies brasileiras contemporneasa Cas cudo ([1967] 2004a: 319). Assim, a vi agem a Por tugal vi abili zou uma revi -vncia histrica do sabor que os amerndios sentiram no episdio da chegadados portugueses.

    Distncia: argumento contrastante

    O texto de Cascudo revela uma nsia em experimentar hbitos e costu -mes relacionados com as origens de seus prprios hbitos e costumes, distantestemporalmente e/ou geograficamente. Nesse sentido, cabe a citao de Ilza Sou -

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    za, que considera que Cascudo vive em retiro, retirando (Souza,2006: 47). Essansia pode ser entendida como fruto de uma sensibilidade anloga dos romn-ticos do sculo XIX, que se sentiam nostlgicos de uma relao estreita queunisse o homem natureza e aos outros homens (Maffesoli, 1997: 99).

    O paradoxo situado entre a busca da unio de costumes populares nasfronteiras brasileiras e de uma universalidade do ser uma constante do pensa-mentocascudiano. Nessa perspectiva, o tpico sempre regional para Cascudo,enquanto o nacional j evidencia um plano de universalidade (Cascudo, 1984:176). Seja temporalmente, seja geograficamente, seus estudos perpassam a pro-blemtica da distncia. Desse paradoxo, desponta um tom nostlgico associado aum espao-tempo em que o sentido do ser aparece atrelado a uma vida de solida-riedade ligada natureza. Espao-tempo que Cascudo identifica nas lembranasdos tempos vividos no serto de sua infncia.

    A identificao que Cascudo encontra com o lugar em que localiza suas

    origens marca todo o seu pensamento. Pode-se dizer que no somente a culturapopular do serto, mas sobretudo o ambiente familiar em que cresceu foi um for-te fator de influncia em suas anlises. Cascudo era o filho mais novo de trs; osdois irmos mais velhos, contudo, morreram ainda crianas, antes que ele nas-cesse. Enquanto filho nico de sade frgil, cresceu entre os adultos e os livros,rodeado de ateno e cuidados. Considerando que a famlia estabelece um vncu -lo irreversvel entre a criana e o mundo, uma vez que em nenhum outro ambi-ente o lugar do indivduo to fortemente determinado (Bosi, 1994: 423-425),pode-se dizer que as vivncias da infncia de Cascudo suscitaram seu interessepela histria de todas as coisas, do campo e da cidade, despertadas pela convivn-cia com a sua gente.

    Em sua vida em famlia na provncia e na relao com a terra e as pessoas,Cascudo reconhece o sentido inicial de ser. Os fundamentos de sua prpria iden-tidade marcam definitivamente seus escritos, conforme declarou: Jamais aban-donei o caminho que leva ao encantamento do passado. Pesquisas. Indagaes.Confidncias que hoje no tm preo. [...] Impossvel, para mim, dividir conter-rneos em cores, gestos de dedos, quando a terra uma unidade com sua gente.Foram os motivos de minha vida expos tos em todos os livros (Cas cudo, 2012:6-7).

    As tradies orais de seus conterrneos estavam entre seus principais in-teresses. Nessas narrativas, Cascudo reconhecia conhecimentos adquiridos pelavivncia. Eram a matria principal dos seus estudos folclricos. Nos mitos e len-das populares identificava elementos da memria coletiva, da recordao de umpassado comum caracterizado em sua obra por sua ligao com lendas e mitos deoutros lugares, pela universalidade (Cascudo, 1984: 35).

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    Dentro dessas anlises das tradies orais que revelam o contato das pes-soas entre si e o contado destas com a terra, Cascudo manifesta o interesse pelacomida enquanto matria de estudo. Encontra no textoA cozinha portuguesa,es -crito pelo literato portugus Jos Valentim Fialho de Almeida em 1891, um forte

    argumento para a sua histria da alimentao: um povo que defende os seuspratos nacionais, defende o seu territrio (Almeida, 1925,apud Cascudo [1967]2004a: 378). A relevncia do texto tal que mereceu entrar no apndice da obrade Cascudo.

    Fialho de Almeida, que viveu en tre os anos de 1857 e 1911, tem um en qua -dramento literrio semelhante ao de Cascudo nas cincias humanas, e incorpora demaneirasui generisdiferentes correntes esttico-literrias como meio de expresso deuma individualidade artstica prpria. Pela marca subjetiva de seus textos, sua baseinicial romn tica nunca desaparece ao longo dos anos, mas atualiza-se (Revez, 2011:394). A partir do seu romantismo, Fialho de Almeida define o prato nacional como

    o romanceiro nacional, um produto do gnio coletivo: ningum o inventou e in-ventaram-no todos: vem-se ao mundo chorando por ele, e quando se deixa a ptria,l longe, antes de pai e me, a primeira coisa que lembra.

    Conjugando sentimentos de coletividade, alteridade e saudade, o con-ceito de prato nacional de Fialho de Almeida abarca tanto ideais romnticosquanto nacionalistas. No contexto do pensamento nacionalista do scu lo XIX, aelaborao de discursos em torno de cozinhas nacionais ocorre concomitante -mente ao processo de construo simblica dos Estados Nacionais europeus(Laurioux & Bruegel, s. d: 18). Nesse contexto, a mxima atribuda a Brillat-Sa-varin Dis-moi ce que tu manges, je te dirai ce que tu es [Dize-me o que co mes e te

    direi quem s] , registrada em sua obraFisiologia do gosto,de 1825, ganha rele -vncia em sua associao entre alimentao e identidade. A cozinha enquantoprtica cultural coletiva e meio de transmisso de tradies passa a ser apresenta-da nesses discursos como meio que proporciona iden tidade aos indivduos e de-fende o territrio nacional.

    A noo da cozinha como um sistema integrado a uma estrutura socialfoi inicialmente defendida pelo antroplogo francs Claude Lvi-Strauss. Nessaperspectiva, enquanto expresso parcial da estrutura de funcionamento de gru-pos sociais, a cozinha se revela como uma linguagem que traduz mecanismos defuncionamento da sociedade a que pertence (Lvi-Strauss, 1996: 98-99). A cozi-

    nha passou, ento, a ser entendida enquanto smbolo identitrio que constitui,mais do que um conjunto de tradies culinrias, um meio atravs do qual aspessoas podem se orientar e se distinguir (Maciel, 2004: 36).

    EmHistria da alimentao no BrasilCascudo no faz referncias diretas aobras de Lvi-Strauss, mas possvel afirmar que teve contato com a pesquisa et-nogrfica que este realizou em companhia de sua esposa Dina Lvi-Strauss no

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    Brasil.3 Em con traste com a antropologia estruturalista de Lvi-Strauss, queapresenta mtodos de pesquisa com o objetivo de formular modelos que desven-dem formas comuns nas manifestaes sociais e de atribuir significado a estas(Lvi-Strauss, 1996: 399-400), Cascudo justifica a ausncia de mtodo em suas

    pesquisas como uma estratgia didtica (Cascudo, 2004b: 15). Nessa perspectiva,o pensador brasilei ro se recusa a enquadrar seus estudos no mbito da antropolo-gia cultural, apesar de possuir objetos comuns de pesquisa com essa rea. Parasua obra, prefere a classificao folclrica, que Lvi-Strauss entende, em sua re-lao com a antropologia, como estudos de natureza arcaica que focam no cartercoletivo e inconsciente de certas atividades sociais. Seja pelo objeto, seja pelo m -todo, o fol clore se conecta com a antropologia, sem atender, contudo, missodos estudos antropolgicos (Lvi-Strauss, 1996: 393).

    A etnografia, para Cascudo, se define enquanto o estudo das origens, apartir da observao decontinuidades contemporneas que fazem referncia s

    memrias da grande famlia humana (Cascudo, 2004b: 26). Desse entendimentodecorre uma pesquisa que se funde com uma busca de si mesmo, de suas prpriasorigens enquanto membro dessa grande famlia. Ao dar relevo memria social,Cascudo inclui de forma significativa as suas prprias memrias, alargando o pa-pel de sua subjetividade em suas anlises.

    Destaca-se, nesse sentido, seu relato sobre a expe rincia dos pastis deBelm, doce vendido na Pastelaria de Belm desde 1832. Esses pastis so seme-lhantes ao tradicional pastel de nata portugus, e a diferena entre as duas recei-tas um segredo da antiga pastelaria. Em seu relato, Cascudo mostra ter expe-rincias anteriores de pastis de nata em Natal:

    Em Belm, antes do convento dos Jernimos, h con-feitaria, toda enfeitada de azulejos. Vende-se a o famoso pastel de Be-lm. O pasteleiro do convento tinha o segredo desses pastis. Expulsosos frades, o pasteleiro fundou uma casa e comeou a fazer e vender ospastis. A casa atual data de 1832, data num cartel de azulejo. Milharesde pastis so comidos diariamente. Nunca se soube, at hoje, o segredoda fabricao. H um it de mistrio no sabor somente obtido pela casi-nha de Belm. O tempo valoriza esses pastis de tal forma que ir com-los o mesmo que praticar um ato de proclamada inteligncia reveren-ciadora. J tenho ido, vrias vezes, reverenci-los dignamente. Lem-bram, ao de longe, os nossos pastis de nata (Cascudo, 1947,apud Mari-nho 2004: 52-53).

    Ao comentar o gosto dos tradicionais pastis de Belm, Cascudo os com-para com os nossos pastis de nata. Essa colocao denota que a experincia da

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    alteridade na viagem a Portugal tem como principal ponto comparativo suasprprias memrias.

    EmHistria da alimentao no Brasil, Cascudo menciona a que pastis denata se referiu na ocasio da viagem: os que eram feitos pelas senhoras de Natal

    Velho. Tal aluso se associa com a singularidade, defendida por Cascudo, que cer-tas iguarias tm no contexto natural de sua criao, como os ovos moles de Aveiroou a moqueca de peixe de Salvador: Intil a memria para reconstru-las, distan-tes da paisagem telrica de seu feitio tradicional (Cascudo [1967], 2004a: 304). Apartir desse discurso, ele conduz o leitor para o gosto excepcional dos pastis denata feitos por Dona Wanderley em Natal Velho, que, na sua opinio, eram inigua-lveis. Cascudo ressalta a experincia culinria das doceiras experientes, que esca-pa a qualquer registro cientfico, e destaca um gosto pessoal, fruto de uma expe-rincia localizada em determinado espao- tempo.

    A referncia aos pastis de nata inigualveis de Dona Wanderley e a de-

    signao de Natal Velho remetem a tempos anteriores intensificao da moder-nidade na regio em que vivia. A angstia diante da su ces so de novidades compartilhada por Cascudo na exaltao de elementos culturais distantes no es-pao-tempo. Dentro dessa abordagem, o gosto inigualvel de um doce tradicio-nal portugus, produzido e experimentado no Rio Grande do Norte em perodosanteriores chegada da modernidade na regio, congrega significncia nacomposio da histria alimentar brasileira por ele elaborada.

    Consideraes finais

    A saudade enquanto expresso da lngua portuguesa funde sentimental-mente colonizados e colonizadores e desperta os sentidos para sensaes que pare -cem se dis tanciar com a pas sa gem do tem po no pero do de transformaes. Ao ex-perimentar os tradicionais pastis de Belm portugueses durante sua estada emLisboa em 1947, Cascudo conduzido a outro espao-tempo no qual ele prprio o protagonista. Sua memria do sabor dos pastis de nata de Natal Velho, nessesentido, corrobora as motivaes que o levam a pensar a alimentao brasileiranuma perspectiva histrica. O valor simblico do gosto e sua relao com a mate-rialidade do alimento, no contexto da modernizao, geram discursos em defesa

    da cozinha tradicional, uma vez que a continuidade de seu sabor depende intrinse -camente de sua continuidade material. A experincia individual do gosto e da sau-dade se integra em discursos sobre o coletivo. Assim, emHistria da alimentao noBrasil, Cascudo destaca a influncia das tradies sociais na determi nao das pre-ferncias alimentares. Nessa obra, a cozinha portuguesa prestigiada tanto por suarelao com a histria brasileira quanto por sua tradicionalidade e simplicidade no

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    contexto de modernizao do sculo XX. Na perspectiva de Cascudo, a cozinhatradicional brasileira tem como base a cozinha tradicional portuguesa. O gosto e asaudade, nesse sentido, congregam sua histria alimentar em favor da continuida-de de ambas as cozinhas tradicionais que tanto apreciava.

    Notas

    1. Abbora pequena da qual se faz o doceque usado na fe itura de Barcelos e Clari -nhas, por exemplo.

    2. O pur de feijo branco com amndoacompe o recheio dos pastis de fe ijo.

    3. Em carta dirigida a Mrio de Andradeem 11 de dezembro de 1937, Cascudo pe-

    de-lhe que lhe envie o tra balho de Lvi-

    Strauss, possivelmente se referindo obra

    Instrues prticas para pesquisas de antropo-logia fsica e cultural, de Dina Lvi-Strauss,

    que foi publicada em 1936 (apud Moraes,

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    ResumoO presente artigo tem como proposta articular experincias individuais nainterpretao da cultura coletiva, focalizando a influncia de saboresexperimentados por Cmara Cascudo em sua viagem a Portugal de 1947 na

    escrita de sua obraHistria da alimentao no Brasil, publicada em 1967.Para tan to, parte-se da no o de que o gosto ali mentar congrega tantoinfluncias culturais e histricas como experincias individuais.Nessa perspectiva, apresentam-se fragmentos da memria pessoal de Cascudoe argumentos atravs dos quais ele defende uma cozinha tradicionalbrasileira, no sentido de identificar influncias de experincias gustativasindividuais em sua narrativa histrica alimentar.Palavras-chave: histria da alimentao; Cmara Cascudo; cozinhabrasileira; cozinha portuguesa; gosto; tradies alimentares.

    AbstractThe present article aims to articulate individual experiences in theinterpretation of collective culture, by means of examining the influence offlavors experienced by Cmara Cascudo in his trip to Portugal in 1947 in hiswriting ofHistory of food in Brazil. The article is ba sed on the notion that thetaste of food carries cultural and historical influences, as well as individualexperiences. It presents fragments of Cascudos personal memories and thearguments with which he defends traditional Brazilian cuisine, in order toidentify the influence of individual taste experiences in his history of food.Key words: history of food; Cmara Cascudo; Brazilian cuisine; Portuguese

    cuisine; taste; food traditions.RsumCet article veut analyser larticulation dexpriences individuelles aveclinterprtation de la culture collective, en observant linfluence quont eu lessaveurs rencontres par Cmara Cascudo lors de son voyage au Portugal en1947 sur lcriture de son Histoire de lalimentation au Brsil, publie en 1967.On part de lide que le got alimentaire rassemble des influences culturelleset historiques, bien que des expriences individuelles. On prsente desfragments de la mmoire de Cascudo ainsi que les arguments avec lesquels ildfend une cuisine tradition nelle brsilienne, afin didentifier linfluence desexpriences gustatives sur son rcit historique.Mots-cls: histoire de lalimentation; Cmara Cascudo; cuisine brsilienne;cuisine portugaise; got; traditions alimentaires.

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