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VIII Colóquio Ensino Médio, História e Cidadania. Florianópolis (SC) 2013. ISSN 2236-7977 EIXO TEMÁTICO: 02 ESCOLA NORMAL / CURSO DE MAGISTÉRIO CURSO NORMAL: UM OLHAR SOBRE AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA CIDADE DE VALENÇA (DÉCADA DE 1950). Christiane Guimarães Pançardes da Silva 1 Antônio Francisco de viveiros Júnior 2 O presente estudo busca compreender como a cultura local influenciou a formação das normalistas do Colégio Sagrado Coração de Jesus (Valença-RJ) e, em contrapartida, entender como a formação das normalistas influenciou a cultura local, durante a década de 1950. Cabe ressaltar que, no período estudado, a instituição era constituída por um corpo discente feminino, no sistema de internato e semi-internato. A formação oferecida no Curso Normal era dedicada às mulheres da elite da região Sul-Fluminense do Estado do Rio de Janeiro, em especial das cidades que compõem o Vale do Café, como Valença, Barra do Piraí, Piraí, Vassouras, Rio das Flores e Paty do Alferes. Desta forma, propomos investigar quais eram os traços da identidade feminina e docente formada no Colégio Sagrado Coração de Jesus? Quais eram as influências dos aspectos locais da cidade de Valença, em relação à política, religião e a questão da formação das elites, em particular das mulheres? Quais eram as relações entre o currículo do Colégio Sagrado Coração de Jesus, a constituição de traços identitários das normalistas e as festividades locais, em particular a festa de Nossa Senhora da Glória e o desfile cívico? A análise foi desenvolvida com base nos depoimentos orais das ex-alunas e nos documentos institucionais particularmente no material iconográfico (escritos das religiosas, fotografias, diplomas, livros- fonte e filmagens), que nos forneceu pistas para o conhecimento histórico das questões indicadas, situando-as no tempo/espaço estudado. Palavras-chave: Curso Normal; cultura local; normalistas. 1 Vinculada a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Possui licenciatura e bacharelado em Educação Física (UniFOA, 2009), pós-graduação lato sensu em “Profissionais da Escola e Práticas Curriculares (UFF, 2011) e mestrado em Educação (UFRJ, 2012). E-mail: [email protected] 2 Vinculado a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Possui licenciatura em Pedagogia (CES- JF, 1990), pós-graduação lato sensu em “Currículo e Prática Educativa” (PUC-RJ, 2000), pós-graduação lato sensu em “Administração Escolar” (UFCAM, 2006) e mestrado em Educação (UFRJ, 2013). E-mail: [email protected]

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  • VIII Colquio Ensino Mdio, Histria e Cidadania. Florianpolis (SC) 2013. ISSN 2236-7977

    EIXO TEMTICO: 02 ESCOLA NORMAL / CURSO DE MAGISTRIO

    CURSO NORMAL: UM OLHAR SOBRE AS PRTICAS PEDAGGICAS NA

    CIDADE DE VALENA (DCADA DE 1950).

    Christiane Guimares Panardes da Silva 1

    Antnio Francisco de viveiros Jnior 2

    O presente estudo busca compreender como a cultura local influenciou a formao das

    normalistas do Colgio Sagrado Corao de Jesus (Valena-RJ) e, em contrapartida, entender

    como a formao das normalistas influenciou a cultura local, durante a dcada de 1950. Cabe

    ressaltar que, no perodo estudado, a instituio era constituda por um corpo discente feminino,

    no sistema de internato e semi-internato. A formao oferecida no Curso Normal era dedicada

    s mulheres da elite da regio Sul-Fluminense do Estado do Rio de Janeiro, em especial das

    cidades que compem o Vale do Caf, como Valena, Barra do Pira, Pira, Vassouras, Rio das

    Flores e Paty do Alferes. Desta forma, propomos investigar quais eram os traos da identidade

    feminina e docente formada no Colgio Sagrado Corao de Jesus? Quais eram as influncias

    dos aspectos locais da cidade de Valena, em relao poltica, religio e a questo da formao

    das elites, em particular das mulheres? Quais eram as relaes entre o currculo do Colgio

    Sagrado Corao de Jesus, a constituio de traos identitrios das normalistas e as festividades

    locais, em particular a festa de Nossa Senhora da Glria e o desfile cvico? A anlise foi

    desenvolvida com base nos depoimentos orais das ex-alunas e nos documentos institucionais

    particularmente no material iconogrfico (escritos das religiosas, fotografias, diplomas, livros-

    fonte e filmagens), que nos forneceu pistas para o conhecimento histrico das questes

    indicadas, situando-as no tempo/espao estudado.

    Palavras-chave: Curso Normal; cultura local; normalistas.

    1 Vinculada a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Possui licenciatura e bacharelado

    em Educao Fsica (UniFOA, 2009), ps-graduao lato sensu em Profissionais da Escola e Prticas Curriculares (UFF, 2011) e mestrado em Educao (UFRJ, 2012). E-mail:

    [email protected] 2 Vinculado a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Possui licenciatura em

    Pedagogia (CES- JF, 1990), ps-graduao lato sensu em Currculo e Prtica Educativa (PUC-RJ, 2000), ps-graduao lato sensu em Administrao Escolar (UFCAM, 2006) e mestrado em Educao (UFRJ, 2013). E-mail: [email protected]

  • 2

    APRESENTAO

    O presente artigo um recorte da dissertao de mestrado defendida na Universidade

    federal do Rio de Janeiro, no ano de 2012. Essa dissertao foi dividida em vrios artigos que

    foram publicados em eventos da rea da educao e histria. Desta forma, esse estudo se prope

    a compreender o contexto histrico da cidade de Valena-RJ nos anos de 1950 e como

    prepararam as mulheres da elite3 que frequentaram o Colgio Sagrado Corao de Jesus4. O

    recorte temporal na dcada de 1950 se justifica, pelo fato de que, neste perodo, o colgio era

    apenas feminino e aquela foi a primeira dcada em que a coordenao estava sob a direo das

    religiosas da Congregao das Pequenas Irms da Divina Providncia. Cabe ressaltar que

    neste mesmo recorte temporal - histrico - que o colgio apresenta maior volume de material

    iconogrfico para o estudo.

    Neste perodo utilizado para estudo, a cidade de Valena vivia uma estabilidade

    econmica, por conta da expanso da indstria txtil em todo o pas, situao aproveitada pelo

    municpio, que investiu na abertura de indstrias de tecidos. Torna-se de extrema importncia

    ressaltar a posio geogrfica da cidade, atravs da presena da malha ferroviria, que a ligava

    a So Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Tal posicionamento estratgico da cidade na

    circulao e distribuio de mercadorias possibilitou um grande avano no consumo local e

    contribuiu para o auge econmico.

    Nesta tica, este estudo objetivou compreender como a cultura local influenciou a

    formao das normalistas do Colgio Sagrado Corao de Jesus (Valena-RJ) e, em

    contrapartida, entender como a formao das normalistas tencionava influenciar na cultura

    local, na dcada de 1950. Para isso, ns analisamos a relevncia do Colgio Sagrado Corao

    de Jesus (Valena-RJ), na formao docente de mulheres na regio Sul-Fluminense do Estado

    do Rio de Janeiro, na dcada de 1950. Um dos focos do trabalho foi observar como a vida social

    3 O termo mulheres da elite refere-se ao fato de estudarem no Colgio Sagrado Corao de Jesus as

    filhas dos fazendeiros, polticos e comerciantes locais. 4 O Colgio Sagrado Corao de Jesus foi fundado em 1928 denominado inicialmente de Curso Normal

    Manuel Duarte. At os dias atuais ele atua na cidade de Valena, sob a coordenao das religiosas da

    Congregao das Pequenas Irms da Divina Providncia.

  • 3

    da cidade de Valena-RJ, na dcada de 1950, influenciou e foi influenciada pela formao

    religiosa e profissional das normalistas do Colgio Sagrado Corao de Jesus.

    Para tal investigao, optamos por analisar um conjunto de fontes, tais como o material

    iconogrfico preservado pelo acervo do CSCJ e os depoimentos orais de quatro ex-alunas. Por

    meio destas fontes (orais e documentais), pretendemos observar e entender como as alunas

    tinham que subsumir seus sentimentos, movimentos e gestos s normas de civilidade, aos

    hbitos inscritos e ocultos no currculo e nos programas educativos institucionais. Buscamos

    investigar quais eram as condutas adotadas pelas professoras(es) para compreender como a

    Congregao das Pequenas Irms da Divina Providncia entrelaou sua formao/vocao com

    a formao das normalistas para, em seguida, perceber por meio dos relatos orais das alunas

    que frequentaram a instituio nos anos 1950, como foram suas orientaes para que fizessem

    suas trajetrias, tanto sociais quanto profissionais, na cidade de Valena-RJ.

    Cabe ressaltar que a iconografia aqui trabalhada constitui-se de imagens

    disponibilizadas pelo acervo institucional do Colgio Sagrado Corao de Jesus e de um filme

    com imagens do perodo estudado que nos contam a histria da cidade de Valena.

    VALENA (1950): Cultura local e as perspectivas educacionais

    Neste artigo propomos a observao entre escalas variadas (REVEL, 1998). Nessa tica,

    esse autor aponta que a escolha de uma ou outra escala de representao no equivale a

    representar em tamanhos diversos uma realidade constante, e sim a transformar o contedo de

    representao mediante a escolha do que representvel. Isso se faz necessrio, pela opo

    em dirigir o foco, tambm, ao local, buscando-se um conhecimento histrico que seja

    produtor de uma conscincia entre as relaes das aes de sujeitos individuais e/ou coletivos

    em um lugar, dimensionado em sua ordem de grandeza como uma unidade (GONALVES,

    2004, p. 177).

    As anlises sobre histria local permitem redimensionar a aparente dicotomia

    entre centro/periferia, deslocando tais categorias por intermdio da noo de

    rede e dos jogos de negociao, apropriao e circulao que informam as

    relaes entre grupos e indivduos, em especial, no campo das micropolticas

    do quotidiano, espaos marcados pela proximidade e pela contiguidade das

    relaes (GONALVES, 2004, p. 181).

    Nessa tica, definir a micro-histria como uma perspectiva de estudo nos faz integrar as

    diferentes dimenses da experincia social que estudamos. Assim, esta proposta de estudo

  • 4

    busca entender como os movimentos, as aes ou transformaes coletivas so possveis, mas,

    para isso, compreende como cada ator est inscrito nessas aes. Com isso, torna-se relevante

    entender que a abordagem micro-histrica uma convico de que a escolha de uma escala

    peculiar de observao fica associada a efeitos de conhecimentos especficos e que tal escolha

    pode ser posta a servio de estratgias de conhecimento (REVEL, 1998, p. 438).

    Na inteno de analisar, de forma indiciria, as prticas curriculares/locais no Colgio

    Sagrado Corao de Jesus, torna-se possvel perceber algumas peculiaridades, como a

    funcionalidade e a articulao desse currculo com a cultura da cidade, com o projeto

    pedaggico e tambm, com a concepo de educao veiculada e transmitida pela instituio

    de formao de professoras. Observamos uma possvel relao entre a congregao religiosa e

    a inteno na conduo dos hbitos, valores e maneiras de pensar que geriam a mentalidade e

    a conduta das alunas, condies fundamentais para justificar a prpria existncia e legitimidade

    da Escola Normal confessional na cidade de Valena. Cabe ressaltar que, no perodo estudado,

    a instituio pesquisada funcionava no sistema de internato e semi-internato. As internas eram

    filhas, em sua maioria, de fazendeiros ou de polticos da regio. A escolha por esse sistema

    ocorria por conta da distncia

    existente entre suas casas e o

    colgio.

    A imagem 01 mostra, alm do dormitrio das alunas do CSCJ, uma organizao espacial

    e uma linearidade que determina uma rigidez, que pode ser indcio de uma conduta metdica,

    marcada pela determinao de ordem e respeito s ordens institucionais. Desta forma,

    entendemos que a recluso intervm tambm no que diz respeito conduta dos indivduos.

    Imagem 01 Dormitrio das alunas internas no CSCJ Fonte: Arquivos do CSCJ

  • 5

    Sanciona num nvel infrapenal, maneiras de viver, tipos de discursos, projetos ou intenes

    polticas (FOUCAULT, 2002, p.36). Essa afirmao vai ao encontro do depoimento da ex-

    aluna III:

    Eu lembro que na hora que a minha me me trouxe para ficar interna na escola

    normal ela avisou que eu havia trazido a metade do enxoval, porque meus

    pais no haviam conseguido comprar todo o enxoval. Exemplo: que se eu

    tinha que levar cinco pijamas, meu pai mandou trs..., meu endredom foi feito

    pela minha me de chito. Bordou o meu nmero, que era 38, que era meu

    nmero de internato, ento toda a minha roupa era marcada por 38. (...) O

    acesso aos dormitrios s era permitido na hora de dormir, onde ficava uma

    irm tomando conta da gente, porm no p da escada, ficava a governanta, que tomava conta da gente, e se algum fizesse alguma coisa de errado

    durante a semana, ficava sem sair no domingo que era o dia que amos ao

    Jardim de Baixo.

    Nesta tica, a moralidade posta como competncia primordial (GONDRA e

    LEMOS, 2004, p. 75), afinal, as alunas tinham que ser formadas em parmetros de conduta e

    ordem impecveis. A ideia norteadora se sustentava na concepo de que essas mulheres seriam

    as principais provedoras de conhecimento e da educao de seus filhos, da famlia e da

    sociedade, por meio da atuao no magistrio primrio. Assim dialogamos com Lopes e

    Macedo (2002, p. 28), que afirmam o currculo assim uma forma de representao que se

    constitui como sistema de regulao moral e de controle. Tanto produto das relaes de poder

    e identidades sociais, quanto seu determinante. Atravs dessa percepo de currculo que

    buscaremos abordar aspectos relevantes na formao das normalistas do CSCJ, na inteno de

    entrela-las com as questes culturais, econmicas e morais da cidade de Valena na dcada

    de 1950.

    Assim, reportamo-nos a Louro (2001), na inteno de entender o discurso como tambm

    a relao cidade CSCJ gnero. A autora afirma que o discurso hegemnico segundo o

    qual, para educao das mulheres era suficiente uma formao moral slida, visando

    constituio de esposas e mes, era necessrio. Assim, essa educao feminina

    institucionalizava uma determinada viso, essencializada pela ideia da natureza, de ser mulher.

    A convenincia de preparar as mulheres para exercer a funo educativa junto s crianas fez

    desse saber/fazer uma transio ideolgica e cultural que passava de me para filha, de

    professora para a aluna, e/ou por meios educativos, como, por exemplo, os manuais de

    civilidade.

    Com a intencionalidade de formar alunas aptas tanto para o exerccio do magistrio,

  • 6

    como tambm para formao da boa moa/mulher, o Colgio Sagrado Corao de Jesus

    apresentava, em seu currculo, aspectos nos quais a identidade da educao feminina destacava,

    com grande nfase, a funo familiar, especialmente a materna, como papel primordial neste

    modelo de mulher. Fixava-se este modelo no entrelaar das funes sociais, ancoradas na ideia

    de natureza (feminina) e na cincia/sociedade. Refletindo sobre esse contexto percebemos a

    relevncia dessa ao pedaggica, com vistas a educar sob a tica de melhor modelar a

    educao, pensando a escola como uma matria modeladora (GONDRA e LEMOS, 2004).

    Observamos, assim, tessituras que propem a escola como interventora familiar, articulada com

    o escopo civilizador em curso.

    Esse questionamento nos instiga a entender como uma forma de organizao dos

    conhecimentos curriculares e do controle entre o espao/tempo do sistema escolar (CHERVEL,

    1990), compreende e interliga-se com o contexto histrico. Buscando complementar esse

    pensamento, conversamos com Macedo (2003/2004, p. 26) para quem o currculo passa a ser,

    assim, um lugar-tempo em que os sistemas de referncia culturais so confrontados com a sua

    insuficincia pela negociao com o outro, com a diferena. Nesta inteno, percebemos

    como ocorria essa interferncia durante a formao docente, concluindo que esse lugar-tempo

    reflete a formao da identidade dessa normalista.

    Com base nesse contexto, a anlise do referido currculo nos leva a observar a

    configurao do saber escolar como um campo social caracterizado pela coexistncia de

    grupos sociais com interesses divergentes e com postulaes ideolgicas e culturais

    heterogneas, para os quais a escolarizao constitui um trunfo social, poltico e simblico

    (FORQUIN, 1992, p.44). Outro aspecto importante e que ganha destaque, so as disciplinas

    que existiam nessa instituio, o que nos permitem pens-las como opes metodolgicas

    capazes de moldar corpos, ou seja, nelas suas alunas eram submetidas a movimentos

    controlados de acordo com tempo e espao, estando intimamente ligada disciplina-saber,

    com o intuito de promover a normalizao da conduta do indivduo.

    (...) o processo civilizador visto a partir dos aspectos dos padres de conduta e de controle de pulses a mesma tendncia que, se considerada do ponto de

    vista das relaes humanas, aparece como um processo de integrao em

    andamento, um aumento na diferenciao de funes sociais e na

    interdependncia e como a formao de unidades ainda maiores de integrao,

    de cuja evoluo e fortuna o indivduo depende, saiba ele ou no (ELIAS,

    1990, p. 83).

  • 7

    Nesta tica, reportamo-nos a Louro (2008, p. 454), que afirma as Escolas Normais esto

    cheias de moas e que o Curso Normal tornava-se escola para mulheres, onde seus currculos,

    suas normas, os uniformes, o prdio, os corredores, os quadros, as mestras e mestres, tudo faz

    desse um espao destinado a transformar meninas/mulheres em professoras. Seguindo esse

    pensamento, refletimos sobre s controles que essas alunas sofriam e aprendiam durante a sua

    passagem pela instituio.

    O controle do comportamento passa a ser ensinado desde os primeiros anos,

    formando o que vai ser denominado de uma segunda natureza, formando

    como uma espcie de automatismo, uma autocompulso qual ele no poderia resistir, mesmo que desejasse. Em meio a essa teia de aes to complexa, que leva o indivduo a comportar-se corretamente atravs de um controle consciente, somado a um complexo aparelho de controles

    socialmente exigidos, relacionam-se os manuais de comportamento que

    ditavam modelos de desempenhos sociais considerados civis (PILLA, 2003,

    p. 05).

    O que nos permitiu perceber que as normalistas adquiriam virtudes e, sobretudo,

    preceitos de como portar-se perante a sociedade. Soma-se a isso o compromisso com a tica e

    a moral, necessrios para ser uma boa professora, j que o iderio predominante era o de

    preparar as filhas-mulheres para o magistrio, mas, sobretudo, para a concretizao de um bom

    casamento. Iderio clssico de formao das mulheres de classes mais favorecidas desta

    sociedade em que predominavam as regras morais e domsticas, o preparo para o exerccio dos

    bons costumes, para a educao dos futuros filhos e para a gesto competente dos espaos

    privados. Essa afirmao tambm ocorre na fala da ex-aluna II, ao declarar:

    A civilidade nos dava respaldo necessrio para vivermos em sociedade, a

    respeitarmos o direito do outro, a nos posicionarmos em diferentes ocasies e

    situaes e, a Educao Fsica, a completava medida que nos mostrava a

    importncia da disciplina, da ordem, das regras, do equilbrio necessrio at

    nas competies, a fim de que soubssemos ganhar e perder (...) a finalidade

    era a educao como um todo, formao do carter, formao da postura, boas

    maneiras, respeito e cordialidade.

    Partindo desse pensamento, remetemo-nos a Woodward (2000) na inteno de refletir

    sobre a identidade da normalista valenciana, onde ser disciplinadas, obedientes, motivadas,

    responsveis e socialmente comprometidas so caractersticas primordiais nessa formao, que

    era constituda no apenas pelo seu currculo formal, mas tambm oculto, como exemplo o

    significado de vestir o uniforme dessa instituio. Assim, analisamos esta questo, observando

    que:

    Todas as prticas de significao que produzem significados envolvem

  • 8

    relaes de poder, incluindo o poder para definir quem includo e quem

    excludo. A cultura molda a identidade ao dar sentido experincia e ao tornar

    possvel optar; entre as vrias identidades possveis, por um modo especfico

    de subjetividade (WOODWARD, 2000, p. 18-19).

    Nessa tica, para pensar essa identidade relacionada com a questo do gnero feminino,

    torna-se necessrio conversamos com Louro (2001, p. 444). A autora afirma que elas

    (professoras) deveriam ser pessoas de moral inatacvel; suas casas ambientes decentes e

    saudveis, uma vez que as famlias lhes

    confiavam seus filhos e filhas. Essas

    mulheres/professoras apresentavam marcas

    visveis desse processo de

    escolarizao, que, ao serem valorizadas,

    tornavam-se referncia para todos.

    Atravs da imagem 02, percebemos como as alunas se faziam presentes na sala de aula,

    ou seja, como as mesmas deveriam se comportar, assim como, tambm, revelou a diviso que

    ocorria na sala de aula, afinal s carteiras eram enfileiradas, com nveis (degraus na sala) e em

    duplas. Pelo que vemos, essa fotografia nos permite conhecer um pouco daquele cotidiano, e

    assim conseguimos perceber o disciplinamento, pelo porte das alunas, como tambm, pelo uso

    impecvel do uniforme. Desta forma, reportamo-nos a Nvoa (1991), quando ele afirma que o

    momento em que passamos pela escola e pelas disciplinas corresponde a um tempo, em que o

    corpo manipulado, no qual se molda e se corrige. Com isso, torna-se clara a civilizao dos

    costumes, que impe um domnio sobre o corpo, onde a interiorizao desses conjuntos de

    regras morais agir sobre o comportamento individual das alunas.

    Imagem 02 Fotos do cotidiano Fonte: Arquivos do CSCJ

  • 9

    Compartilhando das ideias de Nvoa (1991, p. 113) observamos que o ajustamento de

    um conjunto de procedimentos e de tcnicas para esquadrilhar, controlar, medir, corrigir os

    indivduos, para os tornarem ao mesmo tempo dceis e teis torna-se caracterstico no

    currculo dessa instituio.

    Ser professora no caracterstica de qualquer mulher, sendo necessrio ter:

    qualidades fsicas (boa sade, boa audio, expresso de olhar, voz afvel,

    porte correto do corpo, apresentao e vesturio), qualidades intelectuais

    (capacidade didtica, conhecimento da lngua, conhecimento da matria,

    inteligncia, tato psicolgico, bom senso, esprito de liderana, clareza de

    expresso e cultura geral), qualidades morais (esprito religioso, idealismo,

    amor a criana, bondade e esprito de justia, boa conduta moral, entusiasmo,

    companheirismo, alegria, bom humor, auto-domnio e pacincia, esprito

    renovador, cortesia, disciplina e obedincia, assiduidade e pontualidade)

    (FONTOURA, 1959 apud INCIO e RIBEIRO, 2009, p. 03)

    Realizando um olhar micro sobre essa relao, percebemos que o currculo do CSCJ nos

    anos 1950, possua possveis cdigos de comportamentos, onde suas alunas deixavam

    transparecer apenas o que ali havia sido moldado, como a graa e a virtude moral. Desse modo,

    todos os aparatos utilizados para formar a boa educao proveniente de uma futura

    professora, como tambm uma boa esposa/me, contavam com os preceitos religiosos e morais,

    especificamente, os da cidade de Valena, que era a pea-chave na instruo e formao

    dessas normalistas.

    Com a utilizao da micro-histria, torna-se possvel entrelaar aspectos do CSCJ e

    algumas caractersticas da cidade de Valena, como a forte presena da religiosidade e das

    estratgias de poder local. Isso nos permite entender como ocorria essa interferncia nos corpos

    dessas normalistas, com relao a esse lugar-tempo, que apresentava a intencionalidade de

    moldar uma formao ideal para a identidade dessa aluna. Essas caractersticas de status e

    questes educacionais civilizadoras presentes no CSCJ nos instigaram a tentar compreender

    o currculo aplicado nesta instituio na dcada de 1950 e assim interpretar como ocorreu a

    relao entre educao proposta para as normalistas valencianas e a cultura local de Valena.

    Assim sendo, realizar uma anlise das fontes disponveis, como exemplo, o currculo e algumas

    prticas currculares visveis nas fotografias nos mostrou a combinao existente entre religio,

    conduta moral e sociedade local. Evidenciando, tambm, a emergncia desse discursos e de

    prticas de interveno nos corpos das alunas. Nesse esforo, foi possvel observar os efeitos

    de ordem, da obedincia a seus superiores e da interiorizao das regras impostas pela

    sociedade, nas configuraes sociais em que estavam inseridas as futuras professoras, esposas

    e mes.

  • 10

    Para fortalecer a presente interpretao, dialogamos com Forquin (1993, p.125), para

    quem a educao deve ter por meta essencial reforar em cada indivduo o ser social, o membro

    de uma coletividade bem definida no tempo e no espao, e caracterizada por orientaes

    culturais especficas. Assim,

    pensar educao no CSCJ (1950) nos

    permite analis-la como civilizadora,

    pois, como discutido anteriormente, a

    mesma apresentou caractersticas de

    modelao, expressa nos corpos, por meio

    de gestos, comportamentos,

    vestimentas e postura.

    Nesta tica, utilizamos a imagem 03, como um artefato que vem complementar e

    exemplificar nossas afirmaes. Essa fotografia nos permite analisar a importncia cultural da

    religiosidade, mais especificamente da Virgem Maria, uma caracterstica marcante da formao

    de professoras neste perodo, j que as mesmas deveriam ser consideradas Santas puras,

    perante a sociedade, para que assim, as famlias locais pudessem conceder a elas a educao de

    seus filhos. Observamos que ao centro est a imagem da Santa e, em seu contorno, esto as

    alunas do CSCJ. Consideramos que esta disposio expressa o entrelace, religio cultura

    currculo como um signo forte e relevante para essa sociedade. Entendemos que alguns dos

    ensinamentos presentes na formao que desta instituio, esto sendo cumpridos pelas alunas,

    verificamos que o mesmo afirma que elas devem sempre expandir sua devoo e amor a Deus

    e a Igreja. Nessa tica, percebemos que a caracterstica daquele meio local tem na Igreja

    Catlica uma instituio central e esta centralidade estava inscrita nesse currculo analisado.

    Imagem 03 Coroao de Maria Fonte: Arquivos do CSCJ

  • 11

    Nesta tica, percebemos o quanto

    as normalistas valencianas na dcada

    de 1950 estavam submetidas a mltiplas

    imposies corporais. Louro (2001, p. 15)

    afirma que os corpos so construdos de

    modo a adequ-los aos critrios estticos,

    higinicos, morais, dos grupos a que

    pertencemos.

    Ao olhar a imagem 04 torna-se possvel perceber o processo de fabricao corporal

    imposto pela instituio, por meio de mltiplos processos de educao: tamanho das roupas,

    partes do corpo que deveriam ser cobertas pela vestimenta, o porte ao andar, preservar o corpo

    de determinadas prticas e pensamentos, tendo em vista afastar o pecado. Desta forma, no nos

    parece difcil perceber que a escola realizava, de modo especfico, rituais pblicos delimitadores

    de fronteiras entre os que representam a normalidade estando dentro dos padres

    estabelecidos e aqueles que ficam na marginalidade. Fato que no decorrer do filme bem

    visvel, medida que, em todas as passagens das alunas do CSCJ, elas esto sempre juntas e

    sendo observadas pelas religiosas, seja no incio, no meio ou no final do grupo. Com isso, a

    presena das normalistas representava uma caracterstica central na cena festiva, reafirmando

    para o pblico a posio privilegiada que ocupavam na sociedade valenciana, fosse pela sua

    posio social, fosse pela vinculao que elas tinham com aquela instituio educativa.

    Imagem 04 Alunas do CSCJ Fonte: Fragmento do filme 5453

  • 12

    Nessa tica, ao analisar os depoimentos, como tambm fotos e currculo, torna-se

    possvel perceber que as religiosas presentes no CSCJ queriam mostrar para a sociedade

    valenciana as aes realizadas no cotidiano da escola, evidenciando a relao com os padres

    morais estipulados pela instituio. Assim, reportamo-nos ao depoimento da ex-aluna IV, que

    recorda: as Pequenas Irms da Divina Providncia, exigentes, controladoras, severas, mas

    como sempre preocupadas com nossa melhor formao religiosa, social e educacional.

    Educao que deu certo!. Com esse depoimento, compreendemos que, apesar de terem seus

    corpos submetidos a correes severas, as alunas estavam em acordo com a educao que

    recebiam, pois sabiam que isso ajudaria em seu futuro, garantindo um lugar de destaque na

    sociedade.

    Assim sendo, essa breve anlise das prticas currculares explicitou uma possvel

    compreenso da maneira como se desenvolviam as aes na instituio pesquisada, a

    combinao entre religio, conduta moral e sociedade local. Evidenciou, tambm, a emergncia

    de discursos e de prticas de interveno com base em uma formao cvica e de uma moral

    slida, para que pudesse ocorrer o desenvolvimento do carter e da disciplina, de forma a

    regular a conduta das futuras professoras e mes de famlia. Com isso, neste estudo, buscamos

    analisar como seus sujeitos as normalistas do CSCJ - apresentavam uma cultura prpria e

    local, inscrita em seus corpos, atravs dos currculos, das culturas escolares e dos aspectos

    sociais, nas quais se encontravam inseridas.

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