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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS WOLMYR AIMBERÊ ALCANTARA FILHO HISTÓRIA E POLÍTICA NO MEMORIAL DE AIRES, DE MACHADO DE ASSIS VITÓRIA 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

WOLMYR AIMBERÊ ALCANTARA FILHO

HISTÓRIA E POLÍTICA NO MEMORIAL DE AIRES, DE MACHADO DE ASSIS

VITÓRIA

2009

2

WOLMYR AIMBERÊ ALCANTARA FILHO

HISTÓRIA E POLÍTICA NO MEMORIAL DE AIRES, DE MACHADO DE ASSIS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Wilberth Claython

Ferreira Salgueiro

VITÓRIA

2009

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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Alcantara Filho, Wolmyr Aimberê, 1978- A347h História e política no Memorial de Aires, de Machado de Assis

/ Wolmyr Aimberê Alcantara Filho. – 2009. 105 f. Orientador: Wilberth Claython Ferreira Salgueiro. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito

Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais. 1. Assis, Machado de, 1839-1908. Memorial de Aires - Crítica

e interpretação. 2. História. 3. Sociedades. I. Salgueiro, Wilberth Claython Ferreira. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Ciências Humanas e Naturais. III. Título.

CDU: 82

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WOLMYR AIMBERÊ ALCANTARA FILHO

HISTÓRIA E POLÍTICA NO MEMORIAL DE AIRES, DE MACHADO DE ASSIS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre em Letras.

Aprovada em ____ de agosto de 2009.

COMISSÃO EXAMINADORA

____________________________________________

Prof. Dr. Wilberth Claython Ferreira Salgueiro

Universidade Federal do Espírito Santo

Orientador

____________________________________________

Prof. Dr. Marília Rothier Cardoso (PUC-Rio).

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro ____________________________________________

Prof. Dr. Bernardo Oliveira

Universidade Federal do Espírito Santo

____________________________________________

Prof. Dr. Sérgio Amaral

Universidade Federal do Espírito Santo

Suplente

____________________________________________

Paul Dixon

Purdue University, USA

Suplente

5

AGRADECIMENTOS

Tenho muito a agradecer a amigos, familiares e professores, pela ajuda e apoio que

me deram, durante a elaboração deste trabalho.

Agradeço ao meu orientador, Wilberth Claython Ferreira Salgueiro, que me

acompanha desde a monografia da especialização, pelas sugestões que fez, ao

longo de minha escrita, e, sobretudo, pela leitura criteriosa do texto final.

Ao meu irmão, Darcy Alcantara Neto, pelas discussões sempre instigantes, pelo

apoio e sinceridade nos comentários.

Aos amigos Délio Freire e Weverson Dadalto, pelas sugestões sempre relevantes.

Aos professores Jaime Ginzburg, que primeiro me apresentou a esse Machado

crítico de seu tempo e seu país; à professora Maria Fernanda Oliveira, pela

orientação de minha monografia da graduação, sobre Machado de Assis; ao

professor Jorge Luiz do Nascimento, que me acolheu como aluno especial do

mestrado, muito antes de eu entrar no mestrado.

Ao CNPq, pela bolsa que financiou a pesquisa

À Kalna Mareto Teao, pelo apoio que me deu na elaboração deste trabalho.

Ao Felipe Gaze e à Valeria Bandeira, dois bons amigos.

Ao meu pai, Wolmyr Aimberê Alcantara e a meu tio, Wolcy Iberê Alcantara, por

sempre acreditarem em mim.

À minha tia Marly Bernardino do Rego, pela escuta atenta às minhas dúvidas e

inquietações.

À minha mãe.

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“Depois de 1964 a visão esperançosa, ligada ao populismo e às

suas promessas, acabou. Daí a atualidade de Machado de Assis

quando mostra que não é para acreditar em nada que as

pessoas bem-postas dizem, mesmo se as palavras forem

elegantes”.

Roberto Schwarz

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RESUMO

Comumente lembrado como o último romance, o “canto do cisne” do bruxo do

Cosme Velho, o Memorial de Aires, de Machado de Assis, contou, na sua história de

leituras, com um acentuado tom biografizante. Entretanto, com o passar do tempo,

outros vieses foram ganhando lugar na crítica, apontando para uma obra que, longe

de ser simples ocaso, levantava ainda questões importantes, como o papel do leitor,

os interstícios da autoria e da narração, e as aproximações possíveis entre literatura

e história. Assim, a leitura a que se propõe este estudo do Memorial de Aires filia-se

à corrente crítica representada por Roberto Schwarz e John Gledson, isto é, tem

como objetivo refletir sobre a obra do escritor em relação às questões de seu tempo

e seu país. Mais precisamente, visa a ler os escritos do conselheiro Aires com a

mesma desconfiança que teríamos com os de Brás Cubas e Bentinho. É dessa

maneira que o diário íntimo do diplomata aposentado, interessado aparentemente

nos fatos mais comezinhos da vida doméstica, mostra-se não de todo desarticulado

da esfera pública. De fato, o fim da instituição da escravidão é um dos assuntos do

romance, que se passa entre 1888 e 1889. E se o velho diarista não dá a devida

atenção ao fato, comentando mesmo que há muitos outros assuntos mais

interessantes no mundo, é preciso saber ler suas observações enquanto

representante da ideologia comum à classe da qual fazia parte, a senhorial. Aires,

assim, acaba por reproduzir no seu discurso um modo de ser que talvez não seja

mais que uma variante da teoria da “ponta do nariz”, de Brás Cubas. Comedido,

cético, bom ouvinte, ele, ainda assim, ajuda a escrever uma história em que os

escravos não desejam se afastar da “sinhazinha” Fidélia por se sentirem “cativos” de

seu afeto. Enquanto, possivelmente, apenas temiam ser abandonados à míngua ou

à própria sorte.

Palavras-chave: Machado de Assis. Memorial de Aires. Crítica. História. Sociedade.

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ABSTRACT

Commonly remembered as the last novel, the swan-song of the “wizard of Cosme

Velho” , The Wager: Aires´Journal, by Machado de Assis, has been considered, in its

various interpretations, as a semi-autobiographical novel. However, with the passing

of time, other biases began to make their way in the critical reviews of the novel,

pointing to a work that, far from being just writer´s farewell, also raised important

questions, such as the role of the reader, the interstices of authorship and narration,

and the possible link between literature and history. Thus, the analyses proposed by

this study of the The Wager: Aires´Journal, joins the critical chain represented by

Roberto Schwarz and John Gledson, that is, aims to reflect on the work of the writer

in relation to issues of his time and his country. More precisely, it intends to look at

the writings of counsel Aires with the same suspicion we would have with the ones

from Bras Cubas and Bentinho. This is how the diary of the retired diplomat,

apparently interested in homely home life facts, proves not to be at all disjointed from

the public sphere. In fact, the end of the institution of slavery is a subject of the novel,

that takes place between 1888 and 1889. And if the old diarist does not give due

attention to the fact, even commenting that there are many other more interesting

subjects in the world, it is necessary to read his comments as a representative of

the common ideology of the class to which he belonged, the seignorial. Aires, this

way, ends up reproducing in his speech a way of being that may not be more than

one variant of the "tip of the nose" of theory of Bras Cubas. Reserved, skeptical,

good listener, he still helps write a story in which the slaves did not wish to part away

from the "missy" Fidelia because they feel "captive" of her affection. While possibly

they just feared to starve or to be abandoned to their fate.

Keywords: Machado de Assis. The Wager: Aires´Journal. Criticism. History. Society.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.......................................................................................................10

2. O CAMINHO DA CRÍTICA.....................................................................................17

2.1. UMA OBRA MENOR...........................................................................................17

2.2. DÚVIDAS DIPLOMÁTICAS.................................................................................22

2.3. UM CONSTRUTO LITERÁRIO DE RARA SOFISTICAÇÃO..............................32

3. O MEMORIAL NA TRADIÇÃO DOS ROMANCES ENGANOSOS.......................43

3.1. MEMÓRIAS PÓSTUMAS E A DESFAÇATEZ DE CLASSE...............................43

3.2. DOM CASMURRO: O LEITOR ENTRA NO JOGO.............................................49

3.3. E, BEM, E O MEMORIAL DE AIRES?.................................................................57

4. POLÍTICA E HISTÓRIA INSCRITAS NO MEMORIAL DE AIRES........................64

4.1. ESCRAVIDÃO E FAVOR NOS TRABALHOS INICIAIS......................................64

4.2. A IDEOLOGIA PATERNALISTA DOS ROMANCES DA PRIMEIRA FASE.......69

4.3. O EXEMPLO DE CASA VELHA..........................................................................72

4.4. UMA CRÔNICA DE 1888....................................................................................77

4.5. A MENTALIDADE DE UM CONSELHEIRO........................................................83

4.6. MEIAS VERDADES, RETICÊNCIAS E A PROSA LACUNAR DO MEMORIAL

DE AIRES...................................................................................................................89

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: MACHADO DE ASSIS E UMA HISTÓRIA DOS

VENCIDOS À BRASILEIRA......................................................................................95

6. REFERÊNCIAS....................................................................................................102

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1. INTRODUÇÃO

Uma das grandes conquistas dos estudos machadianos a partir da década de 1970

foi a nota de desconfiança dada ao narrador, sobretudo quando se tratou dos

romances em primeira pessoa. Brás, assim como Bento, deixaram de ser

manifestações do “eu” do autor para se tornarem personagens com características

próprias (muitas vezes referentes a uma classe específica, nesse caso a senhorial).

Assim, passou-se a vislumbrar um sem-número de preconceitos, opiniões formadas

(ou deformadas) e mesmo maneiras de se expressar que não necessariamente

eram as de Machado de Assis. Em alguns casos, bem ao contrário, o autor parecia

fazer uso de todo aquele arsenal retórico para exatamente expor certas facetas,

muitas vezes negativas, mas sempre reveladoras, desses narradores, feitos, sem

saber, títeres em suas mãos.

Percebeu-se que os vícios e preconceitos de quem contava as histórias acabavam

por contaminar os textos, deixando entrever uma série de questões importantes a

respeito da sociedade brasileira. Narradores tão cultos, bacharéis, filósofos, mas

também egoístas e loucos, expunham as contradições de seu microcosmo, o Rio de

Janeiro do século XIX (e, por extensão, o Brasil), no modo como tratavam seus

escravos e agregados, bem como no limitado papel que permitiam a suas esposas e

amantes desempenhar.

O efeito do artifício machadiano é de notável crítica ideológica: o desmantelo do mito

da elite brasileira que se quer civilizada ocorre de dentro para fora, ou seja, é a

própria elite, pela voz dos narradores, que, pega no contrapé, mostra mais do que

desejaria a seu respeito. A civilização, neste país situado abaixo da linha do

Equador, corre paralela à escravidão, barbárie das barbáries. Dessa maneira, o

discurso do direito à liberdade esbarrará sempre no direito à propriedade, já que o

escravo assim era visto. A retórica liberal não ecoava plenamente na prática, uma

vez que, no Brasil patriarcal, o trabalho livre, mesmo entre brancos pobres, não era o

que vigorava com maior intensidade, mas sim aquele próprio das sociedades de

favor, nas quais a figura do agregado, esta sim, dava provas firmes de vitalidade.

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A estratégia machadiana certamente deu certo. Enquanto homem público, sua

literatura não lhe permitiu sofrer qualquer abalo em sua imagem (um cuidado a ser

tomado, de fato, visto ser o escritor descendente de negros e tendo dependido do

favor de pessoas ricas no passado). Foi Machado sempre um modelo de correção e

discrição, enquanto vivo. Mas é inegável que, com o distanciamento crítico, o bom-

mocismo do patriarca das letras, presidente da Academia Brasileira de Letras,

cedeu, ou, ao menos, passou a rivalizar com uma outra visão, a do escritor oblíquo e

dissimulado. E o leitor aprendeu a ficar de sobreaviso.

No caso específico do Memorial de Aires, o que se pretende neste trabalho é tão-

somente tentar perceber o último romance como outro exemplo de narrativa

enganosa, tal qual a entende John Gledson e Roberto Schwarz, para daí refletir

sobre certos procedimentos do narrador e suas conseqüências para o romance.

Com isso, não se quer dizer que Aires, deliberadamente, deseje escamotear do leitor

a verdade, mas que, por se tratar outra vez de um narrador em primeira pessoa, este

deve necessariamente carregar marcas e opiniões próprias (próprias de sua classe,

a qual, não por acaso, é também a de Brás e de Bento). Tais pontos de vista

influenciam o leitor e, de certa maneira, o aliciam a pensar como ele, surgindo daí a

necessidade da leitura “a contrapelo”, ou seja, contra o narrador, ou, ao menos,

relativizando seus pressupostos. Naturalmente, uma leitura assim de imediato toma

por pressuposto que entre autor e narrador deve-se manter um saudável

distanciamento.

Se, nas Memórias póstumas, Brás não chega a nos enganar completamente, visto

que semeia o tempo todo desconfianças para o leitor, o caso de Bento é muito

diferente. De fato, é difícil, ainda hoje, não nos deixarmos contaminar por sua

retórica e argumentação, ainda que, racionalmente, já possamos notar o quão tolas

são algumas de suas proposições, filosofias e seu irritante egocentrismo.

No Memorial, tudo leva a crer que Aires está correto: ele desconfia de tudo, é cético,

ao mesmo tempo que guarda, mesmo que relutante, certo romantismo que o faz

capaz de se sensibilizar com algumas cenas e situações supostamente mais

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tocantes. É moderado, algo frívolo, mas não em excesso, e, além de tudo, um bom

conselheiro, o que seu título já anuncia. Ao término, quando vê o jovem casal

formado por Fidélia e Tristão ir-se embora para Portugal, exclama: “Viva a

mocidade!”, numa clara tentativa de resumir e apagar, como é bem do seu gosto,

todas as contradições que viu e anotou pelas páginas do diário.

Produz assim uma escrita “do menos”, do apagamento de toda e qualquer

contradição, a qual estaria perfeitamente sintonizada com os desejos de sua classe,

autocentrada em seu microcosmo e indiferente aos grandes problemas brasileiros.

Dessa maneira, o Memorial de Aires surge como um perfeito documento do modo de

ser de uma classe fechada em si mesma. A “técnica do compasso”, “o tédio à

controvérsia” do narrador, não pertencem a Machado, mas representam a

encarnação última de um determinado grupo social. A história comezinha, o enredo

ralo, algo lacunar, são características desse discurso, do qual a História e a Política

parecem misteriosamente ausentes.

Mas apenas parecem. Como é típico de Machado, tudo que está na superfície tende

a enganar, e logo que adentramos nesse mar ficcional vemos que sua profundidade

ainda está lá, mas para encontrá-la é preciso mergulhar em águas nem sempre

tranqüilas. E a História e a Política brasileiras, elas, que quase nunca foram

tranqüilas, transparecem no Memorial, sendo mesmo importantes agentes

configuradores do enredo como um todo e dos destinos das personagens, ainda que

elas talvez não se dêem conta disso. Porém, mais importante que tal intuição, será

perceber as razões dessas dimensões estarem tão submersas a ponto de não

surgirem ao primeiro mergulho no oceano da ficção machadiana. A (possível)

inocência de Capitu, recôndita nesses mesmos mares (mares em que pereceu

Escobar), clama, assim como o enredo político do Memorial de Aires, que nós os

venhamos resgatar.

Tal é o papel do leitor: “O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro

estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que

deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida.” A importância da leitura

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crítica é o que se evoca nesse trecho, curiosamente, pelo próprio Aires, enquanto

narrador em terceira pessoa de Esaú e Jacó. Aires ensinando a ler Aires. Será a

máxima bíblica citada por Padre Cabral a José Dias, e que bem poderia ser lida

como uma possível interpretação à obra do Velho Bruxo? “Não desprezes a

correção do Senhor; Ele fere e cura".

Num contexto assim, as lacunas do Memorial, suas reticências, meias-palavras e

alusões às vezes um tanto cifradas e que acabam por conferir à obra, no dizer de

André BARROS (2006), um ar de que algo se esconde ganham enfim uma

conotação específica e de problema. É exatamente quando não se pode mais nublar

os fatos, interpretando-os para além dos interesses de classe do narrador, que os

vazios narrativos melhor aparecem e mais pedem por ser preenchidos. E ainda que

o todo não se vislumbre por completo, ao menos algo da narrativa perdida é

reconstituída. E também da crítica ao romance, visto que, por longo tempo, viveu

nublada pelas insistentes correlações entre autor e narrador. Para a crítica da época

da publicação, bem como para aquela da primeira metade do século XX, Aires era

talvez a última encarnação ficcional do escritor, já velho e doente. Era também sua

reconciliação com a humanidade, visto ser o diarista daqueles que não se batem

com ninguém, por motivo algum, sempre aberto a escutar e a concordar.

O Memorial, que jamais rivalizou em quantidade de estudos com outros romances

mais conhecidos de Machado, mostrou, a despeito disso, um caminho crítico

interessante e que vale a pena conhecer, sobretudo porque aponta, antes de mais

nada, para as múltiplas possibilidades de leitura que o livro guardou e ainda guarda.

Porém, conquanto as correntes teóricas fossem surgindo e perecendo, como os

séculos-minutos de Pandora no delírio de Brás, o Memorial foi se firmando como um

romance que requeria, e cada vez mais requer, o trabalho do leitor.

De qualquer forma, o recobro da “estória” e, por extensão, da História, através do

leitor atento, é um dos legados do escritor no seu último livro. E é assim que ele

talvez tenha inscrito, em sua obra, parafraseando Walter BENJAMIN (1996), uma

história dos vencidos à brasileira, mas do modo como bem especificou um de seus

argutos críticos contemporâneos: à Machado. No seu trabalho sobre a onomástica

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do conselheiro, Wilberth SALGUEIRO (2006-07) vê o palíndromo “seria” inscrito no

nome Aires, como metáfora do próprio modo de ser do diarista. É também uma

metáfora de como devemos ler a política e a história em suas obras, não pela via

direta, mas como problema e contradição, que se acentuam com a aparente

ausência e mesmo certo desdém com que são tratadas pelos narradores.

Ao analisarmos com atenção os escritos do conselheiro, que se passaram entre

1888 e 1889, uma série de reticências, lacunas e incompletudes surgem a nossa

frente. Esses vazios narrativos, dos quais nos fala Wolfgang ISER (1999), que

cobram do leitor uma atitude participativa diante da obra literária, são lembrados por

BARROS (2006) no seu estudo sobre o Memorial. Segundo o crítico, esse livro

lacunar, cuja própria estrutura nasce do desbaste de um editor que limou o que

pensava não ser do interesse do público, aponta para uma importante característica

da ficção machadiana, o diálogo com o leitor.

E nos perguntamos: será este o diário de um Conselheiro do Império? Onde os

fatos políticos? Onde as anedotas picantes? Onde a História? Restou apenas um

comentário ralo sobre o romance um tanto insípido de um casal de jovens e sua

partida do país.

Mas não será esse relato tão particular e doméstico um importante dado sobre o

conselheiro e seu diário? Um relato singelo feito por um velho político aposentado,

há anos afastado da realidade brasileira, e por isso dela alienado, não será, ele

mesmo, icônico de uma visão de país? “Esta terra se tornou o seio de Abraão”, diz

Aires a se referir ao que encontrou quando voltou do serviço diplomático, mas não é

bem verdade. A esterilidade está no ar e ele não é capaz de ver.

Como não pode ver a complexidade do processo da escravidão, e de como é ela,

em última instância, que será uma das grandes responsáveis pelo rumo que tomará

o par Tristão-Fidélia, após o casamento: Portugal, Europa. Com o dinheiro adquirido

durante os áureos tempos do café, agora decadente na região do Vale do Paraíba, a

fazenda “dada” aos escravos, os quais, realisticamente, dela não poderão cuidar,

resta apenas à herdeira ir embora.

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Este enredo, possível, já aventado por Gledson, modifica a maneira de se ver o

Memorial. De idílio amoroso e despedida da velhice, torna-se outro romance

interessado também em discutir os destinos do Brasil. A velhice, claro, ainda é tema,

mas a decadência física torna-se metáfora para toda uma classe senhorial que não

conseguiu construir um modelo de país para deixar a seus descendentes (que

descendentes?): Fidélia e Tristão partem para não voltar.

Mais importante que tudo isso, entretanto, é perceber a natureza da narração de

Aires, escrita na ordem cronológica do diário que é. É o documento último de como

sua classe vê todo o processo, a partir do seu nariz, incapaz de fazer as correlações

necessárias entre a vida privada e a pública. As lacunas do romance, suas

reticências, marcam essa impossibilidade. A maior lacuna, entretanto, certamente é

a questão pública, a Abolição, e os prenúncios da república, que o Memorial quase

não contempla. Mas elas estão lá, ainda que não muito aparentes, nem muito

óbvias. E se Aires não chama muito a atenção para elas, não é por isso que não

existem. É bem o contrário.

À maneira de Casa Velha, a História do Brasil se encontra entrelaçada ao enredo

comezinho do cotidiano mais banal e doméstico. “Uma alegria pública não vale uma

alegria privada”, diz-nos Aires. É a piscadela do autor nos falando que a questão dos

dois mundos está presente e deve ser observada com atenção.

E se, ao final, percebemos, no Memorial (que, ao menos ficcionalmente, poderia ser

lido como um documento de época, a lançar luz sobre os estertores de um dos

períodos mais conturbados do Brasil oitocentista), um discurso um tanto quanto

ameno demais, do compasso que se abre e agrada a ambos os lados, perguntamo-

nos: seria de Machado esse discurso? Ou não seria essa a ideologia senhorial mais

clara, da qual Aires é protagonista, ao brincar, em certo momento, com a palavra

“cativo”, utilizada para dizer que os escravos, cativados pela Sinhá-moça Fidélia, por

ela não queriam partir?

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Tudo isso em um texto algo decotado do diarista, que vai somar-se a outro desbaste,

desta vez de um editor. Se nenhum corte é neutro, sobretudo em se tratando do

texto escrito, o texto final que temos mal cobre o tempo da barca de Petrópolis. Será

divertido, é certo, e talvez entretenha, apesar de guardar alguma monotonia, quase

que certamente por culpa do diarista. O que ficou de fora desse pequeno livro,

entretanto? Seria relevante? Seria?

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2. O CAMINHO DA CRÍTICA

2.1. UMA OBRA MENOR

O Memorial de Aires é sempre lembrado, antes de qualquer coisa, como o último

romance de Machado de Assis. Publicado em 1908, ano da morte do escritor, traz,

entremeada por alguns pensamentos e digressões, uma história em aparência

simples e quase singela, de uma simplicidade e uma singeleza realmente tocantes,

trazidas ao leitor por meio de um enredo “airoso”, que faz ecoar a voz e o nome de

seu narrador, o conselheiro do Império e diplomata aposentado José da Costa

Marcondes Aires1.

O romance gira, basicamente, em torno de uma intriga amena, protagonizada menos

por Aires que pelos casais seus amigos – Carmo e Aguiar, velhos como o narrador,

e Fidélia e Tristão, os jovens, chamados de “filhos postiços” dos primeiros, já que

aqueles não deixaram descendência. É justamente o conflito entre esses dois pólos

que chamará a atenção do conselheiro e o fará se dedicar às miudezas desse

microcosmo familiar.

O conflito, no entanto, precisa ser relativizado. Em nada parece lembrar as

aventuras de Rubião às voltas com a esdrúxula filosofia de humanitas, em Quincas

Borba, ou mesmo traz as dúvidas e o ciúme exagerado e quase esquizofrênico do

casmurro Bentinho, certo da infidelidade de Capitu. No Memorial de Aires, como

tudo em que seu narrador parece incidir a pena – não a da galhofa, mas a do acordo

– as situações beiram o comezinho, o cotidiano, o que parece corroborar José Paulo

1 É necessário observar que o nome completo do conselheiro apenas aparece em Esaú e Jacó, no capítulo “Esse Aires”. Também é somente nesse romance que encontramos a descrição do diplomata: “Não me demoro em descrevê-lo. Imagina só que trazia o calo do ofício, o sorriso aprovador, a fala branda e cautelosa, o ar da ocasião, a expressão adequada, tudo tão bem distribuído que era um gosto ouvi-lo e vê-lo. Talvez a pele da cara rapada estivesse prestes a mostrar os primeiros sinais do tempo. Ainda assim o bigode, que era moço na cor e no apuro com que acabava em ponta fina e rija, daria um ar de frescura ao rosto, quando o meio século chegasse. O mesmo faria o cabelo, vagamente grisalho, apartado ao centro. No alto da cabeça havia um início de calva. Na botoeira uma flor eterna.” (ASSIS, 2001, p. 50)

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Paes, quando diz que nada há de exótico nos relatos do conselheiro, como antes

foram os de Brás Cubas2.

A primeira cena, no cemitério, aponta o motivo da intriga: Aires, que retornara há

exatamente um ano da Europa, deixando mesmo a esposa lá enterrada, e

aposentado do serviço diplomático, visita, com sua mana Rita, o jazigo da família.

Enquanto conversam, os irmãos deparam com a figura de uma jovem a rezar em

frente a certo túmulo. Rita explica a Aires tratar-se da viúva-moça Fidélia, cujo

marido, Eduardo Noronha, morrera recentemente, quando estava o casal em lua-de-

mel em Portugal. A irmã ainda sugere que, dado o amor que parece mostrar pelo

finado, Fidélia jamais voltará a casar, algo que Aires contesta, e daí surge a aposta:

que dentro de um ano a jovem viúva terá encontrado um novo marido.

Uma vez que Fidélia é afilhada do casal Aguiar, o contentamento do casal de velhos

é grande quando a vêem de volta, e logo a trazem para perto de si, tomando-a como

a filha que nunca tiveram. A felicidade só aumenta quando recebem a carta trazendo

informações sobre o retorno de Tristão, que, quando criança e até a adolescência,

privou da intimidade do casal. O rapaz de fato volta ao Brasil, acaba apaixonando-se

por Fidélia e no fim se casam. A alegria dos Aguiares, no entanto, esvai-se quando

os jovens, tão logo resolvem seus negócios no Brasil, viajam à Europa para lá

permanecerem, já que Tristão elegera-se deputado naquelas terras. O último

apontamento de Aires revela o final melancólico do romance:

Ao fundo, à entrada do saguão, dei com os dois velhos sentados, olhando um para o outro. Aguiar estava encostado ao portal direito, com as mãos sobre os joelhos. D Carmo, à esquerda, tinha os braços cruzados à cinta. Hesitei entre ir adiante ou desandar o caminho; continuei parado alguns segundos até que recuei pé ante pé. Ao transpor a porta para a rua, vi-lhes no rosto e na atitude uma expressão a que não acho nome certo ou claro; digo o que me pareceu. Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade de si mesmos. (ASSIS, 2000, p. 134).

2 “Nos romances de sua chamada “segunda fase”, Machado desenvolveu uma arte narrativa muito característica. Arte de quem, leitor constante de Sterne e De Maistre, compraz-se no paradoxo – tanto ao nível de artifício retórico quanto de visão do mundo –, dele se valendo para pôr habilmente em destaque os aspectos contraditórios da natureza humana. Daí a atração do romancista pelas personagens que, num ou noutro particular, escapem à normalidade, seja por excêntricas ou marginais em relação à norma ético-social, seja por declaradamente psicóticas. Que haverá, porém, no Memorial que mereça o nome de excêntrico? Seus protagonistas são gente comum, cujos conflitos envolvem sentimentos e valores morais que nada têm de turvos ou de aberrantes, confinando-se antes, prudentemente, aos limites do convencional.” (PAES, 1985, p. 14)

19

Como se não bastasse o enredo quase inexistente, entremeado pela ação algo curta

e sem maiores complicações, com comentários e divagações de Aires sobre

diversos assuntos, o próprio modo de narrar do conselheiro pareceu a alguns

bocejado, como a ele se referiu Augusto Meyer, uma vez3.

Também John Gledson não pôde evitar o comentário:

O Memorial também foi relativamente negligenciado como objeto de estudo. Sem dúvida isto se deve, em parte, à questão da legibilidade, porque é difícil fingir que seja tão emocionante ou divertido como, digamos, Brás Cubas, Quincas Borba ou Dom Casmurro (...) A história de amor e casamento de Tristão e Fidélia, e de sua volta a Portugal, parece carecer de tensão e de verdadeira importância e os personagens menores não têm a verve cômica nem mesmo de figuras como Batista e Cláudia, em Esaú e Jacó, sem falar em obras mais antigas. (GLEDSON, 2003, p. 248)

Ainda que Gledson vá, no decorrer do texto, questionando os pontos de vista acima,

para enfim propor sua leitura extremamente original e instigante do livro (leitura a

que este trabalho muito deve), o fato é que, ajudado pelas características então

apontadas, e também por se tratar do último romance do escritor (já idoso, doente e

viúvo a partir de 1904), o Memorial de Aires passou, por muito tempo, como um

romance menor, o “canto do cisne” de Machado de Assis4.

Os primeiros estudos críticos parecem apontar, de fato, para uma aproximação entre

a vida e a obra. Influenciados por alguns indícios, como a carta escrita por Machado

ao amigo Mário de Alencar, sugerindo que Carmo fora inspirada em Dona Carolina,

alguns críticos passaram a compreender Aires como o alter-ego do escritor, e o

Memorial como o documento final e biográfico de Machado de Assis5. De fato, como

3 “E desde outubro de 1904, o homem parece outro. Não há realmente no Memorial de Aires a mesma petulância irônica, certa indulgência crepuscular esfuma a ironia, Aires descreve a infidelidade de Fidélia sem grande malícia, como efeito de uma evolução necessária. Mas a indulgência também é sonolência, o abandono parece cansaço. Livro cinzento, livro morto, livro bocejado e não escrito. Aires? Fidélia? Tristão e o casal Aguiar? Só vejo uma personagem – o Tédio. A ‘letargia indefinível’ a que eu me referia no começo deste ensaio tomou conta do velho Joaquim Maria, definindo-se. É agora um imenso bocejo, capaz de engolir o mundo”. (Meyer, 2008, p. 41) 4 Alfredo Pujol: “Aí tendes uma súmula desse livro encantador, em que se cristalizam e se apuram todos os dotes do maravilhoso prosador na distinção do seu estilo, a par de uma filosofia mais indulgente e de uma infinita piedade”. Barreto Filho: “O livro já não tem mais enredo, é uma pura música interior fluindo velada de sua saudade e deu seu espírito e deixando que a bondade a simpatia humana se desenvolvam francamente. A História propriamente dita que se conta é a de dois idílios: o do casal Aguiar e o da viúva Fidélia com Tristão”. Lúcia Miguel Pereira: “O Memorial de Aires tem a monotonia da felicidade e do quotidiano”. (GLEDSON, 2003, p. 286) 5 Primeiramente, Mário de Alencar, filho do romancista José de Alencar, escrevera a Machado: “Falo-lhe, pois, das impressões posso dizer que definitivas ou quase; e querendo qualificar o Memorial de

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recorda GLEDSON (2003, p. 256), tanto o narrador como o escritor tinham até o

mesmo problema de vista, além de serem, como já se sabe, ambos viúvos e

sexagenários.

Se os estudos com viés biografizante sobre o Memorial tiveram ampla aceitação da

crítica por vários anos após, os comentários saídos “no calor da hora”, isto é, na

época em que o romance foi publicado, trazem uma nota que enfatiza, sobretudo, o

tom melancólico, a nota bondosa, a ironia piedosa.

Lemos de Panglos, pseudônimo de Alcindo Guanabara, publicado no jornal A

Imprensa, em 29 de agosto de 1908:

A noite passada, tomei do Memorial de Ayres, o último livro de Machado de Assis, e li-o de uma assentada. Das obras desse mestre, pode-se dizer que são quase perfeitas. (...) São trabalhos feitos com amor, com cuidado, com vagar, com paciência; são lavores em que o tempo teve uma grande parte. Polidos, limados, uma, duas, dez, cem vezes, tantas quantas foram precisas para que ficassem impecáveis. (...) O episódio, a trama, a ficção, aí não é senão mero pretexto para as observações exatas, para o conceito original, para a sentença curiosa, para um humorismo à inglesa, para a manifestação de um ceticismo mordaz e amável, que trai um estado d’ alma eivado de um indiferentismo que se traduz, afinal, numa bondade infinita, que tudo explica e tudo perdoa. (GUIMARÃES, 2004, p. 450)

Ainda nos jornais da época, lê-se, no Correio da Manhã, de 3 de março de 1908,

comentário de Cândido, pseudônimo de José Veríssimo:

Memorial de Aires é um livro triste, sem ser piegas; é um livro empolgante, que devera ser enfadonho. É o registro, na aparência insignificante, das mágoas de alguns velhos, urdidas pelas desilusões da vida, frechando cruel e friamente sobre a requintada sensibilidade de almas tão simples e tão boas, que chegam a parecer arrancadas a época remotíssima. (GUIMARÃES, 2004, p. 451)

Aires, os adjetivos que achei ajustados foram estes: delicioso, fino, superior, perfeito. Só podia escrevê-lo quem escreveu Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Várias Histórias. – Memorial de Aires tem a mesma força, a mesma novidade, e tem mais que os outros, com exceção de Esaú e Jacó e Dom Casmurro, o apuro da perfeição, e, sem exceção de nenhum outro, uma parte grande e admirável, que é efeito da colaboração de um sentimento novo, o mesmo que fez o soneto A Carolina e que nestas páginas traçou aquela figura verdadeira e sagrada de Dona Carmo. O mundo poderá admirá-la e há de admirá-la como criação de arte; eu, que adivinhei o modelo, li-o comovido, cheio do respeito pela doce evocação.” O trecho da resposta de Machado a este é: “Queria a impressão direta e primeira do seu espírito, culto, embora certo de que aquele mesmo sentimento o predispunha à boa vontade. – Assim foi; a carta que me mandou respira toda um entusiasmo que estou longe de merecer, mas é sincera e mostra que me leu com alma. Foi também por isso que achou o modelo íntimo de uma das pessoas do livro, que eu busquei fazer completa sem designação particular, nem outra evidência que a da verdade humana. – Repito o que lhe disse verbalmente, meu querido Mário, creio que esse será o meu último livro; faltam-me forças e olhos outros; além disso o tempo é escasso e o trabalho é lento. (ASSIS, 1959, p. 249)

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Vale ainda conhecer o que disse Medeiro de Albuquerque, assinando como J. dos

Santos, em A Notícia, edição de 16 de setembro de 1908:

O Memorial de Aires é também a conquista de uma noiva. Aqui, a noiva era viúva. Naturalmente, como todas as viúvas que se prezam, ela se tinha declarado inconsolável -– apesar da sua mocidade, da sua beleza e da sua fortuna – Mas também – souvent femme varie! – como todas as viúvas nesses casos, acabou por se deixar consolar. Consolar honestamente, honradissimamente, fazendo um segundo casamento... A única nota triste do livro é que esse casamento é feito entre duas pessoas que um velho casal amava extraordinariamente e com cuja companhia para a velhice tinha acabado por contar. E, de repente, os dois velhos que tinham aproximado os noivos se vêem sós no mundo, sem as únicas afeições que esperavam. O entrecho de Memorial de Aires desenrola-se, por assim dizer, linearmente, em linha reta. Vai de princípio a fim sem episódios que lhe perturbem a marcha. É claro, simples, meigo e bom. (GUIMARÃES, 2004, p. 470)

Mesmo recentemente, ao menos um estudo de maior fôlego visa a analisar o

Memorial de Aires pela relação biográfica entre Machado e o conselheiro,

aproximados pela velhice e a iminência da morte. Em Armário de vidro: velhice em

Machado de Assis, Márcia Lígia Guidin interessa-se pelo “estilo de velho” do

diplomata e argumenta que tal maneira de escrever só foi possível graças à situação

análoga por que também passava o escritor. Assim, a ironia corrosiva de Brás

Cubas, por exemplo, cedia lugar à aceitação algo doce do conselheiro para com as

contradições da vida e as falhas humanas. A velhice e a morte, postula a estudiosa,

criariam um novo lugar para este último romance machadiano, na fronteira entre a

autobiografia e a ficção.

De Esaú e Jacó ao Memorial de Aires não há nada de novo a dizer, apenas a reflexão, por trás de um enredo ralo, sobre os espectros da morte. Morte esta que excluiria de cena “o presidente perpétuo da Academia Brasileira de Letras”, o “patriarca” das letras nacionais, o “maior escritor vivo” do país, o “ídolo” na boca de todos os jornais – todos epítetos públicos e fardo pesado que o escritor velho carregava frente à glória em vida e à vindoura dignidade dada pela morte. (GUIDIN, 2000, p. 147 e 148)

Ainda para Guidin,

Machado de Assis buscou uma representação estética para expressar suas mórbidas inquietações, mas, sobretudo, para aceitar sua iminente exclusão artística e existencial de um cenário cultural que muito ajudara a criar no país. O escritor, desdobrando-se sobre a própria obra, revia seu papel cultural. (GUIDIN, 2000, p.148)

Tudo isso em um romance em que se reinstaura a convenção, em oposição à contravenção proposta por Memórias póstumas de Brás Cubas, sugerindo enfim que

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(...) a ideologia do cálculo, da comédia, do fingimento e do favor, força vital das Memórias, ficou muito esmaecida no Memorial. E mais: relativizou-se o peso tão machadiano do egoísmo, já que os jovens (Fidélia e Tristão) têm o direito – reconhecido sem chiste pelo conselheiro – de separar-se “alegremente do caduco e do extinto”. Pode-se até perguntar ao velho bruxo, que nunca acreditou na gratuidade dos gestos humanos: haverá no Memorial uma aceitação da bondade como procedimento pessoal e social? Parece que sim.” (GUIDIN, 2000, p. 150)

Dessa maneira, se com Brás era preciso um constante trabalho de decifração e sobretudo desmascaramento, por parte do leitor, na obra final, o mesmo não se dá, justamente pelo retorno à convenção e a maior proximidade entre narrador e autor.

O leitor, agora, na última obra, está diante de um narrador que parece sincero, confiável e ponderado; um narrador que traz paz para o leitor. Que é, sobretudo, o que se espera dele: um narrador atento à convenção. (GUIDIN, 2000, p. 106)

Lido como foi por vários anos, isto é, sob uma luz biografizante interessada em

lançar contornos principalmente sobre certos aspectos do texto, a relacionar os

perfis de Machado e do conselheiro, o Memorial de Aires passou como obra menor e

mais simples do Bruxo do Cosme Velho, sendo alvo, consequentemente, de menos

estudos críticos. Com o correr dos anos, no entanto, mais trabalhos foram

aparecendo, pondo em foco outras características do livro. É quando outras

questões relevantes, como narrador, história e sociedade, passam a pesar mais

sensivelmente na balança da crítica, oferecendo assim novos rumos aos estudos

machadianos sobre o Memorial.

2.2. DÚVIDAS DIPLOMÁTICAS

O ensaio “Um aprendiz de morto”, de José Paulo Paes, sobre Memorial de Aires,

publicado pela primeira vez em 1976 e republicado em Gregos e baianos, nove anos

depois, traz contribuições interessantes para se pensar o último romance de

Machado sob prismas diferentes dos anteriores.

O início do texto já nos coloca em campo minado. Sob o subtítulo sugestivo de

“Ocaso?”, lemos:

Do Memorial de Aires se pode dizer, sem temor de impropriedade, aquilo que seu pretenso editor disse um dia dos olhos das ciganas: é livro oblíquo e dissimulado. A dissimulação já começa no título, que parece prometer uma espécie de autobiografia do Conselheiro Aires, no estilo de Brás Cubas ou de Bentinho, vale dizer: a autobiografia de

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alguém que Esaú e Jacó nos antecipara como um fino observador da comédia humana, homem viajado e vivido, com muito de si para contar, se quisesse. No entanto, o que o Memorial nos traz, em primeiro plano, é a história algo dessaborida do casal Aguiar e de seus filhos postiços, narrada por interposta pessoa numa linguagem que, comparada à das Memórias Póstumas, do Quincas Borba ou de D. Casmurro, só se pode chamar de descolorida, de vez que o paralelo com esses livros só faz realçar-lhes a palidez de tintas. (PAES, 1985, p.13)

Para o crítico, a linguagem “descolorida”, apropriada a “um ex-diplomata

confessadamente inimigo da ênfase” (PAES, 1985, p. 13), bem como a ausência de

personagens excêntricas, marginais ou psicóticas, isto é, desviantes da norma e da

normalidade, presentes nos romances anteriores, não deveriam nos fazer suspeitar

de que o livro fuja do restante da tradição romanesca do escritor ou que marque seu

inevitável declínio. À guisa de curiosidade, ele observa em trechos de frases de

Aires ecos de obras anteriores, como das Memórias póstumas (“nenhum dos meus

filhos saiu do berço do Nada”) ou de Quincas Borba (“eu terei engolido um cão

filósofo”).

A suspeita é infundada, mas cumpre, ao refutá-la, evitar o extremo de ver, nesse livro crepuscular, um ápice ou gran finale. O que a prudência aconselha é mostrar apenas que, malgrado as aparências, o Memorial não destoa dos romances anteriores nem lhes devia o curso. Prolonga-lhes a diretriz básica, mas com um comedimento que chega à dissimulação. Tem algo de tour de force às avessas: em vez de aliciar o leitor com a mestria ostensiva de sua fatura, diverte-se em confundi-lo com o descolorido de sua mestria oculta. (PAES, 1985, p. 14)

Da mesma maneira que a linguagem deve certa falta de verve ao desprezo pela

ênfase do narrador-diplomata, seu comedimento algo dissimulado parece ser

também fruto dos calos da profissão:

A ocultação é, aliás, um pendor de espírito que calha à personalidade do autor do livro, cujos trinta e tantos anos de carreira diplomática deixaram-lhe na alma o “calo do ofício”. A despeito de sua aparente “falta de vocação”, que o teria levado ao exercício de uma diplomacia apenas “decorativa”, mais acomodada “às melodias de sala ou de gabinete” que à celebração de importantes “tratados de comércio” ou “alianças de guerra”, o Conselheiro – conforme diz o Machado ortônimo desse seu dileto heterônimo – fora a diplomacia excelente, com aguçada “vocação de descobrir e encobrir”, “verbos parentes” em que se contém “toda a diplomacia”. Pois são precisamente esses dois verbos que presidem a estilística do memorial, onde o explícito só serve como indício do implícito e o encobrimento diplomático quase leva o leitor a esquecer o fato essencial de o livro ser mesmo, no fim das contas, um diário que, por indiretas vias, nos diz tanto acerca de quem o escreve como daqueles a quem escreve. (PAES, 1985, p. 15)

O ensaio de Paes dá ainda a ver algumas pontes intertextuais do Memorial,

sobretudo aquelas ligadas à onomástica e à música. Assim, o crítico percebe as

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relações ambíguas que subjazem ao nome de Fidélia, (remetendo ao título da ópera

Fidélio, de Beethoven), ou a seu sobrenome, Santa-Pia (aproximando-a de uma

personagem de A Divina Comédia, de Dante Alighieri, lembrada pelo próprio Aires6).

A relevância do estudo de José Paulo Paes está, talvez, mas sobretudo, na

percepção de que, por baixo das camadas de comedimento do conselheiro, bem

como dos perfis descritos no livro, e que de fato poderiam ter relações com a vida

pessoal de Machado, o romance traz uma construção mais complexa ou oblíqua do

que aparenta em princípio.

O ensaio “Uma figura machadiana”, de Alfredo Bosi, publicado originalmente em

1971, em Esboço de figura, e mais tarde recolhido em O enigma do olhar, cuja

primeira edição é de 2000, também nos ajuda a compreender o Memorial sob um

prisma diferente do apenas autobiográfico ou de uma obra de reconciliação com a

vida. Nesse estudo, o crítico relaciona Aires a Brás Cubas, no sentido de que a

ambos é dado o privilégio de, uma vez desatados dos nós das lutas e dos jogos

sociais, poderem escrever o que pensam.

Mas o que importa a ambos os memoriais é exercer um poder raro e terrível, o poder de dizer o que se pensa. E parece que só o espaço da maturidade póstuma ou da escrita solitária do diário seriam bastante disponíveis e abertos à sinceridade. No meio da travessia reina o poder de mostrar o rosto ou, mais ainda, o medo de ferir as auras sagradas do amor-próprio. Pudor e medo atenuam, abafam ou silenciam de todo a palavra verdadeira. Quem a dirá, então, afinal? O falso morto ou o diplomata aposentado. (BOSI, 2007, p. 130)

6 A aproximação com Fidélio é bastante promissora, sobretudo se recordarmos da presença constante da música no romance, sendo os dois jovens apaixonados ótimos pianistas. O resumo do libreto da ópera é também curioso, como observa Paes: “Leonora, sabendo que o marido Florestan, dado como morto pelo diretor da prisão, Pizarro, está vivo e preso por não se sabe que crime político, disfarça-se de homem e, com o nome de Fidélio, consegue empregar-se como ajudante do carcereiro da prisão onde o marido se encontra. Pizarro, receoso da visita de inspeção de um ministro, resolve matar Florestan e ordena ao carcereiro que abra uma cova nos subterrâneos da prisão. Para estar junto do marido e poder consolá-lo Leonora ajuda o carcereiro nessa tarefa e, no momento em que Pizarro vai matar Florestan, ela o detém, revólver em punho, conseguindo salvar a vida do condenado” (PAES, 1985, p. 21-22). A relação com A Divina Comédia se dá através de um verso que o próprio Aires lembra: “Ricordati di me, chi son la Pia”. “O verso citado é uma passagem do Canto V do Purgatório, a qual diz respeito a Pia del Guastelloni. Viúva, Pia casou-se de novo, mas o segundo marido, suspeitoso de ela manter uma ligação adúltera, mandou-a matar. Temos aqui associados, portanto, os motivos da viuvez, do segundo casamento e da traição.” (PAES, 1985, p. 21) Em ambos os casos, como ressalta o crítico, as referências, substancialmente importantes para a interpretação de Fidélia, são lançadas de maneira quase fugaz pelo diplomata.

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Porém, naturalmente, não farão do mesmo modo. Se Brás é o terrorista da palavra,

que não deixa intacto qualquer dos alicerces da sociedade, como família e amor,

Aires atuará por uma via diferente:

Quanto ao diplomata, é mediador por ofício e resignação. Machado repartiu-o nos seus dois últimos romances. Em Esaú e Jacó, Aires personagem não diz tudo o que pensa, por “tédio à controvérsia”: ouve mais do que fala e concilia o quanto pode. No Memorial, Aires, além de personagem discreta e lateral, é o foco narrativo que tem o poder de comentar, interrogar, julgar a matéria narrada, o romance dos gêmeos, estranha história em que tudo é dobra ou cisão, Aires já atinara com a fórmula de ouro: “A vocação de descobrir e encobrir. Toda a diplomacia está nestes dois verbos parentes”. (BOSI, 2007, p. 130)

A metáfora, claro, é a já apontada pelo próprio diplomata: o compasso que se abre

aos extremos, mas sem tomar partido de nenhum. Abstendo-se, procurando

entender as razões de ambas as partes, o conselheiro aproxima os opostos,

atenuando os conflitos.

Em face das diferenças, dos desencontros que espinham a vida em sociedade, o Conselheiro tende, primeiro, a dizer o que vê (“vocação de descobrir”), desdizer depois (“vocação de encobrir”), para, no último movimento, deixar sobrepostos o rosto e a venda. O efeito é sempre o de dupla possibilidade: salvação do positivo, apesar do negativo, a persistência deste apesar daquele. (BOSI, 2007, p. 131)

A música, nesse sentido, teria papel importante. Para Bosi, é a música que, por

curtos momentos, é capaz de resolver, ainda que por alto, os antagonismos sociais

do enredo. Porém, tais arranjos não podem ter longa duração, e, ao término deles, é

preciso que novamente o conselheiro retorne ao comedimento usual que dissimula e

disfarça os conflitos.

O abafamento e a atenuação estão presentes em todo o romance, por meio de

expressões como “talvez”, “pode ser”, “quem sabe”, “acho”, “creio”, na busca por

amenizar os conflitos da sociedade. Ao invés das verdades duras de Brás Cubas,

morto e por isso inteiramente livre, Aires ainda deseja gozar de um pouco de paz, e

por isso jamais deixa o compasso resvalar para um lado em detrimento de outro,

para não desagradar a nenhum.

Duvidar é uma forma de atenuar, de dizer sem dizer, e é isso que faz Aires, quando,

por exemplo, observa a jovem viúva que “parece rezar” em frente ao túmulo do

marido. O verbo parecer faz funcionar o mecanismo do encobrir-descobrir, em que a

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máscara, sempre presente, ora surge, ora se esconde, mas, uma vez evocada, não

pode mais ser ignorada.

O que se vê e se descreve é bem nítido: são gestos de descruzar as mãos, de mover o corpo para sair de uma posição, de percorrer o ambiente com os olhos. Mas o significado desses significantes é que não está claro: o que deseja, na verdade, Fidélia? Beijar a sepultura, o nome do marido? “Talvez quisesse”. E por que espraia os olhos pelo cemitério? “Como a ver se estava só.” Talvez, como a..., se. Nessas notações rápidas e insidiosas, o ponto de vista de Aires sobre Fidélia já começou a trabalhar: até que ponto a máscara da viúva de luto ao pé do túmulo adere à vida secreta da jovem, de que o diplomata já disse que é “bonita e gentilíssima, como ouvi dizer de outras em Roma?” (BOSI, 2007, p. 134-135)

Estaria a viúva interessada apenas que a vissem rezar? Outra vez, é necessário

acionar o compasso de Aires, para que, ao final, estando Fidélia já casada, ele diga

sobre as afeições de antes e as de agora:

A questão é que virtualmente não se quebre este laço e que a lei da vida não destrua o que foi da vida e da morte. Creio nas afeições de Fidélia; chego a crer que as duas formam uma só, continuada. (BOSI, 2007, p. 136)

Da mesma maneira, quando Tristão retorna de Portugal, após o afastamento sem

notícias por tantos anos, as dúvidas sobre as razões do retorno fazem o conselheiro

se interessar pelo caso e indagar-se sobre se o rapaz veio apenas para ver os

padrinhos. Mas ante a resposta cuidadosa do velho Aguiar: “Diz que só. Talvez o pai

aproveitasse a vinda para encarregá-lo de algum negócio; apesar de liquidado,

ainda tem interesses aqui; não lhe perguntei por isso”, e às maneiras e ações de

Tristão, que em certos momentos parecem beirar o disfarce, o conselheiro conclui

que não há perfeição no mundo e que certo disfarce é às vezes necessário7. Para

Bosi: “A perspectiva diplomática de base aceita a máscara como uma necessidade

das relações interpessoais, tal como ela é, aqui, agora” (BOSI, 2007, p. 140).

7 Diz Aires: “Talvez ele tenha alguma dissimulação, além de outros defeitos de sociedade, mas neste mundo a imperfeição é coisa precisa” (BOSI, 2007, p. 140). A fala do diplomata remete diretamente a uma passagem de natureza semelhante, presente nas Memórias póstumas, em que Brás critica seu conhecido Jacó Tavares por ser mentiroso: “Retirou-se o Dr. B. e respiramos. Uma vez respirados, disse eu ao Jacó que ele acabava de mentir quatro vezes, em menos de duas horas: a primeira, negando-se, a segunda, alegrando-se com a presença do importuno; a terceira, dizendo que ia sair; a quarta, acrescentando que com a mulher. Jacó refletiu um instante, depois confessou a justeza da minha observação, mas desculpou-se dizendo que a veracidade absoluta era incompatível com um estado social adiantado, e que a paz das cidades só se podia obter à custa de embaçadelas recíprocas... Ah! lembra-me agora: chamava-se Jacó Tavares”. (ASSIS, 2000, p.118) Em seu excelente ensaio “A máscara e a fenda”, BOSI (2007), discute essa passagem, obsevando que o salto crítico dado por Machado em relação a seus contemporâneos foi perceber que o jogo social era a regra e não a exceção.

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A percepção e aceitação da máscara e do jogo social do conselheiro, compasso

entre os extremos, poderia ser então, para o crítico, a figura ideológica do último

Machado, que viu, no decorrer de sua vida, esse eterno baile em que se confundem

dissimulação e autopreservação. Dessa maneira,

A obra final de Machado, sentida às vezes como o amaciamento de todos os atritos, parece, antes, desenhar em filigrana a imagem de uma sociedade (ou, talvez melhor, de uma classe) que, tendo acabado de sair de seus dilemas mais espinhosos (a abolição da escravatura, a queda do Império), quer deter e adensar o seu tempo próprio, fechando-se ciosamente nas alegrias privadas, que o narrador percebe valerem mais que as públicas. Aires, visitando a casa dos Aguiares, no dia 14 de maio de 1888, vê no ar um grande alvoroço e julga que a comoção só pode vir da Lei Áurea recém-promulgada; mas engana-se; vem da notícia de que está para chegar o afilhado Tristão. (BOSI, 2007, p. 141)

O ensaio, assim, parece apontar para a algo frágil, quase insustentável, tentativa do

conselheiro de, amenizando os opostos, dar a ver um mundo sem conflitos. Tarefa

talvez de resto impossível, fica a impressão de que, nem a arte, nem a música, ou o

mundo doméstico e cotidiano, assim como a famosa “técnica do compasso”, serão

capazes, em última instância, de atingir completamente tal fim.

O ensaio de John Gledson, “Memorial de Aires”, publicado em 1986, em Ficção e

História, traz, ainda hoje, colocações polêmicas, como o próprio autor faz questão de

comentar no início do texto. A razão é clara, já que o estudo trata, basicamente, de

propor uma reinterpretação do último romance de Machado, procurando ver, por

debaixo do enredo aparentemente ralo, sem tantos atrativos, uma intriga que ajuda a

descortinar questões políticas e históricas.

Gledson observa que o julgamento do Memorial de Aires pela crítica foi influenciado

pelo fato de ser a última obra do escritor. Questões relativas à sua biografia pesaram

no sentido de justamente transformá-lo no “canto do cisne” do autor. A presença de

Carmo e Aguiar, um casal feliz e, até segundo parecer, bom, também ajudaria a

ratificar a tese de um romance mais singelo e sensível, preenchendo, ainda, certas

lacunas sobre a vida conjugal do autor, que viveu com D. Carolina por mais de trinta

anos, e, ao que tudo indica, harmonicamente.

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Entendimentos dessa natureza são descartados pelo estudioso. Importa para

Gledson discutir a respeito de alguns pontos menos observados pela crítica e que

seriam relevantes para uma leitura diferente do romance: a data em que se passa a

ação (1888 e 1889), por exemplo, seria um deles, bem como a relação entre Fidélia

e Tristão, para o estudioso, mais complexa e interessante do que se diria a princípio.

Gledson argumenta que o episódio da Abolição perpassa o livro, o qual,

historicamente, chega até os estertores do Império, mas não à proclamação da

República, ao contrário do romance anterior, Esaú e Jacó, que alcança a década de

noventa do século XIX. O enredo do Memorial, no entanto, pouco parece se referir a

questões políticas, já que, apesar de Fidélia ser filha de um fazendeiro rico, a história

parece tratar, sobretudo, de assuntos domésticos e, em certos momentos, até

mesmo um tanto superficiais, quando comparados às questões vividas pelo país, no

final da década de 1880.

O assunto da Abolição, no entanto, não deveria ser subestimado. Ele se relaciona

ao Barão de Santa-Pia, que, pouco antes de a Lei Áurea ser decretada, decide

libertar seus escravos, apenas porque, sendo sua propriedade – acreditava – a

alforria devia ser dada por ele e não pelo governo. Morto o Barão pouco depois de a

Lei ser assinada, Fidélia, como sua filha, herda as terras, mas os cativos, agora

livres, temem que ela venha a vender a fazenda, cuja produção decai, deixando-os à

míngua. Inicialmente inclinada a vendê-la, ela acaba decidindo-se, influenciada

parcialmente por uma sugestão de Tristão, a doá-la inteiramente aos ex-escravos. O

gesto generoso, aplaudido por Aires, seria visto da mesma maneira por Machado?

Antes, argumenta o crítico, é preciso observar as razões que levaram a viúva à

doação. De fato, é Tristão que, receoso que o vejam como um pretendente

interesseiro, articula a passagem da fazenda para os negros. Além do mais, não há

motivo de preocupação para o jovem casal: em decadência, o patrimônio tem pouco

valor, comparado à herança de Fidélia, orçada em pelo menos trezentos contos de

reis8.

8 Como me chamou a atenção Wilberth Salgueiro, trata-se, curiosamente, do mesmo valor que Rubião esperava receber, em Quincas Borba. “Herdeiro já era muito; mas universal... Esta palavra inchava as bochechas à herança. Herdeiro de tudo, nem uma colherinha menos. E quanto seria tudo?

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Outro ponto a se observar é a respeito do futuro da fazenda de Santa-Pia nas mãos

dos escravos. Aires faz a pergunta em certo momento, mas não lhe dá resposta,

talvez porque, ainda de acordo com Gledson, ele prefira não encará-la, reduzindo-se

a comentar apenas: “Há muita outra coisa neste mundo mais interessante”. (ASSIS,

2000, p. 123)

Será que Machado partilha esta visão fria, moderada e distanciada da questão? O leitor só precisa perguntar a si mesmo quais os verdadeiros resultados da doação para obter uma resposta. Claro que os escravos seriam incapazes de operar a fazenda: sem nenhum capital, nenhum hábito de autonomia, uma herança da subserviência forçada e da ignorância, como se poderia esperar deles algo diferente? Não é de se admirar que Aires esteja interessado em outras coisas, pois se suspeita que ele saiba a resposta para sua pergunta. (GLEDSON, p. 254)

Uma vez que os pontos de vista de Aires e Machado trazem suas diferenças,

sobretudo a respeito de um assunto que o próprio escritor mostrou, em outras

situações, bastante interesse e observação arguta9, cumpre questionar, na visão do

crítico, as demais opiniões do conselheiro. O resultado último, além da dissociação

entre narrador e autor, é a relativização da sabedoria olímpica (e um tanto afastada

do mundo) que ostenta com tanto gosto o primeiro.

Dessa maneira, o enredo proposto por Aires, da jovem viúva fiel que acaba por,

atingida outra vez no coração pelo amor, casar-se com um jovem e promissor

político português (Tristão é naturalizado), que vem ao Brasil sobretudo para ver os

ia ele pensando. Casas, apólices, ações, escravos, roupa, louça, alguns quadros, que ele teria na Corte, porque era homem de muito gosto, tratava de coisas de arte com grande saber. E livros? devia ter muitos livros, citava muitos deles. Mas em quanto andaria tudo? Cem contos? Talvez duzentos. Era possível; trezentos mesmo não havia que admirar. Trezentos contos! trezentos! E o Rubião tinha ímpetos de dançar na rua. Depois aquietava-se; duzentos que fossem, ou cem, era um sonho que Deus Nosso Senhor lhe dava, mas um sonho comprido, para não acabar mais.” (Assis, 2002, p. 33) É também interessante lembrar que trezentos contos de réis era o que tinha Brás Cubas, quando morreu: “Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos.” (ASSIS, 2000, p. 17) 9 As crônicas da série “Bons Dias!”, publicadas entre 5 de abril de 1888 e 28 de agosto de 1889, por Machado de Assis, trouxeram, em inúmeras edições, o tema da escravidão ou do seu fim. A visão, no entanto, era a menos idealizada possível, e atestava como o escritor conhecia e se interessava pelo problema. Segundo nos diz Gledson, na introdução da sua edição comentada de “Bons Dias!”: “Mas não se deve concluir que a política aparece nas crônicas para se zombar dela. Já argumentei em Ficção e história que Machado empreendeu muito provavelmente esta nova série, que lhe deu as vantagens do anonimato, porque desejava ficar livre para comentar, sempre de forma oblíqua mas agora com um novo grau de azedume, os acontecimentos tão importantes que rodeavam a abolição que, ele sabia, levariam ao fim do Império.” (ASSIS, 1997, p. 20)

30

padrinhos e retorna com uma bela e rica esposa, ganha outras conotações – e muito

mais sinistras.

Gledson propõe então um segundo enredo, em que um acordo de casamento, feito

talvez ainda em Portugal, é o que de fato traria Tristão ao Brasil. Independente

disso, a traição se dá quando o casal volta à Europa, deixando os padrinhos outra

vez e definitivamente sós, levando a fortuna e os sonhos de construir vida no Brasil.

Santa-Pia, legada a escravos sem possibilidades reais de mantê-la, nesse sentido,

funcionaria como um emblema desse sentimento de indiferença sobre as questões

do país. Osório, pretendente de Fidélia, logo descartado, é, apesar de ter feito

fortuna, filho de lavradores do norte: um contraste gritante com o perfil de Tristão.

Mas (pelo menos dentro do romance) o mais interessante ingênuo é o próprio Aires. No enredo, ele é trouxa, claro, de modos muito simples – a lisonja calculista de Tristão é colocada em ação muito antes de ele perceber, especialmente no encontro na barca de Niterói, e é claro que ele é uma parte essencial do plano de casamento, chegando a ser convidado para padrinho. Porém, o que é mais interessante, ele é um trouxa por se o tipo de homem que é – cético e, ao mesmo tempo, crédulo; desconfiado dos romances e do “romanesco” mas, não obstante, ansioso para criar um romance a partir da traiçoeira evidência da vida real, e que acaba encontrando o modelo errado. (GLEDSON, 2003, p. 284)

O olhar de “saudável desconfiança” (conforme expressão de Gledson), que usamos

com Dom Casmurro e Memórias póstumas, é outra vez convocado para ler os

escritos do conselheiro Aires, que, apesar de seus esforços de interpretação, seria

incapaz de perceber uma série de sutilezas a sua volta, comprometendo assim seus

pontos de vista a respeito dos fatos apresentados.

Nesse sentido, a associação mais direta com Dom Casmurro é de fato clara, uma

vez que enredos muito diferentes surgem, caso confiemos ou não em Bentinho,

sendo também nesse romance que

(...) outro ingênuo entra na história – o leitor. Porque, permitindo ao tolo contar sua própria história, Machado faz com que ele pareça sábio. Ou, para colocar isso de outra maneira, o romance se torna um experimento que mostra como, através de que complicadas maneiras e com que sofisticação, as pessoas podem convencer a si mesmas de que estão certas, quando estão erradas. Porque Bento – e Aires – não são simplórios; sua credulidade está disfarçada de senso comum, sabedoria convencional e ceticismo. É impossível não concluir que Machado pretendia fazer este truque com seus leitores. Memorial de Aires é, simplesmente, um caso mais extremo do que Dom Casmurro de romance com uma mensagem codificada, que Machado sabia que sua platéia não entenderia. A armadilha está lá, no livro, para a pessoa cair nela, e, na verdade, a crítica, num espantoso número de lugares-comuns em torno do livro, simplesmente cita ou parafraseia a narração e o estilo de Aires, aceitando seus pressupostos. (GLEDSON, 2003, p. 285)

31

Como se vê, o ensaio de Gledson, ao qual este estudo muito deve, fundamenta-se,

basicamente, nas teorias sobre o narrador enganoso já estudado por esse crítico

inglês ao se debruçar sobre Dom Casmurro e naquelas formuladas por Roberto

Schwarz, também a respeito do romance de Bentinho e Capitu e, inicialmente, sobre

o do defunto-autor Brás Cubas10.

Se algo estes três trabalhos têm em comum é uma leitura menos voltada para

questões biográficas do Memorial de Aires e mais comprometida com a obra em si.

Além disso, esses estudos críticos, publicados todos entre o final da década de

setenta e meados da de oitenta, trazem ainda certo cuidado com as palavras gentis

do conselheiro, vendo nela o que Aires parecia às vezes pressentir em Tristão:

“Pode ser isto, há nele muita compostura e alguma dissimulação.” (ASSIS, 2000, p.

81)

Uma vez que uma leitura desconfiada seja também a premissa para este trabalho

(ainda que não nos interesse tanto a natureza dos amores clandestinos da viúva e

do jovem recém-chegado de terras d’além mar), urge seguir a trilha através dos

romances cujos narradores são dignos de toda cautela de nossa parte e entender

seus procedimentos.

Desde já, no entanto, podemos dizer que pelo menos alguma coisa Aires tem em

comum com eles. Pertencendo, como Brás e Bento, a uma mesma classe, abastada

e senhorial, o conselheiro também tem pontos de vista a defender, verdades

inconvenientes a silenciar e modos de pensar que lhe são muito próprios, os quais

ecoam, por diversas vezes, nas inúmeras reticências de seu discurso.

10 Respectivamente, o livro Machado de Assis: impostura e realismo, o ensaio “A poesia envenenada de Dom Casmurro”, presente em Duas meninas, e também Machado de Assis: Um mestre na periferia do capitalismo.

32

2.3. UM CONSTRUTO LITERÁRIO DE RARA SOFISTICAÇÃO

Alguns dos textos críticos contemporâneos que se destacam sobre o Memorial de

Aires continuam a problematizar o discurso do conselheiro, apontando também,

agora, para outras questões, como autoria, nome, leitura e escrita. Importa aqui

notar como a crítica do último romance de Machado se distanciou, pouco a pouco,

de uma visão tão-somente biografizante da obra para, não se eximindo

completamente de tal leitura, ampliar seus horizontes teóricos para as convergências

e divergências entre narrador e autor, bem como seus interstícios.

O capítulo “Memorial de Aires e o leitor de papel” do longo e instigante estudo de

Hélio de Seixas Guimarães, Os leitores de Machado de Assis: o romance

machadiano e o publico de literatura do século 19, aponta para a radicalização de

um procedimento literário que o escritor começa a desenvolver com mais vigor a

partir das Memórias póstumas de Brás Cubas e que diz respeito às frágeis bases em

que se resguarda a relação entre público leitor e escrita.

O formato escolhido para a apresentação da narrativa já define a situação imaginada para o leitor que, no plano ficcional, é apresentado como um acidente, entidade que só vai se configurar caso o texto não seja destruído antes da morte do autor/narrador, o que ele várias vezes afirma ser sua intenção. A narrativa, portanto, já de saída considera seu interlocutor como eventualidade, dúvida e acidente. Na melhor das hipóteses aventadas pelo Conselheiro, suas notas terão apenas um leitor – ele próprio, que constantemente declara reler suas anotações; no pior dos casos serão lidas por cinco pessoas do seu círculo íntimo: sua irmã Rita, o casal Aguiar, Tristão e Fidélia. (GUIMARÃES, 2004, p 267)

Nos romances anteriores da segunda fase, observa Guimarães, algo semelhante se

dá. Aparentemente, o escritor maduro deixa de lado as ilusões quanto ao público e

cada vez mais metaforiza e presentifica em seus escritos a exigüidade e a quase

inexistência de um leitorado brasileiro, o que se converteria na fragilidade da relação

entre escritor e público. Seguindo os passos de Brás, que, citando Stendhal, diz

escrever para, talvez, seis leitores, Aires escreve, de fato, pela natureza de seu

relato, para apenas um, ou, mais radicalmente, para o papel, sendo essa folha em

branco agora, e não mais o “leitor ignaro” dos primeiros romances maduros, o

interlocutor.

33

Tal fragilidade do processo pode ser observada, ainda segundo Guimarães, na

natureza ficcional dos romances: as Memórias são escritas por um defunto-autor;

Quincas Borba é uma falsa biografia; Dom Casmurro é o romance que precede o

livro que verdadeiramente importa, isto é, a História dos subúrbios; Esaú e Jacó é

um romance escrito em terceira pessoa por um velho diplomata, como parte de seus

cadernos de memórias; e Memorial de Aires é o diário íntimo escrito para jamais ser

lido e, no entanto, apenas pela eventualidade de um editor que talvez tenha salvado

os papéis do fogo, foi publicado.

Assim, para Guimarães, o último livro se inscreve na tradição dos romances

anteriores quanto à preocupação de problematizar o leitor e o processo de escrita. O

Memorial metaforizaria, em última e derradeira instância, exatamente a precariedade

da condição de produção de literatura no Brasil do final do século XIX, em que

encontramos para interlocutor do escritor apenas o próprio papel.

É de se recordar o recurso constante do narrador de materializar o processo de

escrita, como se percebe na sua conversa com a folha em branco:

Papel, amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia. Querendo servir-me, acabarás desservindo-me, porque se acontecer que eu me vá desta vida, sem tempo de te reduzir a cinzas, os que me lerem depois da missa de sétimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro, podem cuidar que te confio cuidados de amor. Não, papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-te da minha mesa, e foge. A janela aberta te mostrará um pouco de telhado, entre a rua e o céu, e ali ou acolá acharás descanso. Comigo, o mais que podes achar é esquecimento, que é muito, mas não é tudo; primeiro que ele chegue, virá a troça dos malévolos ou simplesmente vadios. (ASSIS, 2000, p. 35-36)

Para Guimarães,

A insistência com que o narrador interpela e dialoga com o papel, chegando a lhe desejar boa noite, remete à humanização de elementos não-humanos, animação de objetos inanimados, assim como o rompimento das distinções entre elementos abstratos e concretos, procedimentos que dão graça ao texto de Machado de Assis. Esse recurso bem conhecido da obra machadiana está presente nos seus apólogos, assim como nos vermes e nos algarismos falantes. Remete também a outro procedimento recorrente, embora menos estudado da obra machadiana – a tematização da materialidade da escrita –, que aqui atinge o paroxismo. (GUIMARÃES, 2004, p. 276)

34

No Memorial, ainda para o crítico, o concreto da escrita, através da tinta e do papel,

funde-se e confunde-se, muitas vezes, com abstrações como sangue e alma,

revelando similitudes desconcertantes e inesperadas:

Este é o dia de todos os santos; amanhã é o de todos os mortos. A igreja andou bem marcando uma data para comemorar os que se foram. No tumulto da vida e suas seduções, fique um dia para eles... A reticência que aí deixo exprime o esforço que fiz para acabar esta página em melancolia; não posso, nunca pude. Tristezas não são comigo. Entretanto, em rapaz, — quando fiz versos, nunca os fiz senão tristíssimos. As lágrimas que verti então, — pretas, porque a tinta era preta, — podiam encher este mundo, vale delas. (ASSIS, 2000, p. 92-93)

Também chama a atenção no trecho acima a materialização das reticências pela

escrita, procedimento semelhante ao adotado pelo autor no famoso capítulo LV das

Memórias póstumas, “O velho diálogo de Adão e Eva”:

Brás Cubas ................................? Virgília ............................... Brás Cubas ......................................................................................................... Virgília .............................................! (ASSIS, 2000, p. 85-86)

Tal leitura aponta para uma obra que dialoga com o próprio fazer literário, suas

dificuldades e especificidades, sobretudo nacionais. Ajuda a distanciar-se, assim, de

uma interpretação do Memorial pautada unicamente pelo discurso aparentemente

benigno do narrador, uma vez que

(...) sabe-se que até mesmo o registro mais ingênuo das próprias lembranças está sempre assombrado por vozes que inscrevem no texto outras possibilidades de compreensão dos fatos narrados. Mas a ingenuidade não faz parte do Memorial de Aires, onde as instâncias de autoria, narração e interlocução aparecem propositadamente embaralhadas, estabelecendo relações complexas. Ao contrário do que se costuma afirmar, as memórias e reflexões do Conselheiro não se esgotam em si mesmas. (GUIMARÃES, 2004, p. 268)

Dessa forma, não deixa de ser curioso que o romance entre Tristão e Fidélia se

construa “textualmente e de cor”, conforme a definição do conselheiro.

E as palavras de espanto do velho Aires acerca da relação de intimidade de duas pessoas que mal se viram também hão de servir para definir a relação entre escritor e leitor proposta por Machado de Assis: desconhecidos íntimos, intimamente desconhecidos, cuja relação inscreve-se no texto. (GUIMARÃES, 2004, p. 281)

Nessa trilha, Guimarães observa também o papel da “Advertência” do romance,

assinada por um editor fictício, cujas iniciais, M. de A., coincidem com as do autor

35

Machado de Assis. O “dublê” de Machado, o editor, dá a entender que também

participou da elaboração da publicação da obra Esaú e Jacó, ainda que, desta vez,

sem a “pachorra de a redigir à maneira daquela outra”. Mesmo assim, certo trabalho

parece que teve:

Tratando-se agora de imprimir o Memorial, achou-se que a parte relativa a uns dois anos (1888-1889), se for decotada de algumas circunstâncias, anedotas, descrições e reflexões, — pode dar uma narração seguida, que talvez interesse, apesar da forma de diário que tem. (ASSIS, 2000, p. 13)

Segundo o crítico,

Ao mesmo tempo em que reivindica fidedignidade e realismo para a narração que introduz, a Advertência serve para levantar dúvida sobre tudo o que vem em seguida. Quando se trata de um texto, “decotar”, “desbastar” e conservar “só o que liga o mesmo assunto” não são atitudes neutras, impessoais, como quer fazer crer M. de A. no prólogo. Em função da triagem do que pertence e do que não pertence ao mesmo assunto – além da prévia determinação de qual é o assunto –, pode-se alterar completamente o sentido daquilo que o autor original talvez quisesse significar. (GUIMARÃES, 2004, p. 269)

Em outro excelente ensaio recente sobre os escritos do diarista, “Um narrar a

menos: o conselheiro no Memorial de Aires”, André Luiz Barros da Silva também

chama a atenção para esse trecho da advertência. Ele enfatiza que o desbaste, a

concisão, o corte, serão justamente as estratégias narrativas do escritor em seu

último romance, configurando o “dizer calado” do narrador, expressão cunhada pelo

próprio Aires para se referir à maneira como se olhavam os apaixonados filhos

postiços dos Aguiar.

Para o crítico,

(...) o fino jogo entre dar pistas e despistar ou, dito de outra forma, o fino jogo entre mostrar ao leitor e dele ocultar (sejam conteúdos, sejam funções estruturais) é não apenas referido pelo autor desde a “Advertência”, como também reiterado inúmeras vezes ao longo do romance, indício de sua importância estrutural e estruturante na obra. (BARROS, 2006, p. 272)

A escolha pela concisão vai de encontro ao tipo de texto escolhido, o diário íntimo,

marcado pela exposição da subjetividade, a chamada “verdade íntima” do autor.

Dessa maneira, e também por transformar em romance o que deveria ser lido por

leitor nenhum, ou, tão-somente, pelo próprio diarista, o Memorial seria marcado pelo

desafio de compor uma narrativa de caráter experimental que guarda essas já

citadas contradições. É assim que,

36

(...) à expectativa do transbordamento subjetivo o narrador responde com um narrar obtuso e “do menos”, negando ao leitor o que a tradição do diário prometeria e substituindo o esperado pela secura e obtusidade de um narrar conciso e oblíquo. A suposta exclusão do que atrapalharia o diário a ser romance na prática acaba remetendo o leitor, por contraposições e hiatos, a níveis denotativos inesperados que correm paralelos ao pouco que se narra. (BARROS, 2006, p. 273-274)

Essa literatura “do menos” apontaria para o uso da concisão com o objetivo de

construir uma via literária que não repetisse os procedimentos naturalistas e

românticos, mas que fizesse uso das relações humanas do cotidiano para se

constituir.

(...) é daí que deriva a estranha sensação do leitor do Memorial de Aires de estar diante de um romance de extrema e às vezes estéril simplicidade, que, no entanto, deixa várias “pulgas atrás da orelha” quanto a pistas e alusões pontilhando sutilmente, aqui e ali, a narrativa – remetendo sua forma e sua estrutura a níveis narrativos quase imperceptíveis ao leitor simplório, que capta apenas a superfície do narrado. (BARROS, 2006, p. 274-275)

No Memorial, não há arroubos nem grandes cenas, bastando-se a intriga das

simples relações e pequenos conflitos pessoais, rituais de casamento, enfim, da vida

cotidiana11. Também o tom digressivo e personalista presente nas Memórias

póstumas transforma-se no “dizer calado” do conselheiro, antecipando

(...) uma literatura do fragmento e da valorização do instante cotidiano e de suas epifanias, que marcará a melhor literatura dita moderna do século XX, como as de Virginia Woolf e Joyce, para citar apenas dois nomes. (BARROS, 2006, p. 291)

É interessante nesse sentido o que observa o crítico sobre o papel de Aires no livro.

A despeito de seu nome figurar no título, um resumo bastante enxuto do romance

simplesmente excluiria a personagem do conselheiro, já que esta não participa,

efetivamente, da trama central, contentando-se em narrá-la e analisá-la em seu

diário.

11 Apesar de não fazer menção a isso, parece haver pontos de contato entre o ensaio de André Luiz Barros da Silva e o estudo Machado de Assis e o teatro das convenções, de Cecília LOYOLA (1997). O interesse do escritor pelos temas do dia-a-dia, no Memorial, sem arroubos de qualquer natureza, dando ao enredo o rumo protocolar das convenções, propostas de casamento, visitas cerimoniosas dos personagens, acaba por remeter ao modelo dramático utilizado por Machado, e que remete ao dramaturgo francês Alfred de Musset e ao seu teatro das convenções. De fato, no Memorial, tem-se às vezes a impressão de que Aires representa o papel do espectador da comédia humana que se desenvolve no palco da sociedade. Loyola chama atenção ainda para o fato de as peças do escritor carioca não terem sido bem aceitas no tempo, em parte devido à renúncia de Machado em fazer um teatro pautado na fórmula de sucesso da época, isto é, a grande comédia francesa, que teve em José de Alencar seu nome mais conhecido.

37

Os “hiatos narrativos”, também citados por Barros da Silva, remetem a Wolfgang Iser

e seus estudos sobre o do ato da leitura12, e apontam para outra característica

presente no Memorial e nos textos de Machado como um todo, visível sobretudo a

partir de 1880: o convite sutil à participação do leitor na construção da obra

literária13.

Cremos ver em Machado – e crescentemente em Esaú e Jacó e no Memorial de Aires,– um momento de explicitação, no próprio texto, a cada avanço do narrado, da complexidade cada vez maior do leitor diante da obra literária num momento de impulso para a maturidade do romance no país, pelas mãos do próprio Machado. Ou seja, é como se o escritor chamasse o leitor, abruptamente e pela primeira vez, a um jogo muito mais sutil de leitura, para tanto deixando marcas explícitas ao longo na narrativa. (BARROS, 2006, p 274.)

De fato, se recordarmos o próprio Aires enquanto narrador de Esaú e Jacó, tal

posicionamento sobre o leitor já nesse romance se manifestava, e não deve ser à

toa14.

Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma, e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as pessoas da narração com as idéias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou totalmente escuro. (ASSIS, 2001, p. 54)

12 Diz Iser: “(...) é preciso descrever o processo da leitura como interação dinâmica entre texto e leitor. Pois os signos lingüísticos do texto, suas estruturas, ganham sua finalidade em razão de sua capacidade de estimular atos, no decorrer dos quais o texto se traduz para a consciência do leitor. Isso equivale a dizer que os atos estimulados pelo texto se furtam ao controle total por parte do texto. No entanto, é antes de tudo esse hiato que origina a criatividade da recepção.” (ISER, 1999, p. 10) 13 Tal convite talvez se explicite pela primeira vez na famosa passagem de Dom Casmurro: “Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as coisas que não achei nele. Quantas idéias finas me acodem então! Que de reflexões profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas que não vi nas folhas lidas, todos me aparecem agora com as suas águas, as suas árvores, os seus altares; e os generais sacam das espadas que tinham ficado na bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma alma imprevista. É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas.” (ASSIS, 1997, p. 98) Para Guimarães: “A falsa modéstia do narrador indica que nenhum livro é perfeito, e, portanto, todos são falhos, ou seja, todos são estruturalmente compostos de lacunas. Encarecendo explicitamente “(...) todas as cousas que não achei nele”, ou seja, no livro, é o próprio narrador quem propõe ao leitor (e ao crítico) uma atenção redobrada ao não-dito, à minúcia, quase imperceptível (no texto e na vida dos personagens), apenas sugerida como característica própria ao texto não conotativo, ou seja, à literatura.” (BARROS, 2006, p. 274) 14 O ensaio de John Gledson sobre Esaú e Jacó, em Ficção e História (2003), é bastante esclarecedor, no sentido de ver a obra como mais do que uma metáfora óbvia da dualidade entre os partidos Liberal e Conservador. O crítico procura perceber as características estruturais do romance, sua própria composição, um tanto oblíqua, com um narrador que ao mesmo tempo está e não está na história, como uma metáfora da situação de desagregação e insegurança que Machado percebia no Brasil após a proclamação da República.

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Ou ainda neste trecho, consideravelmente enigmático:

O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por ele faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduza a verdade que estava, ou parecia estar escondida. (ASSIS, 2001, p.159)

O artigo de André Luiz Barros da Silva acaba, desse modo, por descortinar uma

importante dimensão do Memorial de Aires, expressa pelo “dizer calado” do

conselheiro, assim como pela “técnica do desbaste” do Machado travestido de editor

fictício. Metaforiza-se tal dimensão também na frase da epígrafe de Tutaméia, de

Guimarães Rosa, como a recorda o estudioso: “O livro pode valer pelo muito que

nele não deveu caber”, possibilitando, dessa maneira, novas interpretações para o

final da epígrafe do último romance: “O resto aparecerá um dia, se aparecer um dia”.

(...) tentamos percebê-lo tão-somente como elemento de complexificação da narrativa obtida quando o autor atinge sua maturidade e utilizada, pelo que parece, levando em conta uma (pelo menos desejada e potencial) maturidade do leitorado brasileiro da época – sem excluir, é claro, uma postura de aposta num leitorado por vir. (BARROS, 2006, p.272)

Tais características, presentes em um romance de 1908, muito anterior, assim, à

obra roseana, apenas demonstram o quanto Machado antecipou-se em termos de

técnicas e procedimentos. O uso do não-dito, do vazio narrativo, da participação do

leitor nos ajudam a entender como o criador de Brás Cubas e Bentinho procurava

entender o fazer literário.

Outro estudo contemporâneo que merece destaque é o artigo “Descobrir e encobrir

– a diplomacia machadiana: José da Costa Marcondes Aires”, de Wilberth Salgueiro,

sobre a questão dos nomes no romance, mais precisamente sobre o do conselheiro,

bem como suas implicações para a interpretação do papel dessa importante

personagem em relação a enredo.

Interpretação ou interpretações? Mais do que tentar compreender a onomástica do

velho diarista, o instigante e realmente generoso trabalho de Salgueiro ajuda a abrir

ainda mais o leque de possibilidades de leitura sobre o Memorial de Aires. Faz

também algumas descobertas que, apesar de chamadas pelo autor de

“paranomóias” (fusão dos termos “paranóia” + “onoma-” + “tramóia”) de fato deixam

soprar um vento fresco sobre a crítica machadiana, legando aos estudiosos de agora

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e do futuro ferramentas interessantes, tomando por base a onomástica para auxiliá-

los na análise de romances e contos.

Para isso, dedica ao trabalho algum espaço para discussão das teorias que cercam

o estudo do nome, observando que,

(...) em qualquer romance, queria ou não o seu autor, todo nome de personagem é motivado. Mesmo a ausência de nome significa. Mesmo um gesto nomeador que se quer gratuito apenas atenua, e mal disfarça, a inexequibilidade do aleatório, pois quando digo “assim”, não digo “assado”. Existe “João”, existe “John”, existe “joão”. E quando um nome faz parte do título da obra aí existe muito mais (dos nove romance de Machado, por exemplo, somente os dois primeiros não trazem nomes nos títulos). (SALGUEIRO, 2006-07, p. 52)

Ele ainda enfatiza que

O nome – em particular, o antropônimo é um signo vigoroso na literatura, sendo parte vital da dialética lúcido/lúdico que faz funcionar a ficção. Aventurar-se pelos nomes prevê alguns cuidados – para mais prazeres e menos perigos. A regra número um, sem a qual nenhuma outra ganha sentido, é considerar sempre o contexto (ficcional, poético) em que o nome acontece. O mesmo nome funciona de modo diverso em contextos diversos. Jamais esquecer as imensas diferenças entre nossos nomes civis e os nomes inventados é fundamental, Perceber o grau de intencionalidade do nome ajuda a mensurar sua importância. Nem todo nome pede para ser esquadrinhado, dissecado – às vezes, o nome pede repouso. (SALGUEIRO, 2006-07, p.59)

O nome “Aires”, assim, poderia, entre outras possibilidades, ter seu sentido ligado a)

ao plural de ”ar”, o que calha bem com a personalidade do diarista, um ser flexível;

b) à águia, já que, etimologicamente, seria possível dizer que Aires provém do

radical germânico ar, que nos dá esse pássaro sempre associado à perspicácia ou

ao talento; c) a senhor, uma vez que, na etimologia teutônica, Aires remete a senhor,

aqui entendido tanto como nobre, proprietário, como senhor da própria narração.

Os outros nomes do conselheiro também são estudados e ganham sentidos por

vezes inesperados. “Marcondes” remete, como já o perceberam Paes e Gledson, à

ópera Tristão e Isolda, de Wagner, em que há a presença do Rei Marcos, preterido

pela linda Isolda que ama Tristão. “Costa” poderia apontar para a relação que Aires

estabelece com o mar e a viagem marítima (tema já sugerido também na epígrafe do

romance). A idéia é reforçada pela aproximação entre “Costa” e o “mar”, de

“Marcondes”. Um outro sentido possível está ainda em “Marcondes, que contém

“condes”, uma possível referência à postura aristocrática do personagem.

40

Com “José”, temos ao menos duas possíveis abordagens, ambas irônicas: na

primeira, este nome tão popular pode servir de contraponto a “Aires” (bem pouco

comum, singular) e a Marcondes (que remete a nobreza). Também funciona como

contraponto ao nome do criado, também José, e a uma possível e inesperada

similitude entre os dois.

Vale chamar a atenção ainda para outra descoberta, outra “paranomóia”, mas que,

de certa forma, vai ao encontro da crítica contemporânea mais profícua sobre o

romance, ao relacionar o conselheiro à indecisão e ao indefectível cacoete

diplomático, bem como, claro, às implicações disso na narração. Referimo-nos aqui

ao palíndromo contido na palavra “Aires”, a qual, lida ao contrário, oferece-nos

“seria”, futuro do pretérito do verbo ser.

Lembremos também que o citado tempo verbal é muito usado quando quem fala não

deseja responsabilizar-se pelo que diz, o que calha bem com a personalidade de um

diarista que confessa ter “tédio à controvérsia”.

Para Salgueiro,

(...) Tal atitude, bastante escamoteadora, é típica do diplomata Aires, que recorrentemente dá um jeito de não afirmar coisas, seja por veladíssima ironia, seja por “tédio à controvérsia”. Esse “seria” de Aires pode-se estender, de certo modo, à incompletude de sua vida, solitária e, por que não?, melancólica. Seu companheiro último, na velhice, é seu diário, espaço em que cria e movimenta, títeres, seus personagens, entre os quais ele mesmo se inclui. (SALGUEIRO, 2006-2007, p. 49)

Como salienta o crítico, Machado possuía aguda percepção sobre o uso e o

significado do nome na ficção, vide a retórica que inventou para o filólogo de “A

sereníssima República”. Este, com o intuito de manipular o resultado de uma

eleição, consegue explicar como um voto para o candidato “Nebraska”, escrito sem a

última letra, poderia ser considerado, na verdade, como para o candidato “Caneca”.

Entretanto, talvez os pontos mais vitais do trabalho estejam mesmo vinculados à

análise detalhada das similitudes e inter-relações possíveis entre o nome José da

Costa Marcondes Aires e Joaquim Maria Machado de Assis.

41

De fato, muitas aproximações, como aponta o estudioso, podem ser percebidas nos

dois conjuntos. Ambos têm quatro nomes e uma preposição. Três dos quatro

começam com a mesma letra, ocupando também a mesma posição: Joaquim / José;

Machado / Marcondes; Assis / Aires. O único par com iniciais diferentes (Maria /

Costa), tem, no entanto, o mesmo número de letras e termina com “a”. O nome

“Machado de Assis” encontra correspondência em “Marcon-des Aires”.

Ocorrem também homologias entre “Assis” e “Aires”: ocupam a posição fundamental

do sobrenome; apresentam ambas cinco letras; têm como inicial o “A” e terminam

com de maneira idêntica, com “s”.

Salgueiro chama ainda a atenção para a similitude das iniciais do editor fictício, “M.

de A.”, com as do escritor, bem como as do narrador e até do próprio título do livro.

Tal profusão de máscaras e espelhamentos da assinatura do autor, menos que dar

ao romance um sentido meramente autobiográfico, perfaz o que aponta Juracy

Saraiva, em O circuito das memórias em Machado de Assis:

A assinatura do editor – M. de A. – também concentra o desejo de representação mimética, pois favorece a identificação com o autor real, ao mesmo tempo em que repete o título da obra; incidentalmente, as iniciais sugerem o nome do narrador – Marcondes Aires. Situada no cruzamento de diferentes espaços ontológicos, a inscrição do nome refere a transitividade entre o real e o ficcional, e a possível ocupação de um território comum” (SARAIVA, 1993, p. 186)

Nas palavras de Salgueiro:

Vemos nessa inscrição – “M. de A.” – o remate de um sofisticadíssimo constructo ficcional, que faz abalar tranqüilas distinções entre as instâncias do autor, do narrador, do personagem e da própria narrativa, rasurando sem dó as frágeis fronteiras entre realidade e ficção, origem e fim, verdade e ilusão. (SALGUEIRO, 2006-07, p. 51)

Para o crítico, não se trata de relacionar biograficamente o autor do diário-romance e

o escritor do romance-diário, mas de perceber os interstícios entre ficção e

realidade, e de como Machado, em Memorial de Aires, ajuda a mostrar como podem

ser complexas, além de sutis, tais aproximações.

Finalmente, o estudo de Salgueiro lança dúvidas e questões importantes aos

estudiosos de Machado de Assis. Propõe, sobretudo, que o jogo ficcional do escritor,

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suas “tramóias” continuam valendo ainda nesse último romance, a ponto de

inscrever nas iniciais do livro as suas próprias, e de fazer ecoar no nome de seu

narrador o seu. Dessa maneira, em meio a tantas dúvidas “airosas”, tão bem

levantadas pelo crítico, seu palindrômico “seria” inscrito em “Aires”, bem deveria soar

como uma pergunta a todos: poderia mesmo ser Machado o conselheiro? Ora,

seria?

43

3. O MEMORIAL NA TRADIÇÃO DOS ROMANCES ENGANOSOS

3.1. MEMÓRIAS PÓSTUMAS E A DESFAÇATEZ DE CLASSE

É a partir deste enigmático “seria” (“Seria Aires uma mera representação literária do

autor, como o queriam alguns dos primeiros estudiosos do Memorial, ou algo mais

complexo e difícil de precisar?”) que, seguindo um caminho já trilhado por críticos

mais experientes, tentaremos ler o romance dentro da tradição das narrativas

enganosas do Velho Bruxo. Dessa maneira, queremos crer que a resposta à

pergunta anteriormente formulada, se não a correta, mas a que talvez mais abra

caminhos interpretativos interessantes e produtivos, é não, ou, ao menos, não

simplesmente.

As contribuições de Roberto Schwarz, a partir de 1970, e John Gledson, nos anos

1980, impulsionaram o restante da crítica a repensar o papel dos narradores

machadianos dos romances em primeira pessoa. Anteriormente, por exemplo, vários

estudos sobre as Memórias póstumas centravam-se na filosofia de Machado de

Assis, procurando entender, através dos ditos e chistes do defunto-autor, algo do

pensamento do escritor, sem as devidas mediações. A mudança de postura crítica

em relação a esses “senhores da narração” altera o ponto de vista desses trabalhos:

não se trataria mais de entender Brás como representação de Machado, mas o que

a narração de Brás, esse brasileiro bem nascido, egocêntrico e cínico, diz sobre ele,

sua classe e, naturalmente, o Brasil, cujas primeiras letras estão inscritas em seu

nome.

Da mesma forma, em Dom Casmurro, os inúmeros tribunais sobre a inocência ou

não de Capitu, com os novos estudos, cederão espaço para outros

questionamentos, que envolvem menos a moça de olhos oblíquos e dissimulados, e

sim seu cônjuge, Bento Santiago, autor do livro. Seu ciúme, seus preconceitos de

classe, sua covardia enrustida, muitas vezes, de bondade, surgem mais nitidamente

aos olhos do leitor, que passa a desconfiar de suas reais intenções ao escrever (e

ele escreve muito bem).

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Em um ótimo resumo de suas idéias, diz Schwarz:

Depois de 1964 a visão esperançosa, ligada ao populismo e às suas promessas, acabou. Daí a atualidade de Machado de Assis quando mostra que não é para acreditar em nada que as pessoas bem-postas dizem, mesmo se as palavras forem elegantes. (BETELLA, 2007, p. 113)

Dessa forma, o livro Machado de Assis: Um mestre na periferia do capitalismo, de

Roberto Schwarz, publicado originalmente em 199015, abriu novas possibilidades de

leitura a Memórias póstumas de Brás Cubas, romance que inaugura a chamada

segunda fase de Machado de Assis, assim como as demais narrativas longas que

vieram após essa.

Diferentemente de uma série de estudos anteriores, como aqueles que viam nas

muitas filosofias do narrador-personagem reflexos sem muitas mediações do modo

de pensar do autor, o crítico propõe uma nova abordagem. Nela, o narrador, e mais

que ele, a própria prosa, expressam o modo de ser da classe senhorial brasileira, a

sua volubilidade, tornando cada assunto, cada gosto, cada ponto de vista, apenas

mais um, primazia por primazia, aparência sem substância.

Os contrastes são inúmeros, entre frases, entre parágrafos, entre capítulos, mas o efeito visado é um só, a satisfação da mesma constante veleidade. Mais que baixo continuo, esta é a mediação geral que dá pertinência, pelo toque insensato, aos materiais do romance. Digamos então que no curso de sua afirmação a versatilidade do narrador faz pouco de todos os conteúdos e formas que aparecem nas Memórias, e os subordina, o que lhe proporciona uma espécie de fruição. Neste sentido a volubilidade é, como propusemos no início destas páginas, o princípio formal do livro. (SCHWARZ, 2000, p. 31)

Já não se trata apenas de uma visão do puro homem moderno, mas de sua versão

brasileira. A prosa descarada de Brás – sua prepotência, sarcasmo e desprezo para

15 Trata-se de fato da segunda parte do um estudo que se iniciou com Ao vencedor as batatas, originalmente publicado em 1977, em que o crítico se detém, sobretudo, na análise dos primeiros romances de Machado. A contribuição mais importante talvez esteja no famoso ensaio “As idéias fora do lugar”, cujo mérito é observar as diferenças entre a ficção de José de Alencar e a da primeira fase machadiana. Schwarz acaba por concluir que, apesar de um tanto apagados e deficientes na forma, as obras iniciais conseguiam expressar de maneira menos inexata o mecanismo de favor presente na sociedade brasileira, ao contrário do romance alencariano, cujas premissas liberais não encontravam eco no país. As idéias estão fora do lugar exatamente por conta do desajuste entre forma literária e andamento da sociedade, problema que Machado de Assis, a partir das Memórias póstumas, tratará de resolver. “As idéias fora do lugar” também marcam o início do pensamento de Schwarz no que se refere ao descompasso entre discurso e prática. Em outras palavras: a sociedade que se quer liberal e moderna é, também, escravocrata e paternalista.

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o que não é a “ponta de seu nariz” – traz marcas de uma classe voluntariosa e que

cede apenas a seus prazeres e interesses.

Como resultado, todas as inúmeras citações a autores clássicos, vultos da História,

correntes artísticas ou científicas, devem ser entendidos nas Memórias à sombra de

critérios dessa classe, de seus pontos de vista e preconceitos. Mais que isso,

adequando-se a seus interesses e disposições.

O que vemos, assim, é,

Noutras palavras, um show de cultura geral caricata, uma espécie de universalidade de pacotilha, na melhor tradição pátria, em que o capricho de Brás Cubas toma como província a experiência global da humanidade e se absolutiza. Já não se de trata de uma disposição passageira, psicológica ou estilística, mas de um princípio rigoroso, sobreposto a tudo, e que portanto se expõe e se pode apreciar em toda linha. Esta universalização assenta o eixo que dá potência ideológica às Memórias. (SCHWARZ, 2000, p. 32-33)

A questão que se assenta sobre a prosa pretensamente culta do narrador e sua

violência subtextual remetem imediatamente ao problema da modernização

brasileira e o papel das elites nesse processo. A partir da terceira metade do século

XIX, as correntes filosóficas e científicas provenientes da Europa, como o

darwinismo social e o positivismo, começaram a aportar em terras nacionais, graças,

em grande parte, aos filhos da aristocracia que iam estudar em universidades

estrangeiras e para cá voltavam com as novas idéias.

Entretanto, se a igualdade de direito parecia uma conquista indiscutível e

imprescindível, o que dizer dela em uma nação cujo trabalhador era, em sua imensa

maioria, cativa? Como adequar as novas teorias do Direito ao estatuto da

escravidão? No contexto brasileiro, tais emblemas da modernidade européia só

poderiam servir de verniz para encobrir a barbárie que era a norma. O absurdo se

traduz muito bem na carta do parlamentar Bernardo Pereira de Vasconcelos que, em

discurso de 1843, dizia ser a África que civilizaria o Brasil, e explicava:

“Sim, a civilização brasileira de lá veio, porque daquele continente veio o trabalhador robusto, o único que sob este céu poderia ter produzido, com produziu, as riquezas que proporcionaram a nossos pais recursos para mandar seus filhos estudar nas academias e universidades da Europa, ali adquirirem os conhecimentos de todos os ramos do saber, os princípios da Filosofia do Direito, em geral, do Direito Público Constitucional, que

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impulsionaram e apressaram a Independência e presidiram à organização consagrada na Constituição e noutras leis orgânicas, ao mesmo tempo, fortalecendo a liberdade.” (SCHWARZ, 2000, p. 42)

Um narrador dessa natureza será fatalmente não confiável, pondo a todos que o

acompanham imediatamente de sobreaviso. O leitor atento desconfiará das

interpretações e justificativas dadas por ele, que talvez nem de longe sejam tão

sinceras como nos quer fazer crer. Um episódio do romance assim interpretado por

Schwarz é o curto idílio entre Brás e Eugênia, a “flor da moita”, na Tijuca.

Uma das poucas personagens dignas do romance, a jovem Eugênia, cujo nome

significativamente quer dizer “bem nascida”, é também coxa de nascença. Brás a

engana, dando a entender que o namoro será algo mais que capricho e

passatempo. Porém, logo que se recupera da melancolia em que se encontrava, por

conta da morte da mãe, faz valer as palavras do pai (que são também prerrogativas

de classe), cujas ordens eram de que descesse da Tijuca e retornasse à Corte, para

se fazer deputado e casar (claro que não com Eugênia).

Já a caminho de volta, Brás se questiona sobre um enigma:

O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com a solução do enigma. O melhor que há, quando se não resolve um enigma, é sacudi-lo pela janela fora; foi o que eu fiz; lancei mão de uma toalha e enxotei essa outra borboleta preta, que me adejava no cérebro. Fiquei aliviado e fui dormir. Mas o sonho, que é uma fresta do espírito, deixou novamente entrar o bichinho, e ai fiquei eu a noite toda a cavar o mistério, sem explicá-lo. (ASSIS, 2000, p. 65)

Para Schwarz, ser coxa é um empecilho menor, com que o narrador procura ludibriar

a consciência do leitor e a sua. Pesa-lhe, sobretudo, o fato de a jovem ser pobre e

filha ilegítima, nascida de um encontro às escondidas atrás da moita. Sua condição

social, assim, mais que o fator genético, é que a torna incompatível com o ideal de

sucesso que papai Cubas tem para o rebento.

Outro momento que demanda alguma interpretação do leitor é o famoso encontro de

Brás com Prudêncio, no tempo em que o negro, já ex-escravo, tomara para si um

cativo e dele se fizera senhor.

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Brás Cubas o encontra na rua e, se primeiramente o repreende, ao vê-lo encher o

escravo de chicotadas, muda de tom e, ao fim, acaba por concluir, matreiramente:

Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, — transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto! (ASSIS, 2000, p. 101)

A filosofia com que Brás trata o episódio – poderíamos talvez também chamá-la de

cinismo – está bem de acordo com o Humanitismo que Quincas Borba iria ensinar-

lhe mais tarde. E é bem certo isso, pois se Prudêncio, ao invés de vergar o chicote

no negro, decidisse por fazê-lo no antigo senhor, o neto do velho Damião Cubas

talvez não risse.

Não se deve esquecer o fato de que as filosofias presentes no livro são, como bem

comentou Dirce Cortes Riedel16, paródias dos cientificismos, que muitas vezes

aportavam sem a devida cautela no Brasil. Dessa maneira, ler o humanitismo em

chave séria é exatamente não refletir a seu respeitou ou relativizar seus princípios

mais básicos, que o tornariam condenável.

Para Schwarz, tais momentos nas Memórias apontam para

A ousadia de sua forma literária, onde lucidez social, insolência e despistamento vão de par, define-se nos termos drásticos da dominação de classe no Brasil: por estratagema artístico, o Autor adota a respeito uma posição insustentável, que entretanto é de aceitação comum. Ora, a despeito de toda a mudança havida, uma parte substancial daqueles termos de dominação permanece em vigor cento e dez anos depois, com o sentimento de normalidade correlato, o que talvez explique a obnubilação coletiva os leitores, que o romance machadiano, mais atual e oblíquo do que nunca, continua a derrotar. (SCHWARZ, 2000, p. 12)

16 O filósofo batiza a sua doutrina com uma metáfora paródia do Positivismo de Augusto Comte – “Humanitismo”, de “Humanitas”, princípio das coisas, também uma denominação paródica da “Humanidade”, origem e síntese do sistema filosófico genético positivista base da Religião da Humanidade, com a qual o filósofo de Montpellier completou o seu sistema. (RIEDEL, 1979, p. 4)

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A relevância do trabalho de Schwarz está, em grande parte, em ajudar a estabelecer

as bases para se começar um estudo mais aprofundado do nacionalismo de

Machado de Assis, um nacionalismo a contrapelo, negativo, é verdade, mas, talvez

por isso, ainda infelizmente atual. Como o próprio crítico bem observa, Machado fez

valer, com Brás Cubas, o que já esboçara antes, em tom e maneira diferentes, no

seu hoje famoso ensaio crítico Notícia da atual literatura brasileira: instinto de

nacionalidade:

Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região, mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. Um notável crítico da França, analisando há tempos um escritor escocês, Masson, com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia ser bretão sem falar sempre de tojo, assim Masson era bem escocês, sem dizer palavra do cardo, e explicava o dito acrescentando que havia nele um scotticismo interior, diverso e melhor do que se fora apenas superficial. (COUTINHO, 1990, p. 50)

Brás, falando “como homem de seu tempo e do seu país”, acaba por realçar o viés

negativo que tal expressão, no contexto do ensaio crítico, porventura não parecia

possuir. Negativo porque tais características, longe de serem qualidades, acabavam

por desqualificar esse narrador bem nascido, cuja volubilidade, de resto vazia, é o

que dá a tônica a suas memórias.

Pode-se dizer, assim, que a construção de um narrador volúvel, e, em última

instância, não confiável, alterava os parâmetros de leitura então vigentes. Para

serem devidamente compreendidas, as Memórias deveriam ser lidas a contrapelo,

num constante exercício de decifração, já que não mais apenas os “conteúdos” da

prosa precisavam ser interpretados, mas a própria dinâmica desta, seu movimento.

A sombra lançada sobre Brás Cubas pelos estudos de Roberto Schwarz – algo para

a qual Helen Caldwell em seu Otelo Brasileiro de Machado de Assis já apontara, em

1960, mas sob um viés familiar – redundará essencial para a crítica contemporânea

do escritor. Pois, com o defunto autor, descobrimos que é possível discursar como

liberal e moderno e ser, na verdade, seu exato oposto, numa perfeita mostra de

desfaçatez de classe.

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3.2. DOM CASMURRO: O LEITOR ENTRA NO JOGO

Ainda na trilha dos narradores oblíquos e dissimulados, para usar uma expressão de

José Dias, ou, em outras palavras, enganosos, que demandam do leitor a máxima

atenção, sob o risco de ser ludibriado, há Dom Casmurro.

No entanto, curiosamente, nem sempre foi assim. O romance sobre o ciúme, o valor

das aparências, do verossímil antes da verdade, começou a ser lido dessa forma

somente a partir dos anos sessenta do século XX, ainda que, à época da

publicação, José Veríssimo, agudamente, tenha feito certas ressalvas quanto ao

narrador, sem aprofundá-las17.

Foi a pesquisadora americana Helen Caldwell, em 1960, quem primeiro sistematizou

a dúvida sobre a existência ou não do adultério, “uma vez que a culpa ou inocência

de Capitu dependem inteiramente do testemunho de Santiago, cujo ciúme, por si só,

já torna seu testemunho suspeito” (CALDWELL, 2002, p. 32).

No seu estudo, ela mostra consciência a respeito das questões que envolvem a

recepção do romance de Bentinho e Capitu:

Embora Dom Casmurro tenha sido publicado em 1900, nenhuma análise abrangente a respeito foi feita ainda. Os estudiosos de Machado de Assis que mencionaram este romance assumiram, praticamente sem exceção, a heroína como culpada, mas há poucas indicações de que algum estudo tenha realmente dado conta do assunto. (CALDWELL, 2002, p. 13)

Em O Otelo brasileiro de Machado de Assis, a crítica procura aproximar Dom

Casmurro da peça de Shakespeare, que, além de ser citada diretamente no

romance18, traria relações de semelhança com o próprio enredo do livro19.

17 “Capitu, a dissimulada, a pérfida, é deliciosa de afetuosidade felina, reflexão e de consciência ou desplante, de animalidade inteligente e perspicácia feminil, do jeito, feitiçaria e graça, e, com isto tudo, viva, real, exata. Dom Casmurro a descreve, aliás, com amor e com ódio, o que pode torná-lo suspeito. Ele procura cuidadosamente esconder estes sentimentos, sem talvez consegui-lo de todo. Ao cabo de suas memórias, sente-se-lhe uma emoção que ele se empenha em refugar.” (GUIMARÃES, 2004, p. 414) 18 No capítulo LX, “Uma reforma dramática”, em que comenta a idéia de que as peças deveriam começar pelo fim, e exemplifica com a tragédia de Shakespeare: “Otelo mataria a si e a Desdêmona no primeiro ato, os três seguintes seriam dados à ação lenta e decrescente do ciúme, e o último ficaria só com as cenas iniciais da ameaça dos turcos, as explicações de Otelo e Desdêmona, e o bom conselho do fino lago: "Mete dinheiro na bolsa." Desta maneira, o espectador, por um lado,

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Uma vez que o conjunto da obra de Machado de Assis apresenta a emergência de um intelecto estável e consistente, com idéias e formas que aparecem, reaparecem e se desenvolvem, mergulhei em suas obras para elucidar um único romance. Visto que o próprio Machado de Assis se referiu diversas vezes a Shakespeare com respeito e suas idéias recorrentes, tentei remontar tais referências (pertinentes) a sua fonte. Mas o núcleo de meu estudo consiste em responder duas questões suscitadas diretamente do próprio Dom Casmurro, uma subsidiária à outra. A questão principal é: “A heroína é culpada de adultério?”; e a subsidiária, “por que o romance é escrito de tal forma a deixar a questão da culpa ou inocência da heroína para decisão do leitor?” (CALDWELL, 2002, p. 13)

As relações intertextuais estabelecidas pela estudiosa entre as duas obras, se

mostram semelhanças, também apontam para as necessárias diferenças, que

Machado tão bem soube explorar. Assim, o pai de Capitu não é um senador

veneziano, como o de Desdêmona, mas um pequeno funcionário do Ministério da

Guerra; José Dias, ao contrário de Iago, não tem um cargo político importante, mas

vive de favor na casa da mãe de D. Glória; os próprios Bentinho e Capitu já sugerem

o que seria este Shakespeare à brasileira: ele nada tem da coragem e força do

mouro, sendo mesmo, quando adolescente, um pouco covarde. Já a moça é apenas

filha de uma família agregada da casa.

Independente dos acertos de Caldwell a respeito das relações intertextuais, bem

como dos estudos onomásticos que ela empreende em seu livro serem ou não

completamente procedentes, ou ainda de seu viés às vezes perigosamente cristão

(já que acaba por se centrar um pouco além do necessário em assuntos de natureza

religiosa), foram seus estudos que deslocaram a visada crítica do tema do adultério

para se prender ao do ciúme. Não sendo mais Capitu a única digna de suspeição:

culpada ou inocente – é justamente essa dúvida que conferirá nova vida ao romance

e a seus estudos críticos subseqüentes. acharia no teatro a charada habitual que os periódicos lhe dão, por que os últimos atos explicam o desfecho do primeiro, espécie de conceito, e, por outro lado, ia para a cama com uma boa impressão de ternura e de amor: Ela amou o que me afligira, Eu amei a piedade dela.” O segundo momento, no capítulo CXXXV, é quando Bento vai assistir à peça e retorna lamentando que a esposa não fosse pura como Desdêmona: “– E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; – que faria o público, se ela deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu? E que morte lhe daria o mouro? Um travesseiro não bastaria; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a consumisse de todo, e a reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao vento, como eterna extinção... “ (ASSIS, 1997, p. 202) 19 Há, de fato, alguns pontos de contato, como: o ciúme de Bentinho, que assiste a Otelo mas se ressente porque a esposa não é inocente como a heroína de Shakespeare; a existência de um certo Iago, José Dias, autor das primeiras acusações a Capitu; o sobrenome de Bento, mesmo, Santiago, guarda a palavra Iago.

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Um desses estudos é o importante ensaio de Silviano Santiago, “Retórica da

verossimilhança”, publicado em 1969 em Uma literatura nos trópicos, procurando

relacionar a profissão de advogado de Bento à sua atuação como narrador. Para o

crítico, a retórica de que o filho de D. Glória faz uso é a mesma usada nos tribunais

para acusação do réu, papel no romance legado a Capitu. E, por não haver

nenhuma prova concreta sobre o adultério, ou mesmo um flagrante,

Qualquer das duas atitudes tomadas na leitura de Dom Casmurro (condenação ou absolvição de Capitu) trai, por parte do leitor, grande ingenuidade crítica em que ele se identifica emocionalmente (ou simpatiza) com um dos personagens, Capitu ou Bentinho, e comodamente já se sente disposto a esquecer a grande e grave proposição do livro: a consciência pensante do narrador Dom Casmurro (...) O leitor, esquecendo a consciência pensante do sexagenário, tomava a posição de juiz e se sentia na obrigação de dar o seu veredicto sobre os fantasmas do narrador, quando na realidade o único interesse que deseja despertar Machado de Assis é para a pessoa moral de Dom Casmurro. (SANTIAGO, 2000, p. 29-30)

O estudo de Silviano Santiago dá um passo adiante em relação às formulações de

Caldwell, ajudando a configurar um tipo de narrador que faz uso de sua boa

educação para tentar convencer o leitor de seu ponto de vista. Se o cerne em o

Otelo brasileiro era o ciúme de Bentinho, aqui a atenção é desviada para a profissão

do esposo que se sente enganado, mas que, por sua vez, também se encontra em

situação suspeita.

Como lembra o crítico, Bento está acostumado com a retórica dos advogados, sendo

que, na sua formação, importa mais a verossimilhança20, a aparência de verdade,

que o conhecimento desta, o que atesta um

(...) duplo cacoete profissional: o desligamento por completo da realidade e por conseqüência a crença no valor supremo das regras da retórica, e, por outro lado, a centralização do motivo do discurso, não no próprio discernimento do orador, mas no de quem escuta. Daí que o ponto de referência para as suas idéias não é a realidade (a constatação, o flagrante – como se diz em termos policiais), mas o provável, o verossímil, que como vimos é a base da retórica de Dom Casmurro. (SANTIAGO, 2000, p. 43)

20 Assim diz o próprio narrador a frase tão significativa como suspeita: “Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição.” (ASSIS, 1997, p. 16)

52

A pergunta de Bento, se a Capitu adulta (e, para ele, culpada) já se encontrava na

jovem de Matacavalos, está de alguma maneira representada na divisão do enredo,

que prioriza, em termos de extensão, a primeira fase.

Assim, para Dom Casmurro o essencial era provar (e sair vencedor) que o conhecimento que tinha dos atos de Capitu quando menina lhe possibilitava um julgamento seguro sobre a Capitu adulta e misteriosa. (...) Não é de estranhar, também, como já assinalou Helen Caldwell, que gaste 2/3 do livro descrevendo as suas impressões da Capitu menina e 1/3 da Capitu adulta (...) Esse desequilíbrio estrutural se encontra justificado, para usar de uma expressão familiar, por uma desculpa esfarrapada. (SANTIAGO, 2000, p. 34)

No mais, tal atitude apontaria para um olhar preconceituoso do narrador, ou, ao

menos, um que não se baseia em nada a não ser o senso comum.

Toda essa visão da vida em família trai, é claro, certo preconceito, ou neste caso específico, se baseia em provérbios que de certa forma traduzem apenas o bom senso, provérbios como: ‘Tal pai, tal filho’, ou ‘Filho de peixe, peixinho é. (SANTIAGO, 2000, p. 37)

A conclusão é clara, mas não deve ser subestimada. Ela reforça o livro de Caldwell,

fazendo desmoronar definitivamente a construção que vigorou na crítica sobre o

romance até então, isto é, de se buscar a culpa ou a inocência de Capitu. A questão

que passava a importar agora era: que mecanismos e estratégias ideológicas utiliza

Bento para fazer valer seus pontos de vista.

Em resumo: os críticos estavam interessados em buscar a verdade sobre Capitu, ou a impossibilidade de se ter a verdade sobre Capitu, quando a única verdade a ser buscada é a de Dom Casmurro. (SANTIAGO, 2000, p. 30)

Em Machado de Assis: impostura e realismo: uma reinterpretação de Dom

Casmurro, publicado originalmente em 1984, John Gledson analisa as relações

familiares, sociais, políticas e históricas do romance. Seu objetivo é reconstituir o

enredo “verdadeiro” do livro, que muito se diferenciaria daquele fornecido pelo

narrador Bentinho. De fato, o estudo do crítico fundamenta-se na concepção de que

a narração de Bento é duplamente enganosa, exatamente porque ele, se por um

lado nos engana, em certa medida, é enganado, não por Capitu ou Escobar, mas

por seus próprios preconceitos e limitações, oriundos, sobretudo, de sua classe e

criação.

Seja qual for a “verdade” acerca do adultério, podemos considerar que o romance é um estudo sobre o ciúme de Bento e as condições que o produzem. Tais condições são, com

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efeito, idênticas àquelas que fizeram com que o casamento se realizasse. A fim de se casar com Bento, Capitu precisa manipulá-lo e dominá-lo, procedimento que, invertendo os papéis tradicionais do homem e da mulher, provoca ciúme e ressentimento. Do ponto de vista psicológico, Bentinho é apenas um menino mimado, habituado a que lhe façam as vontades, e possui a incapacidade da criança mimada para compreender que os outros têm uma existência independente da sua, de modo que quando ele afirma sua independência, como é natural na ordem das coisas, essa afirmação lhe parece uma traição. (GLEDSON, 1991, p. 12)

Assim, mais relevante que saber se Capitu traiu ou não, ou mesmo que acusar

Bento de forjar provas, é, para Gledson, debruçar-se sobre a mentalidade do

narrador, sua psicologia, demonstrando como ela foi construída socialmente.

Compreendê-la é, em certa medida, compreender, a partir de seu âmago, uma

parcela da sociedade brasileira oitocentista que a gerou21.

Uma grande dificuldade a ser transposta para uma leitura dessa natureza de Dom

Casmurro é que Bento não teria, muitas vezes, consciência de tudo que gira a sua

volta, como no caso dos bustos de grandes homens no seu escritório. O narrador

assume desconhecer a razão da disposição dos medalhões, inventando algum

motivo frívolo, o que não deveria privar o leitor de propor suas próprias soluções.

Comecei a ver que, de fato, jamais compreendera a verdadeira natureza das relações sociais no romance, em parte por ela estar dissimulada (o próprio Bento não a compreende, e, assim, não pode descrevê-la de modo direto), mas também porque as categorias essenciais de favor e dependência inexistiam no meu instrumental. (...) Nós nos inclinamos, de preferência, a pensar e a explicar as motivações das personagens em outros termos: de rico e pobre, de bom e mau, de amor, fidelidade e traição. É o que Machado, até certo ponto, nos anima a fazer. (GLEDSON, 1997, p. 10)

A leitura que surge é, notavelmente, cética, sendo a separação entre narrador e

autor o procedimento crítico esperado. Machado, assim, não compactuaria com

Bento, como não compactuava com Brás Cubas. Só que, diferente das Memórias,

que nos deixam já de sobreaviso desde a epígrafe do livro, “para o verme”, em Dom

Casmurro, graças a uma série de estratégias da narração, não nos deparamos com

(...) nenhum aviso ao leitor, e o nosso encontro com o narrador não poderia ser mais confortavelmente casual. É como se ele também fosse alguém que acabássemos de encontrar num trem, assim como ele se encontra com o poeta principiante. Pode-se admitir que ele é um tanto excêntrico, um recluso que chegou ao ponto incrível de

21 Como o crítico ressalta, seu livro deve muito a outro estudo, Ao vencedor as batatas, de Roberto Schwarz, que, apesar de se ocupar dos romances da primeira fase machadiana, lança luz sobre a figura do agregado, tão comum no Brasil daquele tempo. Em Dom Casmurro, a se seguir a leitura de Gledson, as relações de favor também estão lá, mas insidiosamente encobertas pelas palavras de Bentinho.

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construir uma cópia de sua casa de infância no subúrbio. Porém, mesmo essa anormalidade, se assim pode ser chamada, é ressalvada pelo fato de ele se sentir constrangido pelo próprio capricho (...). Onde Brás Cubas desafia o leitor, propondo problemas que requerem soluções, e sugere claramente que o narrador é iludido a ponto de estar louco, Dom Casmurro faz de tudo para amenizar o caminho do leitor através do que, na verdade, é um campo minado. (GLEDSON, 1997, p. 23)

Claro que, lido como foi o livro até 1960, podemos imaginar que a técnica deu certo.

Para Gledson, não era outro o objetivo de Machado com esse tipo de narrador,

veículo de crítica ideológica. O romance acaba assim por descortinar um painel

coerente da vida em sociedade do Brasil do século XIX. Mas o faz de maneira,

podemos dizer novamente, “oblíqua e dissimulada”, pois parte da narração

enganosa de um proprietário que se sente traído, sobretudo porque não

compreende de maneira adequada as relações de mando e favor. O adultério, difícil

de provar ou negar, é o que importaria menos, nesse contexto. Os silêncios

“misteriosos” de Capitu, quando, em menina, refletia, concatenando idéias para

atingir seus objetivos (“não aos saltos, mas aos saltinhos”), denunciam, ao narrador

desavisado, sua culpa, já que, desde criança, se mostrara fria e calculista. Ela é, de

fato, ambiciosa, ao contrário de Bento, que sempre teve tudo que queria e por isso

pouca atenção precisava dar ao dinheiro. Porém a relação entre cálculo e adultério é

ele quem faz.

Roberto Schwarz, em seu ensaio “A poesia envenenada de Dom Casmurro”,

publicado originalmente em Duas meninas, apropria-se de todas as discussões das

obras críticas citadas e, como mais um “herdeiro de Caldwell”22, vai direcionar o

olhar não mais para a possível traição, mas para as razões de por que, por mais de

22 Outro pesquisador, mas de vertente diferente, Abel Barros Baptista (2003) também se dedica a estudar Dom Casmurro e discutir o “legado de Caldwell”, chamado por ele de “o paradigma do pé atrás”, referindo-se à exigência de uma postura de desconfiança por parte do leitor em relação ao narrador Bentinho. Para Baptista, apesar de necessário, o passo dado pela pesquisadora americana e posteriormente seus herdeiros, como Silviano Santiago, John Gledson e Roberto Schwarz, teve como uma de suas conseqüências a desqualificação da questão de Capitu. A verdade sobre Bento, narrador ciumento, é que passaria então a importar mais. “Como ficou referido atrás, a desqualificação da questão de Capitu é uma das conseqüências do legado de Helen Caldwell. O passo decisivo nesse sentido, operado por Silviano Santiago, deslocava a verdade a encontrar de Capitu para Dom Casmurro, convidando o leitor a não se preocupar senão com o movimento da argumentação ou da narração, qualquer que fosse a verdade sobre Capitu. Num certo sentido, porém, esta deslocação constituiu um empobrecimento do romance, porque poupou à leitura o confronto com o segredo indecifrável e as respectivas conseqüências: era necessário, de fato, estabelecer a esperança de que uma verdade poderia alcançar-se. (...) Seguindo o fio do meu argumento, cuido, pois, que o regresso da questão de Capitu é inevitável e, mais do que isso, desejável.” (BAPTISTA, 2003, p. 448-449)

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meio século, a crítica literária teria, quase que cegamente, acreditado nas palavras

do narrador, endossando-a em seus estudos.

O livro tem algo de armadilha, com lição crítica incisiva – isso se a cilada for percebida como tal. Desde o início há incongruências, passos obscuros, ênfases desconcertantes, que vão formando um enigma. A eventual solução, sem ser propriamente difícil, tem custo alto para o espírito conformista, pois deixa mal um dos tipos de elite mais queridos da ideologia brasileira. Acaso ou não, só sessenta anos depois de publicado e muito reeditado o romance, uma professora norte-americana (por ser mulher? por se estrangeira? por ser talvez protestante?) começou a encarar a figura de Bento Santiago – o Casmurro – com o necessário pé atrás. É como se para o leitor brasileiro as implicações abjetas de certas formas de autoridade fossem menos visíveis. (SCHWARZ, 2006, p. 9)

Schwarz entende que a razão da fé irrestrita nas palavras de Bentinho explica-se

pela própria classe do narrador:

Se a viravolta crítica não ocorre ao leitor, será porque este se deixa seduzir pelo prestígio poético e social da figura que está com a palavra. Aliás, como recusar simpatia a um cavalheiro distinto e sentimental, admiravelmente bem falante, um pouco desajeitado em questões práticas, sobretudo de dinheiro, sempre perdido em recordações da infância, da casa onde cresceu, do quintal, do poço, dos brinquedos e pregões antigos, venerador lacrimoso da mãe, além de obcecado pela primeira namorada? (SCHWARZ, 2006, p. 10)

Em Dom Casmurro, existiriam, para o crítico, ao menos três níveis básicos de leitura.

No primeiro, prevalece o romanesco, com o início e o declínio do amor do casal

principal. O segundo, policial e patriarcal, trata da busca por evidências do adultério.

O terceiro é justamente aquele que, a contrapelo, faz recair a desconfiança sobre o

narrador ciumento e interessado.23

É neste terceiro que

O nosso cidadão acima de qualquer suspeita – o bacharel com bela cultura, o filho amantíssimo, o marido cioso, o proprietário abastado, avesso aos negócios, o arrimo da parentela, o moço com educação católica, o passadista refinado, o cavalheiro belle époque – ficava ele próprio sob suspeição, credor de toda a desconfiança disponível. (SCHWARZ, 2006, p. 13)

23 A respeito de uma leitura mais convencional do romance, vale observar aquela citada por Schwarz, de Alfredo Pujol: “Passemos agora a Dom Casmurro. É um livro cruel. Bento Santiago, alma cândida e boa, submissa e confiante, feita para o sacrifício e para a ternura, ama desde criança a sua deliciosa vizinha, Capitolina – Capitu, como lhe chamavam em família. Esta Capitu é uma das mais belas e fortes criações de Machado de Assis. Ela traz o engano e a perfídia nos olhos cheios de sedução e de graça. Dissimulada por índole, a insídia é nela, por assim dizer, instintiva e talvez inconsciente. Bento Santiago, que a mãe queria fosse padre, consegue escapar ao destino que lhe preparavam, forma-se em Direito e casa com a companheira de infância. Capitu engana-o com o seu melhor amigo, e Bento Santiago vem a saber que não é seu o filho que presumia do casal. A traição da mulher torna-o cético e quase mau.” (SCHWARZ, 2006, p. 10-11)

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Nesses estudos críticos apontados, Schwarz e Gledson mostram-se interessados na

questão da impossibilidade do relacionamento amoroso entre o representante da

classe abastada e a agregada, tema que reaparece na ficção machadiana com certa

insistência e que tem em Dom Casmurro talvez sua forma mais bem acabada.

Recordem-se, como antecessores, pelo menos dois títulos: o conto “Frei Simão”,

publicado na coletânea Contos fluminenses, em 1870, e a novela Casa velha, que

saiu em 1906 em Relíquias da casa velha.

O salto artístico dado por Machado em Dom Casmurro tornava-se claro, mas de

alguma maneira continuava o que o autor começara nas Memórias póstumas:

nesses romances, ficava patente que pertencer à classe senhorial, receber uma

educação letrada, falar e vestir-se bem, não garantiam, sob hipótese alguma, avanço

na tentativa de tornar o Brasil uma nação menos desigual e violento. Ao contrário, o

verniz moderno, uma vez descascado, deixava talvez entrever a madeira podre de

que era feita a velha tabuleta do confeiteiro Custódio, em Esaú e Jacó.24

Superavam-se as certezas edificantes próprias ao ciclo de formação da nacionalidade, certezas segundo as quais a atualização artística e a aquisição de aptidões literárias seriam serviços inquestionáveis prestados à pátria pelos seus dedicados homens cultos. Quando, pela primeira vez em nossas letras, com Machado de Assis, a inteligência da forma bem como as idéias modernas comparecem livres de inadequação e diminuição provinciana, já não é dentro do anterior espírito de missão. Por exemplo, os excelentes recursos intelectuais vinculados a Bento Santiago não representam uma contribuição a mais para civilização do país, e sim, ousadamente, a cobertura cultural da opressão de classe. (SCHWARZ, 2006, p. 13)

Para uma melhor apreensão de tais obras, é preciso levar em conta seus

narradores, que, claramente, demonstram ter interesses de classe a cumprir e

honrar, interesses muitas vezes obscuros e escusos, até mesmo para si próprios. A

verdade, assim, jamais é dada de imediato, e talvez nem ao menos possa de fato

ser alcançada em sua completude. Mas o que parece mais importante ressaltar é a

curiosa capacidade de os narradores encontrarem ecos para seus pontos de vista

nos corações e mentes de quem os lê, indício cabal de que Machado conhecia seu

24 O episódio, engraçado mas de fundo crítico, narra as dúvidas e angústias de um velho confeiteiro que não sabe que nome dar a seu estabelecimento, quando cai o Império e sobe a República. Custódio mandara reparar a velha tabuleta com o antigo nome, “Confeitaria do Império”, mas, agora que estava pronta, receava colocá-la e criar desavenças com os partidários do novo regime. Por outro lado, perder a tabuleta, no fundo gasta como o antigo sistema, era também gastar dinheiro sem necessidade. Após muito pensar, o comerciante decide aproveitar o que já tinha e alterar apenas o nome para “Confeitaria do Custódio”, resolvendo o problema.

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público, seus preconceitos e modos de entender a realidade, mais até do que talvez

imaginemos25. Com os estudos recentes sobre Dom Casmurro, percebemos com

mais clareza esse procedimento, que, ao mesmo tempo em que desvela as

contradições da sociedade, também atesta nossas próprias limitações, enquanto

leitores, para percebê-las.

3.3. E, BEM, E O MEMORIAL DE AIRES?

Dito isso, como entender o Memorial dentro da obra de Machado de Assis?

Os estudos de Paes, Bosi e Gledson, respeitadas suas diferenças, oferecem

certamente perspectivas novas em relação àquelas elaboradas à época da

publicação e nos anos imediatamente subseqüentes a ela. Não se trata mais de ver

o conselheiro apenas como um alterego do escritor. Aires tem um discurso próprio,

no qual o jogo diplomático, adquirido em sua profissão, se faz infiltrar como a tinta no

papel.

A diplomacia de Aires tinge e atinge os perfis daqueles que o conselheiro observa,

amenizando-os e matizando-os, um pouco como o ciúme de Bento, que, ao traçar o

retrato de Capitu, jamais o fará objetivo, tornando-o, ao contrário, eterno enigma e

esfinge.

Curiosamente, também à semelhança de Bentinho, Aires apresenta um tipo de

ciúme e de desejo no Memorial, direcionados a Fidélia. Em certos momentos ele

parece não dar importância a tais sentimentos, como no trecho:

25 Gledson nos apresenta uma curiosa hipótese sobre a consciência de Machado a respeito do público, ao comentar a repercussão de um conto, ainda da primeira fase do escritor, “Confissões de uma viúva-moça”. O texto, que na verdade pouco traz de muito escandaloso, bastando o título para impressionar e chamar leitores ávidos por alguma coisa mais apimentada traz as cartas de uma jovem viúva a sua amiga, e algumas considerações sobre a vida que leva, flertes na Corte, etc. Apesar de se tratar na verdade de uma amenidade, o conto recebeu algumas críticas severas de alguns leitores, publicadas em jornal. Gledson argumenta que parte da discussão pode ter sido fomentada pelo próprio Machado, através de pseudônimos. “Mas tudo aqui é o que parece ser? Bem se poderia pensar que Machado fosse o autor da coisa toda, “plantada” no Correio Mercantil a fim de atrair leitores. Se assim foi, o caso não somente mostra a capacidade de Machado de imaginar outras vozes; revela também a que ponto tinha consciência do contexto ideológico no qual escrevia.” (GLEDSON, 2006, p. 41)

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— Você ainda pensa?... — Eu, mana? Eu penso no seu jantar, que há de estar delicioso. O que me fica da história é que essa moça, além de bonita, é teimosa; mas a sua sopa vale para mim todas as noções estéticas e morais deste mundo e do outro. (ASSIS, 2000, p. 32)

Porém, em outras passagens, eles ressurgem, poderosos, e nos fazem indagar, não

sem certa veemência, se o conselheiro de fato não foi um pouco mais influenciado

por essas sensações do que gostaria de acreditar ou demonstrar:

Não acabarei esta página sem dizer que me passou agora pela frente a figura de Fidélia, tal como a deixei a bordo, mas sem lágrimas. Sentou-se no canapé e ficamos a olhar um para o outro, ela desfeita em graça, eu desmentindo Shelley com todas as forças sexagenárias restantes. (Assis, 2000, p. 132) Esta manhã, como eu pensasse na pessoa que terá sido mordida pela viúva, veio a própria viúva ter comigo, consultar-me se devia curá-la ou não. Achei-a na sala com o seu vestido preto do costume e enfeites brancos, fi-la sentar no canapé, sentei-me na cadeira ao lado e esperei que falasse. — Conselheiro, disse ela entre graciosa e séria, que acha que faça? Que case ou fique viúva? — Nem uma coisa nem outra. — Não zombe, conselheiro. — Não zombo, minha senhora. Viúva não lhe convém, assim tão verde; casada, sim, mas com quem, a não ser comigo? — Tinha justamente pensado no senhor. Peguei-lhe nas mãos, e enfiamos os olhos um no outro, os meus a tal ponto que lhe rasgaram a testa, a nuca, o dorso do canapé, a parede e foram pousar no rosto do meu criado, única pessoa existente no quarto, onde eu estava na cama. (...) Compreendi que era sonho e achei-lhe graça. (ASSIS, 2000, p.42-43)

Também em alguns trechos Aires não parece digno de todo crédito ou ao menos

passa a impressão de alguma contradição. Ainda como Bentinho, que em certo

momento confessa ter memória fraca26, o conselheiro diz sofrer da vista, mesmo

sendo capaz de perceber detalhes mínimos do ambiente, fazendo-nos questionar

sobre qual das afirmativas – ou o problema de visão, ou a cena descrita – será a

mais verdadeira:

Desta vez o que me põe a pena na mão é a sombra da sombra de uma lágrima... Creio tê-la visto anteontem na pálpebra de Fidélia, referindo-me eu à dissidência do pai e do marido. Não quisera agora lembrar-me dela, nem tê-la visto ou sequer suspeitado. Não gosto de lágrimas, ainda em olhos de mulheres, sejam ou não bonitas; são confissões de fraqueza, e eu nasci com tédio aos fracos. (ASSIS, 2000, p. 65-66)

26 Não, não, a minha memória não é boa. Ao contrário, é comparável a alguém que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras nem nomes, e somente raras circunstancias. A quem passe a vida na mesma casa de família, com os seus eternos móveis e costumes, pessoas e afeições, é que se lhe grava tudo pela continuidade e repetição. Como eu invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram! Eu não atino com a das que enfiei ontem Juro só que não eram amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão. (ASSIS, 1997, p. 97-98)

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Há ainda uma outra fala sua, bem notada por John Gledson, que também o

aproximaria de Bento, pondo sob suspeição as qualidades de observador do

narrador. Ou, dito de outra forma, que questionam se não seria ele melhor ficcionista

que diarista.

Ouvi todas essas minúcias e ainda outras com interesse. Sempre me sucedeu apreciar a maneira por que os caracteres se exprimem e se compõem, e muita vez não me desgosta o arranjo dos próprios fatos. Gosto de ver e antever, e também de concluir. (ASSIS, 2000, p. 89-90)

Em outro momento, Aires se desvia da obrigação de manter uma opinião crítica

sobre os fatos e as pessoas, com o argumento de que se “aposentou”:

Quando eu era do corpo diplomático efetivo não acreditava em tanta coisa junta, era inquieto e desconfiado; mas, se me aposentei foi justamente para crer na sinceridade dos outros. Que os efetivos desconfiem! (ASSIS, 2000, p. 122)

Também parece adequado dizer aqui que Aires tem algumas similitudes com os dois

narradores enganosos dos romances anteriores, Brás Cubas e Bento Santiago. É,

antes de tudo, extremamente sintomático que os três sejam formados em Direito,

oriundos de classes abastadas e demonstrem dotes de exímios narradores27.

Há de se lembrar que também são solitários – Brás não parece ter muitas

companhias no outro mundo, além de suas lembranças; Bento, fora uma ou outra

“amiga” que vem ver seus “catálogos de arte” e rapidamente se vai, quase não

recebe visitas, não sendo à toa que ganhou o apelido de “casmurro”; quanto à Aires,

fora o criado José, o casal Aguiar e outras poucas pessoas próximas, não tem muita

companhia. A solidão assombra o diário do conselheiro, a tal ponto que ele precisa

conversar com a folha em branco. “Papel, amigo papel”...

Pode-se ainda argumentar, não de todo equivocadamente, que os narradores dessa

tríade machadiana dividem – e mal escondem – um certo ar pedante, e que em geral

gostam de vangloriar-se de sua inteligência e sagacidade, suficientes (assim

pensam) para desmascarar quaisquer jogos e logros de que possam ser vítimas.

27 E romancistas também, caso entendamos ser Aires autor de Esaú e Jacó.

60

Dessa forma vemos Bento, quando, ao final do romance, conclui pela infidelidade de

Capitu, com uma certeza que o livro certamente não autoriza:

E bem, qualquer que seja a solução, uma cousa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve! (ASSIS, 1997, p. 217)

Se não se vangloriam, ao menos têm medo de ser passados para trás, observando

as situações com o máximo de atenção, como o faz Aires:

Esta Fidélia foge a alguma coisa, se não foge a si mesma. Querendo dizer isto a Rita, usei do conselho antigo, dei sete voltas à língua, primeiro que falasse, e não falei nada; a mana podia entornar o caldo. Também pode ser que me engane. (ASSIS, 2000, p. 90)

Sua sentença ao término do romance – “Viva a mocidade!” – parece-se mais com

um desabafo do que com uma refletida opinião a respeito das situações que

observara até então, pois de forma alguma dá conta de explicá-las em suas

complexidades e contradições a contento.

Como já se disse, Brás, Bento e Aires também pertencem à mesma classe, a

senhorial, obviamente, ainda que nem sempre chamem a atenção para tal fato.

Talvez Brás seja o mais explícito dos três quanto a isso. Logo no capítulo 3,

“Genealogia”, descobrimos sobre como se originou a fortuna da família, surgida a

partir do trabalho do um simples tanoeiro, Damião Cubas. Este, no entanto, teve o

nome abafado por causa de sua humilde profissão, sendo substituído na lembrança

de todos pelo licenciado Luis Cubas, tido como homem fino e amigo de gente

importante. O pai de Brás, porém, acrescenta alguma ficção ao passado da família,

espalhando que o sobrenome provinha de certo cavaleiro das Cruzadas que

arrebatara “trezentas cubas aos Mouros”. Mais para a frente, no capítulo XI, “O

menino é pai do homem”, o narrador complementa o retrato dos seus:

Outros parentes e alguns íntimos não merecem a pena de ser citados; não tivemos uma vida comum, mas intermitente, com grandes claros de separação. O que importa é a expressão geral do meio doméstico, e essa aí fica indicada, – vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor. (ASSIS, 2000, p. 34)

Bento e Aires são um pouco mais comedidos para falar de suas posses ou da

posição que ocupam. A cena clássica em que Escobar faz notar seus dotes

61

matemáticos com o fim secreto de talvez descobrir quanto dinheiro tem o amigo é

sugestiva por nos dar uma idéia aproximada de quão rica era a família Santiago:

– Por exemplo... dê-me um caso, dê-me uma porção de números que eu não saiba nem possa saber antes... olhe, dê-me o número das casas de sua mãe e os aluguéis de cada uma, e se eu não disser a soma total em dous, em um minuto, enforque-me! Aceitei a aposta, e na semana seguinte levei-lhe escritos em um papel os algarismos das casas e dos aluguéis. Escobar pegou o papel, passou-os pelos olhos a fim de os decorar e enquanto eu fitava o relógio, ele erguia as pupilas, cerrava as pálpebras, e sussurrava... Oh! o vento não é mais rápido! Foi dito e feito; em meio minuto bradava-me: – Dá tudo 1:070$000 mensais. (ASSIS, 1997, p. 147-148)

Quanto a Aires, sabe-se que foi diplomata e serviu ao Brasil por trinta anos nessa

profissão. Tinha posses e amigos influentes, como o próprio Aguiar, gerente de

banco e possuidor de uma fortuna de mais de duzentos contos.

Apontar a classe do diarista, relacioná-la à de outros narradores de Machado, ajuda-

nos a lembrar que quem conta algo sempre dispõe de seus pontos de vista,

preconceitos e modos de perceber a realidade. Aires, nesse sentido, não deve ser

diferente. Sua visão de mundo, assim, não é, como às vezes podemos supor,

universal, mas traz refletida em si uma série de características muito peculiares e

historicamente explicadas. A “ponta do nariz” de Brás Cubas reaparece nele, com

mais insistência do que talvez gostemos de admitir. Se com Bento descobrimos a

natureza ou origem do ciúme de um proprietário abastado, mas incrivelmente

ingênuo (ou tolo) quanto à disposição da sociedade, o que Aires nos descortinará

(ou deixará de fazê-lo), e ainda mais auxiliado por sua diplomacia?

Quanto a isso, podemos dizer que talvez os trechos mais problemáticos do seu

diário, os quais a capa diplomática aqui mal e mal protegem, e que acabam por

levantar as maiores suspeitas sobre a natureza do narrado, são aqueles em que o

cinismo à Brás Cubas mais transparece.

Um trecho conhecido e sempre lembrado é aquele em que Aires visita o casal Aguiar

e encontra a casa em festa após a carta de Tristão contando de seu retorno próximo.

Aires, sem saber ainda da razão da agitação, crê que o motivo é a abolição, ocorrida

alguns dias antes.

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A alegria dos donos da casa era viva, a tal ponto que não a atribuí somente ao fato dos amigos juntos, mas também ao grande acontecimento do dia. Assim o disse por esta única palavra, que me pareceu expressiva, dita a brasileiros: — Felicito-os. — Já sabia? perguntaram ambos. Não entendi, não achei que responder. Que era que eu podia saber já, para os felicitar, se não era o fato público? Chamei o melhor dos meus sorrisos de acordo e complacência, ele veio, espraiou-se, e esperei. Velho e velha disseram-me então rapidamente, dividindo as frases, que a carta viera dar-lhes grande prazer. Não sabendo que carta era nem de que pessoa, limitei-me a concordar: — Naturalmente. — Tristão está em Lisboa, concluiu Aguiar, tendo voltado há pouco da itália; está bem, muito bem. Compreendi. Eis aí como, no meio do prazer geral, pode aparecer um particular, e dominá-lo. Não me enfadei com isso; ao contrário, achei-lhes razão, e gostei de os ver sinceros. Por fim, estimei que a carta do filho postiço viesse após anos de silêncio pagar-lhes a tristeza que cá deixou. Era devida a carta; como a liberdade dos escravos, ainda que tardia, chegava bem. Novamente os felicitei, com ar de quem sabia tudo. (ASSIS, 2000, p. 39)

Retornando para sua casa no Catete, o conselheiro avalia seu engano e conclui:

“Não há alegria pública que valha uma boa alegria particular”.

Vale lembrar ainda a passagem, já citada anteriormente, em que Aires, tenta explicar

a situação dos novos “proprietários” da fazenda Santa-Pia, os escravos (!). Sem

dinheiro ou experiência anterior, as chances de que a propriedade, cuja lavoura já se

esgotara, permitirá seu sustento e autonomia são mínimas. Porém, o conselheiro

quanto a isso diz apenas que “Há muita coisa neste mundo mais interessante”. Difícil

não recordar algo de Brás Cubas justificando Prudêncio que batia em um escravo

para espantar os traumas recebidos (pelo próprio Brás!) em outro tempo.

Há ainda um fato inegável para o qual uma leitura crítica do diário do conselheiro

imediatamente nos chama a atenção: é a quantidade de reticências, meias palavras

e insinuações discretas presentes no texto. Há tantos momentos assim que é de fato

difícil não levá-los em conta ou tentar interpretá-los de alguma maneira. Afinal, há

mais verdades do que aquelas que Aires nos deixa saber? A impressão, em certas

passagens, é que o narrador funciona como um sofisticado e fino filtro (cujos

adjetivos trazem conotações de classe), que ora esconde, ora revela, num jogo de

sombras mal vistas ou divisadas (“Há muita coisa neste mundo mais interessante”).

Quanto a isso, John Gledson nos esclarece:

63

É característico do uso que Machado faz do narrador em primeira pessoa, seja ele Brás Cubas, o conselheiro Aires ou o padre de Casa velha, que Machado está, de fato, bem distante do ponto de vista deles: o fato de todos serem, em graus diversos, convincentes e simpáticos como personagens é parte essencial desse distanciamento – foram intencionalmente concebidos para agradar o leitor, aliciá-lo no sentido de aceitar o ponto de vista do narrador. Em grande medida o fazem não simplesmente com argumentos sutis ou apresentando os fatos de modo convincente: a arma fundamental de que dispõem é o preconceito social. Concordamos com eles porque compartilhamos suas atitudes – é por isso que a (possível) inocência de Capitu levou tanto tempo para ser descoberta e, talvez, também por isso, foi descoberta por uma mulher. (GLEDSON, 2003, p. 8-9)

Acreditar no distanciamento entre narrador e autor é que nos permitiria uma leitura

algo cética ou desconfiada do Memorial, entendendo-o como parte da tradição dos

romances enganosos de Machado. Enganosos porque são capazes de nos ludibriar

caso não os leiamos a contrapelo, ou seja, relativizando suas verdades. Isso jamais

é fácil, pois, ainda conforme Gledson:

Brás Cubas, Bento e Aires possuem todos uma espécie de sofisticação, um conhecimento dos caminhos do mundo, que pode facilmente passar por sabedoria. Uma das intuições mais profundas de Machado foi a de que não há contradição alguma entre semelhante sofisticação (que está mais ligada a um fenômeno social do que gostaríamos de admitir) e a estupidez. Machado foi capaz de iludir o leitor por ter sido capaz de lisonjear seus preconceitos. (GLEDSON, 2003, p. 9)

Parece correto dizer que uma leitura assim do Memorial de Aires terá, pelo menos, o

mérito de suscitar discussões interessantes, a reunirem, num mesmo círculo,

assuntos caros a Machado, a saber: escrita, leitura, poder e história. Lido a

contrapelo, o Memorial sugere que há mais questões dessa natureza do que o

próprio narrador nos faz ver. E, assim, acaba por suscitar outro questionamento,

agora inegável: por que tais assuntos, política e história, pareceriam tão ausentes

nos relatos de um conselheiro do Império, nos anos críticos de 1888 e 1889?

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4. POLÍTICA E HISTÓRIA INSCRITAS NO MEMORIAL DE AIRES

4.1. ESCRAVIDÃO E FAVOR NOS PRIMEIROS TRABALHOS

É preciso observar, primeiramente, que a história e as questões políticas, como a

escravidão, todas concernentes à época de Machado, sempre se insinuaram em sua

ficção. À visão de um escritor absenteísta, indiferente aos problemas da sociedade,

interessado unicamente na perfeição da forma literária, contrapõe-se hoje, na maior

parte das leituras, a de um intelectual preocupado com as contradições de seu

tempo e de seu país.

“O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o

torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos

no tempo e no espaço”. Essas são algumas das palavras usadas por Machado, em

“Instinto de nacionalidade”, para definir a condição do homem de letras na sua

época. O sentimento íntimo, em muitos de seus escritos, acabou por se

metamorfosear na análise crítica da sociedade brasileira oitocentista, trazendo à luz

(uma luz bruxuleante, é verdade) suas contradições, silenciamentos e, por que não,

iniqüidades. Isto é, apesar de universais, muitas tramas construídas pelo autor

partiam de questões intrinsecamente nacionais. A questão da identidade é tema

universal. Mas a história de um alferes, que, abandonado numa fazenda, vê, ao

mirar-se num espelho “do tempo do rei” seu reflexo a esfumar-se, precisando, para

evitar tal destino, trajar-se todos os dias, com sua rica farda, como é o caso da

personagem do conto “O espelho”, reúne uma série de possibilidades interpretativas

vinculadas mesmo à própria questão da identidade nacional28.

Longe do olhar exótico sobre o país praticado em certa medida pelos românticos

brasileiros, o nacional de Machado parece fundar-se na própria contradição entre

aparência e essência, que faz supor a vida (ou a sociedade brasileira) como um

28 No seu artigo “A história do Brasil em Papéis avulsos, de Machado de Assis”, em Por um novo Machado de Assis GLEDSON (2006) entende o conto como uma alegoria sobre o processo de formação da identidade nacional, relacionando as características do espelho, antigo e do “tempo do rei” à época da chegada da família real ao Brasil. O fato de Jacobina ser incapaz de ver seu reflexo remeteria à questão de o país ainda não ter uma identidade formada, uma “cara” para mostrar a si mesmo e ao mundo.

65

grande palco, onde atores dessa comédia interpretam suas personagens: o sádico

usa a máscara do altruísmo, como Fortunato, de “A causa secreta”; o louco a do

são, tal qual Simão Bacamarte, de “O alienista”; e assim por diante: essência e

aparência, que bem poderiam se traduzir em desejo de parecer civilizado, liberal e

moderno e sua contrapartida bárbara, a dependência do trabalho escravo e do favor

etc.

Um dos maiores avanços de Machado, como observa agudamente Alfredo Bosi, foi

perceber que a máscara, o jogo, o conchavo, a desigualdade, ao contrário do que se

poderia supor a princípio, eram norma, não exceção. Mudança radical: desaparecia

a ilusão do bom-mocismo do homem bem-posto, educado, fino e elegante.

Tornavam-se eles os suspeitos maiores das iniqüidades, dos crimes, dos abusos.

Cotrim: bom pai, bom marido e traficante de escravos. Fortunato: proprietário de

uma casa de saúde, estudioso de anatomia e sádico. Oportunistas, sob a capa de

honoráveis cidadãos.

Machado, assim, viu bem a sociedade clientelista e escravista em que estava

inserido, sociedade de duros e indiscutíveis desníveis, e fez disso, mesmo em seus

primeiros trabalhos, tema fundamental.

Em pelo menos três de seus contos iniciais, “Frei Simão”, “Virginius” e “Mariana”, as

questões da escravidão e do favor surgem, já como dispositivos do drama, ainda

que de maneira bem mais comedida que nos trabalhos depois de 1880. De fato, os

textos, em si, não têm o teor crítico e a virulência de algumas obras posteriores,

mas, à semelhança dos romances da primeira fase, que, estudados sobretudo por

Schwarz e Chalhoub29, ganharam relevância, os contos mostram-se curiosos ao

apontar a trajetória de certos temas na obra de Machado, temas que serão

retrabalhados no futuro, com maior precisão e alcance crítico, pelo autor.

“Frei Simão”, que saiu no Jornal das Famílias, em 1864, é, como lembra Gledson,

talvez a primeira história do escritor a enfocar o romance entre um moço rico e uma

jovem agregada. No enredo, bastante melodramático, Frei Simão de Santa Águeda

29 Respectivamente em Ao vencedor as batatas e Machado de Assis: historiador.

66

morre louco e odiando a humanidade, no quarto de um mosteiro. A razão: quando

mais jovem, o pai o separou de sua amada Helena, por entender que o mancebo

não poderia casar-se com alguém que estivesse abaixo de sua classe. Para isso,

empreendeu um estratagema que era afastar o filho por longo tempo de casa.

Residindo com um amigo do pai, Simão deixa de receber cartas de Helena,

devidamente interceptadas. A única correspondência que lhe chega às mãos, após

muitos meses, é a do próprio pai, que o faz saber que a moça faleceu. Perdido e

morto para o mundo, o rapaz decide servir à Igreja, para alívio da família. Tempos

depois, retornando ao Rio, visita a velha casa e diz que sairá em peregrinação pelo

interior, o que é visto como um perigo pelo pai, algo logo explicado: em meio a um

sermão em uma vila do interior, Frei Simão topa com Helena, que não morreu, mas

foi obrigada pelo pai do rapaz a se casar com um homem da sua própria classe. No

final, a moça morre e, como se sabe, Frei Simão enlouquece.

Apesar da trama simples, os desníveis sociais e a vontade senhorial já apareciam

nos idos de 1864, demonstrando que alguns dos temas centrais de Machado

estavam lá, apenas não tinham ainda encontrado a forma ideal para serem

expressos. Do mesmo ano, e também surgido no Jornal das Famílias, é “Virginius”,

cuja trama envolve um advogado da cidade que conta sua aventura em uma

localidade do interior aonde é chamado para defender um escravo que matou a

própria filha. Na verdade, o que se descobre com o correr do enredo é que Julião

tirou a vida da jovem Elisa para “proteger sua honra”, depois de a moça ser violada

pelo filho do fazendeiro do lugar. O dado interessante da narrativa, e sobre o qual de

fato vale a pena refletir com mais cuidado, é que enquanto o rapaz desempenha o

papel do pelintra, do próprio diabo encarnado, seu pai é visto como um fazendeiro

bom e justo, de aspectos quase divinos.

“Pai de Todos”, como é conhecido na região, é quem castiga o filho, exilando-o em

algum canto do mundo, e paga o advogado-narrador para defender Julião, que é

condenado a dez anos de prisão. O enredo, apesar de ainda apegado ao

melodrama sentimental, traz pontos de interesse. Em certo trecho o narrador ouve

de um amigo que conhece a região:

67

Pio é, por assim dizer, a justiça e a caridade fundidas em uma só pessoa. Só as grandes causas vão ter às autoridades judiciárias, policiais ou municipais; mas tudo o que não sai de certa ordem é decidido na fazenda de Pio, cuja sentença todos acatam e cumprem. Seja ela contra Pedro ou contra Paulo, Paulo e Pedro submetem-se, como se fora uma decisão divina. Quando dous contendores saem da fazenda de Pio, saem amigos. É caso de consciência aderir ao julgamento de Pai de todos. (ASSIS, 2001, p. 77-78)

Não é essa a expressão da sociedade senhorial? A vontade do senhor prevalecendo

até mesmo sobre a das autoridades públicas? Sobre o paternalismo, Sidney

Chalhoub nos diz:

Trata-se de uma política de dominação na qual a vontade senhorial é inviolável, e na qual os trabalhadores e os subordinados em geral só podem se posicionar como dependentes em relação a essa vontade soberana. Além disso, e permanecendo na ótica senhorial, essa é uma sociedade sem antagonismos sociais significativos, já que os dependentes avaliam sua condição apenas na verticalidade, isto é, somente a partir dos valores ou significados sociais gerais impostos pelos senhores, sendo assim inviável o surgimento das solidariedades horizontais características de uma sociedade de classes. (CHALHOUB, 2003, p. 47)

Outro momento curioso da narrativa se dá quando o amigo do advogado conta-lhe

sobre como é ser um escravo de Pio, as conseqüências dos atos errados e o

significado do gesto da alforria para os cativos.

Escravo é o nome que se dá; mas Pio não tem escravos, tem amigos. Olham-no todos como se fora um Deus. É que em parte alguma houve nunca mais brando e cordial tratamento a homens escravizados. Nenhum dos instrumentos de ignomínia que por aí se aplicam para corrigi-los existem na fazenda de Pio. Culpa capital ninguém comete entre os negros da fazenda; a alguma falta venial que haja, Pio aplica apenas uma repreensão tão cordial e tão amiga que acaba por fazer chorar o delinqüente. Ouve mais: Pio estabeleceu entre os seus escravos uma espécie de concurso que permite a um certo número libertar-se todos os anos. Acreditarás tu que lhes é indiferente viver livres ou escravos na fazenda, e que esse estímulo não decide nenhum deles, sendo que, por natural impulso, todos se portam dignos de elogios? (ASSIS, 2001, p. 79)

Impossível não relacionar o trecho acima, mais especificamente a parte final, ao

comentário de Aires de que os escravos de Santa-Pia não desejavam deixar a

fazenda por se sentirem “cativos” da Sinhazinha. Porém, o que em 1864 é escrito

sem qualquer farpa crítica, que é a marca das obras a partir, principalmente, de

1880, no Memorial, o trecho chega-nos com o sabor desagradável da ambigüidade

provocada em parte pelo chiste levemente irônico (e até de certo mau gosto) do

conselheiro, visto o uso (infeliz para Aires, feliz para Machado, que soube aproveitá-

los) dos termos cativo / cativar30.

30 “As afirmações sobre a suavidade do sistema escravista no Brasil ou sobre a atitude paternalista dos fazendeiros, os retratos do escravo fiel e do senhor benevolente, que acabaram fixando-se na

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“Mariana”, também publicado no Jornal das Famílias, em 1871, ano da Lei do Ventre

Livre, é, talvez, o mais interessante dos três contos. A história também traz

novamente a estrutura da moça de classe social mais baixa que se apaixona pelo

sinhozinho. Desta vez, no entanto, há uma diferença considerável: trata-se de uma

escrava. Chalhoub, analisando a obra, compara-a com o romance Helena, publicado

cinco anos depois. O crítico observa as semelhanças entre os textos sobretudo no

modo de ser senhorial ali reproduzido:

Em ambos os casos, a ideologia paternalista dos senhores as relações de dependência provocam situações de violência e humilhação. Não há maniqueísmo na forma de tramar as situações; as personagens não são inerentemente boas ou más. Os senhores mostram estima pelos dependentes, mas ao fazê-lo produzem apenas sofrimento e humilhação; os dependentes – escravos e livres, Mariana ou Helena – são sinceramente agradecidos aos senhores, mas sabem que não há perspectiva e e que serão sempre lembrados de sua situação de inferioridade social. (CHALHOUB, 2003, p. 134)

O rapaz por quem Mariana se apaixona não responde a seus sentimentos, está

mesmo de casamento marcado com uma prima rica. Porém, seu comportamento é

deveras curioso. Ao contrário de rechaçar de uma vez por todas a paixão da

escrava, quando a descobre, trata com certa ambigüidade a questão, dando a

entender que o amor da moça aviva-lhe os brios de homem.

A ousadia de Machado ao propor tal ambigüidade vai de par com a desfaçatez do tio

do rapaz, que, com certo humor libidinoso, não perde a oportunidade de sugerir que

saberia cuidar muito melhor de Mariana em sua casa.

No dia seguinte tinha os olhos inchados e estava triste. A situação da pobre rapariga interessara-me bastante, o que era natural, sendo eu a causa indireta daquela dor profunda. Falei muito nesse episódio em casa de minha prima. O tio João Luís disse-me em particular que eu fora um asno e um ingrato. - Por que? perguntei-lhe. - Porque devias ter posto Mariana debaixo da minha proteção, a fim de livrá-la do mau tratamento que vai ter. - Ah! não, minha mãe já lhe perdoou. - Nunca lhe perdoará como eu. (ASSIS, 2001, p. 164)

literatura e na história, não passam de mitos forjados pela sociedade escravista para defesa de um sistema que julgava imprescindível. Essas idealizações persistiram mesmo depois do desaparecimento da instituição. As gerações posteriores à Abolição herdaram do passado a visão que a sociedade senhorial criou.” (COSTA, 1998, p. 289)

69

O final é esse: a moça bebe veneno e se mata. O casamento do moço com a prima,

entretanto, não mais se dá, o que é surpreendente, já que Mariana, apesar de

escrava, apesar de morta, foi capaz de deixar a jovem enciumada e romper uma

união arranjada. No último parágrafo, o rapaz termina sua história e os amigos

deixam o estabelecimento para ganhar a rua do Ouvidor, com sua vida e ruídos,

sugerindo que a dor de Mariana serviu tão-somente para mero entretenimento

momentâneo de ricos rapazes.

Coutinho concluiu assim a sua narração, que foi ouvida com tristeza por todos nós. Mas daí a pouco saíamos pela rua do Ouvidor fora, examinando os pés das damas que desciam dos carros, e fazendo a esse respeito mil reflexões mais ou menos engraçadas e oportunas. Duas horas de conversa tinha-nos restituído a mocidade. (ASSIS, 2001, p.170)

O final, com os moços saindo à rua do Ouvidor, já desanuviados do relato trágico

ouvido há pouco, no entanto, é um elemento que não deve ser desprezado na

economia da narrativa e talvez o que torne o conto mais significativo, em última

instância. O desfecho despreocupado fornece-nos uma idéia do que de fato pessoas

como Mariana representam para tão ricos rapazes, e da distância de sua pequena e

infeliz existência em relação a eles. Assim, se justifica ideologicamente, e

estruturalmente, a “história dentro da história”, isto é, a narrativa do moço por quem

Mariana se apaixonara, já que, ao término dela, o efeito é, tão-somente, a catarse e

logo o esquecimento, por parte da – até então atenta – platéia.

4.2. IDEOLOGIA PATERNALISTA NOS ROMANCES DA PRIMEIRA

FASE.

Os textos acima apenas nos fornecem exemplos para percebermos que questões

sociais, bem como temas ligados à história e à política apareciam como motores das

histórias já nos trabalhos iniciais.

Como Roberto Schwarz e Sidney Chalhoub já demontraram, estudando-os à

exaustão, também os romances da primeira fase podem ser considerados, sob certo

olhar, e apesar da veia romântica e do tom predominantemente convencional dos

70

narradores, reflexões sobre o paternalismo brasileiro de meados do Oitocentos e

sobre o autoritarismo da classe senhorial.

As leituras dos dois críticos nos ajudam a descortinar pontos relevantes para se

compreender como Machado procurava captar e representar os dilemas da

sociedade brasileira da época. Curiosamente, à exceção de Ressurreição (1872), os

demais romances – A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878) –

trazem como protagonistas mulheres em papéis de agregadas ou dependentes de

famílias ricas.

Em A mão e a luva, Guiomar, jovem pobre, mas altiva e ambiciosa, está

determinada a ascender socialmente, compensando a origem modesta. Adotada

pela madrinha rica, e usando de “tino e sagacidade”, a moça consegue sair do papel

de simples afilhada para o da filha que a madrinha perdeu. Ao chegar a hora de

casar, três são os pretendentes: um, romântico e um tanto bobalhão; o segundo, rico

e o preferido da madrinha; e um terceiro, ambicioso e astuto como Guiomar. E é este

que ela escolhe, justificando-se assim o título.

No romance de 1876, a questão gira novamente em torno de uma jovem pobre,

Helena, filha ilegítima do Conselheiro Vale, que, apesar disso, elege a moça a

herdeira de parte dos seus bens, dando a saber à família que deverão amá-la e

respeitá-la como uma deles. CHALHOUB (2003) interpreta as disposições do

Conselheiro como uma clara manifestação do poder senhorial, que, mesmo após a

morte, continua a vigorar e fazer valer seus desejos. Ainda para CHALHOUB (2003),

Helena representa uma tentativa de quebra desse tipo de paradigma, sobretudo nos

diálogos com seu “irmão”, o filho do ricaço. Nesses momentos, a moça demonstra

conhecer a mentalidade das pessoas daquela classe, sendo capaz de manipulá-las,

caso necessário31.

31 Um exemplo interessante levantado por Chalhoub é quando Helena pede para que Estácio, o filho do Conselheiro Vale, e, conseqüentemente, herdeiro da sua fortuna e de seu modo de ser senhorial, lhe ensine a cavalgar. Na verdade, ela sabia montar muito bem, mas, conhecendo a estrutura mental do jovem mancebo, que se interessaria mais em fazer a vontade da moça caso a visse como inferior na arte da montaria, mente para atingir seus objetivos. Sua dissimulação, para Chalhoub, atesta sua desenvoltura e liberdade de pensamento, além de uma postura crítica frente à mentalidade dominante.

71

Por último, Iaiá Garcia também tem em seu enredo o tema da moça pobre, que vive

de favor na residência da rica viúva Valéria. Aqui a moça é Estela, por quem Jorge, o

filho da dona da casa, é apaixonado. De fato, como observa Schwarz, todo o

romance respira a atmosfera do favor, que contamina as personagens, tendo

conseqüências diversas para cada uma delas.

Um dos dados interessantes da trama é o expediente que a mãe usa para afastar o

jovem da moça sem posses: o patriótico, que já traz algo da desfaçatez de classe

das Memórias. Valéria força o filho a alistar-se na Guerra do Paraguai, esperando

com isso afastá-lo da moça. Ao mesmo tempo, arranja para Estela um casamento

com um velho amigo da família, Luís Garcia.

Quando Jorge retorna da guerra, sua mãe já está morta. Ele reata a amizade com

Luís Garcia e passa a freqüentar sua casa, voltando a ter contato com Estela, que se

sente embaraçada na frente do rapaz. Isso faz com que a filha de Luís, Iaiá Garcia,

passe a desconfiar que ambos se amam. Para proteger o pai, decide se casar com

Jorge, apesar da repulsa que o jovem lhe causava. A repulsa, no entanto, vira amor,

mas com a morte de Luís Garcia, a necessidade do casamento acaba por

desaparecer. Iaiá rompe, assim, o noivado, por acreditar que seu futuro marido ainda

tem sentimentos por Estela. Esta, por sua vez, suspeitando do que pensa Iaiá,

conta-lhe que nada mais há entre ela e Jorge, e acaba servindo de dama de honra

no casamento, terminando a história como professora da escola de uma amiga, em

São Paulo.

O que podemos captar da rápida exposição desses livros é que, se de fato devem

algo à tradição romântica, e em alguns casos estão muito perto dos dramalhões, é

inegável que os novos estudos críticos lhes deram sobrevida ao perceber que nem

por isso estão desconectados de questões centrais para o país na época, e que

eram mesmo essas questões que, de uma maneira ou de outra, davam força

estrutural às obras.

Se a Guerra do Paraguai é pouco explorada em Iaiá Garcia, como observa Schwarz,

sua menção traz o efeito de percebermos já ali a vontade de classe, egoísta e

72

intransigente, fazendo-se valer por meio de uma ideologia irrepreensível,

exatamente como fazem Brás, por exemplo, ou Bento.

É claro que a Lei de 1871, a chamada Lei do Ventre Livre, foi importante para a

tomada de consciência de Machado a respeito da realidade do paternalismo, e não

deve ser à toa que Iaiá Garcia, seu último escrito longo antes de Brás Cubas, seja,

na opinião de Schwarz, o mais desencantado deles, já nos idos de 1878. A Lei do

Ventre Livre, como bem recorda Chalhoub, veio pôr uma pá de cal em quem ainda

acreditava no discurso paternalista, e Machado estava certamente atento às

mudanças que se operavam na mentalidade da sociedade de então.32

Não há agregados em Memorial de Aires, mas o paternalismo, como ideologia e

prática, impera, e é visível tanto nas palavras e gestos do Barão de Santa-Pia, como

nos de sua filha e herdeira e, mais perigosamente, em Aires, que os legitima a todos

pela narração. As obras de Machado percorrem uma trajetória que nos permite vê-lo

como um intelectual de fato preocupado com as conseqüências sempre

problemáticas do autoritarismo e da inevitável violência, mais ou menos visível, que

este gera.

4.3. O EXEMPLO DE CASA VELHA

Publicada entre 1885 e 1886, em vinte e cinco episódios na revista A Estação, a

novela (ou pequeno romance) Casa Velha é significativa para nosso estudo,

sobretudo por duas razões: primeiro, há na narrativa do velho cônego da Capela

Imperial um interesse em contar sobre um período da história do Brasil, mais

precisamente o Primeiro Reinado, entre 1822 e 1831. A despeito disso, e o que é

mais interessante ainda, o que sai da pena do sacerdote é, tão-somente, o relato de 32 Sydney Chalhoub: “Como fez questão de registrar em inúmeros textos, Machado de Assis considerava decisivos os anos de agitação política e social que culminaram na promulgação da lei de 28 de setembro de 1871 e, de fato, muito daquilo que escreveu nas décadas seguintes tinha a preocupação de interpretar os acontecimentos daquele período, assim como avaliar as conseqüências. A crise havia provocado em Machado um distanciamento crítico que não tinha volta.” (CHALHOUB, 2003, p. 45)

73

sua experiência vivida na Casa Velha, envolvendo dois jovens namorados,

separados pela diferença de classe.

O segundo tópico de relevância para nós diz respeito à própria natureza do narrador,

pouco confiável, já que seus pontos de vista são claramente influenciados pelos

sentimentos que somente em parte parece perceber que nutre pela moça pobre,

Lalau. Ele também não é tão agudo nas observações como parece crer, e o fato é

que, se seguirmos o excelente ensaio de Gledson sobre a obra, passamos a ver

que, inadvertidamente, o que acaba por produzir é, ainda, e para surpresa nossa,

um relato sobre o Primeiro Reinado.

Como bem percebe o critico, os paralelos entre a história de amor que se passa na

Casa Velha e o período que antecedeu a regência são vários, e muito importantes.

Primeiro de tudo, há a própria figura do patriarca, o ministro falecido, cultuado pela

viúva amantíssima e por todos do antigo solar. Sua descrição física, que é feita pelo

padre, a partir do quadro na parede da biblioteca, é muito próxima daquela que

conhecemos de Pedro I. Curiosamente, uma pintura do Imperador paira ao lado da

do ministro, como a acentuar a relação.

Em uma cena muito sutil, Lalau se deixa ficar a fitar o pai do jovem que ama, isto é,

o velho ministro:

A verdade é que, no dia seguinte, vendo-me entrar e ir para a biblioteca, ali foi ter comigo, ansiosa de saber o que eu estava fazendo. Como lhe dissesse que examinava uns papéis, ouviu-me atenta, pegou curiosa de algumas notas, e dirigiu-me várias perguntas; mas deixou logo tudo para contemplar a biblioteca, peça que raramente se abria. Conhecia os retratos, distinguiu-os logo; ainda assim parecia tomar gosto em vê-los, principalmente o do ex-ministro; quis saber se ela o conhecia; respondeu-me que sim, que era um bonito homem, e fardado então parecia um rei. Seguiu-se um grande silêncio, durante o qual ela olhou para o retrato, e eu para ela, e que se quebrou com esta frase murmurada pela moça, entre si e Deus: — Muito parecido... — Parecido com quem? – perguntei. Lalau estremeceu e olhou para mim, envergonhada. Não era preciso mais; adivinhei tudo. Infelizmente tudo não era ainda tudo. (ASSIS, 2001, p. 48-49)

O que o padre adivinha é que Lalau se refere à semelhança entre Félix e o pai, mas,

como ele mesmo sugere ao final do trecho, talvez com outro sentido, mas que aqui

vem a calhar, “Infelizmente tudo não era ainda tudo”. Podemos, então, concluir,

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ainda na trilha aberta por Gledson, que a frase da menina poderia referir-se à

semelhança entre os dois retratos, o que é possível, sobretudo a partir do que ela

diz antes, e que apreendemos pelo discurso indireto do narrador, de que o ministro,

em sua farda, “parecia um rei”. Também na vida sentimental, ambos se equivalem,

em se tratando de escapadelas e namoros escondidos. De fato, são exatamente as

conseqüências dessas atitudes do ministro que terminarão por separar Lalau e Felix,

ao fim da obra.

Curiosamente, a associação do ministro com a figura de Pedro I se expande através

da viúva, D. Antônia:

D. Antônia, que dirigira os olhos para outro lado, quando proferiu as últimas palavras, levantou a cabeça de súbito, ao ouvir o que lhe disse. Creio que, depois da morte do marido, era a primeira pessoa que lhe fazia frente. Olhou-me espantada. Estava tão acostumada a governar ali, naquele mundo insulado, sem contraste nem advertência, que não podia crer em seus ouvidos. O Padre Mascarenhas dissera-lhe uma vez, ao almoço, que ela era a imperatriz da Casa Velha, e D. Antônia sorriu lisonjeada, com a idéia de ser imperatriz em algum ponto da terra. Não batia com o cetro em ninguém, mas estimava saber que lho reconheciam. (ASSIS, 2001, p. 90-91)

Há ainda a questão referente ao conflito dos Farrapos, que ocorre no presente da

narrativa, e se associa à “insubordinação” dos namorados, e que, por sua vez,

remete aos inúmeros movimentos separatistas que marcaram de tensão política e

institucional o Primeiro Reinado, como a balaiada, sabinada, etc.

Contei-lhe o que havia, acerca da rebelião; mas os olhos dela, despidos de curiosidade, vagavam sem ver, e, logo que o percebi, parei subitamente. Ela, depois de alguma pausa: – Ah! Então os rebeldes... Repetiu a palavra, murmurou outras, mas sem poder vinculá-las entre si, nem dar-lhes o calor que só real interesse possui. Tinha outra rebelião em casa, e, para ela, a crise doméstica valia mais que a pública. (ASSIS, 2001, p. 121-122)

Machado, claro, está no seu ambiente preferido: não deixando de falar da vida

doméstica, mais prosaica, relaciona-a, talvez por isso, e sempre de maneira

inesperada, às questões centrais da história e da política brasileiras, tornando-o um

escritor que é de fato “homem de seu tempo e de seu país”, mas pelo viés da

ambigüidade e da exposição dos contrastes incontornáveis ou inconciliáveis.

75

São mais do que significativas, nesse contexto, algumas passagens rápidas da

novela em que os liames entre o público e o privado apontam para um fundo

histórico comum, como esta a seguir:

– Espero que me conte algumas cousas, que hão de ter ficado escondidas. As histórias fazem-se em parte com as notícias pessoais. V. Exa., esposa de ministro... D. Antônia deu de ombros. – Ah, eu nunca entendi de política; nunca me meti nessas cousas. – Tudo pode ser política, minha senhora; uma anedota, um dito, qualquer cousa de nada, pode valer muito. (ASSIS, 2001, p. 21)

Em outro momento, o narrador explicita as dificuldades de seu trabalho, seu

“constrangimento” para com os assuntos do finado ministro, justamente porque a

pesquisa não se concentrava em espaço público, mas numa biblioteca privada.

Na quarta-feira comecei a pesquisa. Vi então que era mais fácil projetá-la, pedi-la e obtê-la que realmente executá-la. Quando me achei na biblioteca e no gabinete contíguo, com os livros e papéis à minha disposição, senti-me constrangido, sem saber por onde começasse. Não era uma casa pública, arquivo ou biblioteca, mas um lugar onde, no que tocava a papéis e manuscritos, podia dar com alguma cousa privada e doméstica. (ASSIS, 2001, p. 29-30)

Em mais um trecho curioso, o padre-narrador comenta o desnível entre a história em

que desejava se concentrar, de uma figura pública da estatura de um chefe de

estado, e aquelas em que se embrenhava (pelas quais se interessava) cada vez

mais, isto é, a gente da Casa Velha:

Creio que disseram ainda outras cousas; mas não me interessando nada, nem a conversação, nem a hóspeda, que era uma pessoa vulgar, fiz o que costumo fazer em tais casos: deixei-me estar comigo. Já tinha compreendido que a hóspeda era uma das que chegaram na sege, que a outra devia ser a mocinha, cuja cara vi entre as cortinas, e finalmente que alguma intimidade haveria entre tal gente e aquela casa, visto que, contra a ordem severa desta, Lalau andava atrás do pavão, em vez de estar à mesa conosco. Mas, em resumo, tudo isso era bem pouco para quem tinha na cabeça a história de um imperador. (ASSIS, 2001, p. 42-43)

Uma das passagens mais significativas, obviamente relacionada com a anterior,

trata ainda da diferença entre o que o padre desejava escrever e o que de fato saiu

de sua pena. O curioso aqui é justamente perceber o quanto de ingenuidade e

limitação ideológica são capazes os narradores machadianos. Esse padre faz, sem

se dar conta, a história simbólica do Primeiro Reinado, a partir dos conflitos do

soturno ambiente da Casa Velha.

76

Dar-se-ia que só ela o amasse, não ele a ela? A hipótese afligiu-me. Achava-os tão ajustados um ao outro, que não acabarem ligados parecia-me uma violação da lei divina. Tais eram as reflexões que vim fazendo, quando dali voltei nesse dia, e para quem andava à cata de documentos políticos, não é de crer que semelhante preocupação fosse de grande peso; mas nem a alma de um homem é tão estreita que não caibam nela cousas contrárias nem eu era tão historiador como presumira. Não escrevi a história que esperava; a que de lá trouxe é esta. (ASSIS, 2001, p. 52)

No exemplo de Casa Velha, mais do que a existência de um narrador enganoso e

enganado pelos seus próprios sentimentos e pela atração sublimada pela mocinha,

é importante ver o quanto nos conta Machado sobre a ordem das coisas brasileiras,

a própria história política, de maneira alegórica, é verdade, mas nem por isso

destituída de sentido.

De fato, as aproximações entre os retratos do velho ministro e do Imperador, seus

perfis físicos e espirituais, suas biografias, escamoteadas em nome da ordem e do

sossego da família senhorial, já devem nos deixar de sobreaviso: ao contrário do

padre, não acreditaremos mais em nenhum narrador, mesmo que íntimo de Deus

(como também era Bento?). E é assim que o próprio Memorial de Aires, essa história

insossa sobre um casal de velhos e um de jovens namorados, que abandonam os

primeiros em nome da felicidade conjugal em outro país, inscreve, em suas linhas,

questões importantes sobre história, política, paternalismo e modo de ser senhorial,

apenas apagados, e devidamente ajustados, a uma versão que convém aos ricos,

isto é, a quase todas as personagens do livro, todos devidamente representados

pela narração comedida (e interessada, ainda que talvez não de todo consciente) do

conselheiro.

É dessa maneira que Dom Casmurro, Casa Velha e Memorial de Aires trazem algo

em comum, e que pode ser talvez simbolizado nas conclusões de seus ilustres

narradores. Se Bento condena Capitu sem chances de retratação, e Aires muito

facilmente explica o comportamento dos jovens namorados com um simpático “Viva

a mocidade”, o padre de Casa Velha não é muito diferente:

Voltei à casa delas, e instei novamente, ou só com ela, ou com a tia; ela mantinha-se no mesmo pé, e, para o fim, com alguma impaciência. Um dia recebi recado de D. Mafalda; corri a ver o que era, disse-me que o filho do segeiro, Vitorino, fora pedi-la em casamento, e que a moça, consultada, respondeu que sim. Soube depois que ela mesma

77

o incitara a fazê-lo. Compreendi que tudo estava acabado. Félix padeceu muito com esta notícia; mas nada há eterno neste mundo, e ele próprio acabou casando com Sinhazinha. Se ele e Lalau foram felizes, não sei; mas foram honestos, e basta. (ASSIS, 2001, p. 166)

A esse comentário final, primor da convenção e de um cômodo modo de encarar os

fatos, que na realidade não dá conta da amplitude e da profundidade das questões

narradas, resta o questionamento de Gledson:

As contradições, as ilusões e desapontamentos do Primeiro Reinado e a Regência se encerraram, assim, no mundo mais sóbrio de Pedro II, mas não sem transmitir um legado de frustração e amargura. A última e desiludida declaração do padre soa em nossos ouvidos, ao término da narrativa: “Foram honestos, e basta”. Mas será mesmo o bastante? (GLEDSON, 2003, p. 55)

4.4. UMA CRÔNICA DE 1888

Muitas são as aproximações possíveis entre o Barão de Santa-Pia e a voz narrativa

de uma das crônicas da série Bons Dias!, escrita por Machado com o psedônimo de

“Boas Noites”, para a Gazeta de Notícias, entre 5 de abril de 1888 e 28 de agosto de

1889.

A crônica citada é uma das mais comentadas, e talvez a melhor de todo o conjunto,

pela abrangência da crítica e agudez da análise. Foi publicada em 19 de maio de

1888. Nela, Boas Noites se faz de proprietário de escravos liberal e altruísta, e sua

ação mais significativa nesse contexto é reunir amigos e correligionários para

alforriar, na frente de todos, em um lauto jantar, um jovem negro cativo chamado

Pancrácio.

E assim ele o faz, com salvas e vivas dos convidados, e ainda mais de Pancrácio,

que beija-lhe a mão e agradece por tudo, na frente dos presentes.

Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça e pediu à ilustre assembléia que correspondesse ao ato que acabava de publicar brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo: fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo. (ASSIS, 1997, p. 63)

78

Claro está que Boas Noites quer apenas os louros de ser chamado liberal e moderno

(ele também deseja uma cadeira como deputado), e por isso liberta o negro. As

“lágrimas de admiração”, o “retrato a óleo” são exteriorizações de sua imagem, bem

à maneira ensinada para se angariar prestígio no conto “Teoria do medalhão”. A

visão do gesto espontâneo e generoso cede lugar ao teatro das aparências, da

própria desfaçatez, quando “um dos meus amigos” (na verdade, um sobrinho) ergue

o brinde em homenagem ao altruísta. O jantar, a que o narrador diz terem

comparecido “umas cinco pessoas”, foi divulgado como “um banquete”, em que

vieram de fato trinta e três convidados, algo muito mais plausível se chegamos à

conclusão de que o que Boas Noites queria era um pouco de platéia pronta para

enobrecer sua generosidade e fazer-se notado.

No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza: — Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que... — Oh! meu senhô! Fico. — Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo: tu cresceste imensamente. Quando nasceste eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos... — Artura não qué dizê nada, não, senhô... — Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis: mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha. — Eu vaio um galo, sim, senhô. — Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete. (ASSIS, 1997, p. 63)

O trecho é significativo, pois conta “o dia seguinte” da vida entre ex-senhor e ex-

escravo, porém a impressão que temos é que pouca coisa mudou nas relações entre

ambos. A proposta de permanecer na fazenda é bem acolhida por Pancrácio, que ali

tem “casa amiga, já conhecida” e ainda receberá um reduzido ordenado. É claro que

o trecho final, quando Boas Noites diz que o negro vale mais que uma galinha, no

que o ex-cativo concorda, afirmando que tem na verdade o valor de um galo, parece

o mais significativo. Pois é na comparação do valor da pessoa humana com o de um

animal que se explicita que Pancrácio, apesar de alforriado, não é visto como um

homem, muito menos um homem livre.

Para piorar, a conversa termina de maneira divertida, mas, como de praxe em

Machado, a leveza mascara a contundência:

79

Pancrácio aceitou tudo: aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos. Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio: daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre. (ASSIS, 1997, p. 63-64)

Qualquer dúvida, se por acaso existiu, dissipa-se nesse momento. Estamos no

universo de Brás Cubas, da extrema desfaçatez e espevitamento senhorial. O

“impulso natural”, direito de dar o peteleco, não pode ser anulado por um papel de

alforria, sobretudo quando concedido pelo próprio senhor. Vantagens óbvias:

manutenção do trabalhador, dos privilégios sobre ele e até dos puxões de orelha e

beliscões de antes da liberdade, com o acréscimo de que agora a opinião pública

sabe e aprova a liberdade concedida.

Santa-Pia talvez não seja tão bom com palavras como Boas Noites. Seu jeito é

certamente mais sisudo e grave, o que não muda suas ações. Ele também faz

questão de libertar os escravos antes do governo, e suas razões, se parecem mais

sinceras que as do narrador-cronista, não são menos problemáticas.

Grande novidade! O motivo da vinda do barão é consultar o desembargador sobre a alforria coletiva e imediata dos escravos de Santa-Pia. Acabo de sabê-lo, e mais isto, que a principal razão da consulta é apenas a redação do ato. Não parecendo ao irmão que este seja acertado, perguntou-lhe o que é que o impelia a isso, uma vez que condenava a idéia atribuída ao governo de decretar a abolição, e obteve esta resposta, não sei se sutil, se profunda, se ambas as cousas ou nada: — Quero deixar provado que julgo o ato do governo uma espoliação, por intervir no exercício de um direito que só pertence ao proprietário, e do qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso. (ASSIS, 2000, p. 36)

A fala do barão demonstra sua visão senhorial da questão. É preferível perder parte

do patrimônio (no caso, os escravos), do que aceitar que o poder público interfira em

decisões que, para homens como ele, só competiam a si mesmos. Há, claro, uma

outra razão, que o irmana a Boas Noites, e que pode ser percebida na seguinte

passagem:

Campos teve uma idéia. Lembrou ao irmão que, com a alforria imediata, ele prejudica a filha, herdeira sua. Santa-Pia franziu o sobrolho. Não era a idéia de negar o direito eventual da filha aos escravos; podia ser o desgosto de ver que, ainda em tal situação, e com todo o poder que tinha de dispor dos seus bens, vinha Fidélia perturbar-lhe a ação. Depois de alguns instantes respirou largo, e respondeu que, antes de morto, o que era

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seu era somente seu. Não podendo dissuadi-lo, o desembargador cedeu ao pedido do irmão, e redigiram ambos a carta de alforria. Retendo o papel, Santa-Pia disse: — Estou certo que poucos deles deixarão a fazenda; a maior parte ficará comigo, ganhando o salário que lhes vou marcar, e alguns até sem nada —, pelo gosto de morrer onde nasceram. (ASSIS, 2000, p. 36-37)

Está claro que o proprietário sabe que a abolição virá, de um jeito ou de outro, ainda

que negue e Aires não se mostre certo a esse respeito33. O fato é que, libertando os

escravos, e não deixando isso para o governo, obtém exatamente aquilo que o

narrador da crônica consegue: gratidão dos ex-cativos, que continuarão a trabalhar

para ele, mediante um ordenado pequeno, “o salário que lhes vou marcar, e alguns

até sem nada”, apenas “pelo gosto de morrer onde nasceram”. Ora, se nasceram no

ambiente da senzala e na condição de escravos, a liberdade não mudará isso, e o

que Santa-Pia sugere é que eles nem ao menos desejam, realmente, isso.

Há, entretanto, uma diferença considerável no tom de ambos os textos, os quais, se

ficcionalmente se passam em época próxima, em termos do momento em que foram

escritos distam cerca de vinte anos. O conselheiro nem por sombra traz a ironia de

Boas Noites para o discurso, limitando-se até a procurar compreender os pontos de

vista do fazendeiro. Isso, no entanto, não muda um fato: a situação dos escravos é

desoladora, pelo pouco que pudemos ver até agora, e vai se mostrar ainda mais

precária adiante.

Com a morte de Santa-Pia, todos os bens são herdados por sua única filha, Fidélia,

que tem por meta vender a fazenda, cuja lavoura, como viemos a saber depois pelo

tio da moça, o desembargador Campos, já não produz como antes.

— Ficar de vez, não fica; demora-se algumas semanas, depois virá e provavelmente transfere a fazenda; acho que não faz mal. Ficaria, segundo me disse, se fosse útil, mas parece-lhe que a lavoura decai, e não se sente com forças para sustê-la. Daí a idéia de vender tudo, e vir morar comigo. Se ficasse tinha jeito. Ela mesma tomou contas a todos, e ordenou o serviço. Tem ação, tem vontade, tem espírito de ordem. Os libertos estão bem no trabalho. (ASSIS, 2000, p. 54-55)

33 Pergunta-se o conselheiro: “Será a certeza da abolição que impele Santa-Pia a praticar esse ato, anterior de algumas semanas ou meses ao outro? A alguém que lhe fez tal pergunta respondeu Campos que não. "Não, disse ele, meu irmão crê na tentativa do governo, mas não no resultado, a não ser o desmantelo que vai lançar às fazendas. O ato que ele resolveu fazer exprime apenas a sinceridade das suas convicções e o seu gênio violento. Ele é capaz de propor a todos os senhores a alforria dos escravos já, e no dia seguinte propor a queda do governo que tentar fazê-lo por lei.’” (ASSIS, 2000, p. 36)

81

A frase final, no entanto, sofrerá alteração em um segundo momento, quando Aires

conta à irmã Rita do desejo da viúva em ir à fazenda pessoalmente resolver alguns

assuntos.

— Então você não sabe nada do projeto de ir à fazenda? perguntei-lhe. — Projeto de quem? — Da viúva Noronha. — Ir à fazenda? — Sim, ir a Santa-Pia, para ver como andam lá as cousas; parece que os libertos estão abandonando a roça. Foi o que me disse o tio da viúva. (ASSIS, 2000, p. 84)

O resultado, como se sabe, é que Fidélia acaba não vendendo a fazenda, como se

esperava, mas doando-a aos libertos, por sugestão de Tristão. A razão, Aires chega

a aventar, é o receio do rapaz de que sua união com a moça seja vista como

interesseira por algumas pessoas.

O que ouvi depois é que Tristão, sabendo da resolução da viúva, formulou um plano e foi comunicar-lho. Não o fez nos próprios termos claros e diretos, mas por insinuação. Uma vez que os libertos conservam a enxada por amor da sinhá-moça, que impedia que ela pegasse da fazenda e a desse aos seus cativos antigos? Eles que a trabalhem para si. Não foi bem assim que lhe falou; pôs-lhe uma nota voluntariamente seca, em maneira que lhe apagasse a cor generosa da lembrança. Assim o interpretou a própria Fidélia, que o referiu a D. Carmo, que mo contou, acrescentando: — Tristão é capaz da intenção e do disfarce, mas eu também acho possível que o principal motivo fosse arredar qualquer suspeita de interesse no casamento. Seja o que for, parece que assim se fará. — E andam críticos a contender sobre romantismos e naturalismos! (ASSIS, 2000, p. 123)

A doação, um gesto de aparente generosidade e desprendimento da viúva, é um

dos pontos centrais do tema da escravidão em Memorial de Aires, e não é difícil

adivinhar a razão. Antes de tudo, é preciso pesar os dados: a propriedade, como já

se sabe, está em decadência.

Ela se situa no Vale do Paraíba do Sul, onde a história registra o processo de

esgotamento do solo e conseqüente perda de influência política, em contraposição

às propriedades do Oeste Paulista, que vivia seu apogeu e brilharia ainda mais com

o fim da escravidão e a entrada da mão de obra livre proveniente da imigração34.

34 “A lavoura mais antiga e as zonas mais rotineiras, os setores menos produtivos continuavam apegados ao trabalho escravo. Sabiam que a abolição os levaria à ruína. Confundiam seus interesses pessoais com os interesses da nação e vaticinavam que a miséria desabaria sobre o país, caso se levassem a efeito medidas favoráveis à extensão da escravatura. Enquanto isso, alguns setores mais dinâmicos mais dinâmicos da lavoura em São Paulo insistiam em promover a imigração. (...) Essa tendência acentuou-se à medida que as transformações das forças

82

Parece então bastante claro o destino final de Santa-Pia, agora na mão dos ex-

cativos. Se, com toda sua fortuna, o velho barão, como outros figurões do lugar, não

foi capaz de alterar a marcha da decadência, como os negros, sem experiência em

administração ou qualquer dinheiro disponível, poderiam? É o que o conselheiro

pondera, em certo momento:

— Lá se foi Santa-Pia para os libertos, que a receberão provavelmente com danças e com lágrimas; mas também pode ser que esta responsabilidade nova ou primeira... (ASSIS, 2000, p. 124)

Ele tornará ao problema mais à frente, reiterando suas dúvidas um tanto mal

formuladas, mas de resposta não tão difícil, sobretudo para um homem inteligente e

observador como ele.

Aplaudi a mudança do plano, e aliás o novo me parece bem. Se eles não têm de ir viver na roça, e não precisam do valor da fazenda, melhor é dá-la aos libertos. Poderão estes fazer a obra comum e corresponder à boa vontade da sinhá-moça? É outra questão, mas não se me dá de a ver ou não resolvida; há muita outra cousa neste mundo mais interessante. (ASSIS, 2000, p. 123)

Essa lacuna deixada por Aires, pergunta sem resposta, é uma das muitas que ele,

por uma série de razões das quais já começamos a suspeitar, não pode de fato ter

interesse em resolver. Seria pôr a nu os problemas estruturais que sua classe não

foi capaz de solucionar. É, ainda, a condenação dessa mesma classe, culta,

elegante, mas que precisa pisar em ovos quando o assunto é por demais espinhoso.

Aqui, pôe seu ceticismo zombeteiro de lado e traz para perto um cinismo de mau

gosto e um romantismo antiquado, que, juntos, produzem a ridícula conclusão de

que os libertos se sentiam “cativos” da jovem herdeira, pela beleza desta. Esse

“lirismo comedido”, que Manuel Bandeira tanto odiou, é o que mostra o conselheiro,

fiel escudeiro de sua classe, cuja face feia jamais mostra em suas belas memórias.

produtivas, a melhoria do sistema de transporte, o equipamento dos portos, o aperfeiçoamento dos processos de beneficiamento do café e do fabrico do açúcar, o crescimento da população modificaram os métodos de produção e exigiam novo tipo de trabalho.” (COSTA, p.312-313, 1998)

83

4.5. A MENTALIDADE DE UM CONSELHEIRO

O ponto mais importante a ser comentado, no entanto, é o desinteresse de Aires

pelo destino dos ex-cativos, que ilustra, em última instância, o quase total descaso

pelo assunto da escravidão. Trata-se, podemos dizer, do seu velho fastio por

qualquer tipo de conflito, seu chamado “tédio à controvérsia”, mas que aqui parece

surgir não mais como mera característica pessoal ou psicológica, ou ainda como

qualidade de homem sábio (“odiavam-se a amavam-me cada vez mais”),

configurando-se enfim como problema. Aires não é sádico como Brás, ou volúvel e

perverso como Bento, mas sua posição “política”, se podemos dizer assim, não é

inquestionável, ou ainda: é talvez quase indefensável, pela simples razão de que ela

ainda tem como parâmetro a velha “ponta do nariz”, de que era fã um certo defunto

autor.

Diz-nos Aires:

Não me lembra se fiz alguma reflexão acerca da liberdade e da escravidão, mas é possível, não me interessando em nada que Santa-Pia seja ou não vendida. O que me interessa particularmente é a fazendeira — esta fazendeira da cidade, que vai casar na cidade. Já se fala no casamento com alguma insistência, bastante admiração, e provavelmente inveja. Não falta quem pergunte pelo Noronha. Onde está o Noronha? Mas que fim levou o Noronha? (ASSIS, 2000, p. 122)

Em outro momento, observa ainda o diarista:

Lá se foi o barão com a alforria dos escravos na mala. Talvez tenha ouvido alguma cousa da resolução do governo; dizem que, abertas as câmaras, aparecerá um projeto de lei. Venha, que é tempo. Ainda me lembra do que lia lá fora, a nosso respeito, por ocasião da famosa proclamação de Lincoln: "Eu, Abraão Lincoln, Presidente dos Estados Unidos da América... "Mais de um jornal fez alusão nominal ao Brasil, dizendo que restava agora que um povo cristão e último imitasse aquele e acabasse também com os seus escravos. Espero que hoje nos louvem. Ainda que tardiamente, é a liberdade, como queriam a sua os conjurados de Tiradentes. (ASSIS, 2000, p. 38)

Com o comentário de Aires, tem-se também a impressão de que o conselheiro se

importa menos com a condição dos escravos do que com a visão que as outras

nações têm sobre o trabalho cativo em nosso país. Trata-se, claro, de um ponto de

vista claramente senhorial, além de repercutir, claro, a profissão que Aires exerceu

por toda a vida. Fala aqui o diplomata interessado antes de tudo em passar uma

imagem positiva do país, até mesmo quando escreve um diário que, a priori, não

84

comporta leitor algum além dele. A frase: “Espero que hoje nos louvem”, é, no

mínimo, estranha. Afinal, louvar por quê, sobretudo após tanto atraso, tanta barbárie

e vergonha? E a quem o “nós” se refere? Aos brasileiros? Estarão os negros

incluídos nesse dêitico? Ou será esse um “nós” direcionado apenas àqueles que de

fato fazem as leis e dão as cartas no jogo político? De qualquer maneira, Aires se

inclui no processo.

Outro trecho relacionado ao assunto é este, em que o narrador reflete sobre o

“engano” (ou seria melhor dizer gafe) cometida por ele, na casa do casal Aguiar,

quando imagina que a festa que lá ocorria era em comemoração ao fim da

escravidão, enquanto, na verdade, celebravam a volta de Tristão ao Brasil.

Semelhante a Brás, que desculpa Prudêncio por bater em um escravo no já citado

capítulo “O vergalho”, das Memórias póstumas, Aires faz o mesmo, novamente

ajudando a legitimar uma postura que evita conflitos e discussões para ele

desnecessárias (e talvez mesmo enfadonhas).

Compreendi. Eis aí como, no meio do prazer geral, pode aparecer um particular, e dominá-lo. Não me enfadei com isso; ao contrário, achei-lhes razão, e gostei de os ver sinceros. Por fim, estimei que a carta do filho postiço viesse após anos de silêncio pagar-lhes a tristeza que cá deixou. Era devida a carta; como a liberdade dos escravos, ainda que tardia, chegava bem. Novamente os felicitei, com ar de quem sabia tudo. (Assis, 2000, p. 39)

O trecho é significativo, sobretudo pelo modo como Aires manipula a interpretação

do leitor. A equivalência do particular e do geral, proposta pelo conselheiro, mostra-

se bastante engenhosa, mas dificilmente se sustenta, criticamente, a não ser que se

confesse um fastio absoluto pelo bem público. Pôr na mesma balança a felicidade

dos dois velhos pela carta de Tristão e a Abolição, com leve vantagem da primeira

sobre a segunda, é o mesmo que isso, e estamos outra vez, ainda que de forma

disfarçada e muito mais polida, nos liames da ponta do nariz de Brás Cubas, ou do

egoísmo cego e justificado pregado por Quincas Borba. Somente ricos entre si

poderiam pensar assim, e Aires compactua soberbamente com tudo.

Interessante ainda o trecho final, em que uma nova comparação é feita,

relacionando o atraso da carta com a demorada libertação pública dos escravos:

“(...) ainda que tardia, chegava bem”. Ora, isso é o máximo a que Aires se permite

85

falar, mas será que de fato chegava bem? Conforme o leve arranhado na bela ação

de Fidélia de doar Santa-Pia, quando aventa a possibilidade dos ex-cativos não

serem capazes de geri-la adequadamente, o conselheiro sabe que a abolição vem

tardiamente. No entanto, a visão positiva do processo parece um tanto quanto

benigna demais, sem problematizações que poriam seu raciocínio abaixo. É, claro,

uma visão que mantém a ordem, que não oferece vozes discordantes e que, de fato,

foge delas. Novamente, a técnica do compasso é usada, caracterizando-se sempre

e cada vez mais como uma limitação de caráter ideológico.

O resultado, claro, é realista, no mais alto grau: o apagamento definitivo da figura do

negro e o desaparecimento dos agregados, que certamente continuam a existir, mas

não são mencionados. O Memorial é uma história sobre os ricos, sobre a classe

senhorial, a qual, obviamente, gosta de se ver representada em um discurso que

assiste a todos seus privilégios e a nenhum de seus deveres.

O fato incontornável aqui é que o conselheiro encampa o discurso de Santa-Pia e

Fidélia com muita tranqüilidade e propriedade. E é óbvio: o Memorial talvez seja o

romance de Machado em que a expressão “ricos entre si”, usada por Schwarz para

intitular um dos capítulos de Machado de Assis: Um mestre na periferia do

capitalismo, melhor se aplica. Fora o criado José, todas as personagens pertencem

a classes abastadas, sejam fazendeiros, banqueiros, comerciantes, políticos, ou

mesmo aposentados em situação mais do que confortável, como Aires.

Parece que o movimento foi esse: enquanto, nas Memórias póstumas, os ricos ainda

se preocupavam com os escravos e agregados, mesmo que para humilhá-los e

espezinhá-los, nesse último romance, esses mesmos ricos nem ao menos se dão

pela “sorte dos pobres”, para usar outra vez uma expressão que dá título a um

capítulo desse livro divisor de águas de Schwarz, sobre o romance do defunto-autor.

Uma história de ricos, sobre ricos, para ricos, não deve se deter em assuntos

“menores”, como a escravidão, por exemplo.

Se pensarmos dessa maneira, e em Aires como uma continuação de um tipo de

narrador de classe abastada, pouco confiável, pois representa um ponto de vista

86

específico e interessado, o livro precisará ser lido a contrapelo. Assim, as sabedorias

do conselheiro, sua postura do compasso, seu apego às minúcias do cotidiano, à

vida comezinha da Corte, às frivolidades, enfim, sobre o jovem casal, tudo pode e

deve ser redimensionado para caber em uma conclusão, não de todo absurda: é

algo dessa frivolidade, desinteresse e desapreço às questões verdadeiramente

importantes do período que devem ser observadas em sua narração. Essas são

algumas das lacunas que precisamos, como leitores, perceber e, por conseguinte,

preencher criticamente.

Como bem observa Gabriela Kvacek BETELLA (2007), o requinte do discurso de

Aires, seus jogos de palavras e citações clássicas, além de sua condição de velho e

de “conselheiro”35 acabam por produzir no leitor a sensação de que está diante de

um sábio e honesto senhor, digno de toda confiança disponível, efeito sentido com

ainda maior magnitude do que o alcançado por Bento, quando comparados os dois

enquanto narradores.

Talvez seja difícil para Bento desvencilhar-se das suspeitas de que, apesar dos

anos, as lembranças de Capitu ainda o atingem e, dessa forma, a seu texto. Aires,

no entanto, pela velhice sempre recordada, a postura algo cética, algo singela, a

aparente sabedoria e discernimento, o próprio papel, enfim, que representa para as

demais personagens e para o leitor, através da narração, o tornam mais confiável.

Ainda segundo BETELLA (2007), há muito em Aires de autocomplacência ou

complacência em relação a erros dos outros, transformando em qualidades atitudes

no mínimo suspeitas, para não dizer reprováveis, das personagens que o cercam.

O que ouvi depois é que Tristão, sabendo da resolução da viúva, formulou um plano e foi comunicar-lho. Não o fez nos próprios termos claros e diretos, mas por insinuação. Uma vez que os libertos conservam a enxada por amor da sinhá-moça, que impedia que ela pegasse da fazenda e a desse aos seus cativos antigos? Eles que a trabalhem para si. Não foi bem assim que lhe falou; pôs-lhe uma nota voluntariamente seca, em maneira que lhe apagasse a cor generosa da lembrança. Assim o interpretou a própria Fidélia, que o referiu a D. Carmo, que mo contou, acrescentando: - Tristão é capaz da intenção e do disfarce, mas eu também acho possível que o principal motivo fosse arredar qualquer suspeita de interesse no casamento. Seja o que for,

35

Tanto no Memorial como em Esaú e Jacó ele é procurado para arbitrar questões de natureza vária, como na

discussão dos gêmeos Pedro e Paulo, em que funciona como mediador entre ambos.

87

parece que assim se fará. - E andam críticos a contender sobre romantismos e naturalismos! (ASSIS, 2000, p. 123)

Se D. Carmo tem razão, consolida-se a suspeita de que os gestos, mesmo os mais

aparentemente desinteressados, têm razões ocultas e, afinal, egoístas, um

pensamento caro a Machado de Assis. Aqui, no entanto, ele tem outras implicações

mais profundas.

O fato central, e algo que Aires não vai perceber agora, nem comentará a respeito

depois, é que Santa-Pia configura-se como um entrave na vida do jovem casal, o

qual, a se acreditar na leitura que faz Gledson, está de fato ansioso para viajar para

a Europa e dizer adeus à fazenda, aos velhos e, enfim, ao Brasil.

Se, em outros tempos, a fazenda foi fonte de renda e, certamente, responsável por

boa parte dos 300 contos que Fidélia leva com Tristão para Portugal, hoje, em

decadência, com o solo exaurido, aparece como obstáculo que pode atrasar os

planos do casal. Livrar-se dela o quanto antes, e de maneira que ainda retire

qualquer possível suspeita de que Tristão casa por interesse, é o objetivo –

devidamente alcançado, deve-se dizer, e por uma manobra do agora esposo de

Fidélia.

Findo o problema, é tempo de partir. A análise de Gledson é inspiradora nesse

sentido, ao compreender a saída do casal do Brasil, com o dinheiro ganho no café,

bem como o abandono do que, na expressão de Aires, é “velho e caduco”, como

uma metáfora para o futuro do país. Tristão e Fidélia representariam, em um nível, o

desinteresse e, sobretudo, o descaso de uma certa elite que jamais se comprometeu

com o destino nacional. Ao contrário, mais interessada nas aparências de poder e

dinheiro, acaba por migrar em busca de cenários mais favoráveis, vantajosos ou

simplesmente agradáveis a suas vistas. É assim que Fidélia prefere Tristão, eleito

deputado em Lisboa, a Osório, que, apesar de provavelmente rico, é chamado por

Aires de “lavrador”. A sedução pelo novo vem seguida de outra, um mundo de

política e, como se pode imaginar, sofisticação, ao qual a imagem da decadente

Santa-Pia, com seus desesperados libertos, não pode sequer rivalizar.

88

O conselheiro parece cego a essa interpretação, como Bento, que era incapaz de

perceber o quão problemáticas eram suas certezas sobre o adultério da esposa. Ao

dizer: “Viva a mocidade”, também Aires parece cair no conto-do-vigário (o bluff do

pôquer, que ele faz questão de citar uma vez no seu diário). Porque toda a

complexidade que envolve a partida do casal, suas múltiplas e ambíguas

interpretações não podem se resumir a uma frase um tanto quanto ingênua e

certamente simplista e genérica demais. Se concordarmos que o conselheiro pouco

tem de ingênuo, de fato, devemos supor que a razão de sua cegueira momentânea

se deve ao fato de que também ele não deseja compreender os fatos de outra

maneira. Fazê-lo seria atestar sua derrota. Quer porque quem sabe tivesse um real

interesse pela viúva, mascarado por sua narração e humor às vezes enviesado, quer

devido ao seu comprometimento de classe, ou talvez por ambos. O fato é que será

justamente esse comprometimento, e também algo de sua faceta de antigo

diplomata, homem de acordos, avesso a conflitos, que lhe vedará, uma última vez,

outras interpretações menos redutoras.

Sua leitura do romance dos jovens, dessa maneira, parece agora quase romântica e

certamente idealizada, não levando em conta certos pormenores do enredo que

poderiam dar conotações ligeiramente menos “puras” à união. A hipótese, aventada

por Gledson (2003), de um caso amoroso que precederia o encontro dos dois no

Brasil, e que remontaria à época em que ambos viviam em Portugal (sem se

conhecerem, a princípio), explicaria, de certa forma, um dos episódios curiosos

narrados por Aires.

O episódio é aquele do coche, em que o diarista observa Tristão, que por sua vez é

pego a mirar a viúva, num jogo de voyeurismo e espelhamento e sai-se com essa

exclamação:

— Grande talento! Percebi que se referia ao talento musical, e nem por isso fiquei menos espantado; quase me esqueceu concordar com ele. Concordei de gesto e de palavra, sem entender nada. Também eu gosto de música, e sinto não tocar alguma coisa para me aliviar da solidão; entretanto, se fosse ele, e apesar de todos os Schumanns e seus êmulos, ao vê-la parar no Largo de São Francisco e entrar no carro, não soltaria a mesma exclamação, antes outra, igualmente estética, é verdade, mas de uma estética visual, não auditiva. Não entendi logo. Depois, quando nos separamos na esquina da Rua da Quitanda, entrei a cogitar se ele, ao dar comigo, compôs aquela palavra para o fim de mostrar que, mais que tudo, admira

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nela a arte musical. Pode ser isto; há nele muita compostura e alguma dissimulação. Não quis parecer admirador de pés bonitos; referiu-se aos dedos hábeis. Tudo vinha a dar na mesma pessoa. (ASSIS, 2000, p.)

Aires, para Gledson (2003), não faz, novamente, a pergunta certa aqui. O que pode

estar por trás da coincidência do encontro no mesmo local e mesma hora entre os

três é uma entrevista furtiva entre Fidélia e Tristão, que ainda não podiam ser vistos

juntos, entrevista que Aires, sem saber, impediu que acontecesse. O “grante

talento”, assim, poderia se referir, ainda, a mestria com que a moça conseguiu “sair

de cena” sem levantar suspeitas do velho diplomata, esse eterno compasso aberto

para não ferir suscetibilidades.

Por fim, resta a pergunta: o quanto Machado tinha desse compasso que é o

conselheiro, o quanto guardava de Aires em si? Isso é sempre difícil dizer. Mas não

custa lembrar novamente a publicação, em 1906, de “Pai contra mãe”. A técnica do

compasso ali teria dificuldades em se fazer valer. E seria de fato curioso ver o

conselheiro narrar o episódio que envolve a captura de Arminda por Cândido Neves,

e o conseqüente aborto da escrava com essa veia tão airosa e desenvolta. Não há

equivalências possíveis ali, entre os contendores na arena social em que se

transforma a noite em que Candinho leva a negra até o senhor, apenas uma

situação limite, que Aires, por bom gosto, ou puro senso estético, evitaria, talvez,

virar-se para olhar. Mas certamente não Machado de Assis.

4.6. MEIAS VERDADES, RETICÊNCIAS E A PROSA LACUNAR DO

MEMORIAL DE AIRES

Como já sugeriu BARROS (2006.), o Memorial é essa obra que talvez mais longe

leve adiante certo traço da escrita machadiana, pelo crítico caracterizada como “do

menos”, da sugestão, do não dito, das meias palavras, do fragmento. A narração do

conselheiro Aires, em inúmeros momentos, e apesar de seu tom conciliatório, lança

no ar uma série de questões, que, em última instância, deixam o leitor com a “pulga

atrás da orelha”, ainda no dizer de Barros da Silva.

90

Tal procedimento estaria mesmo na estrutura da obra, que, a se seguir a

advertência, teve boa parte de seu texto podado, recortado e desbastado por um

editor, M. de A., interessado em entregar para publicação um livro capaz de entreter

o público, e com menor chance de entediá-lo. Sumia-se, dessa forma, com as

“páginas mortas”, isto é, com tudo que não fosse do interesse imediato desse

público, talvez relatos de casos já sem importância ou apagados da memória

coletiva. O que ficou foram os acontecimentos situados nos anos de 1888 e 1889,

referentes às relações que o diarista travara, naquela ocasião, com os dois casais,

de jovens e de velhos, e suas observações a respeito de ambos.

O livro, assim, configura-se, ele próprio, como um fragmento, já que, para nós, é

impossível saber o que foi deixado de fora da edição que temos em mãos, ou

mesmo os critérios que levaram M. de. A. a fazer as escolhas textuais que fez.

Trata-se, assim, de uma obra duplamente lacunar: primeiramente, porque sua prosa

traz as características já anteriormente apontadas, da escrita “do menos”; em

segundo lugar, por causa do “desbaste” sofrido, que transformou os cadernos do

conselheiro no pequeno volume que conhecemos como Memorial de Aires.

Sobre o “primeiro desbaste”, isto é, a própria prosa um tanto oblíqua de Aires, dos

meios-tons e não-ditos, é inegável que nela pesa sua condição de ex-diplomata.

Como tão bem sugeriu Cilene Margarete Pereira (2007), a incorporação do papel

social de diplomata por Aires penetra sua própria narração, caracterizando uma

forma literária própria, fazendo lembrar, ao menos em parte, o que ocorreria também

nas Memórias póstumas, na interpretação de Schwarz, já comentada anteriormente.

Mas, se no livro do defunto-autor, o procedimento adotado por Machado é uma

narração volúvel, que, na forma, expresse o modo de ser autoritário e frívolo da

classe senhorial, no Memorial, a prosa perde boa parte dessas características, em

um apagamento generalizado, e o que emerge é uma escrita comedida, de meios-

tons, porém também de meias-verdades, e que cria a impressão de que algo se

esconde pelo véu polido do diarista. Um encobrimento sistemático, ainda que talvez

involuntário e em parte inconsciente, de uma realidade que, em última instância,

conjuga os dois mundos, o público e o privado, a política e a vida comezinha da

Corte, e suas contradições nem sempre agradáveis a olhos mais sofisticados. A

91

diferença de peso e importância dada a cada uma dessas dimensões, no livro, no

entanto, atesta a clara preferência do narrador em contar a história dos de sua

própria classe, e sob seu ponto de vista, encobrindo deslizes, problemas de carater,

contradições, que o impediriam, enfim, de oferecer sua visão benigna, ainda que

desencantada, ao final.

A forma narrativa do Memorial de Aires, dessa maneira, pode ser vista como uma

continuação (e a última versão) de um procedimento iniciado com mais ênfase a

partir dos anos 1880, quando Machado começa a utilizar a voz do narrador como

veículo de crítica ideológica contra a própria classe da qual este faz parte.

Entretanto, é preciso avançar mais na análise, e pensar que é em Dom Casmurro

que a narrativa fragmentada, da meia-verdade, da dúvida, do não-dito passa a ser

componente estrutural da narrativa, ao incorporar o próprio leitor no jogo literário.

Nesse sentido, vale lembrar o interessante estudo “‘Rosebud’ e o Santo Graal: uma

hipótese para a releitura dos contos de Machado de Assis’, de João Cezar de Castro

ROCHA (2006). O autor analisa, entre outros pontos, como, a partir das Memórias

póstumas de Brás Cubas, e de maneira mais sistemática em Dom Casmurro, a

metáfora do olhar como espelho da alma se faz cada vez mais presente nos escritos

do Bruxo.

Nessas obras, mais freqüentemente que nos primeiros textos, os personagens se

vêem às voltas com tentativas, em sua maior parte vãs, de apreenderem o sentido

último das ações, gestos e olhares daqueles que os cercam. Da mesma forma, na

falta de um narrador confiável, que lhe possa pôr a par da inteireza de uma certa

situação, o leitor também se vê tragado por esse jogo de espelhos, pistas e

despistares.

A interpretação de tais obras, assim, deveria comportar a crença em um relativismo

total de Machado, no qual nenhuma verdade última pode ser de fato apreendida,

nem pelos sentidos, nem pela inteligência. No entanto, é preciso atentar para o outro

lado dessa moeda, mesmo correndo-se o risco do intencionismo autoproclamado de

92

Gledson36: os narradores dos romances da segunda fase são, quase que na sua

totalidade, representantes de uma determinada classe. À exceção de Quincas

Borba, os quatro outros romances mais conhecidos (isso se descontarmos Casa

Velha) têm narradores-personagens envolvidos na sua confecção, direta ou

indiretamente: Brás, nas Memórias póstumas, Bento, em Dom Casmurro, e Aires,

em primeira pessoa no Memorial, e em terceira, em Esaú e Jacó.

O resultado desse processo, no livro do conselheiro, é um texto duvidoso, em que o

narrador, por necessidade de, muitas vezes, “manter as aparências”, ou ainda por se

sentir ideologicamente próximo a um ponto de vista ou personagem, procura fugir a

verdades inconvenientes ou pouco lisonjeiras para os seus (“ricos entre si”). Surgem

então os impasses, as sugestões, as reticências, que pululam do último romance

machadiano e é o que de fato nos permite entender a narrativa como menos

ingênua ou simples do que é em aparência. Mais que isso, nos dá a ver as

diferenças entre Aires e Machado. Separação radical entre ambos: o que Aires tenta,

por conveniência ou obtusidade, esconder ou não enxergar, é o que de fato o

escritor deixa entrever, pelas frestas do texto. E aí está o problema, relativamente

antigo, ao menos em se tratando da segunda fase da prosa machadiana: como, e

por quais estratégias discursivas, o feio se torna bonito, o mau parece bom, o

egoísmo vira altruísmo. A máscara e a desfaçatez, em suma.

Como se sabe, no Memorial, duas histórias paralelas estão sendo contadas, a

primeira, relacionada à esfera privada, e a segunda, à pública. De um lado, a

independência de um jovem casal de namorados que termina (feliz) embarcando

para Portugal, com o dinheiro proveniente do negócio do café no Brasil, agora

desmantelado pelo esgotamento da terra e a reformulação do modo de produção.

De outro, o final também aparentemente feliz, dos escravos, agora libertos e

herdeiros da propriedade em que trabalharam como cativos toda a vida. 36 No artigo “Dom Casmurro: realismo e intencionismo revisitados”, GLEDSON (2006) defende sua postura “intencionista” diante da história de Bentinho e Capitu. Segundo seu ponto de vista, o adultério de fato teria pouca relevância na obra, não importando se existiu ou não. O que de fato se deveria pensar é nas pistas disseminadas ao longo da narrativa pelo autor, não pelo narrador, que acabariam por apontar uma forma de se ler “contra” este último, evidenciando seu preconceito contra a mulher, insegurança e ciúme. Essa seria, para Gledson, a verdadeira “intenção” de Machado: observar os vários níveis de interpretação do romance, relacionados, de certa forma, a níveis de confiança no narrador. Menos que criar um mistério sobre o adultério, a armadilha de Machado seria para pegar o leitor, que acreditaria (ou não, ou em parte) no que conta Bento.

93

Aparentemente feliz porque, ao contrário do que o texto faz parecer, o altruísmo do

casal ao doar Santa-Pia não deve bastar para que os negros consigam, sem

dinheiro ou experiência administrativa, gerir a propriedade. Com sorte, conseguirão

uma agricultura de subsistência, e a miséria estará ainda à espreita, como de fato se

sabe que ocorreu com os ex-escravos após a escravidão. Apenas em um momento,

Aires sugere que a doação não é garantia de que o problema dos negros estará

resolvido: “pode ser que esta responsabilidade nova ou primeira...”.

As reticências, no fim da frase, se deixam entrar a dúvida, também apontam para o

relativo descaso do diarista para com a causa pública, ele, que, se bem

recordarmos, passou a maior parte da vida afastado do Brasil e de suas questões

políticas e sociais. Também como evita a crítica direta, ele mais oblitera a

compreensão do que de fato ajuda a clarear os pontos.

No Memorial de Aires, Machado de Assis, mais uma vez, e talvez com insistência

maior que das anteriores, exige do leitor uma postura participativa. Ele deve ser

capaz de preencher os vazios deixados pelo conselheiro, vazios de fundo ideológico,

surgidos da impossibilidade do narrador de contar a história inteira, cujas

implicações remontam a assuntos realmente difíceis, como a herança da escravidão,

as reais motivações da elite jovem, que quer usufruir, fora do país, o dinheiro ganho

aqui, em fazendas agora empobrecidas, e o abandono dos velhos, cuja decadência,

física e moral, também não deve passar despercebida. Reconstruir a “estória”, e,

assim, a História, é um dos papéis possíveis do leitor de Machado e do Memorial de

Aires.

Seria interessante, nesse contexto, imaginar, apenas por alguns instantes, que o

Memorial não é a obra de ficção que é, mas um real documento historiográfico,

escrito por um ex-conselheiro do Império. Os cadernos conteriam importantes

informações sobre o modo de ser e pensar daquela época, e certamente seriam

muito bem-vindos para um historiador atencioso, nesse sentido.

Entretanto, o livro Memorial de Aires, “desbastado das páginas mortas e escuras”,

talvez causasse certa estranheza e alguma preocupação. Um historiador observaria

94

que qualquer corte ou desbaste jamais poderiam ser neutros, e as perguntas: –

quem desbastou? Por quê? Com que critérios? – deveriam soar imediatamente em

sua consciência.

Da mesma maneira, o historiador talvez estranhasse a data em que se passa a

história – narrada em um enredo ralo e um tanto desenxabido – e pensaria, quem

sabe, por que o conselheiro se deteria em tais amenidades, enquanto havia tanto

por dizer. Novamente, ele talvez questionasse a natureza dos desbastes do editor, e

então não sossegaria enquanto não tivesse diante de si os cadernos todos do

conselheiro falecido, para aí sim, poder investigar a obra como um todo. E os cortes,

estes também talvez entrassem no escopo de seus estudos, refazendo as perguntas

anteriores: quem desbastou? Por quê? Etc.

Nós, entretanto, que estudamos o livro tal qual a obra literária que é, como artifício

último de um mestre em quebrar expectativas como Machado de Assis, precisamos

adotar outro procedimento. Não há mais cadernos para ler, além do que vimos no

Memorial de Aires ou em Esaú e Jacó, como não é possível saber mais sobre Capitu

além do que deixou Bentinho (ainda que tentativas de contar a história de forma

diferente tenham sido feitas37). Também o editor M. de. A. não é outra coisa senão

uma ficção do escritor, que se disfarça do que bem deseja para iludir o leitor.

Dessa maneira, ao compor uma obra que é, afinal, um fragmento, com questões não

resolvidas por um narrador não-confiável, Machado dá prosseguimento ao que já

viera experimentando até aqui, isto é, uma literatura que não se esgota em si, mas

que pede do leitor participação ativa e espírito crítico. Uma obra complexa, lacunar,

com que a parcialidade interpretativa (olhar míope ou interessado?) do conselheiro

acaba por contrastar sensivelmente.

37 Trata-se do romance Amor de Capitu, de Fernando Sabino, escrito em terceira pessoa, isto é, sem o narrador Bentinho.

95

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: MACHADO DE ASSIS E UMA

HISTÓRIA DOS VENCIDOS À BRASILEIRA

A história da leitura do Memorial de Aires é em si de grande interesse para o crítico

de Machado de Assis. As interpretações variaram consideravelmente desde sua

primeira publicação, em 1908, até os dias de hoje. Foi lido, inicialmente, pelo viés

biográfico, e Aires tornou-se um alterego do escritor. Os pontos em comum existiam:

eram ambos sexagenários, tinham seus problemas de visão e achaques da velhice,

além de serem viúvos. Em termos psicológicos, o perfil do conselheiro também

coincidia com o que se fazia de Machado, à época: homem reservado, avesso à

discórdia, bom ouvinte, inegavelmente culto e um tanto quanto cético.

O último romance pareceu, a princípio, a oportunidade de o escritor, já velho, se

reconciliar com a vida, com os sentimentos humanos, em oposição às ácidas

estocadas que desferira, em plena crise dos quarenta anos, com Brás Cubas. Das

Memórias para o Memorial, Machado se tornara mais benigno com os homens em

geral, sabendo perdoar e entender suas pequenas faltas e deslizes. Era um

compasso aberto, à maneira de Aires.

O fato é que, enquanto duraram esses pontos de vista, o romance que é o diário do

conselheiro perdurou na memória literária, mas nunca com a mesma potência e

vigor de Quincas Borba ou Dom Casmurro. Era difícil vê-lo como obra-prima, e ainda

hoje talvez seja, apesar das mudanças interpretativas ocorridas.

O fato é que a partir da década de 1970, outros estudos apareceram no cenário da

crítica machadiana e despertaram olhares diferentes para o relato um tanto

desenxabido do conselheiro. Três ensaios, de José Paulo Paes, Alfredo Bosi e John

Gledson, “Um aprendiz de morto”, “Uma figura machadiana” e “Memorial de Aires”,

respectivamente, abriram novos horizontes para a crítica e despertaram novamente

a atenção para o último livro do autor de Esaú e Jacó.

Paes aborda a ambigüidade do discurso de Aires, sua diplomacia que vem sempre

com alguma dose de dissimulação, afastando, dessa forma, a personagem do

96

conselheiro daquele lugar confortável que o próprio ajudou a criar para si, através de

seus jogos de linguagem, permanecendo intocável em sua sabedoria estóica e

cética.

Bosi, assim como Paes, também se afasta do olhar biografizante, preferindo

compreender o narrador através da metáfora criada por ele: a do compasso. Aires

não seria, pergunta-se o crítico, exatamente essa última figura machadiana,

derradeira encarnação das inquietações e atilados questionamentos do Velho

Bruxo? Bosi também percebe Aires como alguém que escreve, e por isso seu

discurso precisa ser analisado.

O estudo de Gledson também aponta novos caminhos para a crítica machadiana, ao

propor uma interpretação “a contrapelo” do romance. Conforme Schwarz fizera com

as Memórias póstumas, lendo o narrador com desconfiança e mesmo descrédito, o

estudioso inglês entende que Aires também é cheio de preconceitos de classe, e,

por isso, seu relato não deve ser digno de todo o crédito. Como no seu trabalho

sobre Dom Casmurro, Gledson entende o conselheiro como outro dos narradores

enganosos de Machado de Assis, e o Memorial, lido dessa forma, isto é, “contra

Aires”, deixaria entrever um outro enredo que correria paralelamente, mas por baixo

do principal, este em aparência morno ou quase inexistente. Nesse segundo enredo,

já livre do olhar tolo e às vezes involuntariamente sentimental do narrador, é que o

leitor poderia perceber certas nuances e atitudes que apontariam, em última

instância, para uma dimensão um pouco mais sinistra do que a esperada,

aproximando assim o texto leve do diarista da prosa oblíqua e sinuosa de Dom

Casmurro, por exemplo. Uma das sugestões de Gledson é que o romance de Fidélia

e Tristão teria começado bem antes de o rapaz chegar ao Brasil, já em Portugal,

num costumeiro arranjo entre famílias ricas ou bem postas socialmente. O final do

romance, com o jovem casal voltando para as terras lusitanas, levando o dinheiro de

Fidélia, trezentos contos de réis adquiridos nas plantações de café do Vale do

Paraíba, agora decadentes, metaforizaria a indiferença de uma elite que não tem

compromissos com o Brasil, e por isso pode abandoná-lo, quando um outro lugar

acena com melhores oportunidades. Santa-Pia, ao ir parar nas mãos dos ex-cativos,

cujas chances de geri-la é pequena, sem recursos ou experiência em administração,

97

é também um símbolo da mesma indiferença, travestida de generosidade e

altruísmo.

Estudos contemporâneos do Memorial de Aires apontam para outras linhas

interpretativas, indicando que o livro esconde mais complexidades do que talvez

aparentasse em sua data de publicação. A questão do nome do narrador, por

exemplo, levantada por Salgueiro, abre um curioso leque de possibilidades de

leitura. O estudioso se detém em observar, por exemplo, as relações de similitude

entre as iniciais do nome próprio do autor, do conselheiro, do editor fictício e do título

do livro. Além disso, questões instigantes surgem do trabalho do crítico, quando

percebe o palíndromo Aires-seria, indicativo da personalidade do diarista, um

relativista contumaz. Mais que isso, o generoso ensaio de Salgueiro é um gesto de

fé literária nas potencialidades do último romance de Machado, além de um esforço

interpretativo de raro alcance crítico.

O trabalho de Barros da Silva também se destaca por estudar o Memorial, ao

observar os vazios narrativos do último romance, e as implicações que tal técnica

pode ter no contexto da obra. Para Barros da Silva, o desbaste empreendido pelo

editor fictício e pela prosa lacunar do conselheiro apontam para um caminho trilhado

por Machado, com mais ênfase talvez a partir de Dom Casmurro, que busca levar

em conta o trabalho do leitor frente à obra literária.

As complexidades apontadas pelos estudos sobre o Memorial de Aires nos

possibilitam seguir o gesto interpretativo de duvidar das leituras mais óbvias do

romance. E uma vez que Aires tem semelhanças com Bento e Brás, narradores

pouco ou pouquíssimos confiáveis, representantes de certa classe, a senhorial,

parece mais do que lícito compará-lo a esses nobres senhores.

Brás, defunto-autor falecido em 1869, foi em vida o filhinho de papai que nunca

trabalhou ou legou qualquer obra de peso ao mundo, exemplar de uma classe que

começa a morrer na data simbólica de 1871, com a Lei do Ventre Livre. Suas

memórias são um espetáculo de desfaçatez, mediocridade e entendimento das

coisas sob seu próprio ponto de vista.

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Bento, por sua vez, rico e sob a capa de religioso, é ciumento e rancoroso. Para se

livrar desses fantasmas, e culpar quem considera a causa de seus infortúnios,

escreve um livro em que lega para si o papel de vítima, mas que também poderia ser

de carrasco. Sua prosa, de português exemplar e finura narrativa, deveria provar o

adultério da esposa, mas, lida a contrapelo, dá a ver as contradições de seu

discurso.

Aires é o narrador dos dois últimos romances, ainda que, em Esaú e Jacó, tenha

preferido escrever em terceira pessoa, subvertendo a norma e desafiando o leitor.

Seu modo de ser, relativista por excelência, transcende as ações da personagem e

fixa-se também no modo de narrar. No Memorial de Aires, compilação do diário

íntimo do velho conselheiro, percebemos, claramente, como esse “modo de narrar”,

longe de qualquer aparente e proclamada neutralidade, deve muito à classe do

diplomata aposentado, que isenta, em seu texto, todo um grupo social. As lacunas

do discurso do conselheiro apontam para tudo que o que “nele não deveu caber”,

parafraseando o trecho do prefácio de Tutaméia, de Guimarães Rosa: “O livro pode

valer pelo muito que nele não deveu caber”.

Seguindo a trilha dos vazios narrativos, percebemos que, no último romance,

Machado faz das lacunas do texto técnica de escrita, para, mais uma vez, denunciar

mecanismos de opressão social. A sua crítica ideológica se dá quando percebemos

que a história, mais uma vez, é escrita sob certo ponto de vista, e, não por acaso, de

uma classe privilegiada. Assim, os fatos mais importantes dos anos 1888-1889,

cruciais para o destino do Brasil, vistos pelo olhar de um diplomata aposentado,

trazem, tão somente, ou ao menos em aparência, a história algo frívola de um casal

de jovens namorados, a qual apenas se torna realmente interessante quando,

desligados do olhar do narrador, procuramos compreender as significações que ele

não desejou mostrar ou apenas achou por bem ocultar.

A história e a política então surgem, e logo compreendemos o que Aires não queria

dar a ver: a mudança de planos, substituição da idéia de vender a fazenda – falida –

99

para dá-la aos ex-escravos, gesto altruísta, é, na verdade, um estratagema para que

não se pense que Tristão casa por interesse.

Poderão os escravos gerir a propriedade?, pergunta-se Aires, cuja resposta conhece

mas não quer afirmar, por sabê-la, em última instância, indefensável. Será uma

alegria particular de fato mais relevante que a felicidade pública do país? Valerá

mais a chegada do afilhado que o fim da abolição da escravidão? Para os Aguiares

e para Aires, sim. E a esfera doméstica dos privilegiados mais uma vez aparece, em

contraposição aos interesses públicos, como o nariz metafísico de Brás teimava em

ser o centro do mundo.

No Memorial de Aires, a esfera doméstica, privada, é aquela por que de fato os

personagens transitam. Mas é preciso cuidado, e o leitor desavisado por vezes cai

nos percalços da narrativa. Conforme em outras ficções de Machado, das quais se

destaca Casa Velha, o particular e o público aparecem estranhamente entrelaçados,

como a sugerir um campo comum em que a história se percebe também no privado

e nas minúcias das relações sociais.

Machado fez da política e da história seus assuntos desde os primeiros contos e

romances. Se, no início, as questões eram abordadas ainda de maneira mais

superficial, mesmo assim, é inegável que histórias curtas, como “Mariana”, e longas,

como A mão e a luva, abordem e mesmo tomem por tema o problema da escravidão

ou da sociedade patriarcal e clientelista brasileira. Mais à frente, essas mesmas

questões ressurgirão, mais bem elaboradas, na fase madura, indicando como algo

do velho Machado já se encontrava no jovem Machadinho, como Bento queria que a

Capitu mulher estivesse já na adolescente por quem ele uma vez se apaixonou. Na

sua expressão, a “fruta dentro da casca”.

Entretanto, em Machado, as questões que envolvem política e história parecem

surgir, na feliz expressão de SCHWARZ (1991), pela veia negativa, ou seja, como

problema, através das contradições de uma sociedade fraturada entre a desejada

modernidade e o atraso por conta da escravidão e do modelo patriarcal. O verniz de

Aires, sua despreocupação e indiferença para com os cativos e seu futuro (seu

100

destino?) representam o descompromisso político de toda uma classe egocêntrica

que apenas se importava com seus interesses mais imediatos. Sua fachada culta e

elegante, de um relativismo certamente chique para os padrões brasileiros, acaba

por denunciar como é possível, ainda seguindo a trilha aberta por Schwarz, ser bem

educado, erudito, um intelectual, enfim, e, mesmo assim, e talvez um pouco por

conta disso, configurar-se como um problema ético, na medida em que são

exatamente esses homens bem-nascidos e bem postos que escrevem e produzem

saber.

Nesse sentido é que a menção a Walter Benjamin se justifica. Segundo BENJAMIN

(1992), filósofo alemão e um dos nomes mais importantes da chamada Escola de

Frankfurt, ao lado de Theodor Adorno, a História não é mais que uma escritura

histórica triunfalista: a versão dos vencedores, ou melhor, dos grupos dominantes.

Nesse contexto, o papel do intelectual seria o de desafiar as representações da

história vulgarmente aceitas e estabelecidas, procurando ver aquilo que não foi

contado, e por quê.

O risco, como sublinha o filósofo alemão, é sempre o esquecimento, a

deslembrança, o silenciamento da memória, pois “toda a imagem do passado (...)

corre o risco de desaparecer com cada instante presente que nela não se

reconheceu” (BENJAMIN, 1992, p. 159). A saída não seria buscar o passado como

de fato aconteceu, mas no que foi nele abafado e esquecido: os vestígios dos

personagens anônimos relegados ao rodapé dos livros, ou nem isso.

“Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são o que chamamos de bens culturais. (BENJAMIN, 1996, p.225).

Em Machado, especificamente nos romances, somente contam histórias os tipos

bem postos da sociedade, e o fazem segundo seus pontos de vista e critérios. É

dessa maneira que as ênfases em certos personagens e enredos nos induzem a ver

o outro lado da moeda: o silenciamento de outros enredos e outras personagens.

Acompanhamos Tristão e Fidélia, Carmo e Aguiar, mas a massa de escravos de

Santa-Pia, quem saberá dizer-lhe os nomes? É também por isso que não devemos

nos assustar com o comentário tão particular de Aires, ao frisar que pouco se

101

importa com o que lhes ocorrerá. Que irá, de fato, perder com isso o narrador? Ou

qualquer um dos seus?

A literatura de Machado de Assis, com sua percepção das contradições presentes

na sociedade brasileira, em que uns poucos fortes podem mais que a massa de

miseráveis, nos faz pensar que, de alguma maneira, também o autor de Memorial de

Aires nos ajuda a escrever uma história dos vencidos à brasileira.

Interessado no fenômeno da supremacia que certos discursos parecem ter sobre a

prática, bem como de algumas palavras sobre a ação, ou da aparência sobre a

verdade, Machado desvendou uma série de pequenos e grandes mecanismos

responsáveis pela legitimação da barbárie e da violência na sociedade em que

viveu. Lançou ainda um facho de luz sobre o papel do intelectual e detentor do

saber, no Brasil. Pois, claro, Aires, Bento e Brás são representações, mais ou menos

caricatas, de um certo tipo de homem brasileiro, letrado, culto e fino. Ao menos, na

aparência.

Mais que legitimar a violência em seu mundo, esse homem culto brasileiro, estudado

por Machado, é, pela palavra, capaz de nos fazer crer mesmo em argumentos tolos

ou infantis, obtendo assim sempre ganho de causa a seu favor, ou a favor dos seus.

Enquanto isso, Cotrim vendia escravos e ceava à mesa com a família, Brás montava

em Prudêncio e Bentinho deixava Capitu morrer só, na Suíça, enquanto a destratava

em suas memórias. Aires? Mais comedido, apenas escreveu um Memorial em que,

entre ficção e história, se registram muitas formas de violência, praticadas por gente

como eu ou como você.

102

6. REFERÊNCIAS:

ASSIS, Machado de. A mão e a luva. São Paulo: Ediouro, 2002.

____ Bons dias! São Paulo: Hucitec/Unicamp, 1997.

____ Casa velha. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 2001.

____ Contos: uma antologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 2 vol.

____ Correspondência. São Paulo: Mérito, 1959.

____ Dom Casmurro. São Paulo: Globo, 1997.

____ Esaú e Jacó. São Paulo: Ediouro, 2001.

____ Helena. São Paulo: FTD, 1995.

____ Iaia Garcia. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

____ Memorial de Aires. São Paulo: Ática, 2000.

____ Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 2000

____ Ressurreição. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.

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Assis. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.

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João Cezar de Castro Rocha. (Org.). À Roda de Machado de Assis - Ficção, crônica

e crítica. Chapecó: Argos Editora, 2006.

103

BENJAMIN, Walter. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa, PO: Relógio

D'água, 1992.

____ Magia e Técnica, Arte e Política: ensaio sobre literatura e história da cultura.

São Paulo: Brasiliense, 1996.

BETELLA, Gabriela Kvacek. Narradores de Machado de Assis: a seriedade

enganosa dos cadernos do Conselheiro (Esaú e Jacó e Memorial de Aires) e a

simulada displicência da crônicas (Bons Dias! e A Semana). São Paulo: Editora da

Universidade de São Paulo/Nankin, 2007.

BOSI, Alfredo. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: WMF Martins

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