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Magia Oriental THE MAN ON THE PEAK Katrina Britt Bianca 338 Suzanne nunca imaginou encontrar o ex-marido em Hong Kong Da janela de seu quarto, no alto da colina, Suzanne observava o colorido das embarcações contrastando com o azul do céu e o verde do mar. O porto de Hong Kong fervia de atividade. Ela, porém, não conseguia prestar muita atenção. A presença de Raul, seu ex-marido, a deixava intensamente perturbada. Ele, no entanto, não parecia se importar com seus sentimentos feridos. Ao contrário, insistia em falar cinicamente do novo amor que estava vivendo. 1

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Magia OrientalTHE MAN ON THE PEAK

Katrina Britt Bianca 338

Suzanne nunca imaginou encontrar o ex-marido em Hong KongDa janela de seu quarto, no alto da colina, Suzanne observava o colorido das embarcações contrastando com o azul do céu e o verde do mar. O porto de Hong Kong fervia de atividade. Ela, porém, não conseguia prestar muita atenção.A presença de Raul, seu ex-marido, a deixava intensamente perturbada. Ele, no entanto, não parecia se importar com seus sentimentos feridos. Ao contrário, insistia em falar cinicamente do novo amor que estava vivendo.

Digitalização e Revisão: Alice Maria

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CAPÍTULO I

Suzanne suspirou, desviando o olhar da janela. Apesar da imensa beleza, o tapete de nuvens não conseguia mais absorver sua atenção, depois de tantas horas de vôo: Damasco, Bombaim e Singapura haviam ficado para trás. Logo estariam aterrissando em Hong Kong. O convite de tia Janete, feito há quase um ano, fora uma boa oportunidade para se distrair. A morte do pai a abalara profundamente, e agora precisava refazer sua vida. Ao receber o convite estava passando por uma fase muito difícil e relutara em aceitar. Na realidade, Janete era tia legítima de Raul, seu ex-marido. Depois do divórcio, nunca mais tinham se encontrado mas sentiam uma grande simpatia uma pela outra. Os ruídos rotineiros de dentro do avião eram o suficiente para deixá-la tensa. As recordações dos seus últimos anos de vida eram tão dolorosos que não conseguia relaxar apesar de estar exausta. Absorta em seus pensamentos, não havia prestado muita atenção ao vizinho, um jovem magro de cabelos lisos e finos. Ele também permanecera o tempo todo calado. Suzanne ficou imaginando quem seria, porque a aeromoça redobrara-se em atenções durante todo o vôo. Olhando bem, não parecia ser rico, pois suas roupas eram simples e surradas.Mas Suzanne logo se esqueceu dele, preocupada com os próprios problemas. Por que decidira vir a Hong Kong Será que ali poderia esquecer o passado? Perambulava em vão pelo mundo todo, em busca de um sentido para sua vida. Sentia-se fraca e vazia. Perdera tudo o que mais queria, até mesmo Raul. Por mais que tentasse, não conseguia esquecê-lo. Onde estava com a cabeça ao aceitar o convite de tia Janete?Era certo que estava carente, sozinha no mundo. Mas hoje não era mais uma adolescente mimada; tornara-se uma mulher. Dois golpes profundos e rápidos haviam-na recolocado frente a frente com a realidade da vida. O divórcio de Raul e a morte do pai tinham destruído seu mundo de ilusões. Agora, mais madura e sensível, tentava reconstruir sua vida. Só que não seria nada fácil, e levaria algum tempo ainda.Com muita coragem e força de vontade, esperava estar pronta para enfrentar todos os problemas que surgissem. No rosto delicado transpareciam as marcas de todo seu sofrimento. Os ossos salientes e as olheiras profundas denotavam seu estado de espírito. Recostou-se no assento e fechou os olhos, envergonhada das lágrimas que teimavam em lhe correr pelo rosto. Com gestos

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dissimulados, procurou evitar que o seu companheiro de viagem percebesse que chorava. O rapaz continuava impassível, como se não tivesse notado que havia algo errado com ela.

Quando se separara de Raul, estava decidida a reconstruir a vida sem ele. Na ocasião, acreditava que o esqueceria depressa.Além disso, contava com o auxílio do pai, que a apoiara e mimara durante toda a vida. Só que ele morrera de repente, deixando-a confusa e sozinha.No fundo, seu pai também sentia falta de Raul de Brecourt, seu companheiro fiel. Eram inseparáveis. O sr. Dawson admirava-lhe a desenvoltura e a experiência com as quais transitava no mundo dos negócios. Considerava-o seu sucessor natural.

Suzanne sabia que poucas mulheres seriam capazes de resistir ao charme de Raul. Ele era realmente cativante, um perfeito cavalheiro, capaz de fazer qualquer mulher sentir-se nas nuvens. Como tinha lutado contra a força daquele encanto! No entanto, todos seus esforços foram inúteis. Seus próprios passos a guiaram até ele, como que atraída por um poderoso ímã. Desde que haviam se conhecido, ele a via como uma criança, tratando-a como tal. Sua reação, quando o encontrou, pela primeira vez, foi de espanto e admiração. Ele parecia um deus grego Do alto de sua beleza emanava segurança. Como o odiara por isso depois! Os olhos escuros transmitiam uma vitalidade incrível. Além disso, tinha senso de humor apurado, típico de pessoas inteligentes, bem-sucedidas. Era naturalmente elegante, e tinha uma graça felina, peculiar. Suzanne são saberia dizer se era pela pele bronzeada, se pelo corpo musculoso... o fato era que ele transpirava sensualidade. Seu pai sempre quis que se casassem. Ainda mais que pretendia associar sua empresa à de Raul. Só que ela não estava preparada para o casamento. Raul, por sua vez, pouco contribuíra. Na realidade, tratava-a como uma adolescente mimada, trazendo-lhe chocolates, flores e pequenos presentes. A condescendência divertida com que se dirigia a ela deixava-a furiosa. Suzanne, então, procurava agredi-lo de todas as formas. Desde o princípio, a proximidade de Raul provocava-lhe sensações perturbadoras, que ela não sabia definir. Imatura, reagia com provocações. Ainda não conhecia o amor e, quando se dera conta, já era tarde demais. Parecia impossível olhar para trás e identificar-se como a garota mimada e sem preocupações que fora um dia. Nada era suficiente

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para satisfazê-la; o pai atendia de imediato a todos os seus caprichos. Só que, agora, nada disso importava mais. Quando às portas da morte, seu pai pedira que chamassem Raul. Mas ele estava em viagem pelo Oriente Médio, e a secretária prometeu avisá-lo, contudo, não houve reposta, e Henry Dawson morreu sem vê-lo. Após o divórcio, Raul tinha deixado uma grande soma de dinheiro para ela, que manteve intacta, sem usar um centavo. Não precisava disso. As únicas coisas que lhe faziam falta eram a ternura e a força daqueles braços fortes a sua volta, daqueles lábios exigentes sobre sua boca. Quantas noites adormecera sozinha, ansiando pelo corpo de Raul a seu lado! Como pudera ser tão tola, incapaz de enxergar o que estava a sua frente. Lembrava-se muito bem de suas atitudes hostis, das tentativas de humilhá-lo, das palavras rudes. Por fim, cansado de tantos caprichos, Raul fora embora. Não adiantava pensar que era apenas uma garota de dezenove anos, completamente inexperiente, ao se casar com ele. Nada justificava seu comportamento. Durante a doença do pai, fora obrigada a ver que havia outras pessoas no mundo, além de si mesma. Com medo de perdê-lo. ficara a seu lado dia e noite, quase sem dormir, até cair sobre a cama, exausta. Ainda assim, não conseguia adormecer, receando que ele precisasse de algo durante a noite. Por fim, a doença o vencera. O pai, tão querido, não existia mais. Deixara-a só e aturdida.

A voz da aeromoça, pedindo para apertar os cintos, trouxe-a de volta à realidade. Na mesma hora olhou pela janela e viu as nuvens flutuando sobre os campos verdes, as colinas rochosas. O porto estava repleto de navios e iates, além de pequenas embarcações que circulavam entre eles O avião começou a se aproximar do aeroporto de Kai Tak, uma faixa de terra próxima ao mar, e o pouso foi perfeito. Só então Suzanne percebeu que seu companheiro de viagem tateava à procura de alguma coisa. Ele era cego. O sofrimento tinha feito com que Suzanne aprendesse a respeitar a dor dos outros, e não pôde deixar de se comover. Ele era tão jovem! Ao sair do avião, o calor e a confusão de vozes falando várias línguas formavam uma verdadeira Torre de Babel. Sorriu ao observar aquela profusão de cores e idiomas. Era fantástico, fascinante. A multidão, no entanto, caminhava apressada. Decidiu entrar no ritmo, e logo estava dentro de um táxi, a caminho do hotel, onde se encontraria com Janete de Brecourt. A tia de Raul já a esperava no saguão, com um sorriso de boas-vindas irradiante. Era uma mulher atraente, esguia e alta.

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O passar dos anos não tinha afetado sua beleza e elegância.Vestia um conjunto de seda branco, com um turbante combinando, imperturbável mesmo sob um calor abrasador. — Suzanne! Deixe-me olhar para você! Está mais magra, mas continua linda como sempre. — Aproximou-se sorrindo, abraçando-a com carinho. — Como vai? — Bem, obrigada, tia Janete. Parece mais jovem cada vez que a vejo — disse espontaneamente. A outra riu, satisfeita. —Vou lhe contar um segredo. Jamais tomo sol no rosto. Mas você é jovem e não precisa se preocupar com isso. Mal completara a frase, já dava instruções ao carregador para que apanhasse a bagagem de Suzanne Em seguida, pegou-a pelo braço, conduzindo-a para o porto. — Venha. Adoro esta pequena viagem de balsa. Espero que também goste. Suzanne olhou a sua volta, observando o movimento frenético dos chineses e as construções tipicamente orientais. A cidade pulsava, viva. — Acho que vou adorar — suspirou, revigorada. — Espero não ter vindo atrapalhar. — De jeito nenhum, querida. É um prazer tê-la aqui. — Com expressão crítica, observou o rosto abatido de Suzanne. — Você mudou muito. — Eu amadureci. — Não se preocupe com a bagagem — Janete mudou de assunto para tranqüilizá-la — O carregador tomará conta de tudo e nos entregará do outro lado. — Como não obtivesse resposta, voltou a falar: — Você tem namorado? — Não. Estou sozinha. — Tem a vida inteira pela frente... A resposta foi um sorriso triste e desanimado. Queria dizer que era esse o seu medo. O que iria fazer com o resto da vida?Mas não disse nada. Depois da morte do pai, o mundo se tornara um lugar estranho e hostil. Sentia-se desprotegida. Não importava o fato de estar em Hong Kong, ou em qualquer outro lugar, a sensação da solidão jamais a abandonava. De qualquer forma, Hong Kong era diferente de tudo que já conhecera.Apesar da tristeza, uma tênue excitação a invadiu. Uma brisa balançou-lhe as mechas de cabelo louro, dando-lhe uma vaga sensação de liberdade quando entrou na balsa. Acomodou-se ao lado de sua anfitriã, num banco de madeira. Assim que a embarcação ganhou velocidade, chegou a esquecer as lembranças tristes, interessada nas centenas de barcos, iates e pequenos botes de junco, que se amontoavam no porto, num balanço cadenciado.

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A atmosfera oriental da cidade era algo indescritível, misterioso, extremamente fascinante! Ninguém podia ficar alheio a tanta beleza. Quando se voltou, percebeu que tia Janete a observava com expressão preocupada. Por mais que tentasse dissimular seus sentimentos, não conseguia. Era evidente que representava um papel. E muito mal. Isso não passou despercebido aos olhos experientes e sensíveis da mulher mais velha. Janete já havia notado que ela não estava tão segura e serena quanto queria aparentar. Na verdade, não sabia o que acontecera antes do divórcio e preferia não se envolver. Suzanne sempre fora uma moça adorável e, no momento, era sua convidada. Adorando a brisa e o calor do sol, Suzanne sorria, meiga, descontraída. Os olhos cor de violeta, brilhantes e profundos, sombreados por longos cílios escuros, tinham uma expressão sonhadora. Era uma mulher linda e atraente. Não era de se surpreender que Raul não tivesse resistido ao seu encanto. — Uma amiga me trouxe até aqui e nos levará de volta —explicou Janete. — O carro dela não está longe do ancoradouro e não precisaremos andar muito. A balsa contornou alguns barcos para alcançar o cais. Aromas exóticos espalhavam-se pela atmosfera em harmonia com aquele mundo completamente desconhecido para um ocidental.O fato é que ninguém podia ficar imune àquele cheiro místico. Olhava para tudo maravilhada, enquanto seguia Janete pelas ruas estreitas, cheias de restaurantes que ofereciam os mais variados tipos de comida. No estacionamento de uma casa de chá, dirigiram-se para um carro novo, moderno. O carregador acomodou a bagagem no porta-malas. As duas sentaram-se no assento de trás, à espera da amiga de Janete. Um homenzinho franzino saiu do estabelecimento e aproximou-se, trazendo duas delicadas xícaras de porcelana, cheias de chá fumegante. Janete agradeceu calorosamente ao chinês e apresentou-lhe a convidada. — Obrigada, Chin Lung. Estava louca por uma xícara de chá e acho que minha amiga também. É muita bondade sua vir até aqui para nos servir. Quero lhe apresentar a sra. Suzanne de Brecourt, que veio me visitar. — Com um gesto delicado, virou-se para Suzanne; — Este é um bom amigo, o sr. Chin Lung. Ele inclinou a cabeça e sorriu, mostrando alguns dentes de ouro. — Prazer em conhecê-la — disse, fazendo uma reverência.

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— Bem-vinda à nossa ilha — saudou-a, retornando à casa de chá. Ao vê-lo desaparecer de vista, Suzanne olhou diretamente para Janete. — Não uso meu nome de casada desde o divórcio. Prefiro ser conhecida como Suzanne Dawson. Janete tomou um gole de chá antes de responder, observando-lhe a mão esquerda. —Desculpe se pareço intrometida, mas me preocupo com você. Uma garota rica, bonita e solteira está exposta a todos os tipos de perigo. Convenhamos: se usasse uma aliança se livraria de muitos problemas... Suzanne assentiu com um gesto de tolerância. — Isso podia ter lógica antes do casamento. Só que agora sei me cuidar. Amadureci muito, apesar dos meus vinte e dois anos. Janete concordou com um gesto de cabeça. Não estava, em absoluto, convencida da determinação da jovem. Aparentemente continuava frágil e delicada, como sempre. — Esteve viajando, não é? Escrevi convidando-a a vir, há quase um ano. — Sua carta ficou entre a correspondência que encontrei em casa, ao voltar. Fiquei contente em saber que ainda estava aqui. Saiba que é muito bom vê-la de novo — explicou rapidamente para não entrar em detalhes. Durante um ano viajara pelo mundo, como integrante de um grupo de voluntários que prestavam auxílio aos países subdesenvolvidos. Nesse período, fizera todo tipo de trabalho, desde alfabetização até primeiros socorros., passando até por serviços pesados. Ao retornar, a vontade de ver alguém de quem gostasse era tão grande que não perdeu tempo e escreveu para tia Janete. — É tão bom vê-la aqui também, Suzanne. Acho que cansou de viver em cruzeiros milionários, não é? Ela bebeu devagar o resto do chá. Gostaria de evitar maiores explicações... Após uma pausa, mudou de assunto. — Como está tio Philippe? Um sorriso iluminou o rosto da Janete: — Está no Oriente Médio, cuidando de um novo projeto das Empresas Brecourt. Com certeza se encontra numa cidadezinha afastada de tudo. adorando a vida simples do povo da região. Como vê, estou sozinha; por isso é ainda melhor tê-la aqui. Senti muito ao saber da morte de seu pai. Deve ter sido um golpe terrível. A ferida era ainda muito recente, e aquela simples menção a comovia imensamente. Procurou disfarçar a emoção.

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— Por que escolheu Hong Kong para viver? — perguntou, curiosa. — Já está aqui há bastante tempo, não é? —Acho que a magia desta ilha me fascina. Vim pela primeira vez com Philippe, e foi paixão à primeira vista. Desde então decidi ficar por aqui. Há no ar uma envolvente sensação de mistério. Estou contente que tenha vindo antes da nossa partida. — Vocês vão embora? — Talvez. Decidiremos quando Philippe voltar. Penso que ele tem vontade de regressar a Paris. Tia Janete não mencionou Raul uma só vez. Apesar de ansiosa por notícias, Suzanne não ousou perguntar. Um garoto apareceu para recolher as xícaras de chá, quando a proprietária do carro apareceu. — Desculpem o atraso. A voz forte e clara interrompeu o diálogo. A porta do carro se abriu e uma jovem esguia e elegante, de pernas muito bem feitas, entrou. Ela usava um vestido branco de linho, revelando-lhe as linhas perfeitas do corpo bronzeado. Suzanne virou-se para observá-la melhor. Era uma das mulheres mais deslumbrantes que já tinha visto. Os cabelos negros e brilhantes estavam presos por uma fivela de prata, deixando à mostra um rosto perfeito. Em sua mão direita, uma safira enorme brilhava à luz do sol. A recém-chegada observava-a também, sem esconder a curiosidade. Os olhos escuros, a boca carnuda e o nariz reto completavam o conjunto, que era simplesmente estonteante. A bela morena faria qualquer homem perder o fôlego, só ao fitá-la. Sem querer, Suzanne imaginou que aquela seria a mulher ideal para Raul, e uma sensação de desamparo a dominou. — Suzanne, esta é minha amiga, a sra. Silvana Lapport, uma italiana que se casou com um inglês e agora está divorciada. Silvana, esta é Suzanne Dawson. Os olhos negros de Silvana a fitaram com interesse. — Prazer em conhecê-la — disse com a voz rouca. — O prazer é meu — respondeu Suzanne, formal. Sinto-me feliz por estar aqui. Silvana riu, como se lhe ocorresse algo engraçado. — Somos tipos opostos; eu tão morena e expansiva, bem italiana; e você, loira, de modos tipicamente ingleses. Não concorda, Janete? Ela as observou atentamente antes de responder: — Bem, pelo menos têm algo em comum. São divorciadas. — Não pense que me importo com isso, cara. Logo será diferente. A solidão não está em meus planos. Não tenho a mínima pretensão de ficar solteira.

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Com um sorriso, ligou o carro e logo se encontravam na avenida principal, cheia de bicicletas, pedestres, carros e ônibus de dois andares, misturados num trafego confuso e barulhento. Suzanne observava tudo avidamente: os anúncios enormes, os prédios altos, os hotéis luxuosos, as lojas cheias de artigos exóticos. Encantada com a multidão cheia de cores, sorriu e fitou Silvana, que lhe retribuiu o sorriso. — Tenho uma casa agradável no centro da cidade. Quero que venha me visitar, Suzanne. — A voz de Silvana revelava um interesse sincero. — É claro que não é tão grande quanto a casa de Janete, lá no morro, com uma vista maravilhosa para o porto e para Kowloon. Janete sorria, serena. Ela não aparentava mais que trinta e cinco anos, apesar de ter quase cinqüenta. O carro começou a subir por uma estradinha que levava às colinas, e o aroma de pinho encheu o ar. Pouco depois, Silvana fez uma curva, atravessando um portão para chegar ao jardim, cheio de azaléias e primaveras. Só então Suzanne teve uma visão da casa ampla, de dois andares, num estilo que misturava as características típicas do Oriente ao conforto e à praticidade do Ocidente. — A casa é uma grande mistura — explicou Janete. — Mas a influência ocidental é predominante. Um terraço rodeava todo o andar térreo, levando a enormes portas de vidro, que proporcionavam uma visão extraordinária das montanhas e das ilhas que ficavam no Mar da China, além do porto. Silvana ficou apenas o suficiente para que descarregassem a bagagem. Sun Yu-Ren, um jovem empregado, vestido de branco, apareceu, enquanto Janete conduzia Suzanne a uma sala fresca e confortável, revestida de tapetes chineses e decorada com móveis de junco. As paredes brancas estavam cobertas de gravuras antigas, retratando a velha China. As cadeiras confortáveis tinham almofadas de tapeçaria com motivos orientais. Esculturas abstratas espalhavam-se pelo ambiente e, num canto da sala, um enorme vaso de porcelana harmonizava a decoração. Após lhe mostrar os aposentos do térreo, convidou-a a subir até o quarto espaçoso que reservara especialmente para ela. O aposento era aconchegante, com um banheiro ao lado, e estava agradável mente fresco, por causa do ar condicionado. — Quero que descanse, minha querida. Sun Yu-Ren vai lhe trazer um refresco. Depois poderá se deitar um pouco, para se recuperar da viagem. Suzanne olhou à sua volta, notando a cama de casal coberta por um mosquiteiro, a penteadeira, o guarda-roupa e as cortinas de

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cetim estampadas com pequenos dragões, combinando com a colcha. — Todos os quartos são assim tão lindos? — perguntou, observando os jardins e o porto através da janela. — Quase todos. Raul comprou a casa para a companhia quando há convenções ou congressos, é difícil encontrar acomodações em Hong Kong. Os diretores e executivos das Empresas Brecourt podem ficar hospedados aqui, quando é preciso. Temos uma sala de reuniões bem grande, onde podem trabalhar sem ter de sair daqui. Suzanne mal ouviu a explicação, pois a simples menção do nome de Raul fez seu pulso acelerar. Janete tirou as luvas e encarou-a com uma expressão preocupada no rosto bonito. — Raul está em Hong Kong. A cor desapareceu do rosto de Suzanne, que procurou ganhar tempo virando-se para a janela. — Devia ter me avisado — falou, num fio de voz. — Estou contando agora. — Mas podia ter dito antes. — Sinto muito. Na ocasião em que lhe escrevi, ele estava fora, realmente. Eu sabia que estava sentindo muita falta de seu pai e quis tê-la comigo. Quando você me respondeu, confirmei o convite, sem pensar que a presença de Raul poderia perturbá-la. Afinal, está tudo acabado entre vocês... — res- pondeu, mal disfarçando o quanto estava constrangida. Só então Suzanne virou-se para encará-la, já recuperada do primeiro choque. — Está certa, tia Janete. Talvez um dia acabe me acostumando a conviver com ex-maridos. Quem sabe quantos vou ter? — Não fale tão cinicamente. Sei que não é assim que se sente. Eu poderia aceitar isso vindo de Raul, mas não de você. — Por que diz isso? — desafiou Suzanne, erguendo o queixo trêmulo. — Qual é a verdadeira razão pela qual me convidou? — Minha querida Suzanne — Janete sorriu condescendente —, por que as pessoas convidam os amigos para suas casas? Gosto de sua companhia e pensei que seria bom para você descansar um pouco de sua vida social, tão intensa. Suzanne mordeu o lábio para não responder. Vida social intensa! Festas eram coisa do passado. Desde que voltara de viagem, depois de um ano de trabalho, era uma pessoa diferente. Tinha aprendido muito e experimentado emoções desconhecidas. A atividade constante mal lhe deixava tempo para pensar. Ao chegar a seu luxuoso apartamento em Londres, porém, o peso de estar sozinha foi grande demais Recebeu o convite para ir a Hong Kong como um presente dos céus.

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Agora chegava à conclusão de que tinha agido de forma insensata. Pensava que jamais veria Raul de novo. Cansada da viagem e abalada pela notícia, decidiu que abreviaria sua visita o suficiente para não ser indelicada. Partiria em seguida. — Desculpe, tia Janete, fui muito rude. Por favor, me perdoe. — Um sorriso suave iluminou-lhe o rosto, e inclinou-se para beijar a face perfumada da amiga — Obrigada por ter me convidado. Janete segurou-lhe as mãos, com uma expressão bondosa. — Mandei preparar um lanche para você e quero que, depois de comer, vá direto para a cama. Está magra demais, e a viagem foi cansativa. Já é hora de alguém cuidar de você. Sem querer, Suzanne estremeceu. Era exatamente o que Raul tinha dito quando se casaram. Assim que a tia saiu, atirou-se na cama, fitando o teto. As imagens do passado voltaram-lhe à mente como cenas de um filme. Raul...

Seu pai viajara, e ela resolvera dar uma festa. Só que Raul tinha ficado por ali, tomando conta de tudo. As atitudes dele a irritavam profundamente. Com o passar do tempo, a festa fora se tornando cada vez mais animada. Animada demais, refletiu, pensando agora. A maioria dos convidados havia bebido além da conta. Em determinado momento fora para o jardim, a fim de tomar ar e descansar. Um dos convidados a seguira. Era um universitário bonito e falante, que passara a noite toda expondo seus ideais políticos. O rapaz mal parava em pé, de tão bêbado, e Suzanne sobressaltara-se ao vê-lo tão perto. — Olá, Derek. — Tentara se manter calma. — Também veio tomar ar aqui fora? Está abafado no salão, não é? Esforçando-se para se equilibrar, ele a fitara desafiante. — Tem razão, vim tomar ar. E sabe por quê? Porque todos vocês são fúteis e cheios de dinheiro. — E daí? — ela replicara, irritada. — É dinheiro que foi ganho com trabalho. Ele se aproximara, encarando-a de perto, e Suzanne dera um passo para trás. — Você jamais trabalhou em toda sua vida. Com um gesto brusco, apertara dolorosamente o braço dela, que tentara soltar-se. — Não estou gostando disso. Ê melhor você ir embora, não gosto que abusem da minha hospitalidade, Derek. — É verdade? Pois, então, que tal esquecer as diferenças e nos divertirmos um pouco? Ao dizer isso, ele a puxara para si, beijando-lhe os lábios com brutalidade, enquanto a arrastava para trás de uns arbustos.

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Suzanne lutara para se libertar, mas o jovem a forçara a se deitar na grama, rasgando-lhe o vestido. Na luta violenta que se seguiu, ela quase perdera a consciência. Estava sem forças quando sentiu, com alívio, que ele era puxado para trás. Na seqüência, alguém o atingira com um soco violento. Fora, então, envolvida por dois braços fortes, que a carregaram para dentro de casa. Era Raul. Ele a levara direto para o quarto, deitando-a na cama. Ela ainda estava paralisada pelo choque, completamente imóvel, com um braço cobrindo o rosto. — Está tudo bem agora. — A voz familiar era, reconfortante.Quando ele se aproximou da cama, Suzanne começara a tremer. Com carinho, ele a abraçara, apertando-a contra si por um longo tempo, até que se acalmasse. — Não aconteceu nada demais. Felizmente cheguei a tempo. Acalme-se. — A voz dele se alterara um pouco, ao perguntar: — Que idéia foi essa de passear no jardim com um sujeito como aquele? Estava procurando encrenca... Toda a antipatia contra Raul voltara de repente, e Suzanne, ao notar seu vestido rasgado, revelando o sutiã, procurara cobrir os seios. — É isso que pensa? — ela havia procurado afastar as lágrimas ao encará-lo com raiva. — Deve achar que agora estou querendo provocá-lo, não é? Raul lhe estendera um lenço para que enxugasse os olhos. — Não seja tão criança. Teve uma experiência ruim, mas acho que mereceu. Tem sido muito mimada por seu pai, que faz todas as suas vontades. Devolvera-lhe o lenço bruscamente, sem conseguir parar de tremer. — Parece Derek falando! Ele disse algo parecido antes de... — Está bem. Esqueça. — A voz de Raul atenuara-se ao perceber as lágrimas que voltavam. — Tire o que sobrou do vestido e vá dormir. Vou cuidar da sua festa. Ele se levantara, fitando-a com uma expressão de desafio. — Se não estiver de camisola na cama, quando eu voltar, minha pequena, vou cuidar de você pessoalmente — ameaçara. Quando ele voltara, Suzanne estava acomodada na cama há algum tempo. — Beba isto — dissera, estendendo-lhe um cálice de conhaque. Com um gesto decidido, ele se sentara na cama. Ela se sentira perturbada pela proximidade daquele homem tão atraente. — Vamos, beba, seja uma boa menina. A bebida a ajudara a relaxar, e ela se acomodara na cama, fechando os olhos. Apesar de tudo, sabia que Raul a salvara de uma situação perigosa.

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— Boa noite — dissera em voz fraca. — E obrigada. — Não mereço nem um sorriso? — Não tenho vontade de sorrir. — Eu sei, não sou tão insensível como pensa. Não quero que tenha pesadelos. Esqueça o que aconteceu. Há outros tipos de beijo, diferentes daqueles de Derek. O tom de voz dele não deixara dúvidas. Numa atitude de defesa, ela se encolhera, permanecendo calada. Ele se aproximara lentamente e a beijara com uma delicadeza comovente. Suzanne já havia sido beijada antes, mas era como se fosse a primeira vez. Nunca sentira nada semelhante. Surpreendera-se ao ver que correspondia com a mesma intensidade. Suas mãos delicadas rodearam o pescoço de Raul, enquanto se entregava àquele momento. Mais tarde, ao relembrá-lo, teve a certeza de que tinha apagado a sensação horrível deixada pela situação criada por Derek. O beijo fora longo e profundo Reconhecia agora que, a partir daquele momento, toda sua vida mudara. Só que os caprichos de menina mimada tinham estragado tudo. Raul estava novamente em seu caminho. Só de pensar nisso, sentia uma dor atroz. Com gestos cansados, escolheu uma camisola e preparou um banho quente, para relaxar. No dia seguinte veria o que Hong Kong lhe reservava.

CAPÍTULO II

Ao acordar, Suzanne piscou várias vezes para se certificar de que não estava vivendo um pesadelo. A vida lhe preparara mais uma armadilha. Precisava encontrar uma saída. Não podia magoar tia Janete, partindo imediatamente, mas não queria rever Raul. A casa pertencia às Empresas Brecourt, e ela sentia a presença velada dele por todos os cantos, Os dois anos que estavam separados pareciam reduzidos a nada. Era tudo muito vivo.Em sua mente estava nítido o dia em que se conheceram, há quatro anos. Casaram-se quando ela estava com dezenove anos, e um ano depois já haviam se divorciado. Logo após a separação, partiu para a Grécia em cruzeiro com alguns amigos, a fim de se distrair. Sua única preocupação eram os passeios e as roupas que deveria usar em cada ocasião. Com o tempo percebeu que cometera um grande equívoco. A princípio, sentiu-se aliviada. Era dona de seu destino. Dali por diante poderia viver livremente, sem a presença arrogante e dominadora do marido. Mergulhou fundo num mundo de festas, solenidades, viagens. No fundo, ela fugia de si mesma, não queria encarar a realidade: o divórcio abalara todas as suas estruturas.

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Durante o último ano, teve tempo suficiente para analisar seu relacionamento com Raul. Hoje via as coisas sob outro prisma; conseguia até mesmo compreender as suas atitudes protetoras. A maioria das pessoas que então a rodeava não era sincera. Para eles, ela não era uma pessoa e sim a conta bancária e a posição social de seu pai. Nessa roda-viva, Raul sobres-saía-se, às vezes até com atitudes paternais, numa luta inglória. Sorriu desanimada ao constatar que tivera de seguir árduos caminhos, com seus próprios pés, até dar o exato valor às coisas.

Sob a água quente do chuveiro, fechou os olhos, numa tentativa de afastar Raul do pensamento. Enquanto se enxugava com movimentos vigorosos, percebeu que não poderia manter-se enclausurada, temendo rever o ex-marido. A água realmente exerceu um efeito tranqüilizante sobre ela.Depois do banho se sentia mais animada para enfrentar o novo dia. Escolheu um vestido de verão, de algodão branco, e escovou bem os cabelos, deixando-os cair em cascatas onduladas sobre os ombros. Olhando-se no espelho, imaginou como seria rever Raul. Qual seria a atitude dele? Será que conseguiriam manter um relacionamento amigável depois de tudo? Que bobagem! Como homem sofisticado e seguro que era, com certeza manteria a calma, mas não iria além disso. Num impulso, calçou sandálias de salto alto e desceu para tomar café. Janete estava sentada na varanda. Vestia um conjunto de seda verde, elegante e impecável. — Bom dia, querida, ia mandar Sun Yu-Ren ao seu quarto com o chá. Não pensei que fosse se levantar tão cedo. Dormiu bem? Suzanne acomodou-se em frente a ela e abriu o guardanapo. — Muito bem, obrigada — respondeu e virou-se para Sun Yu-Ren. — Bom dia — disse ele, com um largo sorriso, inclinando a cabeça. — Vou trazer o seu café da manhã. Assim que ele trouxe a bandeja. Suzanne literalmente devorou tudo. Não percebera, mas estava faminta! Comeu com vontade o melão e adorou as frutas chinesas. O chá verde, servido em delicadas xícaras de porcelana, era delicioso. Depois da refeição, conversou com tia Janete enquanto ela abria a correspondência. — Oh, não! — exclamou ao ler uma carta datilografada. — Pretendia levá-la para passear nesta manhã, mas me esqueci que tinha marcado uma entrevista com jornalistas de Londres. Justo hoje! Esqueci-me completamente! Dando de ombros, continuou explicando, como se falasse consigo mesma. — É uma dessas revistas mensais que adoram contar a vida de pessoas conhecidas. Sabe como é: fotografias no jardim e nas

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salas principais... Prometi à jornalista que atenderia hoje de manhã... — Não se preocupe — Suzanne apressou-se em tranqüilizá-la. — Não desmarque seus compromissos por minha causa. Ficarei no meu quarto ou darei um passeio. — Por favor, fique aqui. Nunca fui entrevistada, e você pode me dar um apoio. Sei que é uma futilidade, mas não podia recusar. Pedi a Raul que viesse, mas ele apenas riu Na verdade, acho que não me levou a sério. Ao saber que ele não viria, Suzanne relaxou. Pelo menos teria mais tempo para se preparar. Enquanto os jornalistas estivessem em casa, faria companhia a tia Janete. Só a presença de alguém conhecido já seria o suficiente para deixá-la mais segura e à vontade durante a entrevista. — Tomara que não fiquem muito tempo — suspirou, dobrando o envelope. — Creio que vão almoçar aqui. Gosta de comida chinesa? Suzanne riu ao vê-la tão preocupada. — Não sou exigente. Gosto de quase tudo! — Sorte sua. Quando cheguei, não podia nem pensar em comida chinesa. Hoje, adoro todos os pratos e não dispenso o chá verde. Conversavam animadamente sobre culinária quando o ruído de um carro quebrou o silêncio. — Deve ser eles — Janete sobressaltou-se como uma adolescente. Logo em seguida, um jovem casal entrou pelo pátio, olhando à volta com curiosidade. À primeira vista pareciam bastante descontraídos. A mulher se dirigiu a elas com um sorriso cortês: — Bom dia. Espero que a hora não seja inconveniente. Ao mesmo tempo, observava as duas com atenção. Deteve-se em Suzanne por um momento, como se reconhecesse. — É claro que não. — No fundo, tia Janete estava adorando tudo aquilo. — Vocês são Norma Reagan e Neil Kilbridge, não? Fiquem à vontade. — É uma linda casa. Bem grande, não é? — O olhar avaliador da jovem voltou-se de novo para Suzanne. — Já não nos vimos antes? Janete interrompeu depressa. — Minha amiga acaba de chegar do exterior. Norma Reagan arrumou a alça da bolsa no ombro e cruzou os braços, sem intenção de desistir. —Neil, venha cá. Não a conhecemos de algum lugar? — perguntou, indicando Suzanne. Neil Kilbridge riu com malícia, sem esconder um olhar de admiração. — Se a tivesse visto antes, garanto que não a esqueceria. Tenho certeza de que não nos conhecemos.

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Imóvel ao lado de Janete, Suzanne não respondeu. Estava muito pálida só por recordar algumas cenas que definitivamente queria esquecer. O flash da máquina a transportou para o dia de seu casamento. Havia uma multidão de jornalistas. Era bem possível que Norma também estivesse presente. Preocupada, Janete tentou mudar de assunto. — Bem... estou à disposição. Por onde querem começar? Ao ouvir passos, Suzanne se colocou em estado de alerta, intuía que era ele. Seu coração quase parou, e os lábios delicados se abriram, sem emitir qualquer som. Ao se deparar com Raul, seu rosto pálido corou. Era incrível, ele continuava o mesmo. Esguio e viril como sempre. — Por favor, Suzanne, você pode ir até a cozinha e pedir a Sun Yu-Ren para fazer um chá? — pediu Janete. Por um momento ela não se moveu, fitando a tia, numa atitude infantil. Num impulso, levantou-se depressa e caminhou para a cozinha. Era uma excelente oportunidade para ganhar tempo. "Deus a abençoe, tia Janete", suspirou Suzanne, grata pela chance de se recompor. Na cozinha, parou por um momento, tentando se controlar. Depois de falar com Sun Yu-Ren, a coragem desapareceu de novo. Não podia encontrar Raul. De repente, fugiu para o quarto e fechou a porta, sentando-se na cama. Mas não podia ficar ali indefinidamente. Logo tia Janete levaria os jornalistas para fotografar a casa, e ela precisaria estar presente. Levantou-se, arrumou o vestido, retocou a maquilagem e escovou os cabelos. Logo estava descendo as escadas. Com determinação, dirigiu-se para a sala. Sun Yu-Ren já tinha servido o chá, e estavam todos sentados conversando. Será que conseguiria sair pelos fundos? — Por que está parada aí, Suzanne? A voz familiar a fez tremer. Raul estava a seu lado, na porta da sala, e Suzanne o fitou sem dizer nada. Os cabelos negros e sedosos estavam mais compridos, e o rosto parecia mais pálido. A boca bem feita tinha uma expressão grave, mas ainda assim ele sorriu, fitando-a intensamente. Ela conhecia bem aquele olhar, parecia ter o poder de enxergar até a parte mais íntima do seu ser. Sentia-se deslumbrada. — Olá, Raul. Como vai? — Sua voz soou fraca, e ela se afastou um pouco, como se temendo a proximidade dele. — Estou bem. Por que não voltou logo? Todos esperavam por você. — A intensidade do olhar aumentou. — O que tem feito? por acaso esteve doente? — Não. — O que aconteceu? Será que conheceu um amor impossível na viagem, e agora está definhando de saudades?

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— Não houve nada. Por que pergunta? — Está pálida e magra demais. — Viajei para tentar pôr as idéias em ordem — respondeu, formal. — E conseguiu? — Em parte. — Apesar da determinação de tratá-lo com frieza, Suzanne tremia. — Agora, se já terminou seu interrogatório, podemos nos juntar aos outros, não é? — As visitas não vão demorar — explicou, enquanto a conduzia ao terraço, onde estavam os outros. Num impulso, ele parou e disse baixinho. — Senti muito a morte de seu pai. Gostava muito dele. Suzanne não pôde encará-lo e mordeu o lábio com força. "Que cínico!" Vir a Hong Kong tinha sido um erro. A única coisa que desejava era voltar para casa. Juntaria toda a sua força de vontade e esqueceria Raul. Ao encontrá-lo, uma série de lembranças dolorosas voltaram à tona. Tia Janete saudou-os calorosamente. — Suzanne, Raul, venham tomar chá. Neil Kilbridge levantou-se e ofereceu uma cadeira a Suzanne, enquanto Raul se sentava ao lado da tia, que servia o chá. —Tem uma linda casa, monsieur de Brecourt. Talvez concorde em posar para algumas fotografias da reportagem. — A voz de Norma Reagan era rouca e insinuante. Raul sacudiu a cabeça e bebeu o resto do chá. — Sinto muito, mas tenho um encontro e não poderei ficar. Espero que me desculpem. A repórter não escondeu seu desapontamento. — Nem mesmo uma única fotografia? — insistiu. Ele tornou a negar, com um sorriso displicente, enquanto se inclinava na direção de Suzanne, para servir-se de mais chá. Trêmula pela proximidade, ela se afastou e, ao fazê-lo, a xícara escorregou-lhe da mão e caiu entre os dois. Ao mesmo tempo, inclinaram-se para evitar que caísse no chão. Suas mãos se encontraram quando tentavam pegar a xícara. — Desculpe — disse ele. — Foi minha culpa. Suzanne afastou a mão, furiosa por ter demonstrado seus sentimentos e envergonhada pelo rubor que lhe subiu ao rosto. Ao erguer os olhos, viu que Norma Reagan a observava com interesse. Será que a repórter tinha lembrado quem era ela? Sem parecer que notara seu embaraço, Raul levantou-se e pediu desculpas, entrando na casa. Os dois jornalistas também se levantaram e começaram a fotografar o jardim.

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—Vou acompanhar nossos convidados e mostrar-lhes a casa. Dê um passeio, ou descanse até a hora do almoço, Suzanne — disse Janete, ansiosa por ajudaria. Por um momento, ela hesitou, ao se lembrar de que estava num país desconhecido. Notando sua relutância, Janete explicou: — Sinto que meu carro não esteja disponível, mas não estamos longe da rodovia principal, e os ônibus são eficientes e pontuais. Pode sair tranqüila. —Ela parecia ansiosa para que Suzanne saísse, evitando as perguntas embaraçosas da repórter. Suzanne não culpava Janete por querer evitar comentários desagradáveis, caso alguém a identificasse. Se tivesse idéia de como Suzanne estava se sentindo, certamente sua preocupação dobraria. O contato dos dedos de Raul tinha sido como um choque elétrico. Vinham-lhe à flor da pele todos os sentimentos sufocados há mais de um ano. Não podia negar que o amava e que faria qualquer coisa para vê-lo mais uma vez. Pegou a bolsa e desceu lentamente as escadas, pensativa. —Que tal posar para uma foto? — pediu Norma, com um sorriso dissimulado. — Por favor, srta. Suzanne! — reforçou Neil Kilbridge, com entusiasmo. — Nada como uma linda garota para valorizar as fotos! Ela apertou a alça da bolsa, sem saber o que dizer. Tia Janete, apesar de constrangida, procurou um modo de evitar a foto sem ser indelicada. — Sinto muito, mas Suzanne não poderá ficar. Vou levá-la à cidade. A voz firme de Raul quebrou o gelo, e Suzanne apenas o olhou, surpresa ao sentir como a ligação entre eles ainda parecia existir. Só a presença dele a fazia agir com calma, e até conseguiu sorrir. — Estou pronta — respondeu, passando por Norma, que estava parada na escada. — Cuidado! Dizem que dá azar cruzar com alguém na escada — advertiu a repórter, com uma risadinha. Ao deixarem a casa, em direção ao carro, Raul perguntou: — Você não queria tirar a foto, não é? — Não, é lógico que eu não queria. Nem como sua ex-esposa, nem como Suzanne Dawson. Ele ergueu uma sobrancelha e fitou-a provocante. — Está arrependida do divórcio? — perguntou, parecendo divertido. Suzanne ficou muda e virou o rosto, para evitar-lhe o olhar. — Quando nos casamos eu flertava com vários rapazes. Mas sabia muito bem que não amava nenhum deles, incluindo você. — Às vezes o amor é uma questão de convivência — ele replicou.

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— Isso não se aplica a você, não é, Raul? Sabe o que quer e faz tudo para conseguir. — Tem razão. Mas também cometo enganos. Felizmente, costumo perceber os erros a tempo de evitar desastres maiores. Suzanne olhava para as mãos fortes sobre o volante, refletindo que a conversa se encaminhava para um terreno perigoso, sem que fosse capaz de evitá-lo. — Sempre com uma resposta na ponta da língua — ela provocou, sem poder se conter. — Deve ser interessante para você ver como os simples mortais costumam errar. Ele sorriu, sem desviar os olhos da estrada, não demonstrando raiva nem irritação. — Não acha que podíamos fazer as pazes? — sugeriu, suavemente. — Se continuarmos a discutir, todos vão pensar que ainda somos marido e mulher. Não concorda comigo? Estavam chegando ao centro da cidade. Raul diminuiu a velocidade e disse, enquanto estacionava junto à calçada. —Terei de deixá-la aqui, porque tenho uma reunião de negócios. Sugiro que visite as lojas da rua principal. O correio é aqui perto e poderá comprar cartões postais e selos. Virei buscá-la aqui mesmo, dentro de uma hora, para almoçarmos juntos. Ela se virou para encará-lo, surpresa. Sua vontade era gritar que não era mais aquela menina mimada; que amadurecera a duras penas e sabia muito bem cuidar de si. Mas não disse nada.Era incrível que ele ainda a tratasse daquela maneira, usando um tom paternal. Não iria mais aceitar isso. Tinha levado quase dois anos para descobrir que ele era o único homem que marcara sua vida. Queria que ele a visse como mulher. Enfim, agora era tarde demais, e não deveria ter falsas esperanças. Ele era um homem seguro e experiente, que a afastava de sua vida com a maior tranqüilidade. Precisava ser sensata o bastante para fazer o mesmo. —Tia Janete me espera para almoçar. Não se preocupe comigo. Vou dar uma volta e, em seguida, voltarei para casa. — Já disse que apanho você dentro de uma hora. Está num país estranho. Hong Kong não é Londres. Tia Janete espera que eu tome conta de você e sabe que a levarei para almoçar — insistiu Raul. Ele se inclinou para abrir a porta e parou com a mão na maçaneta. Suzanne apertou-se contra o assento, para evitar aquela proximidade perigosa. O suave aroma de sândalo era familiar e lembrava momentos tão íntimos que ela fechou os olhos por um instante. Extremamente perturbada, reagiu da maneira mais agressiva possível. Era sua única defesa.

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— Não quero dar trabalho. Já disse isso a tia Janete. Não sei se sabe, mas o convite dela foi feito um ano atrás. Além disso, não esperava encontrá-lo aqui. Ele se virou e fitou-a de perto. — O que há em você que me dá vontade de lhe dar uma surra? Sei que não tem tempo para mim, mas veio até aqui e cuidaremos para que volte sã e salva. Aliás, por que resolveu vir? —Vim para cá porque não conseguia enfrentar Londres sem meu pai. Achei que precisava de um tempo. O ano que passei viajando me ensinou muito sobre independência, mas, ao voltar para casa, a solidão foi grande demais. Com voz rouca, Raul argumentou: — Apoiar-se em tia Janete não vai adiantar. Precisa de um marido. — Tentei uma vez e foi um desastre, como sabe. Quando alguém estende a mão, num momento em que precisamos de ajuda, não se pode recusar. — Sua voz soava trêmula, ela falava sem erguer os olhos. — Tia Janete me ofereceu refúgio e afeto, mas não pretendo abusar. Voltarei logo a Londres. — Então cuidaremos para que volte recuperada. Apanho você no correio, dentro de uma hora, e é melhor que esteja lá. Vou almoçar com uma pessoa amiga e, portanto, não estaremos sozinhos. Não pense que está me atrapalhando. O rosto dele era tão bonito e estava tão próximo que o coração de Suzanne disparou. Ao descer do carro, suas pernas tremiam tanto que mal podia andar. Reuniu todas as forças e tentou sorrir. A simples presença de Raul balançava todos os seus alicerces. A princípio achara que conseguiria contornar bem a situação. À medida que o tempo passava, no entanto, ficavacada vez mais difícil. As emoções que camuflara brotavam agora com toda intensidade. Ele, só ele era capaz de despertar-lhe tais sentimentos. Fora o primeiro homem de sua vida. O único. Irritada, viu-o afastar-se no enorme carro luxuoso, desaparecendo no meio do trânsito. Como ousava dizer que ela precisava de proteção? O que era pior: de um marido? As vitrines das lojas expunham as mercadorias mais diversas: relógios, pérolas, diamantes, marfim, jade, seda, porcelana, cristais, corais, tapetes magníficos. Durante o passeio chegou a esquecer-se de seus problemas. Na verdade, nunca tinha visto algo parecido, e apreciou a caminhada com prazer. Uma pessoa podia passar meses observando tudo aquilo, pensou. Numa das vitrines algo lhe chamou a atenção: um lindo bracelete de jade, exótico e delicado. Imediatamente decidiu entrar para perguntar o preço. Um par de brincos combinando estava colocado ao lado, e o vendedor sorriu, apressando-se em tirar as jóias da vitrine.

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Ela achou que eram perfeitos para tia Janete, e já ia pedir para embrulhar quando um ruído vindo da rua chamou-lhe a atenção. Através da porta aberta, viu a figura inclinada de um jovem tentando alcançar algo que derrubara. Na mesma hora, reconheceu o rapaz cego que se sentara a seu lado na viagem. Com um murmúrio de desculpas ao vendedor, correu para a rua e apanhou a bengala branca, entregando-a ao dono. — Aqui está — disse ela. — Está sozinho? Ele se virou, e Suzanne ficou surpresa ao notar como parecia frágil. O rosto magro estava pálido, e ele tinha um ar doentio. — Você está bem? O jovem continuava impassível, concentrado, como se fizesse um esforço para se lembrar de algo. Em seguida, sorriu: — É aquela garota bonita que sentou a meu lado no avião, não é? Surpresa, Suzanne perguntou sem pensar: — Mas como pode se lembrar de mim e saber como sou? — Posso ver alguns contornos e cores, e há um perfume a sua volta, que diz muito sobre você. Como se chama? — Suzanne, Suzanne Dawson. E você? — Alan Edge. Obrigado, srta. Dawson. Um raio de sol iluminou o rosto do rapaz, e Suzanne ficou impressionada com sua palidez e seu ar abatido. Algo o estava perturbando, e desejou ajudá-lo. — Estou fazendo algumas compras. Posso ajudá-lo em alguma coisa? Acho que é muito corajoso, andando por aqui sozinho. — Estava indo para as docas e não quero detê-la por mais tempo. — Oh, não se preocupe. Vou almoçar com um amigo, mas ainda tenho tempo. Se quiser, posso acompanhá-lo. Ele hesitou, como se fosse recusar, mas acabou aceitando com um sorriso. Suzanne pegou-o pelo braço e dirigiram-se para o porto. Ela procurou se orientar pelas placas indicativas, conduzindo-o através da multidão. — Suponho que disponha de um cão guia — disse ela. — Não. O acidente com meus olhos aconteceu enquanto meu navio estava ancorado no porto — ele explicou. — Foi uma explosão na casa das máquinas. Eu estava noivo e ia me casar logo. Minha noiva, Jane, encontrava-se em Singapura, com um grupo de bailarinos, e soube do acidente quando voltava para cá. Só que eu estava no hospital e nos desencontramos. — Que falta de sorte! — murmurou Suzanne. — Ela ainda está aqui? — Não sei. A explosão não foi séria, e o navio partiu logo depois de fazer os reparos. Fiz perguntas por todo lado, mas até agora não

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tive notícias dela. Até à polícia eu já fui, mas não puderam fazer nada. Já estavam quase no porto quando Alan parou, assegurando que podia continuar sozinho. — Não precisa vir comigo — disse ele. — Obrigado pela ajuda, mas daqui posso ir sozinho. Muito obrigado por tudo.

CAPÍTULO III

Raul já esperava por ela no correio, encostado displicentemente do lado de fora do carro. — Desculpe. É mais tarde do que pensei — disse esbaforida pelo esforço da corrida que empreendera para chegar a tempo. — Acabo de chegar — ele falou. — Parece que está com calor. Numa atitude gentil, ele abriu a porta para que Suzanne entrasse no carro. — Adoro andar ao sol! — disse. O olhar zombeteiro de Raul percorreu-a de alto a baixo, fazendo-a corar ainda mais. — Por que veio a Hong Kong sozinha? Sabe que não consigo imaginá-la como uma pessoa solitária? Sempre adorou viver cercada de gente, não é verdade? — Acha que me conhece muito bem, não é, Raul? De qualquer forma, não tem nada a ver com minha vida. — Digamos que eu tenha uma fraqueza que me leva a tentar ajudar os desprotegidos. Especialmente você. De tão superprotegida que foi, não tem a mínima estrutura para enfrentar a vida. Suzanne ergueu o queixo, desafiante. A última coisa que desejava no mundo era a piedade de Raul. Ele não deu mostras de perceber sua atitude belicosa de tão atento ao tráfego que estava. — Aprendo depressa — ela voltou à carga. — E tive um bom professor: você. — Também aprendi algumas coisas com você. Está surpresa? — É claro. O que eu podia ensinar que já não soubesse? — A ironia de sua voz era cortante. — Não disse que me ensinou — ele corrigiu. — Apenas aprendi algo com você, o que é uma coisa bem diferente. — Verdade? Então me diga o quê. —Bem, acho que vou começar com as coisas boas — provocou-a. — Descobri que seu corpo é tão perfeito quanto aparenta. Só que, no momento, está magra demais. Ela o olhou indignada, estava tão furiosa que não conseguiu responder.

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— Ainda não acabei. Sua aparência delicada é um disfarce.Essa pele clara e os lábios rosados escondem uma saúde de ferro. Apesar de parecer frágil, é forte e sadia. Que sujeito petulante! Quem pensava que era para analisá-la dessa forma? O que pensava que fosse, um objeto raro, passível de ser criticado? Ele não tinha o direito de tratá-la assim. Com uma guinada na direção, Raul entrou numa rua tranqüila e parou em frente a um muro alto, completamente alheio às sensações que desencadeara. O ar quente atingiu-a, assim que saiu do carro. Raul segurou-a pelo braço, conduzindo-a a um pesado portão de madeira. Ao entrar, Suzanne deparou-se com um pátio acolhedor e agradável. O perfume das mimosas enchia o ar, e cadeiras de vime espalhavam-se pelo jardim. Ao fundo, uma pequena casa em estilo chinês. Silvana Lapport aproximou-se, vestindo um quimono de seda azul, parecendo ainda mais linda. Raul caminhou em sua direção, sorrindo. —Então é você, Raul. E trouxe Suzanne, como prometeu — saudou-os, estendendo a mão esguia para cumprimentá-los. Dando os braços aos recém-chegados, conduziu-os a uma sala fresca e agradável. —Sente-se, Suzanne. Raul servirá os aperitivos. Espero que goste de comida italiana. Agora, com licença um instante. Como uma perfeita anfitriã, instalou Suzanne junto a uma pequena mesa," arrumada com capricho: pratas e cristais brilhavam, um arranjo de flores completava a decoração. Em seguida, saiu da sala, dirigindo-se à cozinha. Raul preparou os drinques num pequeno bar, com uma desenvoltura incrível. Ao observá-lo, a idéia que a assaltara quando vira Silvana pela primeira vez assumiu outras dimensões. Ele parecia completamente à vontade, como se estivesse habituado à casa. Com certeza os dois costumavam passar as noites naquela sala acolhedora. Sentindo-se uma intrusa, estendeu a mão para pegar o copo que ele lhe oferecia. Agradeceu como um autômato.Foi só quando levou a bebida aos lábios que percebeu surpresa que ele não havia se esquecido da sua preferência. A própria Silvana tinha preparado a refeição, e não havia sinal de empregados. Era evidente que fizera tudo para impressionar.Na realidade, o almoço estava delicioso. Apesar disso, Suzanne mal tocou na comida. Por mais que se esforçasse, não conseguia se sentir à vontade. De certo modo, Silvana a perturbava até mais do que Raul.A voz rouca e sensual dava-lhe uma sensação de desconforto, apesar da atitude gentil da jovem italiana. — O que está achando de Hong Kong? — ela perguntou, sorrindo. — Gosto muito — respondeu, polida.

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— Pois eu adoro viver aqui. A vida nunca é monótona. Há muito a explorar. Só os diferentes tipos de cozinha são um verdadeiro desafio. Silvana pegou o copo de vinho e bebeu um gole, olhando para Raul. Notando a troca de olhares, Suzanne estremeceu, sem querer. Qual seria o relacionamento entre eles? O que significavam um para o outro? De qualquer forma, não era da sua conta. Com um gesto cavalheiresco, Raul ergueu o copo, num brinde a Silvana. Embora o observasse com atenção, Suzanne não saberia definir o sorriso dele. Era um misto de cinismo e afetividade. — Espero que possa ficar aqui por muito tempo. Senão terei que achar uma cozinheira melhor e uma anfitriã mais bonita. Vai ser difícil. — Só isso? — perguntou ela. — Não é o suficiente? — ele replicou, ao se levantar. — Agora vou fazer café. Raul recolheu os pratos e os copos, arrumou-os numa bandeja e levou tudo para a cozinha. Mais uma vez Suzanne achou que o lugar dele era ali, naquela adorável casa chinesa. Por que Silvana não tinha empregados? Provavelmente os dispensava para não atrapalhar o almoço a dois. — Sabe, Suzanne, tenho uma diarista para fazer o serviço da casa — explicou com um sorriso. — Portanto, não preciso me preocupar em lavar a louça. Como sabe, queria muito conversar com você. Há tempos ouvia falar da ex-esposa de Raul e desejava conhecê-la. — Então já sabia quem eu era? — É claro. Venha, vamos até o terraço para tomar café. Fique à vontade. Silvana conduziu-a a uma pequena área decorada com móveis de junco e um toldo colorido. Suzanne sentou-se, procurando aparentar uma naturalidade e tranqüilidade que não sentia. Não estava gostando do rumo que as coisas tomavam. Até que ponto a outra saberia de seu relacionamento com Raul? Com certeza, fora tia Janete quem lhe dera as informações. De qualquer forma, não gostava de ter sua privacidade invadida e, muito menos, de ter de submeter-se a interrogatórios. — Estou surpresa. Você não é o tipo de pessoa que imaginava casada com Raul. É tão tipicamente inglesa, tão frágil e jovem, que mais parece uma boneca. Confesso que esperava alguém completamente diferente. — Tenho vinte e dois anos. — Mas era ainda mais nova quando se casou com ele. Raul é um homem bastante experiente. Você é o oposto dele. A idéia de a outra fazer uma análise de seu casamento não a agradou e, além disso, não pedira a opinião de ninguém. Procurou

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deixar bem claro que não pretendia levar o assunto adiante, apesar de sentir-se ferida pelas palavras da outra. — Tenho consciência de que muitas mulheres desejariam ter se casado com Raul. Só que ele se casou comigo. De qualquer modo, está tudo acabado. Não quero mais falar disso. — Em seguida, apressou-se em justificar. —Por favor, não me interprete mal. Aprecio sua franqueza, mas responda sinceramente não acha que é perda de tempo discutirmos nossos casamentos? Por um momento, os olhos negros de Silvana tornaram-se sombrios, mas em seguida ela sorriu: —Vamos ser boas amigas. Tenho certeza — afirmou, dando um tapinha amigável no braço de Suzanne. — Será que perdi alguma brincadeira? — perguntou Raul, ao voltar e ver que ambas sorriam. Ele trazia o café numa bandeja e serviu-o com cuidado. Parecia descontraído, e o rosto bonito revelava um contentamento genuíno. Se ao menos pudesse esquecer os momentos que haviam passado juntos, pensou Suzanne. — Não foi nada disso, querido. Apenas uma conversa de mulheres — respondeu Silvana com voz rouca, ao pegar um cigarro na caixa de marfim, sobre a mesinha de vidro. Raul apressou-se a acendê-lo e ofereceu um a Suzanne, que recusou. Ao vê-lo inclinar-se sobre a mureta da varanda, fumando vagarosamente, Suzanne desejou ser mais velha e experiente. Silvana e Raul não pertenciam ao seu mundo. Eram sofisticados e vividos, e pareciam feitos um para o outro. Ao observar o perfil másculo, lembrou que jamais demonstrava cansaço, irradiando sempre energia e vitalidade, mesmo após um longo dia de trabalho. —Obrigada pela refeição deliciosa — disse com sinceridade, tentando quebrar o silêncio constrangedor. —Gostou? — Silvana sorriu. — Estou ensinando Raul a fazer comidas italianas. Só que vamos muito devagar, porque ele é um homem muito ocupado. Raul virou-se, e Suzanne duvidou que era apenas a cozinha italiana o motivo de tanta intimidade. —Enquanto isso, aproveito a comida de Silvana — sorriu, ao virar-se para ela. — Não se esqueça de que acho a cozinha francesa insuportável. — Cínico! Só por isso, terá que fazer um daqueles pratos franceses maravilhosos para mim uma noite dessas. — Quando quiser, madame. Não vai se arrepender — ele riu, e os olhos escuros brilharam. Suzanne podia sentir a atmosfera de sensualidade que os envolvia. Não era imaginação sua, era muito fácil perceber a atração quase selvagem que os unia. Suspirou, contrariada.

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Aquele almoço tinha se transformado num verdadeiro suplício para ela. Com sua mente atormentada, podia até vê-los abraçados na penumbra da sala. Estremeceu só de imaginar a cena. Será que algum dia deixaria de amá-lo?. Apagando o cigarro num belo cinzeiro em forma de dragão, Raul olhou para o relógio. — Preciso ir agora. Está pronta, Suzanne? Silvana despediu-se dos dois e ficou acenando do portão, até vê-los desaparecer. Impossível não se gostar dela; além disso, Suzanne não a conhecia o suficiente para julgar se era sincera ou não. Inegavelmente, era uma mulher linda, ciente do seu charme. Mas Raul não era tolo. De repente, lembrou-se de algo que seu pai lhe dissera um dia. — Raul é um desses homens fascinantes, que todas as mulheres adoram, mas não é tolo. Por isso, gostaria que se casasse com ele. Todo homem ama uma mulher mais do que as outras durante boa parte da vida. Tenho certeza de que essa mulher será você. Ela fechou os olhos. O pai se enganara. Não era ela a mulher mais importante da vida de Raul. — Está muito quieta. Será que preferia ter ido a um restaurante? Ao abrir os olhos, Suzanne fitou as mãos fortes sobre o volante. Podia senti-las sobre seu corpo, acariciando-a lentamente, provocando as mais loucas sensações... — Não, é claro que não. A comida estava deliciosa e Silvana é encantadora. — É mesmo. Como você, precisa de um marido. É muito feminina e vulnerável para viver sozinha. — Mas ela é divorciada, não é? O carro elegante deslizava veloz por ruas e avenidas. — É, sim, só que a religião dela não reconhece o divórcio. — Quer dizer que ela não pretende se casar outra vez? — Eu não disse isso — ele sorriu. — Sendo uma criatura tão apaixonada, é bem provável que o faça. — O ex-marido é muito mais velho do que ela? — perguntou sem esconder a curiosidade. — Está pensando se há possibilidade de ele morrer logo? — retrucou Raul, fitando-a de modo estranho. — Não é nada disso. Foi só uma pergunta. — Entendo — ele murmurou. — Para ser franco, o homem não só é muito mais velho, mas muito doente. Suzanne ficou silenciosa, à medida que o carro se aproximavada casa dos Brecourt. — Não vai perguntar se estou interessado nela? — Raul olhou-a divertido, como se pudesse ler sua mente. — Por que deveria? Acha que estou interessada no que sente? Você é livre para fazer o que quiser.

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— Pensei que quisesse saber — ele replicou, com um tom de voz ambíguo. Sem responder, Suzanne procurou controlar a raiva. Este era o Raul que detestava, sempre seguro e capaz de decifrar seus mais íntimos segredos. — Quanto tempo pretende ficar aqui? — perguntou, mudando de assunto. — Por enquanto, estou usando Hong Kong como minha base de operações. Quando preciso, viajo ao resto do mundo e volto para cá. Isso a desaponta? — Por que deveria? Não tenho nada a ver com isso. — Suzanne sentia que sua voz não era convincente. Não sabia mentir.Só que Raul jamais saberia quanto o amava. — Tia Janete não vai ficar aqui para sempre. Sabe disso, não é? Depois que tio Philippe voltar, planejam viver em Paris. — Ela me contou. Espero vê-lo antes de voltar a Londres. — Não tenho dúvida. Tio Philippe gosta muito de você. Bem, chegamos — disse ele, ao parar o carro junto ao portão. — Tem planos para hoje à noite? — Vou fazer companhia a tia Janete. — Na pressa de descer, não conseguiu abrir a porta, e ele teve de ajudá-la. Entrou na sala feito um furacão. Tia Janete percebeu de imediato o rosto corado e os olhos brilhantes. — Gostou do almoço, querida? Venha se sentar aqui para me contar tudo. E Raul? Onde está? — Acho que tinha uma reunião — respondeu Suzanne, afundando numa poltrona e tentando sorrir. — Continua dominador como sempre — concluiu, tentando dar um tom de indignação à voz. — Eu não diria que continua o mesmo. Acho que mudou muito. Não sei dizer ao certo o que é, mas ele me preocupa. Gostaria que se casasse e levasse uma vida mais tranqüila. Sem erguer os olhos do tapete, Suzanne disse, lentamente: — Isso me leva a perguntar outra vez por que me convidou a vir aqui. Nunca mais me procurou após o divórcio. — Encarou tia Janete de frente. — Sei que tem todo o direito de pensar o pior de mim. — Não acho que esteja apta a julgar alguém, nem que tenha esse direito. — Havia uma ponta de tristeza em sua observação. — Acho que vocês estavam imaturos para o casamento. É só. — Talvez eu não tenha sido feita para o casamento. O que acha? — Suzanne olhava para Janete com uma expressão franca, procurando uma resposta objetiva. Gostaria de explicar a ela que o casamento fora um arranjo de negócios. Só depois do divórcio percebera que amava Raul. Mas calou-se. Isso era um assunto morto. Os olhos de tia Janete suavizaram-se e ela sorriu:

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— A vida foi generosa com você. Tem muitas qualidades e ainda é jovem. — Mudando de assunto, continuou: — Deve visitar-nos em Paris, quando Philippe e eu nos mudarmos. Quero lhe mostrar muitas coisas bonitas e românticas. Quem sabe possa encontrar ali a felicidade que procura. Suzanne sorriu, voltando à pergunta. — Ainda não disse por que me convidou. Com a voz delicada, Janete respondeu: — Acho que queria vê-la. Pensei que pudesse conhecê-la melhor. — Numa visita tão curta? — Pode-se saber muito sobre uma pessoa durante apenas a hora do chá. Aliás, não acha uma boa idéia pedirmos a Sun Yu-Ren que nos traga uma xícara? Enquanto bebemos, pode me contar o que planeja usar nesta noite. — Quem disse que vou sair? — Suzanne parecia surpresa. — Com certeza, Raul a convidou para sair. E, se for sensata, vai aceitar. Ora, que garota, em seu juízo perfeito, se recusaria a jantar numa das cidades mais fabulosas do mundo, ao lado de um homem encantador? Além disso, acho que precisam conversar. Quem sabe não resolvem de uma vez por todas as divergências? Suzanne estremeceu ao pensar em algo que não tinha lhe ocorrido antes. — Por que Raul não está hospedado aqui? Não disse que a casa é para hospedar o pessoal da companhia? Janete pareceu pouco à vontade e hesitou antes de responder: — Raul mudou-se porque não queria aborrecê-la com sua presença. Está morando no clube. — Oh, não! — Suzanne ergueu a mão, para disfarçar o rubor do rosto. — Devia ter me dito! Sinto-me tão mal com essa situação... — Quer dizer que não viria, se soubesse que ele estava aqui? — Não, com certeza não viria — afirmou com segurança. — Não quero favores de Raul. Nem sequer toquei no dinheiro que me deixou. Sou completamente independente dele. — Talvez Raul pense da mesma forma e por isso preferiu se afastar. Creio que ele também pretende conservar a independência. — Janete falava devagar, procurando ser cautelosa. As últimas palavras atingiram Suzanne como um baque. Num esforço sobre-humano, conseguiu conter as lágrimas. Então era isso! O chão pareceu abrir-se sob seus pés. — Quer dizer que ele tem medo de que eu tente fazer as pazes, só pelo fato de estar aqui? É um absurdo! Sun Yu-Ren entrou com o chá, quebrando o clima tenso, e começou a encher as xícaras. Suzanne estava furiosa! Aquilo era injusto! Jamais pensara que Raul encarasse sua visita como uma tentativa de reconciliação.

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Não costumava se importar com o que os outros pensavam, mas com ele era diferente. Ao se lembrar da conversa que haviam tido no carro, recordou que dissera que ela precisava de um marido. E tinha insistido para saber o motivo que a trouxera a Hong Kong. Bem, teria de deixar tudo bem claro.

CAPÍTULO IV

Ao se olhar no espelho na manhã seguinte, levou um choque: toda a agonia que sentira durante a noite ainda estava estampada cm seu rosto. Desanimada, caminhou para o banheiro. Nada como um bom banho para revigorar. Demorou-se muito no chuveiro, procurando aliviar a tensão. Só depois de enxugar-se é que leve coragem de se olhar no espelho novamente. Suas pálpebras continuavam inchadas, as profundas olheiras acentuavam seu aspecto desolado. Por que tinha de ser tão tola a ponto de deixar transparecer a todos o que sentia? Exausta, constatou que não havia mais nada a fazer e desceu para tomar café. Tia Janete surpreendeu-se ao vê-la. — Bom dia, querida. Dormiu bem? — perguntou, tentando disfarçar a preocupação, enquanto servia o chá. — Sim, o que é surpreendente, depois de uma refeição como aquela — mentiu, pegando a xícara de chá. —; Não ficou chateada por eu ter ido para a cama quando cheguei, não é? — De jeito nenhum. Devia estar exausta. Vocês jovens sempre abusam de tudo. Suzanne tomou um gole de chá, procurando ser tolerante. — Não me diga que estou magra demais. Desde que cheguei todos falam nisso. Com um leve erguer de sobrancelhas, Janete perguntou: — Também Raul? O rosto de Suzanne corou, e ela não conseguiu dizer nada, limitando-se a assentir com um gesto de cabeça. Por um instante, Janete fitou-a com atenção. Em quaisquer circunstâncias, seus olhos azuis eram francos e límpidos como os de uma criança. — Flores para a senhorita. O mensageiro avisou que o cartão está dentro. Sun Yu-Ren entregou-lhe o buquê de rosas vermelhas, dando-lhe um sorriso. Ela retribuiu e pegou o cartão, preso com uma fita de cetim vermelha. Ao abri-lo, o silêncio era completo. O empregado e tia Janete aguardavam curiosos seus comentários. A letra firme e masculina era-lhe muito familiar. "Aproveite sua visita. Raul."

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Com calma, Suzanne colocou o cartão ao lado do prato e pediu a Sun Yu-Ren para pôr as flores na água. Então, ergueu a cabeça, enfrentando o olhar interrogativo da anfitriã. — São de Raul — explicou, consciente de que mais uma vez deixara transparecer o quanto estava abalada. Janete, por sua vez, esperava que ela lhe fizesse confidencias. Será que Suzanne amava Raul, apesar do rompimento? Não era possível. O sobrinho nunca entrara em detalhes sobre a separação. Além disso, ela e Philippe sempre atribuíram a culpa do rompimento à imaturidade de Suzanne. — Deve ser um presente de despedida — falou sem pensar, de tão perturbada que estava. — Despedida? — Suzanne repetiu com voz fraca. — Quer dizer que Raul foi embora? — Sim. Ele não lhe contou? Um estranho tremor a percorreu. Todo seu corpo latejava. De repente, viu-se mergulhada num estado de torpor. Ainda há pouco, tentava se convencer de que a ausência de Raul seria o melhor para ambos. Só que agora seu coração dizia algo bem diferente. As duas comeram em silêncio, enquanto tia Janete abria a correspondência que acabara de chegar. É claro que Suzanne gostaria de perguntar para onde Raul tinha ido, mas relutou para não revelar seu interesse. De mais a mais não tinha o direito de fazer perguntas sobre ele. Não sabia qual seria a reação de Janete, mas estava certa de que não aprovaria. — Não tem curiosidade em saber para onde ele foi? — perguntou Janete, erguendo os olhos da carta que estava em seu colo. Mais uma vez, Suzanne corou, não conseguiu esconder sua perturbação. — Um pouco — admitiu, sem coragem de mentir. — O fato de estarmos divorciados não significa que o outro deixou de ter importância. Janete concordou, apreciando a franqueza peculiar da jovem que tanto a cativava. Em seguida, procurou justificar: — Raul é como Philippe. Nunca se sabe para onde irão. Às vezes acho que as secretárias deles sabem até mais do que eu mesma. Não vejo a hora de Philippe reduzir suas atividades. Mal posso esperar para ter um marido de verdade outra vez. — Isso não irá sobrecarregar Raul? — Raul é infatigável: tomará conta de tudo sem o menor problema. Só espero que leve uma vida normal depois de assumir lodo o controle das empresas. — Sabe que Silvana está lhe ensinando pratos da cozinha italiana? — perguntou instintivamente. Janete sorriu, antes de responder.

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— Eles se dão muito bem. Fui eu quem os apresentou há cerca de um ano. Sabe, minha solidão aqui é muito grande. Desde que conheci Silvana, nos tornamos boas amigas. A resposta negligente da outra só aumentou o ciúme que Suzanne sentia da bela italiana. Não se contendo, prosseguiu: — Então acha que ela seria a esposa ideal para Raul? — Não sei... fica difícil afirmar... Raul é muito fechado... De minha parte, gostaria que se casasse com uma francesa. — Isso seria ótimo para vocês. Se fez planos para hoje, tia Janete — Suzanne procurou mudar de assunto —, não se incomode comigo. Gostaria de dar umas voltas para ver as vitrines. Sentiu uma necessidade imensa de sair da sala e refugiar-se em seu quarto. Não via a hora de ficar sozinha. Viera a Hong Kong em busca de companhia, mas sentia-se mais solitária do que nunca. Tia Janete, com delicadeza, deixara bem claro que ela não era mais parte da família. Precisava partir o quanto antes. Tinha viajado para tão longe só para descobrir que Raul estava definitivamente fora de sua vida. Tudo que tinha a fazer era encarar essa realidade de uma vez por todas. Na verdade, só podia contar consigo mesma. — De fato, tenho várias coisas para fazer pela manhã. Acho que vou me demorar no cabeleireiro. Se quiser, posso deixá-la na cidade. — A voz de Janete trouxe-a de volta à realidade. Se não se importa, gostaria que voltasse para almoçar comigo. — Obrigada — disse, suavemente. — Aceito a carona, mas prefiro almoçar fora. Está bem assim? Janete hesitou, como se pretendesse argumentar, mas acabou cedendo. — Desde que não fique fora o dia todo... Prometi a Raul que cuidaria para que nada lhe acontecesse. Olhando para o cartão, com a letra dele, Suzanne duvidou que essa preocupação fosse realmente tão grande. — Estou acostumada a tomar conta de mim — respondeu em voz fraca. Ao chegar à cidade, caminhou por um bom tempo, a fim de recuperar a serenidade. Grossas lágrimas corriam livremente pelo seu rosto. As palavras de Janete voltavam-lhe à memória o tempo inteiro. Por mais que relutasse em aceitar, estava excluída da vida de Raul. A própria Janete, a quem viera procurar como um apoio, tinha feito o convite apenas porque precisava de companhia. Passou o olhar distraído pelas vitrines das lojas. Da última vez que viera para a cidade, pretendia comprar um presente para ela, mas encontrara Alan no exato momento. Decidiu então sair à procura da loja, já que não sabia o endereço, Seu único ponto de referência era uma ruazinha

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estreita, longe da avenida principal. Seria uma ótima terapia, passaria o dia todo ocupada, pensou. De qualquer forma, precisaria comprar alguma coisa para Janete o mais breve possível, porque decidira partir na primeira oportunidade. Na hora do almoço, ainda não tinha encontrado a loja, mas estava completamente exausta e faminta. Resolveu então procurar um restaurante. Enquanto decidia-se pelo local, um barulho chamou sua atenção. Virou-se lentamente e deu com o rosto familiar de Alan. — Alan! Que bom vê-lo de novo! Como vai? O jovem ergueu uma sobrancelha, como se procurasse reconhecer a voz. — Suzanne, srta. Dawson! É você, não é? Ele estendeu a mão, e Suzanne a segurou com firmeza, impressionada com a magreza dos dedos delicados. — Sou eu, sim. Já encontrou Jane, sua noiva? Alan sacudiu a cabeça. — Ainda a estou procurando — disse com ar desanimado, enquanto afastava a mão para pegar um lenço e enxugar o suor do rosto. — O calor está forte demais e não tenho tido sorte. — Que tal almoçarmos juntos? Estava procurando um restaurante quando o vi. Aceita o convite? — perguntou animada, gostaria de ajudá-lo de alguma forma. Suzanne pegou-lhe o braço, e seu coração se condoeu ao sentir os ossos finos sob a pele. Pobre rapaz! Como estava magro e abatido! — Fico contente. Saiba que pode contar com uma amiga aqui. Onde está hospedado? — Estou na Missão dos Marinheiros. Não é ruim. No restaurante, ele afundou na cadeira, com um suspiro de alívio. A vida não devia ter sido fácil para Alan. Com efeito, ele lhe contou que ficara órfão e tinha sido criado pela avó. Jane, a noiva, era uma amiga de infância. Planejavam se casar, e ela decidiu aceitar o convite para excursionar com um grupo de dança só para encontrá-lo em Hong Kong. — Ela é maravilhosa — disse, sonhador. — Podia ter o namorado que quisesse, mas escolheu a mim. Depois do acidente, fiquei um tempo hospitalizado e nos desencontramos. — E seus olhos? — Suzanne perguntou, com cuidado. — Há alguma esperança de que possa ver de novo? Ele deu de ombros, com expressão triste, antes de explicar. — Só o tempo pode dizer se tenho chances. Os médicos acreditam que ainda haja alguma esperança. Sabe, eu não estou completamente cego. Posso ver algumas manchas e contornos, mas é tudo. Tentando encorajá-lo, Suzanne comentou:

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— Talvez sua visão melhore quando estiver mais forte. Precisa de uma boa alimentação. — Sempre fui magro. Não há nada de errado com minha saúde. No momento, não estou ligando para os meus olhos. Só quero encontrar Jane. Quero falar com ela, temos uma série de coisas a resolver... íamos nos casar e agora não podemos mais... — Por quê? Não acha que a decisão deve ser dela? — Não me casarei com ela, a menos que volte a enxergar. — Não seja precipitado, nem ao menos sabe o que pode acontecer. Espere até encontrar Jane e vai sentir-se melhor. Tem alguma idéia do roteiro da excursão? — Não. — Que pena! — De repente, veio-lhe uma idéia, que à primeira vista pareceu fantástica. — Acho que precisa de alguém que o acompanhe por Hong Kong, de preferência com um carro, para visitar os teatros e bares onde ela possa estar se apresentando. — É uma boa idéia — Alan demonstrou entusiasmo. — Mas quem...? Um táxi custa uma fortuna... — Deixe-me alugar um para você — ela sugeriu, com cautela. Ele foi colhido de surpresa pela oferta, mas reagiu, relutante. — Olhe, não quero caridade, especialmente de uma garota. Vou cuidar de tudo sozinho. Sinto que pareça ingrato, mas não posso aceitar. — Já tentou a polícia ou o consulado inglês? Acho que com tantos recursos eles podem conseguir algum resultado. — Ela queria encontrar alguma forma para ajudá-lo. — Já fiz isso — disse, desanimado. — Mas não adiantou. — Por que não me deixa acompanhá-lo? — Não é justo arrastá-la comigo por todo lado. A oferta é tentadora, mas você não está aqui em férias? Deve ter compromissos... um namorado... — Sou livre para fazer o que quiser — falou com franqueza. — Sou divorciada. — É mesmo? — Alan não pôde esconder a surpresa. — Engraçado, isso é a última coisa que teria imaginado. Ela procurou não pensar em seus próprios problemas para poder animá-lo. — Então, Alan? Vai deixar que o ajude ou não? — Adoraria que me ajudasse. — O rapaz sorriu. Após o almoço, Suzanne pegou-o pelo braço e começaram uma peregrinação pelas ruas, à procura de algum indício de Jane. Suzanne observava os cartazes dos clubes noturnos com atenção. Na mão direita, trazia uma fotografia da jovem para auxiliar na busca. Era uma garota linda. Apesar das instruções de Alan, que conhecia bem Hong Kong, não conseguiram nada.

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Os chineses negavam, sacudindo a cabeça, cada vez que perguntavam por Jane ou mostravam seu retrato. Depois de percorrerem inúmeras ruazinhas, bares e restaurantes sem nenhum resultado, Suzanne sugeriu que tomassem um chá, para descansar um pouco. Não estava com fome, mas preocupava-se com o estado de debilidade de Alan. Tinha quase certeza de que não era só a preocupação de achar a noiva que o afligia. Provavelmente também não tinha dinheiro para se alimentar bem. Com certeza, voltaria para a Missão dos Marinheiros e iria para a cama sem comer. Suzanne estava olhando à volta, procurando um lugar agradável, quando uma porta pesada foi aberta à sua frente por uma jovem eurasiana, de olhos amendoados. Usava um traje típico chinês, justo e com uma fenda do lado, além de um pequeno enfeite de renda nos cabelos e um aventalzinho combinando. Na certa, era uma garçonete. Que sorte, dar de cara com uma casa de chá, depois de andar tanto! O ambiente era tranqüilo, encantador, com mesinhas no jardim. Sentaram-se entre vasos de azaléias e árvores anãs. — Vamos tomar chá, Alan, mas com uma condição: eu pago. O rapaz nem quis ouvir seus argumentos. Com expressão decidida, que não dava margem a discussões, afirmou: — Desta vez, o convite é meu, eu pago. A casa de chá tinha um pátio interno, onde o sol filtrava-se através de uma treliça de madeira. Cercada por muros altos e sem uma placa para indicar que aquele era um lugar público, dava a impressão de estar fora do mundo, de ser um refúgio de sonho. Suzanne descreveu tudo minuciosamente a Alan, inclusive a bela garçonete que os servia com um sorriso amistoso. Enquanto conversavam e bebericavam o chá, ela olhou distraidamente para as outras mesas do jardim. Uma garçonete, muito bonita, servia um casal inglês de meia-idade e. quando se virou para pegar a bandeja, Suzanne perdeu a fala. A jovem, vestida com um traje de seda negra fitava Alan e Suzanne, com uma expressão atônita. De repente, saiu correndo para os fundos. Era Jane, a noiva de Alan. O primeiro impulso de Suzanne foi contar-lhe tudo, mas não o fez. Estava bem claro que a jovem não queria falar com ele. O que devia fazer? Murmurando uma desculpa qualquer, levantou-se e saiu atrás da garota. Além do pátio, havia uma porta que levava à cozinha, e ela parou por um momento, sem saber como agir. De repente, a garçonete que tinha servido o chá apareceu e fitou-a com curiosidade.

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— Por favor, gostaria de falar com Jane. É muito importante — disse, aflita. Os olhos da garota continuaram impassíveis. Sem dizer nada, ela desapareceu cozinha adentro. Os minutos pareciam horas.Suzanne estava tensa. Tinha se envolvido muito nos problemas de Alan. Gostaria que tudo corresse bem para ele, e agora acontecia isso! — Não há nenhuma Jane aqui — disse a garçonete ao retornar minutos depois. — Desculpe-me, por favor. Procurando ganhar tempo, dirigiu-se à toalete. Enquanto escovava os cabelos e retocava a maquilagem, refletiu sobre o que deveria fazer. Não estava enganada, tinha encontrado a noiva de Alan. A expressão perturbada da jovem não deixara margens para dúvida. Só que ela fugira, e agora não sabia como agir. De uma coisa tinha certeza! Não contaria nada a ele até que conseguisse falar com Jane. Precisava explicar a ela a situação e saber por que estava evitando o noivo. Aí então contaria a Alan, para livrá-lo daquela agonia. Depressa, anotou o endereço da casa de tia Janete e saiu em busca da garçonete. — Por favor, entregue isto a Jane — disse, mal disfarçando o nervosismo. — Preciso vê-la. Diga-lhe que não contarei nada a Alan. Aqui está meu endereço. Quando já estavam na rua, ele comentou com a voz emocionada: — Sabe, Suzanne, agora sinto com mais intensidade o aroma das flores. Parece tolice, mas me lembra o perfume que Jane usava — ele riu. — Tenho um pressentimento de que ela está em algum lugar aqui perto. Suzanne sentiu um nó na garganta e apertou o braço dele, para lhe transmitir confiança. — Espero que sim. O que planeja fazer amanhã? — Um rapaz que conheci na Missão vai me levar até Kowloon e Novos Territórios. Há uma chance de que Jane esteja lá. — Então não o verei amanhã? Acho melhor decorar meu número de telefone, assim poderemos manter contato. E não se preocupe, Jane logo vai aparecer. Alan apertou-lhe a mão, grato, enquanto repetia o número do telefone. — Nem sei o que dizer, Suzanne. Estava tão deprimido quando a encontrei hoje de manhã. Agora me sinto mais animado, devo isso a você. Por incrível que pareça, apesar das atribuições do dia, Suzanne também se sentia melhor, mais leve. Assim, decidiu caminhar até a casa de tia Janete, apesar do calor e da longa distância. Quanto mais se aproximava das colinas, mais a temperatura se tornava fresca e agradável. O bom gosto de Raul era realmente

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indiscutível. Conseguira aliar o útil ao agradável quando escolheu a casa naquele local, longe do movimento e do barulho do trânsito. Dali se tinha uma vista esplêndida da cidade. Enquanto caminhava, perdeu-se em divagações, ao observar o movimento no porto ao longe. Reinava um silêncio absoluto no jardim quando entrou em casa. Não havia ninguém à vista.

CAPÍTULO V

Pela milésima vez naquele dia, Suzanne consultou o relógio. À medida que o tempo passava, seu nervosismo aumentava. Talvez tivesse sido muito otimista ao esperar que Jane viesse procurá-la. Ansiosa, andou de um lado para outro em busca de uma solução. Tudo o que podia fazer, no momento era esperar. O dia arrastava-se monótono. Ela procurou ocupar o tempo lendo, escrevendo cartas. Não podia se arriscar a sair e provocar um desencontro. Tinha esperança de que Jane aparecesse. No final da tarde, tia Janete saiu para encontrar alguns amigos. Suzanne viu-se completamente sozinha. Já anoitecia quando decidiu ir à procura da noiva de Alan. Não podia ficar de braços cruzados enquanto ele se debatia à procura dela, numa agonia sem fim, se Jane estava tão perto. De qualquer forma, precisava, antes de mais nada, falar com ela. Subiu para o quarto correndo, pegou a bolsa e saiu à rua. A brisa estava amena e agradável quando tomou o ônibus para a cidade. Suspirou, refletindo que a vida podia se tornar complicada com muita facilidade. Numa noite como aquela, enluarada e quente, todos os amantes deviam ser felizes. Precisava encontrar uma maneira de saber por que Jane estava evitando Alan. Não queria acreditar que algo realmente sério pudesse impedi-los de serem felizes. Assim que desceu do ônibus, Suzanne ficou parada, tentando identificar o local onde se encontrava. Talvez fosse apenas impressão, mas o lugar lhe parecia completamente estranho. Era provável que tivesse descido no ponto errado. As ruas pareciam diferentes, e não tinha certeza da direção que devia seguir para chegar à casa de chá. Enormes letreiros luminosos piscavam por toda parte, e os ônibus passavam depressa, desaparecendo nas sombras. Quando dois marinheiros espanhóis apareceram e começaram a segui-la, fazendo comentários ousados, Suzanne apressou o passo. As sombras e a insegurança a confundiam ainda mais. Se ao menos recordasse onde ficava a casa de chá!

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No passeio com Alan, tinham chegado acidentalmente ao local. Por mais que se esforçasse, não conseguia se lembrar de nenhum ponto de referência, a não ser de uma alameda estreita que conduzia à porta de entrada. Por um instante, parou diante de uma porta semelhante, sem coragem de entrar. A ruazinha parecia muito comprida na escuridão da noite. A maior parte das lojas próximas já estava fechada. Por mais que não quisesse admitir, tinha sido imprudente em sair sozinha àquela hora. Agora não adiantava se lamentar, agira movida por um impulso e tinha de agüentar as conseqüências. Um comerciante chinês saiu de uma das pequenas lojas, carregando uma pilha de caixas, e olhou para Suzanne com uma expressão curiosa. Ela se assustou, recriminando-se por ter medo do homem. Depois de caminhar mais um pouco, chegou a uma rua com vários muros altos, que lhe pareceu familiar. A casa de chá também tinha muros altos à volta do pátio. Estava certa de que era essa a rua e encaminhou-se resoluta para a porta. Para seu alívio, não estava trancada e abriu com facilidade. Quando deu o primeiro passo, surpreendeu-se ao ver trabalhadores chineses transportando e empilhando caixas dentro do aposento. Por um momento ficou paralisada, com a mão na maçaneta, fitando os homens que se voltaram apressadamente. Apavorada, deu alguns passos para trás e lançou-se numa corrida desenfreada em direção à rua e não viu uma caminhonete que se aproximava. Completamente fora de si pelo pânico, não percebeu o perigo, e literalmente se atirou em direção ao veículo. O motorista ainda tentou diminuir o impacto, mas não pôde evitar o atropelamento. Ela só sentiu o baque, a dureza do chão, e uma escuridão que se fechou à sua volta.

Os três dias seguintes foram algo semelhante a um pesadelo.Ao acordar, piscou várias vezes para ter certeza de que continuava viva, de que estava mesmo num hospital. Mal podia mover a cabeça, que latejava. Quando tentou se virar, constatou que também o corpo todo doía. Tinha tido muita sorte: seus ferimentos não passavam de equimoses e um ombro deslocado, segundo o médico Podia ter sido muito pior se a caminhonete não tivesse diminuído antes de atingi-la. Durante todo o tempo que esteve no hospital, tia Janete foi muito atenciosa, cuidando para que se recuperasse o mais rápido possível. No terceiro dia, o médico lhe deu alta, recomendando uma série de precauções. Tia Janete ouviu tudo com um ar

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preocupado. Um mal-estar apoderou-se de Suzanne. Que desastre! Lamentava profundamente ter causado tanta confusão. Jamais sentira tanta depressão e desesperança como no dia em que voltou do hospital. Instalada em seu quarto, sob os cuidados redobrados da tia e de Sun Yu-Ren, Suzanne afundou na cama com o olhar perdido. Janete não lhe perguntara o que fora fazer no centro da cidade sozinha àquela hora. Esse pormenor só aumentou a sua angústia. Era óbvio que todos queriam lhe poupar qualquer tipo de preocupação. Isso só a fazia se sentir pior. Nunca devia ter aceito o convite para vir a Hong Kong. Cometera um grave equívoco, que desencadeara outros problemas.Para piorar as coisas, acontecera o acidente, transtornando ainda mais sua vida. Além disso, agora era um fardo para tia Janete. Na manhã seguinte foi um alívio acordar sem dor. A cabeça ainda latejava, mas a depressão tinha ido embora. Quando Sun Yu-Ren trouxe o café da manhã, estava acompanhado do médico. Depois de examiná-la, tranqüilizou Janete, dizendo-lhe que a paciente estava ótima; só precisava de um pouco de repouso e alguns cuidados. Antes de partir, recomendou a Suzanne que o avisasse imediatamente se tivesse fortes dores de cabeça. Assim que ele saiu, uma visita chegou. Era Silvana, trazendo um arranjo de flores. — Suzanne! — gritou, num inglês cheio de sotaque. — Como estou feliz em vê-la sã e salva. Janete e eu levamos o maior susto quando fomos avisados de que estava no hospital. Bem, mas agora está com uma aparência ótima. Sorrindo, beijou Suzanne e sentou-se ao seu lado na cama. Era quase impossível não ser amigável com ela. Tinha um charme irresistível. — Estou feliz por voltar para casa, mas lamento ter causado tantos problemas — disse, retribuindo o sorriso. — E obrigada pelas flores. Fingindo estar zangada, Silvana ergueu o indicador, como se repreendesse Suzanne: — Como foi se perder procurando a minha casa. Estava tão perto! Da próxima vez, telefone e virei buscá-la. Como está se sentindo? Então era isso! Haviam deduzido que ela procurava por Silvana quando foi atropelada. Abriu a boca para contar a verdade, mas parou a tempo. Era melhor deixar tudo como estava. Bastava de complicações. — Estou bem, obrigada — disse e sorriu para Janete, que arranjava as flores na mesinha de cabeceira. — É muito gentil, Silvana — dizia Janete. E tem tanta habilidade para arrumar as flores.

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Silvana riu, espontânea. A jovem italiana era capaz de perturbar qualquer homem, e Suzanne não pôde deixar de pensar em Raul. Seus pensamentos tomavam uma direção perigosa. Não podia imaginar os dois juntos! A simples idéia de Raul nos braços de outra mulher causava-lhe uma dor lancinante, maior do que podia suportar. Tentou não pensar no assunto. Não tinha nenhum direito sobre ele, não fazia mais parte de sua vida. — Obrigada, Janete, por elogiar meu arranjo de flores. Adoro elogios de qualquer tipo. Esse é um dos motivos pelo qual sinto falta de Raul. Ele tem um dom especial, que faz uma mulher se sentir maravilhosa. Os dias que não o vejo parecem anos, e ele ainda vai ficar fora mais uma semana. O perfume delicado de Silvana espalhava-se pelo ar. Suzanne percebeu que Raul mantinha contato com ela, avisando onde estava e quando voltaria. Se, por acaso, tia Janete sabia de alguma coisa, não dissera nada. Precisava ser realista e encarar o fato de que era absolutamente natural que Raul se comunicasse com a mulher que amava. Tia Janete, por sua vez, estava certa em ser leal ao sobrinho, pois, mesmo gostando de Suzanne, sempre lhe atribuíra a culpa pelo divórcio. Ao se levantar da cama, Suzanne sentia-se fraca e trêmula.Com esforço, tomou banho e vestiu-se para almoçar com as duas. Para melhorar a aparência abatida, escovou os cabelos e maquilou-se antes de descer. O almoço foi servido no terraço.Sun Yu-Ren tinha caprichado na refeição. A deliciosa sopa fria foi seguida por fatias de carne com broto de bambu e arroz frito. Em seguida, veio o prato com cerejas e abacaxi, e uma sobremesa que parecia flocos de neve doce. O chinês permaneceu atento para que Suzanne comesse bem. Ela não se fez de rogada e elogiou cada prato. Mais tarde, as três sentaram-se para admirar a vista. Suzanne começava a amar Hong Kong. Havia, na cidade um encanto que era impossível negar, e ela lamentava ter de partir. Ao se lembrar do acidente, constatou o quanto seu medo tinha sido infundado, infantil. Onde estava com a cabeça para sair numa carreira desabalada, fugindo de homens que simplesmente trabalhavam? O calor e o cansaço começaram a pesar e, semi-adormecida, Suzanne relembrava alguns momentos de sua vida. Num estado de torpor, parecia ouvir as palavras de despedida de um médico, para o qual trabalhara como voluntária, desejando-lhe felicidades... Quem sabe se seu destino não era viver como nômade, um pouco em cada lugar? Logo teria de partir outra vez. Sentiu um nó na garganta ao se lembrar de que teria de deixar Hong Kong em breve.

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Com esforço, procurou participar da conversa, para não ser indelicada com pessoas que a tratavam tão bem. Mas a boa comida e a tranqüilidade tiveram um efeito relaxante. Suzanne sentiu as pálpebras se fechando, sua respiração tornou-se profunda, e adormeceu. Uma voz familiar chegou-lhe aos ouvidos. Entreabriu os olhos, sonolenta, certa de que estava sonhando. Mas, não, ele estava ali, bem real, conversando com Janete e Silvana. Um suor frio umedeceu-lhe as têmporas ao pensar em encontrá-lo. Não queria vê-lo. Pelo menos, não agora. A descoberta de que não fazia mais parte da vida dele e de sua família era muito dolorosa. Mas, como poderia evitá-lo, se as vozes vinham em sua direção? Em pânico, levantou-se ainda meio tonta pelo efeito dos remédios. A cabeça girava, e teve de se agarrar às costas de uma cadeira para não cair. Raul entrou abruptamente, mas parou, incrédulo, parecendo não encontrar palavras ao vê-la tão debilitada. O rosto forte e másculo apresentava uma expressão que era um misto de preocupação e irritação. — Suzanne, querida! Você está bem? — Lançou-se com movimentos felinos em sua direção. Os braços musculosos a alcançaram, apertando-lhe, sem querer, as costelas doloridas. Foi um momento mágico. Nem a dor que sentia naquele momento foi maior do que a alegria de estar novamente nos braços dele. Parecia que o mundo havia parado, e que só havia eles dois. Nada mais. — Tenho certeza de que ela se levantou depressa demais. —A voz de Janete trouxe-a de volta à realidade. — Silvana e eu a ajudaremos a voltar para a cama. Tentando evitar mais problemas, Suzanne procurou com todas as forças ficar de pé, sozinha. — Não, por favor! Estou bem — quase gritou, empurrando Raul. — Eu estava dormindo, só isso — ela tentou sorrir. — Não sei o que aconteceu comigo. Nunca dormi depois do almoço. Por favor, me desculpem. Mas a Raul não passou despercebido as têmporas úmidas, onde o cabelo grudava, dando-lhe um ar de desamparo, enquanto tentava esconder o mal-estar. Sem demora, precipitou-se sobre ela, erguendo-a nos braços, e carregou-a para o quarto. Suzanne apoiou-se nele, dolorosamente consciente da força e da ternura daqueles braços. Com cuidado, ele a deitou na cama. — Como está a cabeça? Soube que teve uma concussão leve, além de outros ferimentos. — Raul colocou a mão na testa de Suzanne. Sua voz era terna, suave. — Como se sente agora? Fale a

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verdade. Sente alguma dor? — Os olhos negros analisavam-na aflitos. Forçando-se a encará-lo, Suzanne viu com saudade os ombros largos, o rosto bronzeado, os olhos negros, e tentou falar com firmeza. — Não tenho nenhuma dor na cabeça. Estou bem, de verdade. Qualquer um pode ficar tonto ao se levantar depressa demais. Foi o que aconteceu. — Então que tal caminhar dez quilômetros? — brincou Raul, sorrindo. — Está quente. Acho que tem febre. Não era de admirar que estivesse quente! Sua pulsação estava acelerada só por. tê-lo tão perto e, se continuasse assim, só iria piorar! — Estou com calor. É só isso. Está tudo bem. — Há cinco minutos, quase desmaiou — lembrou ele, com um suspiro. — Sugiro que permaneça na cama o resto do dia. Fique tranqüila, vou chamar o médico. — Oh, não, por favor! — Os olhos azuis se arregalaram. — Eu ficaria muito constrangida por fazê-lo vir até aqui sem necessidade. Não há motivo para tanta preocupação. — Raul está fazendo o que é melhor para você, Suzanne. Todos nós estamos preocupados com sua saúde. Tia Janete tinha entrado no quarto com Silvana. Os modos e a voz da italiana eram frios e abruptos. Suzanne levantou os olhos, atônita. Antes que pudesse se recuperar do choque, Silvana aproximou-se da cama e pegou Raul pelo braço. — Precisa deixar que tomemos conta de você — sussurrou, em tom falsamente doce. A observação irritou Suzanne. Queria dizer que não precisava de ninguém, mas se conteve. — Obrigada, Silvana, mas estou bastante bem para tomar conta de mim. Apenas tive uma tontura, que já passou. Um sorriso pálido era sua única defesa contra o sofrimento que Silvana lhe infligia ao deixar claro que não fazia parte do círculo familiar. — Mesmo assim, querida, acho que é melhor ficar na cama pelo resto do dia. A voz de tia Janete suavizou-se, ao ver Raul e Silvana juntos.Então era isso. Ela queria vê-la fora do caminho, para favorecer a amiga. — Vou chamar o médico. — Havia um certo aborrecimento na voz de Raul. — Uma concussão, mesmo leve, não é brincadeira. — Mas Suzanne já disse que está bem, Raul! — O tom de Silvana era baixo e doce. — Por que não esperamos um pouco para ver como se sente, depois de descansar? — Não. Vou telefonar agora.

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Pouco à vontade, Suzanne sentiu outra vez os dedos fortes sobre sua testa, incapaz de reagir. Então ele se virou e saiu do quarto. Tia Janete aproximou-se da cama e disse, gentilmente: — Não deve levar a preocupação de Raul tão a sério. Ele se sente responsável por você, porque está em nossa casa. — Ela segurou a mão de Suzanne. — Quer que a ajude a se despir? — Não, tia Janete, obrigada — respondeu, sem querer magoá-la. — Ficarei assim até o médico chegar. Tenho certeza de que ele ficará surpreso com o chamado. Janete suspirou, e Suzanne interceptou um olhar cúmplice entre ela e Silvana, sugerindo que deviam sair do quarto. Ao vê-las sair, sentiu-se aliviada, mas não conseguiu relaxar. Os últimos dias tinham sido atribulados, carregados de conflitos e emoções. Além de seus problemas, acabara por se envolver nos de Alan e, por mais que quisesse, não conseguia se desligar. A exaustão já estava quase vencendo-a quando notou alguém ao lado da cama. Abriu os olhos e encarou o médico que a fitava. — Lamento que tenha sido chamado. Estou muito bem — disse, desculpando-se. — Conte-me o que aconteceu. Com os olhos fixos na mão firme que lhe tomava o pulso, Suzanne contou-lhe tudo. O exame foi curto. Ele perguntou se sentia dores na cabeça, e não demonstrou aborrecimento por ter sido chamado. Todo o tempo, Raul ficou ali, observando cada gesto. Suzanne sabia que ele tinha consciência de sua perturbação por tê-lo perto.Provavelmente estava se divertindo com seu embaraço. — Doutor, se vai me dizer para ficar na cama, não será o primeiro — comentou, bruscamente. O médico olhou para Raul, parado aos pés da cama. Suzanne baixou os olhos ao perceber que sua pulsação estava acelerada por causa da proximidade do ex-marido, e que isso não passaria desapercebido a um profissional experiente como aquele. — É um bom conselho. Tem sorte em possuir amigos que se preocupam com você. O sr. de Brecourt agiu bem ao me chamar. Mais um dia na cama só poderá lhe fazer bem. Ele a fitou atentamente e, se estava curioso sobre o relacionamento entre ela e Raul, não demonstrou nada. — Obrigado por ter vindo, doutor — disse Raul. — Aceita um drinque, antes de ir embora? O médico não aceitou, alegando que outro paciente o aguardava. Com um tapinha carinhoso na mão de Suzanne, despediu-se e saiu do quarto, acompanhado de Raul. Durante todo o dia, tia Janete veio vê-la diversas vezes. Ao entardecer, Silvana trouxe-lhe chá e pequenos bolos de amêndoas. Entre um comentário e outro, contou-lhe que jantaria fora naquela

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noite. A revelação atingiu Suzanne em cheio, mas precisava ser sensata. Não seria a primeira vez que Silvana e Raul jantariam juntos, e provavelmente não seria a última. Quando ela fosse embora, era possível que eles ficassem ainda mais tempo juntos. Ao anoitecer, tia Janete apareceu com um buquê de rosas vermelhas, arrumado num vaso chinês, que colocou na mesinha ao lado da cama. Lembrou-se vagamente de ter recebido um igual enquanto estava no hospital. — Obrigada, tia Janete. São lindas. Depois de arrumar as flores, Janete afastou-se para observar o efeito. — Sim, são mesmo lindas. Imagino que sejam suas flores favoritas. — São, sim, mas como soube? Não me lembro de ter-lhe contado. — Raul as mandou. Como é a segunda vez que manda rosas vermelhas, presumi que fossem suas flores favoritas. — Os olhos de Janete diziam muito mais, e Suzanne não gostou do que viu. — Posso lhe fazer uma pergunta? — Janete parecia pouco à vontade. — Pergunte o que quiser — Suzanne respondeu, um tanto apreensiva. — Quais são seus sentimentos por Raul? Sei que nunca o amou. Não o teria tratado tão mal se o amasse. Por favor, perdoe minha impertinência em perguntar, mas gostaria de saber. — Tudo aconteceu há muito tempo, e já estamos divorciados. É um pouco tarde para discutir sentimentos pessoais, não acha? — retrucou, evitando uma resposta direta. Tia Janete aproximou-se e arrumou a colcha à sua volta. — Você não é feliz, não é mesmo? Tenho observado você desde que chegou, e há uma tristeza que não consegue disfarçar. Sei que a morte de seu pai foi um grande golpe, mas há algo mais, não é? — Em seu olhar havia uma preocupação franca, que dava margem a confid~encias. Era claro que ela queria ajudar, mas Suzanne sentia que seus problemas eram só seus. Não adiantaria esperar nada de ninguém. — Não houve ninguém depois de Raul, se é isso que está pensando. — Desviando o olhar, Janete procurou mudar de assunto. Era melhor não mexer em águas passadas... — Esqueci de lhe dizer que de manhã telefonou um amigo seu. O nome dele é Alan Edge. Pedi que ligasse à noite. Prometeu telefonar às sete horas. — Deixou algum recado? — Suzanne conteve a animação. — Não, e eu não lhe contei sobre o acidente. — Após uma pausa, ela continuou. — Não está infeliz por causa desse homem, não é? Suzanne negou com um gesto de cabeça.

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— Não da maneira como está pensando. Nós nos conhecemos no avião. — Que bom — disse tia Janete, num tom que revelava preocupação. Quando ia sair, ela hesitou, alisando a colcha antes de falar. — Sun Yu-Ren logo trará seu jantar. Ele preparou algo especial para você. Não o decepcione. Tenho certeza de que fez o melhor, porque gosta muito de você. Aliás, todos nós gostamos. Suzanne desejou que fosse verdade. — Sou muito grata a todos. Têm sido muito bons comigo. Quando Janete saiu, Suzanne ficou um longo tempo deitada, fitando as flores que Raul lhe mandara. Quando o telefone tocou, atendeu imediatamente. Estava ansiosa para falar com Alan. Era tão bom ter alguém sincero! — Como está, Suzanne? — perguntou ele. — Estou ligando da Missão dos Marinheiros, depois de outro dia de buscas sem resultado. Telefonei de manhã para convidá-la a ir comigo até Kowloon, mas você não pôde atender. — Sinto muito — respondeu, preferindo não perturbá-lo com detalhes do acidente. Ele já tinha problemas suficientes. O fato de saber do paradeiro de Jane e de não poder revelar a ele não a agradava. Por outro lado, não tinha alternativa. De nada adiantaria lhe contar sem antes conhecer a versão dela. Só um motivo muito sério a faria esconder-se do noivo. Para não tocar no assunto, conversaram algum tempo sobre amenidades. Ele parecia deprimido, e ela procurou encorajá-lo quando se despediram. Assim que desligou o telefone, alcançou uma revista, mas só conseguiu folheá-la. Estava completamente dispersa. Sua atenção estava toda num só ponto: Raul, logo mais ele estaria saindo com Silvana para um jantarzinho íntimo. Atormentada pelo ciúme e enfadada com o repouso forçado, Suzanne sentia-se num beco sem saída. A seus olhos as coisas tomavam uma dimensão bem maior do que tinham na realidade. De uma coisa tinha certeza: Silvana estava à procura de um marido. Ninguém melhor do que Raul de Brecourt para ocupar esse lugar: ele era rico, bonito, excitante e divertido. A desculpa de que a religião seria o obstáculo para um novo casamento soava-lhe falsa; provavelmente era apenas uma forma de esconder suas intenções. Apesar de esgotada tanto física quanto psiquicamente, Suzanne não conseguia dormir. Por volta de onze e meia, a casa estava no mais completo silêncio. Então ela afastou as cobertas e se levantou. Jogou sobre a camisola um robe de seda, que não escondia as formas de seu corpo, e saiu, deslizando devagar pela

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casa. Sentia-se sufocada, precisava de ar fresco. Ao observar a beleza do luar, descobriu-se sorrindo. Uma brisa suave balançava as mechas macias dos seus cabelos louros e tilintava de leve os pequenos sinos dourados que enfeitavam os cantos da casa, bem ao estilo chinês. Foi então que seu sorriso se apagou, e ela não pôde fazer o menor movimento.Do outro lado do terraço estava um vulto, parado. Ela não precisou olhar duas vezes para reconhecê-lo. Mesmo na penumbra, ela conseguiu distinguir aquele olhar. Ainda que quisesse, não poderia fugir. Parecia pregada ao chão. Já havia um tempo que ele a observava. Com certeza se divertia em olhá-la completamente desprevenida e indefesa. Lentamente, ele se aproximou. À medida que a distância diminuía, ela estremecia mais. — Que lindo fantasma — disse, irônico. — E ainda não é meia-noite. Por mais que o conhecesse, Suzanne não conseguiria afirmar com certeza o que havia naquele olhar. Era um misto de sensualidade, que eletrizava o ar, e uma ternura tão grande, que comoveria até uma geladeira. O fato é que a olhava com tal intensidade, que ela se sentiu nua. Bem devagar, Raul estendeu a mão morena e pegou um cacho de cabelos loiros entre os dedos, num gesto extremamente íntimo. Parecia que o tempo que estiveram separados não existia mais. Estava reduzido a nada. Era como se sempre tivesse estado juntos. Ela se encolheu como uma menina diante daquele contato. Sem falar, Suzanne continuou a fitá-lo. — Pensei que estivesse dormindo no clube — disse, num fio de voz. — Estava, mas agora voltei para cá. Por quê? — indagou, com expressão divertida. — O que aconteceu? Expulsaram você? Ele riu descontraído, e os dentes brancos brilharam no rosto bronzeado. — Não. Está surpresa? — perguntou, enrolando a mecha de cabelos entre os dedos. — Por que estaria? Suzanne deu um passo para trás, e seu cabelo escapou dos dedos de Raul. Perturbada pela proximidade dele, sentia que cada nervo de seu corpo estava tenso. A noite exercia um domínio mágico sobre eles. Com a sensibilidade à flor da pele, ela fechou os olhos, incapaz de falar. Estava extremamente emocionada. — Onde está Silvana? Pensei que fosse jantar aqui esta noite?

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— Ela veio, mas já foi para casa. — Ele parou e, de repente, perguntou em tom brusco. — Quem é o homem que telefonou para você? Suzanne observou-lhe o rosto sério durante alguns segundos, depois explicou: — É alguém que conheci no avião. Por quê? Raul deu de ombros. Com as mãos nos bolsos, numa posição relaxada, estava mais atraente do que nunca. Suzanne sentiu o corpo latejar de desejo. Quanto tempo o esperara! A vitalidade que emanava dele a fazia tremer. Era doloroso reconhecer o quanto a afetava. Confusa, percebeu que sua resistência enfraquecia. O amor era mais forte do que a vontade de feri-lo, e seus olhos devem ter revelado isso, pois ele se aproximou novamente. Suzanne sentiu o corpo todo tremer, na ânsia de saciar a fome de carinho e prazer. Raul abraçou-a com ternura e aninhou o rosto em seus cabelos, apertando-a de leve. Ele a fazia sentir-se como a única mulher do mundo. Cada gesto, cada carícia dele tinha uma delicadeza tão grande que parecia que ela era a coisa mais preciosa da face da terra. Ele lhe roçou suavemente os lábios na testa, nas pálpebras, na boca. O beijo foi longo, profundo, apaixonado. Então, ele se colocou de lado e passou os braços fortes em torno dos seus ombros delicados, fazendo-a sentar-se. A respiração quente acariciando-lhe a orelha e o pescoço a deixaram completamente fora de si. Estava inteira nas mãos dele. Fascinada pela beleza do momento, ela se sentia num sonho, do qual não queria acordar de forma alguma. Quando as mãos dele alcançaram a pele macia de seu seio, um calor gostoso a invadiu. Suzanne ergueu um pouco a cabeça e o fitou com os olhos semicerrados, apaixonados, cheios de desejo. Nesse instante, um barulho dentro da casa quebrou a magia que os envolvia. Suzanne sobressaltou-se, retraindo-se, assustada.Raul ainda relutou em soltá-la. O arrebatamento passara, e todas a dúvidas, todos os problemas voltaram à tona. Por pouco não se entregara a ele novamente. Incrível como conseguia dominá-la com tanta facilidade. Ela se afastou ainda mais, como um animal acuado. Demonstrou-lhe o quanto era vulnerável a ele. Deixara isso bem claro e arrependia-se profundamente. Não significava mais nada para Raul, não podia se esquecer disso... — Suzanne... durante muito tempo estive equivocado — falou, com voz rouca. — Há dois anos percebi que era escravo de meu trabalho. Hoje coloco minha vida em primeiro plano. Não vou viajar mais e poderei pensar em ter um lar como

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qualquer homem normal... — Quer dizer... formar uma família — perguntou, num fio de voz. O chão parecia faltar a seus pés. Sentiu-se mergulhada na mais completa escuridão. Depois de tudo que acabara de acontecer... Não, não podia ser verdade. Era cruel demais. Não podia imaginá-lo casado com Silvana... Aquela noite estava tomando rumos perigosos. Incapaz de disfarçar toda dor que sentia com a revelação dele, Suzanne reuniu suas forças para se afastar, alegando cansaço. Os olhos negros observavam-na atentamente, quando se levantou. — Você está bem? Sente alguma dor? Mais uma vez tentou se aproximar, mas ela recuou, aterrorizada. Queria lhe pedir que a deixasse ir, mas não ousava falar, com medo que a voz falhasse. Raul inclinou-se para fitá-la de perto. — Está mesmo bem? E a cabeça, não dói? Suas mãos estão geladas. Vai pegar um resfriado — acrescentou, ansioso. Suzanne sabia que estava gelada. Na realidade, sentia-se morta! — Pare! — gritou, desesperada. — Não sou uma idiota! Estou bem. Sem voltar a encará-lo, procurou se afastar, pois acabaria perdendo o controle, chorando na frente dele. — Por favor, me deixe sozinha! Detesto que me toque! Raul soltou-a de imediato, e ela correu. No quarto, encostou-se na porta fechada, trêmula e infeliz. Então ele ia mesmo se casar com Silvana e formar uma família. Uma aguda sensação de perda a invadiu. Caiu num choro convulsivo. A vida não teria o menor sentido sem Raul.

CAPÍTULO VI

Um sol gostosa entrava pela fresta da cortina quando Suzanne acordou na manhã seguinte. Para sua surpresa, sentia-se muito bem. Uma boa noite de sono revigorava qualquer um, pensou. Espreguiçou-se languidamente. Por mais incrível, que parecesse, as coisas já não pareciam tão negras como na noite anterior. De qualquer forma, resolveu fazer um pouco de hora para tentar evitar Raul. Uma leve batida na porta antecedeu a entrada do sorridente Sun Yu-Ren, trazendo uma bandeja com o café. Sorriu agradecida; o chinês era realmente cativante! Sem pressa, acabou comendo mais do que pretendia. Não sabia muito bem o que, mas alguma coisa havia mudado. Tomou um banho demorado e olhou-se no espelho. Seu rosto estava corado, e

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os olhos não tinham mais as marcas de olheiras. Satisfeita, escolheu um conjunto de seda azul-claro, de corte perfeito, com sandálias de salto alto combinando. O tecido macio moldava-se às suas pernas esguias, revelando as formas perfeitas do corpo. A manhã estava quente e ensolarada, ideal para um passeio ao ar livre. Para se precaver, verificou o conteúdo da bolsa antes de sair, certificando-se de que o mapa de Hong Kong estava lá. Não pretendia se perder outra vez. A casa estava mergulhada no mais completo silêncio. Melhor assim, pois preferia não encontrar ninguém. Foi quando uma risada ecoou, vinda do terraço. Decidida a sair o quanto antes, armou-se de coragem para enfrentar Raul. Com o rosto erguido, entrou no terraço com a aparência mais tranqüila possível, embora por dentro estivesse desmoronando. Ele estava encostado à grade do terraço, conversando com uma garota esguia, com longas pernas de bailarina. Fumavam descontraídos, rindo muito. Bastou um olhar para que Suzanne reconhecesse a noiva de Alan. Estavam tão entretidos na conversa que não viram Suzanne se aproximar. Quando finalmente notou sua presença, Raul disse com rudeza: — Uma visita para você, a srta. Jane Owen. Vou deixá-las à vontade. — Bom dia — Suzanne cumprimentou a jovem, instalando-se numa cadeira em frente à visitante. — Deve estar imaginando o que estou fazendo aqui, não é? — Jane sorriu, como se pedisse desculpas. — Espero que me perdoe por ter vindo tão cedo, mas precisava vê-la. — Fico contente que tenha vindo — disse Suzanne, em tom formal. — Pretendia sair para procurá-la. Da primeira vez que fui a sua procura, não encontrei a casa de chá e acabei sofrendo um acidente. — Sinto muito. — Jane parecia envergonhada. — Fiquei confusa, não sabia qual era sua ligação com Alan. Intrigada, Suzanne resolveu ir direto ao assunto, sentindo-se pouco à vontade: — Por que decidiu vir até aqui? A garota deu de ombros, antes de falar num tom displicente. — Quando saíram da casa de chá, eu os segui e quase os chamei. Mas era uma decisão difícil, e resolvi esperar. Pensei várias vezes em vir procurá-la, mas na última hora sempre desistia. Não tinha certeza se poderia confiar em você. — Não me conhece — Suzanne sorriu. — Mas pode confiar em mim. Jane deu um suspiro de alívio.

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— Obrigada. Na verdade, esperava que pudesse me ajudar. Não sei o que Alan lhe contou sobre nós, mas vim a Hong Kong com uma companhia de dança, pretendendo encontrá-lo. Suponho que saiba o que aconteceu, não é? Suzanne assentiu, num gesto que a estimulava a continuar. — De repente, as coisas começaram a se complicar. A companhia dissolveu-se quando estávamos em Singapura. Fiquei desempregada e sem dinheiro para voltar. Passei por maus momentos. A falta de dinheiro é algo que não se consegue esquecer. De qualquer forma, fico grata por não ter dito nada a Alan. Queria tempo para pensar. Suzanne ouviu tudo em silêncio e, por fim, respondeu secamente: — Bem, não vejo qual é o problema. Ou você ama Alan o suficiente para se casar com ele ou não o ama. Jane esmagou o cigarro no cinzeiro de prata e ergueu os olhos negros, revelando indecisão. — Pelo jeito como se veste e fala, eu diria que nunca soube o que é ser pobre. Eu sei bem o que é. Não é nada fácil, esteja certa, especialmente para uma bailarina em início de carreira. Tenho passado momentos difíceis e aprendi que o dinheiro é importante. Confesso que me apaixonei por Alan, mas agora as coisas estão diferentes. Juntos, nós teríamos construído uma vida boa e feliz, só que agora não sei qual será nosso futuro. — Alan tem chances de recuperar a visão — insistiu Suzanne. — Você se casaria com ele, se isso acontecesse? — Não sei. Honestamente, não sei. — Jane cobriu o rosto com as mãos trêmulas, e Suzanne observou-a, sem saber como agir. Será que estava certa em representar o papel de cupido ou seria melhor deixar que tudo se resolvesse por si? Será que Jane era tão calculista como aparentava? Se fosse assim, Alan estaria muito melhor sem ela. Procurando conhecê-la melhor, Suzanne resolveu mudar o rumo da conversa: — Não me perguntou como conheci Alan. Viajamos juntos e nos encontramos casualmente, depois. Ele é muito corajoso. Não é qualquer um que sairia sozinho, sem enxergar, à procura da noiva. Com certeza, ficará muito magoado quando souber da verdade. — Mas não preciso lhe contar tudo — murmurou Jane. — É claro que precisa — Suzanne foi firme. — Ele está procurando por você. Será que consegue imaginar como se sente, sem poder ver? — Olhe, preciso estar certa dos meus sentimentos antes de vê-lo — foi a resposta desesperada. — Será que não entende?

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— Acho que sim. É uma situação delicada, e posso compreender como se sente. Alan ama você, Jane. — Eu sei. — A jovem suspirou. — É isso que torna tudo mais difícil. Sabe que ele deixou o hospital antes de ter alta, só para me procurar? E que se negou a fazer uma operação, porque tinha pressa de me encontrar? — Quer dizer que precisava ser operado e saiu sem ter feito isso? — É verdade. — Um rubor subiu ao rosto da moça. — Então por que não espera até depois da operação para dizer que não quer se casar com ele? — sugeriu Suzanne. — E se a operação não tiver sucesso? — Acho que não precisa se preocupar com isso — Suzanne sorriu. — Alan é orgulhoso e não se casará com você nessas circunstâncias. Jane mordeu o lábio, num gesto nervoso, mal disfarçando as lágrimas. — Obrigada pelo conselho. O melhor a fazer é esperar até a operação para tomar uma decisão. A tensão entre elas diminuiu, e começaram a falar sobre Hong Kong e suas peculiaridades. Pelo menos tinham um ponto em comum: ambas adoravam o lugar. Raul, com uma pasta na mão, preparava-se para sair, quando viu que Suzanne acompanhava Jane até o portão. — Posso lhe dar uma carona até a cidade? — perguntou a Jane, com um sorriso irresistível. A jovem ficou deliciada com o convite. — Bem, se não for tirá-lo do caminho — disse, recatada mente, virando-se para Suzanne. — Manterei contato e, desde já, obrigada por, tudo. Num impulso, abraçou e beijou Suzanne no rosto, antes de entrar no carro. Raul, por sua vez, nem ao menos a olhava na saída. Suzanne ficou ainda um tempo parada, observando o carro afastar-se, Que tipo de garota era ela? Será que realmente acreditava que apenas o dinheiro podia fazer alguém feliz? Pensativa, caminhou para a casa e viu tia Janete esperando-a no terraço. O sorriso de boas-vindas era bondoso e gentil. — Como está se sentindo? Melhorou? — Estou bem, obrigada — retrucou, preocupada com o ar abatido de tia Janete. — Raul acaba de sair. — Sim, eu sei. Demorei a me levantar esta manhã — admitiu, erguendo a mão esguia e pressionando a têmpora. — Não está se sentindo bem? — perguntou Suzanne, ansiosa, conduzindo-a até uma cadeira de couro. — Está tão pálida! — acrescentou, ajeitando uma almofada atrás da cabeça de Janete.

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— Deve ser o calor — ela se desculpou. — Raramente tenho dor de cabeça, mas Sun Yu-Ren tem um chá que faz milagres nessas ocasiões. — Talvez seja melhor chamar o médico... — Suzanne estava realmente assustada. — É tão exagerada quanto Raul — disse tia Janete, com um sorriso fraco. — Vou tomar o chá de Sun Yu-Ren e me deitar um pouco. Suzanne acompanhou-a até o quarto, acomodando-a. Sentou-se numa poltrona, esperando que ela adormecesse. Só um aborrecimento muito sério abateria uma pessoa tão ativa. De qualquer forma, não ousou perguntar. — Oh, não! — exclamou tia Janete, de repente, erguendo a cabeça do travesseiro. — Esqueci que Silvana me espera para almoçar, Uma vez por semana costumamos almoçar juntas. Suzanne sugeriu que cancelassem o compromisso por telefone, mas Janete se recusou. Silvana não está em casa. Foi ao cabeleireiro e só estará de volta na hora do almoço. Com certeza já deixou tudo preparado... — Gostaria que eu fosse encontrá-la? — perguntou, relutante. — Você faria isso? Obrigada. Por favor, peça desculpas por mim.

Exatamente ao meio-dia, Suzanne chegou à casa da italiana.Quando entrou no pátio, a empregada ia saindo. Surpresa com a visita, disse que a patroa só voltaria à noite. Havia algo de intrigante no ar. Seu sexto sentido a alertou de que Raul devia estar envolvido nessa história. Era pouco provável que Silvana se esquecesse do encontro habitual com Janete. Fez um gesto de despedida e caminhou em direção à cidade.Aproveitaria a viagem para comprar algumas lembranças. Além disso, tia Janete fizera algumas encomendas. Consultou a lista de pedidos para decidir o rumo que deveria tomar. Não demorou muito para que tivesse providenciado tudo. Tomou um lanche rápido e dirigiu-se ao ponto, para tomar um bonde de volta para casa. Um carro potente aproximou-se, parando a seu lado. Raul sempre aparecia nas horas mais inesperadas! — Entre — disse, abrindo a porta. — Passe os seus pacotes para cá. Sem esperar resposta, pegou os embrulhos, colocando-os no banco de trás, enquanto Suzanne se acomodava a seu lado. Estava muito corada devido ao calor e à emoção de encontrá-lo.Parecia ainda mais jovial. Ele hesitou, antes de ligar o carro. Fitou-a longamente, como se quisesse guardar cada detalhe daquele momento na mente.

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— Tinha me esquecido de como seus olhos eram azuis. É de um tom muito especial, que combina com seu vestido — ele comentou, demonstrando interesse. — Como está a cabeça? — Bem, obrigada — respondeu, pouco à vontade sob o olhar intenso de Raul. — Devia ter ficado mais um dia na cama. Era tão urgente fazer compras e andar por aí cheia de pacotes, com esse calor?Além do mais, não devia estar sozinha, e muito menos tomar sol na cabeça. Ao ligar o carro, ele tinha o cenho franzido, numa expressão de franca desaprovação. Ao fitar aquele perfil forte, Suzanne teve vontade de dizer que a maioria das compras era para tia Janete. Mas, em vez disso, preferiu desafiá-lo: — Sabe como são as garotas. — A idéia de que Raul pudesse ter esquecido como ela era feriu-a profundamente. Ele não pôde deixar de responder com rispidez: — Acho que fui tolerante demais com você. Acho que devia tê-la deitado sobre os meus joelhos e lhe dado uma boa surra, ao menos duas vezes por dia. Infelizmente, reprimi meus instintos... Suzanne estava indignada e queria atingi-lo de algum modo. — Ora, é melhor que tenha aprendido isso. Assim, quando se casar de novo, poderá escolher melhor. — As pessoas estão sempre aprendendo — disse ele, secamente. Aquele era o momento perfeito para lhe dizer que, às vezes, aprendiam tarde demais. Mas de nada adiantaria lhe confessar a verdade. Em vez disso, mudou de assunto. — Tia Janete não saiu de casa hoje. Acho que está se sentindo infeliz, porque tio Philippe fica muito tempo longe de casa. Fiquei preocupada com seu abatimento. — Ela disse isso? — Não, mas nem é necessário. Basta um pouco de sensibilidade para perceber. — É mesmo? E o que percebe quanto a mim? Lembro-me de que costumava ser muito boa em seus palpites. Suzanne estremeceu e respondeu, secamente: — Para alguém que tinha se esquecido até da cor, dos meus olhos, você tem boa memória. — É verdade — ele respondeu com uma calma perigosa. — É surpreendente como a memória começa a voltar, quando se revive um velho amor. Ao ouvir essas palavras, Suzanne encolheu-se, como se Raul a tivesse ferido fisicamente. Não queria falar desse assunto e insistiu: — Sobre tia Janete... Raul fitou-a com expressão séria, e sua voz soou fria.

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— Não precisa se preocupar, pois até o final do ano haverá muitas mudanças na família. Em silêncio, Suzanne aceitou o golpe. Raul estava dizendo claramente que cuidasse da sua própria vida. Ao chegarem em casa, tia Janete veio recebê-los. Estava com uma aparência ótima. Suzanne apressou-se em cumprimentá-la, beijando-a afetuosamente. Raul tirava os embrulhos do carro. — Está melhor? — ela sussurrou. — Comprei tudo que me pediu. — Já estou bem. Aproveitou o dia? — Sim. Falaremos disso mais tarde. Depressa, dirigiu-se para o quarto, perturbada pelas emoções. As mudanças na família, a que ele se referira, sem dúvida incluíam o seu casamento com Silvana, refletiu, com um nó na garganta. Sua cabeça latejava, e os pés, também. Estava exausta depois da longa caminhada. Atirou-se na cama, afundando o rosto no travesseiro. Precisava ficar sozinha, até recobrar o controle para agir com naturalidade. À tarde, já bem mais disposta, tomou um banho e arrumou-se para o jantar. Não podia mais permitir que a presença de Raul a transtornasse tanto. Isso tinha que acabar, de uma vez por todas. Na frente do espelho, analisando o vestido branco que escolhera, decidiu que era hora de enfrentar a verdade. Amava Raul desesperadamente, mas ele não a amava e ia se casar com outra mulher. Devia se conformar e viver sua vida da melhor forma possível. Felizmente não precisaria ficar sozinha com ele, pois tia Janete lhes faria companhia. Ao entrar no salão, viu que ela ainda não havia descido. Raul, por sua vez, estava ali, preparando os aperitivos. Fitando-a com uma expressão indecifrável, comentou: — Muito bem, Suzanne, pontual! Isso é prova de que mudou muito. Sente-se, vou lhe servir um drinque. — Obrigada — disse, sentando-se numa poltrona de veludo, próxima ao bar. — Como se sente? — ele perguntou, ao lhe entregar o copo. — Parecia exausta quando a encontrei na cidade. Ele apanhou seu drinque e sentou-se à sua frente no sofá, insistindo: — E então? Não respondeu a minha pergunta. — Estou bem — retrucou, tomando um gole da bebida. — E obrigada pela carona. O tom descuidado demonstrava que poderia ter voltado sozinha, sem o menor problema, e Raul percebeu a insinuação.

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— Está com uma aparência muito melhor do que ao chegar — comentou, fitando-a com tanta intensidade que Suzanne baixou o olhar. Raul estendeu as longas pernas à frente do corpo, num gesto muito peculiar. — Então, decidiu convidar seu amigo para vir até aqui? — Não — Suzanne respondeu em tom frio. — Por que não? — insistiu. — Suponho que esteja se referindo a Alan. — Ela estava irritada com a insistência. — Sim. Por acaso tem outros amigos aqui? — Outros homens. É isso que quer dizer? Pois saiba que tenho muitos — disse para provocá-lo. —Então convide todos. — Ele não parecia impressionado. — Será mais divertido. Os olhos azuis de Suzanne faiscaram. Era evidente que queria irritá-la, e estava conseguindo. Nesse instante, tia Janete entrou, elegante e bem disposta, num lindo vestido de seda cor de cinza perolado. Suzanne parecia ainda mais jovem em comparação, no seu vestido leve de organza branca, e desejou ardentemente ser mais velha e sofisticada. Se tia Janete notou a tensão no ar, não fez comentários. Raul entregou-lhe um aperitivo, e ela se sentou perto de Suzanne. — Então, querida? Gostou do almoço com Silvana? Confesso que fiquei desapontada. Ela nem sequer me telefonou para saber se eu tinha melhorado. Suzanne moveu-se na cadeira, pouco à vontade, sabendo que seu rosto estava corado. — Não almocei com Silvana. Janete ergueu as sobrancelhas, numa expressão surpresa, e Raul sorriu, irônico. — Está embaraçando Suzanne, titia. Provavelmente preferiu almoçar com o namorado. — A voz dele revelava uma ponta de ciúme. — Silvana não estava em casa. A faxineira ia saindo e me avisou de que ela só voltaria à noite. — Não é possível! — tia Janete parecia confusa. — Não posso entender. Sempre almoço com ela no mesmo dia, todas as semanas. Como pôde se esquecer? Raul interrompeu-a, calmamente. — Ela almoçou comigo hoje. Eu estava procurando um restaurante quando a encontrei. Não sabia que tinham um compromisso. Silvana deve ter alguma explicação, não há dúvida. É claro, pensou Suzanne. Não era difícil imaginá-la correndo para tia Janete com um brilho falso nos olhos, dizendo-se constrangida e dando uma desculpa qualquer.

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Só que desta vez teria de arrumar um motivo bem convincente, porque Janete parecia profundamente contrariada. O jantar transcorreu num clima agradável. Raul redobrou-se em cuidados para descontrair a tia. Era evidente o esforço dele para agradá-la. Janete sentia muita falta do marido, e ele tentava compensá-la. O café foi servido no salão. Suzanne recostou-se no sofá, completamente relaxada com a música suave que tocava baixinho. Raul e a tia fumavam despreocupados. Olhando para o relógio, Janete sobressaltou-se; já era hora de ligar para o marido. Pediu licença e dirigiu-se a seu quarto. Com sua súbita retirada, o silêncio do salão pareceu impregnado de eletricidade. Suzanne sentiu seu coração disparar apenas por estar a sós com Raul. Precisava achar uma desculpa para se retirar. Ele continuou imóvel, dando longas tragadas no cigarro e encarando-a. Após longos minutos resolveu falar: — Por que não me disse que ia almoçar com Silvana? E por que não falou nada sobre tia Janete? — Não queria criar problemas. — Mas por que não me falou do almoço? — insistiu — Se tia Janete não perguntasse, você não teria contado. Por quê? — Já disse: não queria causar nenhum transtorno — Por que não voltou para cá, em vez de almoçar sozinha? — Precisava fazer algumas compras. — Só que a maioria não era para você. Nem ao menos revidou, deixando que eu a acusasse de leviana. Por quê? — De que adiantaria? Você prefere pensar o pior de mim... Ele se virou para encará-la antes de responder com dureza: — Minha opinião é baseada na convivência que tive com você. — Talvez eu mereça isso. Mas, antes de mais nada não me interessa o que você pensa. Se soubesse que estava aqui, não teria vindo. — Mas está aqui, e sou responsável por você. — Então insiste nisso. — A calma de Suzanne desapareceu. — Mas está equivocado. O tempo passou, e eu não sou mais a mesma, nem preciso de babá. Ele ia abrir a boca para responder quando tia Janete entrou na sala, sorrindo para Suzanne. — Venha, querida. Há um telefonema para você. É Alan Edge. — Obrigada. — Saiu rapidamente da sala para se livrar dos olhos inquisidores do ex-marido. Alan queria lhe contar que Jane conseguira localizá-lo na Missão dos Marinheiros. Ele estava radiante.

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— Que tal jantarmos juntos amanhã... Ah! Suzanne, gostaria tanto... — Será ótimo — disse, animada. — É claro que aceito. Onde encontro vocês? Alan disse que um amigo os acompanharia. Às sete em ponto viriam apanhá-la. Seria uma noite memorável, sem dúvida, a alegria dele era contagiante. Na certa iriam se divertir muito. — Estou muito feliz por você. Não vejo a hora de nos encontrarmos... Ao desligar o telefone, Suzanne virou-se sorrindo e deu com Raul, muito próximo. A expressão de felicidade estampada em seu rosto de forma alguma lhe passou despercebida. — Parece muito contente — ironizou. — Estou curioso para conhecer esse amigo que consegue deixá-la tão feliz. Chocada com a agressividade dele, Suzanne não conseguiu responder. Raul continuou encarando-a de maneira pouco amigável. Era óbvio que fazia um grande esforço para se conter. — O que devemos esperar? Um casamento relâmpago? Como uma criança desamparada, ela agarrou as dobras do tecido fino. Sua voz saiu baixa e fraca quando conseguiu responder: — Você deve saber a resposta, já que me conhece tão bem! Aquele foi um instante mágico. Calados, eles se contemplaram.A sensação era de que penetravam a alma do outro só com os olhos, descobrindo todas as fraquezas. Embora não tivessem dito uma palavra, o olhar foi suficiente para uni-los. — Devo lhe pedir desculpas. Não devia ter falado com você desse jeito — ele disse com delicadeza. — Que tal um passeio pelo jardim para fazermos as pazes? Sem poder recusar, viu-se passeando ao lado de Raul na noite cálida e perfumada. O momento era tão especial que Suzanne sentiu lágrimas lhe chegarem aos olhos, relembrando o passado, a paixão e as emoções do casamento. Se Raul a tomasse nos braços, não teria forças nem vontade para resistir. — Esse homem, Alan... Você o ama? A expressão de Raul era indecifrável ao observar-lhe os cabelos dourados, que brilhavam ao luar. — Isso não é da sua conta. De qualquer forma, acabo de conhecê-lo. — Não foi isso que perguntei. Em certas ocasiões, alguma coisa acontece entre um homem e uma mulher que até o tempo deixa de existir... — Por acaso, está falando por experiência própria?

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— Há coisas que um homem não diz a ninguém, exceto, talvez, à mulher que ama. Quero que seja feliz, Suzanne. Isso não é o suficiente? Se ele a tivesse esbofeteado, não se sentiria tão atingida como com aquelas palavras. Uma dor aguda tomou conta de seu ser. Queria magoá-lo, dizer-lhe que amava Alan e outras coisas mais. Mas não conseguiu. Tudo isso ia contra sua natureza. Gostaria de voltar para o quarto e chorar até a exaustão. Indiferente a todo seu sofrimento, ele continuou: — Convidei você para passear porque temos muito a conversar. — Sobre o quê? Não há nada a discutir, Raul. — Não concordo — ele respondeu com firmeza. — Está aqui sozinha, num lugar como Hong Kong, e espera que eu não me preocupe? Por mais estranho que pareça, seu futuro é de vital importância para... nós... "Nós? Que nós?" Perguntou-se, abalada. E por que tinha hesitado tanto, antes de terminar a frase? Ao encará-lo, seu coração encheu-se de dor. Por mais que tentasse, não conseguia entendê-lo. — Posso tomar conta de mim. Ê você quem está criando problemas — disse, suavemente. — Será que não passou pela sua cabeça que foi minha a idéia de convidá-la? Que fiz isso para que se reaproximasse de nós? Queria que sentisse que é importante para nossa família. Emocionada, Suzanne recuou, precisava sair dali o quanto antes, ou se atiraria nos braços dele. Num impulso, correu para casa e refugiou-se em seu quarto.

CAPÍTULO VII

No outro dia, ao acordar, as palavras dele ainda ecoavam em seus ouvidos, e continuaram a atormentá-la por um bom tempo. Aquela viagem a Hong Kong mais parecia uma volta ao passado, mexendo com as emoções que se escondiam no mais íntimo do seu ser. Sensações que ela acreditava sepultadas vinham à tona com mais intensidade. O sol já estava quente quando desceu. Raul tinha saído. Ao lado do prato, encontrou duas cartas. Uma era de seus advogados, a outra, de tio Philippe, ambas vindas da Inglaterra. Abriu a segunda, ansiosa, lendo avidamente cada palavra.Com emoção, constatou que havia sido escrita num momento em que precisara muito de apoio. Lamentou profundamente não tê-la recebido na época. Na carta, tio Philippe enviava condolências pela morte de seu pai e se colocava à disposição para o que precisasse. Sorriu, ao pensar nele. Era uma pessoa adorável, meigo e afável.

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Sempre tinham se dado bem. Quando tia Janete descesse lhe mostraria a carta. — Philippe gosta muito de você, querida — ela comentou, ao terminar a leitura. — Devia ter nos avisado que ia sair de viagem. Podia ao menos ter deixado um endereço. Ficamos perdidos, sem saber como encontrá-la. Estava tão sensibilizada naquele momento que, pela primeira vez desde a morte do pai, desejou partilhar com alguém todo o seu sofrimento. Com carinho e um silêncio respeitoso, Janete ouviu todas as suas confidencias. Suzanne falou de todo o desespero, solidão e angústia por que passara em sua peregrinação pelos hospitais. Por fim, falou da dor pela morte do pai e de como reunira os cacos para tentar reconstruir sua vida. Só não mencionou Raul. — Já fez planos para o futuro? — Janete estava emocionada. Suzanne negou com um gesto de cabeça. Quando ia falar, o barulho de um carro a interrompeu. A voz rouca, com forte sotaque, chegou-lhe antes que Silvana aparecesse no terraço. — Pobre Janete! — exclamou. — Por favor, me perdoe por vir tão cedo, mas quase não dormi de tão preocupada. Como fui me esquecer do nosso encontro? Perdoe-me, querida. O culpado de tudo é Raul... — riu, ignorando a presença de Suzanne. — Não consegui resistir a um convite para almoçar com ele. — Por que não? — Suzanne não pôde deixar de perguntar, aborrecida com a representação da bela morena. — Por que não? — repetiu Silvana, com entonação dramática. — Ainda não conheci uma mulher capaz de resistir a Raul. — O sorriso tornou-se malicioso. — Além disso, tínhamos algumas coisas para discutir. Sem perceber o que se passava, Janete apressou-se a aceitar as desculpas da amiga. — Não tem importância, Silvana. Só que Suzanne foi até sua casa e perdeu a viagem. Não fui junto porque estava indisposta. — Não sabia. Como está? Sente-se melhor? As atitudes da italiana eram por demais artificiais. Seria difícil acreditar que tanta preocupação fosse real. De qualquer forma, como não a conhecia bem, Suzanne preferiu não julgar. — Tia Janete teve uma dor de cabeça, mas não foi nada sério. Quanto a mim, aproveitei a viagem para fazer algumas compras. Portanto, não se preocupe com o desencontro. Silvana virou-se para Janete, com uma expressão mais descontraída. — Como é doce nossa inglezinha! — Suzanne é sempre franca e honesta — disse Janete com sinceridade.

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— É bom ouvir isso. Ficaria triste se não pudéssemos ser amigas. — Silvana inclinou-se para beijar o rosto macio de Suzanne. — Preciso compensá-las pelo que fiz. Janete sorriu ao ver o comportamento exuberante da amiga. — Então pode começar levando Suzanne para dar uma volta, pois tenho vários compromissos durante o dia. Silvana aparentou adorar a idéia, e Janete acrescentou com firmeza: — Raul não quer que ela saia sozinha. Espero que cuide bem dela e a traga de volta. Suzanne desconfiava de que Raul e a tia haviam conversado a seu respeito, mas só agora tinha certeza. De fato, o dia foi agradável e animado na companhia esfuziante de Silvana. Tomaram café num terraço com vista para o porto, almoçaram num restaurante italiano e conversaram muito sobre moda e outros assuntos femininos. Durante todo o tempo, Suzanne pensava como era difícil resistir ao encanto da jovem italiana. Não era de se admirar que Raul estivesse fascinado por ela.

À noite, quando Suzanne se vestia para sair, tia Janete bateu à porta do quarto e entrou. Um traje típico chinês, justo e com uma fenda lateral, estava sobre a cama. Era lindo, de seda em tons de cinza, preto e verde.Suzanne só o comprara por insistência de Silvana, que a convencera de que ficava perfeito em seu corpo esguio. — Que lindo! — Tia Janete não escondeu sua admiração. — Em você ficará magnífico! Suzanne aproximou-se da cama e colocou o vestido. — Vou sair com uns amigos — disse, animada. — Que tal estou? — Maravilhosa, querida. As sete em ponto, Alan, Jane e um amigo já estavam à sua espera. O amigo de Alan, um jovem muito atraente, com cabelos ruivos e um sorriso cativante, ficou simplesmente encantado ao vê-la. — Alan! — ele exclamou, ao descer do carro para abrir a porta para Suzanne. — Por que não me disse como ela era? É uma ameaça ao celibato de qualquer um! O jovem sentou-se diante do volante, sem tirar os olhos de Suzanne, como se não conseguisse falar. — Meu nome é Leroy Stone. Meus amigos me chamam de Lee. — E eu sou Suzanne Dawson. A noite foi um sucesso desde o início, com todos dispostos a se divertir. No barco, a caminho do restaurante flutuante, alguém começou a tocar guitarra, e todos cantaram.

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No restaurante, depois de comerem, ficaram dançando até tarde. No final da noite, um tanto emocionada, Suzanne despediu-se deles, e Lee acompanhou-a até a porta de entrada. Não se veriam mais, pois todos, exceto ela, partiriam no dia seguinte. A casa estava às escuras, quando se aproximaram da porta. — Foi uma das noites mais felizes da minha vida. — O sorriso de Lee era cativante. — Nunca me diverti tanto. — Também adorei — concordou Suzanne, séria. — Só que precisamos encarar as coisas como são de fato. Ela não era insensível, e desde o início da noite tinha percebido o interesse do rapaz. Só que agora as coisas tomavam um rumo perigoso demais. — Então você percebeu! — ele exclamou. — Sinto muito. Como não sei para onde vou, nem você, é melhor deixar tudo como está — disse ela, gentilmente. Lee assentiu, com uma expressão magoada, e Suzanne aproximou-se para lhe dar um beijo de despedida. Depois ele partiu.

A casa continuava escura, mas um sopro de ar fresco chamou-lhe a atenção. Será que Janete esquecera alguma janela aberta? Virou-se para alcançar o interruptor quando esbarrou em algo. Antes que pudesse se recuperar do susto, dois braços fortes a envolveram. — Solte-me — gritou, batendo os punhos cerrados contra um peito largo. O coração batia acelerado pelo pavor, e Suzanne ofegava. — Ninguém vai machucá-la — disse ele, suavemente. Trêmula dos pés a cabeça, nem precisou erguer o olhar para certificar-se de quem era. — Como ousa me dar um susto desses? — gritou, ainda apertada contra ele. — Solte-me! — Acho que é melhor se sentar — disse Raul, sorrindo. —Vou lhe preparar um drinque. — Eu... não quero... me sentar — gaguejou. — Vou... vou para a cama. Raul afastou-se um pouco, ainda segurando-a pelo braço. — Sente-se — disse com firmeza, conduzindo-a a uma poltrona confortável. As pernas de Suzanne tremiam tanto que ela ficou aliviada por sentar-se. Recostando-se, fechou os olhos, procurando se recompor. Com certeza, teria sido mais fácil enfrentar um ladrão do que o ex-marido. — Não queria assustá-la. Você correu na minha direção. Não diga que estava ansiosa por me ver — brincou, provocando-a.

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— Pensei que não estivesse aqui — disse ela, abrindo os olhos. — Cheguei há cerca de uma hora. Raul inclinou-se sobre uma mesinha baixa e serviu chá quente numa xícara de porcelana. — É melhor tomar com cuidado. Está muito quente. — Como Suzanne não se mexesse, insistiu. — Vamos, beba. Este chá é excelente como calmante. Mas a mão dela não estava suficientemente firme para segurar a xícara, e Raul ajudou-a, cobrindo-lhe os dedos delicados com a mão forte. — Vamos, beba. Não é a primeira vez que a ajudo. Devagar, Suzanne acabou tomando todo o chá. Ele se levantou e pegou a xícara vazia. — É a única culpada pelo que aconteceu. Se não estivesse tão interessada na despedida de seu amigo, teria percebido que eu estava no terraço. Poderia notar a brasa do cigarro brilhando no escuro. — Os olhos dele faiscavam selvagemente. — Por acaso trocou de par com Jane esta noite? — Por que diz isso? — Jane não era uma das pessoas que vieram buscá-la? — ele insistiu. — Sim, era ela. Por acaso interrogou-a a meu respeito, como fez com tia Janete? — Não interroguei ninguém. Aliás, Jane não me disse nada, além de que é uma bailarina desempregada. — A voz de Raul era fria e cortante. — Então, por que perguntou se trocamos de par? — Porque a ouvi chamar aquele jovem que a acompanhou de Lee. O rapaz que ligou ontem se chamava Alan. — Esteve me espionando! — Suzanne respondeu, indignada. — Pare de me acusar sem motivo! — retrucou Raul, furioso. — Tinha de esperá-la, já que saiu com três desconhecidos. — Quanta gentileza! Nunca pensei que eu merecesse tanto! Bem, agora pode relaxar. Vou embora no primeiro vôo que conseguir. Raul não se deixou abalar, e sua boca curvou-se num sorriso irônico. — Acho que não faria isso, sabendo que alguém que gosta muito de você está para chegar. Suzanne ergueu uma sobrancelha, numa expressão de surpresa, e em seguida seu rosto iluminou-se com alegria. — Tio Philippe? — Ele mesmo. Por enquanto é só isso que posso dizer. Queremos fazer uma surpresa para tia Janete. Raul caminhou até as janelas e trancou-as, virando-se para encará-la.

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— A propósito, quem era o jovem que a acompanhou? — O que você tem com isso? É um ótimo rapaz. — Não queria me encontrar aqui, não é? Diga, não sabia mesmo que eu estava no terraço quando deu um beijo de boa noite no seu amiguinho? — O que está insinuando? — O rosto de Suzanne estava pálido de raiva, e seus lábios tremiam. — Quem sabe se não me viu no terraço e decidiu beijar o rapaz para me provocar? — Um lampejo de raiva brilhou em seus olhos. Suzanne sentiu o rubor tomar-lhe o rosto, e o encarou, desafiante. — Como ousa? Já não é suficiente me espionar? Quem pensa que é? — Insiste em me tratar como inimigo. Por que faz isso? Tem medo de mim? Ela riu, mas começou a afastar-se dele. — Mais uma vez quer insinuar que é importante para mim, Raul. Apesar da atitude de desafio, Suzanne estava apavorada. Temia que Raul a tocasse, aí não seria capaz de resistir mais. Jamais confessaria que o amava. No entanto, ele deu de ombros, com um gesto descuidado. — Por que se afastou, se não tem medo de mim? Era um terreno perigoso, e ela queria dar o assunto por encerrado. — Não tem cabimento insistirmos nessa conversa Acho que vou dormir. Ele, no entanto, parecia irredutível. Nada no mundo o faria desistir. Moveu-se, barrando-lhe a passagem. Tremendo, Suzanne preparou-se para enfrentá-lo. A mão forte agarrou-lhe o pulso, parecendo uma garra de aço. Não tinha forças para resistir a Raul, nem queria isso. Tenso e muito sério, ele insistiu, num tom que não admitia evasivas. — Ainda não me respondeu. Tem medo de mim? Sabe que jamais lhe dei motivos para isso. — Não tenho medo de você — ela falou tão baixinho que mal se ouviu. A raiva desapareceu do rosto de Raul, deixando em seu lugar uma expressão fria e dura. Ao falar, sua voz soou impessoal. — Às vezes acho, não sei por que, que pensa que jamais a amei. Pode pensar o que quiser. Não vou dizer nada a respeito. Só que não admito que me trate como se eu fosse um monstro. Entendeu bem? Ele começava a rever seus valores e, de certa forma, isso também lhe dava medo. Tinham amadurecido, era evidente.

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Todos os seus temores se dissiparam quando ele se aproximou, resoluto, e envolveu-a nos braços, apoderando-se dos seus lábios. Imediatamente seus corpos viraram. Ela foi invadida por sensações fortes, arrebatadoras, que nenhum outro homem no mundo seria capaz de lhe despertar. — Isto é para selar nossa amizade. O que podemos esperar da vida, se insistirmos em nos ver como inimigos? — Raul disse, com voz rouca, afastando-se um pouco. Antes de fugir para o quarto, Suzanne fitou-o por um longo instante, sem saber como devia interpretar aquela atitude.

No dia seguinte, tia Janete acordou-a com uma xícara de chá. — São onze horas, querida — disse ela. — Resolvi deixá-la dormir bastante, pois era muito tarde quando se deitou ontem à noite. — Meu Deus, não pode ser tão tarde! Dormi demais! Suzanne sentou-se na cama, aturdida. — Obrigada pelo chá. Não devia ter se incomodado. Sentando-se na cama ao lado dela, tia Janete sorriu: — Vim chamá-la porque há um jovem lá embaixo que deseja vê-la. Devia ser Lee, refletiu Suzanne, tomando depressa a xícara de chá. Com certeza, queria uma nova despedida, apesar da conversa da noite anterior. — Não há pressa — aconselhou a senhora. — Pode se vestir com calma — disse, observando-lhe as olheiras profundas. — Não dormiu bem, não é? Com um sorriso fraco, Suzanne evitou responder. — Fiquei tempo demais na cama. Acho que isso não me faz bem. — Esperei por você até Raul chegar. Ele insistiu para que eu fosse dormir. Queria saber com quem tinha saído, onde tinham ido. Estava muito preocupado. — Parece que estou sempre criando problemas — falou, pouco à vontade. — De forma alguma, querida. Quer que mande seu amigo voltar mais tarde? Talvez prefira ficar na cama até a hora do almoço? — Oh, não! Ele vai embora hoje! Preciso vê-lo. Arrumou-se depressa e desceu as escadas correndo. Só que o jovem que a esperava não era Lee. Era Alan. Um Alan muito diferente daquele que estava acostumado a ver. Parecia mais alto, mais forte, e seu rosto também estava diferente. Os olhos não aparentavam cansaço, e Suzanne não viu a bengala branca, ao correr para cumprimentá-lo. — Alan! — ela o fitou, surpresa. — Você está enxergando! — começou a rir, feliz. Ele sorriu do entusiasmo dela.

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— Venha. Conte-me o que aconteceu. Vamos nos sentar e conversar. — Abri os olhos hoje de manhã esperando por uma ressaca, depois da noite de ontem, e estava enxergando! Lembre-se de que o médico avisou que eu poderia ver outra vez. Não acreditei, pensando que queria me consolar. — E o que Jane disse? — Ela ainda não sabe. Você é a primeira pessoa a saber, com exceção do cirurgião, em Londres, para quem liguei bem cedo. Ele quer me ver assim que eu voltar. Conversavam e riam animados, quando Raul entrou. O sorriso de Suzanne congelou-se, ao ver a expressão indecifrável com que os olhava. —Bom dia — Raul cumprimentou, aproximando-se. — Não vai apresentar seu amigo, Suzanne? Alan tinha se levantado, e Suzanne o imitou. — É claro — disse ela, friamente. — Alan, este é Raul de Brecourt. Raul, este é Alan Edge, um amigo de Londres. Os dois se cumprimentaram, e Raul foi polido e encantador. — Bem, agora preciso ir — disse Alan. — Meu avião parte às quatro da tarde. — Vou acompanhá-lo até o portão. — Suzanne apressou-se em tirá-lo dali. Passando o braço pelo de Alan, conduziu-o para a saída, afastando-se do olhar avaliador de Raul. Os dois pararam no portão, e Alan disse: — Jamais a esquecerei, Suzanne. Espero que algum dia nos vejamos de novo. Deus a abençoe, e obrigado por tudo. Lutando contra as lágrimas, Suzanne inclinou-se para beijá-lo. — Cuide-se. Tenho um pressentimento de que tudo vai dar certo. Às vezes os problemas nos ensinam a dar valor às coisas boas da vida.

CAPÍTULO VIII

Quando subira para seu quarto, Suzanne ficara parada junto à janela, observando a paisagem. O mar e o céu eram de um azul tão puro, contrastando com as embarcações coloridas no porto, que pareciam uma imagem de sonho. Estava tão envolvida com aquela ilha que seria muito difícil se adaptar novamente à Inglaterra. Havia alguma coisa de mágico ali. Gostaria de ficar em Hong Kong pelo resto de sua vida, entre as montanhas e o mar, o Oriente e o Ocidente...

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Durante todo o dia não vira mais Raul. Com certeza estaria de volta logo mais para o jantar, que tia Janete ofereceria a alguns amigos. Absorta em seus pensamentos, mal notou que já era tarde.Quando olhou para o relógio, correu imediatamente para o chuveiro. Naquela noite, mais do que nunca, queria deixar uma impressão fantástica em Raul. Com calma, dedicou atenção especial à maquilagem. Passou uma base leve, aplicou blushe começou a cuidar dos olhos. Tudo muito delicado, só para valorizar os traços. O efeito foi ótimo. Os olhos azuis ficaram fascinantes. Escovou vigorosamente os cabelos e colocou o vestido. Observou-se no espelho, satisfeita. No entanto, a velha sensação de solidão a perturbava, quando pensava em como o futuro seria vazio e amargo sem a presença de Raul. Para se recompor, ficou mais algum tempo observando a paisagem magnífica até conseguir ânimo para se juntar aos outros. Ao aparecer na porta do salão, em primeiro lugar seus olhos localizaram Raul, elegante e bem vestido como sempre. A seu lado, estava um homem, um pouco mais baixo, aparentando cerca de trinta anos. Ele segurava um copo de uísque e olhava para Silvana. A italiana sorria de modo encantador. Mais adiante, tia Janete estava de pé, ao lado de um homem alto e magro, pouco além dos cinqüenta anos. Os traços firmes do rosto e a postura elegante revelavam as características dos Brecourt. — Tio Philippe! — exclamou Suzanne, caminhando até ele, com uma expressão de alegria genuína. Suzanne não tinha consciência de como estava linda, com os cabelos brilhantes e a pele corada pelo prazer do reencontro. Ao mover-se, a seda do vestido colava-se ao corpo esguio, revelando as formas perfeitas. — Tio Philippe! — repetiu ela, com um sorriso. — Sinto não ter respondido sua carta, pois só a recebi há alguns dias. — Suzanne, meu bem! — Philippe sorriu ao abraçá-la e beijá-la nas faces coradas. — Está mais linda do que nunca! Ela o observou com saudade. O cabelo grisalho nas têmporas dava-lhe uma aparência distinta, mas estava um pouco abatido. Assim que acabara de se cumprimentar, Raul disse: — Quero lhe apresentar um de nossos representantes ingleses. Miles Payne, Suzanne. — Dawson — ela acrescentou depressa. Por um instante, tinha se esquecido dos outros convidados, até que as palavras de Raul a trouxeram de volta à realidade.Miles Payne tinha o olhar franco e uma expressão bondosa. Suzanne gostou dele à primeira vista.

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— É francesa? — perguntou, segurando-lhe a mão, num gesto firme. Suzanne riu de modo encantador. — Inglesa. — E, notando que Miles observava suas mãos sem aliança, ia acrescentar: — Sou di... — Com licença. Ela se virou e deu com Raul, que lhe oferecia um drinque. A expressão dele não deixava margem para dúvidas, era pura contrariedade. Por que a interrompera daquela forma quando ia dizer que era divorciada? Conhecia-o o suficiente para ter certeza de que fora uma atitude premeditada. Não conseguia entender por quê. Com a mesma falta de cerimônia, voltou-se para Silvana, que ria e conversava animadamente. Num vestido vermelho, sensual e exuberante, a italiana estava mais linda que nunca. Enquanto falava, movia as mãos com uma graça bem latina. Tio Philippe e tia Janete estavam o tempo todo abraçados, radiantes. Pareciam estar vivendo uma nova lua-de-mel. Já estava na hora de voltar a Londres, constatou. Era óbvio que depois de tanto tempo afastados, tudo que queriam era ficar a sós. Não seria ela o empecilho. Trataria de providenciar a passagem de volta. Após o jantar, todos se dirigiram ao terraço e se sentaram formando um semicírculo, de frente para o jardim. O perfume das flores misturava-se ao cheiro de tabaco, enquanto conversavam animadamente sobre os mais variados assuntos. Com o passar do tempo, Miles demonstrava um interesse evidente por Suzanne. Ela, no entanto, não o encorajou.

Mais tarde, quando todos se dirigiam a seus quartos para dormir, Miles segurou a mão de Suzanne, falando baixinho. — Não quer sair comigo amanhã? Tia Janete passou por eles, mas fingiu não ter ouvido, para deixar Suzanne à vontade. — É claro que sim — ela aceitou, com um sorriso. — Há muita coisa que ainda não vi e será maravilhoso ter um guia como você. Não tenho muito tempo. Pretendo voltar a Londres em breve. Miles apertou-lhe a mão, sorrindo. — Que bom! Tenho um encontro com Raul bem cedo, mas estarei liberado depois. Que tal sairmos lá pelas onze horas? Suzanne concordou, e ele se despediu. No quarto, despiu-se devagar, relutando em ir para a cama.Uma insônia abatera-se sobre ela nas últimas noites. Era horrível virar de um lado para outro, sem que o sono viesse. Estava recostada na cama quando ouviu uma leve batida.

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— Entre — disse, inclinando-se para pegar o roupão na cadeira, pensando que fosse Janete. Viu a porta se abrir e fechar. O roupão escorregou-lhe dos dedos, ao encarar Raul. — Não fique tão embaraçada. Não é a primeira vez que a vejo assim. A fachada de frieza e distanciamento que usara à noite toda ruiu ao vê-lo ali tão próximo. Displicentemente encostado à porta do quarto, ela exalava uma sensualidade que eletrizava o ar. — Deixe-me ajudá-la — ele murmurou, aproximando-se e pegando o roupão. Em silêncio, Suzanne vestiu o roupão que Raul segurava. Ele também não disse uma palavra, apenas a fitava com intensidade, os olhos percorrendo-a da cabeça aos pés. — Vim perguntar o que pretende fazer amanhã. Miles ficará aqui por poucos dias, e pensei que poderíamos sair, Miles, você, Silvana e eu. Ela não respondeu de imediato, procurando ganhar tempo para uma recusa razoável. — Não parece entusiasmada com a idéia, mas garanto que vai gostar do passeio. Seria difícil passar o dia todo vendo-o ao lado de Silvana, mesmo com Miles por perto. — Vou sair com Miles — disse, baixinho. Raul ergueu as sobrancelhas, num gesto que Suzanne conhecia muito bem. — Ele não perdeu tempo — comentou, secamente. — Por acaso lhe contou a respeito da namorada que vive em Jersey?Telefonou para ela do aeroporto, assim que chegamos. Suzanne mordeu o lábio, ainda sem ousar fitá-lo. — Miles não me disse nada. Nem importa, irei embora daqui a um ou dois dias. — Por que essa decisão repentina? — Não é uma decisão repentina. Agora que tio Philippe voltou para casa, não quero atrapalhar a privacidade da família. — Bobagem! — exclamou, brusco. — Todos gostam muito de você. Tio Philippe ficará aborrecido se partir agora. Pelo que entendi, ficaria cerca de um mês. Ela ergueu os olhos, encarando-o. — Mudei de idéia. Tia Janete vai entender. — É muito estranho. Deve haver algum outro motivo para tanta pressa. — Acho que não lhe devo explicações. Raul não parecia disposto a desistir tão facilmente. — É por minha causa que quer ir embora?

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—? Por que diz isso? — Seus lábios tremiam. — Não vim para cá por sua causa. O olhar dele era tão intenso que ela desviou os olhos, com medo de que Raul pudesse ler seus pensamentos. A idéia de que ele pudesse descobrir seus sentimentos era apavorante. A última coisa que queria nesse mundo era que Raul soubesse o quanto o amava. — Acho bem provável — ele argumentou. — Aliás, nunca escondeu que não gosta de mim. Mesmo assim, acho que pode esquecer isso ao menos por um dia. Hong Kong é um lugar muito especial, cheio de diversões e paisagens magníficas. Tenho certeza de que vai gostar do passeio. Silvana adora passear pela ilha. Silvana, sempre Silvana. Só ela o interessava. E tinha razão. — E você? Quanto tempo pretende ficar em Hong Kong? — perguntou, numa tentativa de sair do terreno perigoso para o qual a conversa os levava. — Depende de várias coisas — ele respondeu, lacônico. — De Silvana? — Talvez — a resposta foi brava, deixando claro que sua vida particular não era passível de ser discutida. Quem ele pensava que era para se colocar num pedestal e não admitir críticas? Revoltada, falou sem pensar: — Não se esqueça de que foi você quem começou a conversa. Será possível que só eu não tenha o direito de perguntar? Ele não pareceu atingido pela agressividade dela e continuou no mesmo tom frio: — Por que está interessada? É natural que eu me preocupe, e não o contrário. — Fique tranqüilo. Vou mantê-lo informado do que pretendo fazer. E agora saia, por favor. Estou cansada. Sem olhar para trás, entrou no banheiro e fechou a porta.Sozinha, não conteve mais as lágrimas, que correram livremente pelo seu rosto.

O fato de Raul estar tão perto, na mesma casa, dava-lhe a sensação de que tudo havia mudado. Ao acordar na manhã quente e ensolarada, ouviu os passarinhos cantando nas árvores. Respirou fundo, sentindo o calor do sol. Como gostaria de ser feliz outra vez! Raul e Miles já tinham saído quando desceu. Sentou-se à mesa com Janete e Philippe. Ele adorava conversar. De fato, tinha uma prosa fluente. Era um homem simpático e charmoso, que atraía as pessoas. Brincou com Suzanne, elogiando-lhe a aparência. Desdobrou-se em cuidados até vê-la sorrir. Apesar disso, ela se sentia pouco à vontade, com medo de atrapalhar a intimidade do casal. Quando ouviu o carro de Raul chegando, estava ansiosa para sair.

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Para sua surpresa, Raul insistiu para que se sentasse a seu lado, enquanto Miles se acomodava no banco de trás. — Vai conhecer a ilha — falou, categórico. Ao chegarem à casa de Silvana, ela já estava pronta. Como sempre, estava linda e muito bem vestida. Se não gostou de ver Suzanne ao lado de Raul, o sorriso animado disfarçou bem. No centro, estacionaram o carro e continuaram o passeio a pé. Surpresa, Suzanne descobriu a loja que tanto procurara. Num impulso, pegou no braço de Raul. — Quero entrar ali — disse, animada, enquanto Silvana entrava na loja ao lado. — Vamos, então. Viu algo especial? — Vi algumas peças de jade, que ficarão perfeitas em tia Janete. Tem sido tão bondosa comigo que quero lhe dar alguma coisa bem bonita. — Acertou na escolha. Esta é uma das melhores lojas daqui. Só trabalha com jade verdadeiro. Raul saudou o homem alto e magro que estava atrás do balcão de vidro. — Bom dia, sr. Yee Lee. Gostaríamos de ver algumas peças de Jade. — Vi um bracelete com brincos combinando, na vitrine, há alguns dias. Será que ainda não os vendeu? — Tenho certeza de que encontraremos o que deseja. Não gosta desta peça? — perguntou o sr. Yee Lee. O chinês segurou um bracelete de jade, com dois dragões entrelaçados. — É perfeito — disse Suzanne, escolhendo um par de brincos para combinar. — Gostaria de ver aquele outro conjunto — pediu Raul, apontando uma caixa de veludo preto. O sr. Yee Lee pegou as peças, colocando-as sobre o balcão.O jade precioso era magnífico, e Suzanne não conteve uma exclamação diante de tanta beleza. — Bem? O que acha? — indagou Raul, fitando-a com um sorriso nos lábios. — São lindas. Suzanne gostaria de agir com naturalidade, mas a proximidade de Raul a perturbava. O sr. Yee Lee sorria para o jovem casal, com expressão satisfeita, ao pegar outro bracelete com brincos combinando e um anel de feitio original. — Veja, Suzanne. É seu signo esculpido no jade — sussurrou Raul, pegando-lhe a mão e colocando o anel no dedo esguio. — Muito bonito — disse o sr. Yee Lee. — Várias pessoas já quiseram comprá-lo, mas é muito pequeno. A senhorita tem mãos delicadas. Faço um preço especial.

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CAPÍTULO IX

O pacote da loja estava na mesinha de cabeceira de Suzanne, quando subiu para se vestir naquela noite. Ao pegar as jóias, sabia muito bem o que fazer. O cheque cobrindo o valor total da compra já estava pronto, e pediria a Sun Yu-Ren que o entregasse a Raul, junto com um bilhete. Um dos conjuntos seria o presente de tia Janete. O outro, com os dragões esculpidos, além do anel com o signo e a pulseira combinando daria de presente às amigas em Londres. Não queria ficar com nada que lhe recordasse Raul.

O passeio tinha sido inesquecível. Enquanto se lembrava dos lugares magníficos que conhecera, imaginou como seria bom andar pelas ruas de mãos dadas com Raul. Chegou a visualizar o sorriso dele quando encostava a boca ao seu ouvido para trocar impressões sobre o que viam. Só que era Silvana quem estava do lado dele e, de vez em quando, segurava a sua mão. A italiana, no entanto, comportava-se de maneira diferente da habitual, parecendo pensativa e tensa. Bem, o fato era que não tinha nada com isso, e não adiantava alimentar dúvidas e ilusões. Isso só a faria sofrer mais. Desviando o pensamento, concentrou sua atenção em preparar-se para o jantar. Colocou o vestido em estilo chinês que tinha comprado na cidade e olhou-se no espelho. O anel e a pulseira que Raul lhe dera ficaram perfeitos com o vestido, mas não os usaria por nada desse mundo. Precisava romper desde já todo tipo de vínculo com o ex-marido. Mas no momento estava sozinha mesmo, e não resistiu: experimentou a jóia para ver como ficava. Tiraria em seguida... Um assobio baixinho e fez virar-se para a porta. Raul estava encostado ao batente, de modo negligente. A pulseira escorregou-lhe dos dedos, e os olhos experientes dele faiscaram, ao notar sua perturbação. — Não consegue prender o fecho? — perguntou, aproximando-se — E o que significa isso? — Ele segurava o cheque que Suzanne mandara por Sun Yu-Ren. — O pagamento das jóias — respondeu, seca. — Por certo não esperava que o deixasse pagar o presente de tia Janete. Não ia discutir com você na frente do dono da loja, não é? — Devia fazer você engolir isto — ameaçou, picando o cheque em pedacinhos.

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— Por que não tenta? — ela replicou, suavemente. — Assim eu teria uma desculpa para fazê-lo engolir as jóias. — Não me provoque. Com gestos decididos, Raul pegou a pulseira e a colocou no braço dela, que estremeceu ao contato. — Pronto — disse, brusco. — Ficou perfeito. Para desespero de Suzanne, ele não parecia disposto a ir embora logo. Com a maior calma do mundo, ficou parado, olhando-a de alto a baixo, avaliando cada centímetro do seu corpo. Completamente senhor da situação, pegou o anel e colocou no dedo de Suzanne, que esboçou uma fraca e inútil resistência. Aquele gesto trazia recordações de um outro anel em seu dedo, quando acreditava que ficariam juntos para sempre. — Considere as jóias como um presente de aniversário. Afinal, vinte e dois anos é uma idade especial e precisa ser comemorada — disse suavemente. Num gesto terno, segurou as mãos dela entre as suas. Suzanne retirou-as num gesto brusco. Não admitiria mais que brincasse com seus sentimentos dessa forma. — Pare de me tratar como se eu fosse uma de suas amiguinhas! Ele só ergueu uma sobrancelha, num gesto que lhe era peculiar. A maneira como a olhou não deixava dúvidas sobre suas intenções. Ela recuou um passo, mas foi alcançada. Sem uma palavra, ele a tomou nos braços. O coração de Suzanne batia descompassado. Ele fechou os olhos e beijou-a, incendiando-a de desejo.Por um instante, o beijo foi suave, enquanto ele a abraçava, apertando-a contra si. Depois a fúria da paixão os arrebatou, e seus lábios se uniram com ardor. Só então Suzanne se deu conta do que estava acontecendo. Em pânico, lutou para se soltar dele. Devagar, ele a libertou. — Ainda me detesta muito, Suzanne? — perguntou, ao ver que os olhos azuis se enchiam de lágrimas. Suzanne afastou-se erguendo a cabeça com dignidade. — Sempre fazendo perguntas pessoais. Não tem esse direito. Estamos divorciados, Raul. — Tentando colocar uma barreira entre nós? — perguntou baixinho. — Obrigada pelo presente de aniversário. Mas gostaria de pagar o de tia Janete. — Não desiste, não é? — ele olhou para o relógio de pulso. — Meu Deus, veja que horas são! Preciso apanhar Silvana. O carro dela está no conserto. Vejo você mais tarde. Na porta, ele se virou com um sorriso malicioso. — Seu batom está borrado. Não gostaria que Silvana visse. Ela pode ter uma impressão errada.

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Saiu, deixando-a trêmula e confusa. Então não queria magoar Silvana! Sentindo-se a última das mulheres, Suzanne retocou o batom. Era o cúmulo. Raul estava querendo enlouquecê-la! Não podia mais suportar tanta tensão. Se se importava tanto com a italiana, por que não a deixava em paz de uma vez por todas? Ao fitar-se no espelho, Suzanne viu refletida a imagem da derrota. Seu pulso ainda não tinha voltado ao normal, e as pernas continuavam tremendo. Que absurdo! Como podia ficar assim só porque Raul a beijara? Resolveu que no dia seguinte tomaria todas as providências para partir. Não tinha mais cabimento ficar ali se torturando com a proximidade de Raul e Silvana. Janete e Philippe esperavam-na no salão, junto de Miles, e a saudaram com alegria. Philippe serviu-lhe um drinque, e Janete deu um tapinha no lugar vago a seu lado, no sofá de veludo. — Como está linda, meu bem. Suzanne sorriu e pegou o drinque. Esperava, que Janete não perguntasse sobre o bracelete e o anel, pois com certeza não aprovaria o presente do sobrinho à ex-esposa. — Tive um dia maravilhoso — disse, e abriu a bolsa, sorrindo. — Trouxe-lhe um presente, espero que goste. — Um presente? para mim? — perguntou, surpresa, deixando Suzanne embaraçada. A expressão de prazer no rosto da amiga ao abrir o pacote foi gratificante. As jóias combinavam perfeitamente com o vestido de seda elegante que ela estava usando. Philippe e Miles aproximaram-se para admirar o presente. Nesse momento Raul chegou com Silvana. Ela estava com um vestido de cores vibrantes, o que a tornava ainda mais exuberante. Na mesa de jantar, Suzanne sentou-se ao lado de Miles, com Raul e Silvana à sua frente. A jovem morena estava mais falante do que nunca, e seus olhos brilhavam, como se estivesse satisfeita com alguma coisa especial. Apesar de decidida a ignorá-la, dando atenção a Miles, Suzanne não podia evitar de olhá-los, de vez em quando. Quando Raul colocou a mão sobre a de Silvana, não conseguiu reprimir uma sensação dolorosa de rejeição. Depois do jantar, um telefonema urgente para Raul fez com que ele saísse depressa da sala. Ao voltar, chamou Janete, Philippe e Miles ao escritório, deixando as duas a sós. — Sabe que Janete e Philippe pretendem voltar logo a Paris? — perguntou a italiana com ar distraído. — Sim. Também partirei em breve. E você? — perguntou Suzanne. Silvana não respondeu por um momento, fitando-a com expressão estranha. —Também vou a Paris.

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— Com Raul? — Suzanne falou sem pensar e se arrependeu de imediato. — Ê provável que viajemos juntos. — Outra pausa. — Você o ama, não é, Suzanne? — E virou-se para encará-la. O rosto de Suzanne estava pálido e tenso, sob as luzes do salão. — Ama, não é? — Silvana insistiu. — Sim, eu o amo, mas morrerei se ele souber. Nunca deve lhe contar. Prometa, Silvana. Por favor! — Por que veio a Hong Kong? — perguntou Silvana. — Por quê? Não pensou que reencontrar Raul depois de tanto tempo só iria piorar as coisas? Raul me ama. Será feliz comigo. Tenho certeza de que me ama. Você mesma viu como nos damos bem. Suzanne assentiu, com os olhos cheios de lágrimas. — Tem razão. Amo Raul há muito tempo, mas não vim aqui para reconquistá-lo. — É para o seu próprio bem que aconselho você a esquecê-lo, assim como ele a esqueceu. Não há esperança, Suzanne. Vamos nos casar em breve — ela riu, como se se lembrasse alguma coisa. — Acho que foi paixão à primeira vista. Suzanne encolheu-se, como se ferida por um golpe mortal.Afastando os cabelos do rosto corado, tentou se recompor. Tudo que Silvana dizia era verdade. Quando os outros voltaram, a duras penas já havia recuperado a calma. — Que tal irmos até o restaurante no alto do pico, para ver um show e dançar? — Raul convidou. Foi tia Janete quem respondeu, antes dos demais. — Vocês jovens devem ir e aproveitar a noite. Philippe e eu ficaremos ouvindo música e matando as saudades. — Vamos, Suzanne — insistiu Silvana. — Vai precisar de um agasalho. Eu trouxe um comigo. Como um autômato, Suzanne foi até o quarto. Estava amortecida pela dor. As palavras de Silvana não admitiam réplica. Por mais que quisesse se enganar, ter esperanças, não havia mais possibilidades. Seu frágil sonho tinha ido por água abaixo e, ainda por cima, tinha de acabar aquela noite fatídica vendo-os juntos. Era um suplício tão grande que não desejaria nem a um inimigo. Ficava cada vez mais difícil esconder seus sentimentos. Abriu o armário com gestos automáticos e pegou o primeiro agasalho que viu. Quando chegou ao carro, Silvana já estava sentada no banco da frente, Miles no de trás, e Raul a esperava encostado do lado de fora. Com medo de revelar seus sentimentos, desviou o rosto ao entrar, evitando o olhar dele.

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Do terraço do restaurante, a vista da cidade era magnífica.Ninguém ficava imune, todos paravam para apreciar. Ladeada por Miles e Raul, Suzanne não sabia como agir. O ombro nu se encostava no braço do ex-marido, fazendo-a tremer. Ele, no entanto, conversava com Silvana, sem demonstrar qualquer perturbação. Miles tentou conversar, mas ela respondia vagamente, sem prestar atenção. Quando chegaram ao salão, Silvana pegou a mão de Raul, puxando-o. — Venha. Vamos dançar. Suzanne e Miles os seguiram. O rapaz dançava bem e em outras circunstâncias ela teria até se divertido a seu lado. Dançaram algum tempo, misturando-se aos outros pares e, por mais que tentasse, ela não conseguia relaxar, mesmo ao som da música agradável. Sem querer, seus olhos passeavam pelo salão, à procura de Raul. Quando o viu com Silvana nos braços, percebeu que mais uma vez tinha cometido uma tolice. Por mais anos que vivesse, nunca esqueceria aquela imagem. Era como se a terra tivesse faltado a seus pés. — Que tal trocarmos de par? — sugeriu Raul aproximando-se. Ela abriu a boca, mas não teve tempo de responder. Raul foi mais rápido. Suzanne já estava em seus braços assim que a música começou. — Está se divertindo? — perguntou, depois de alguns minutos. — Muito — ela respondeu, num fio de voz, sentindo os braços dele a apertarem com mais força. — Você mudou, Raul. Não gostava de sair, nem de dançar. Preferia ficar em casa à noite. — É verdade — ele admitiu. — As pessoas mudam. — Mudam demais — concordou, com um suspiro. Estavam tão perto que Suzanne quase não resistiu à tentação de encostar o rosto naquele peito forte. Quando se deu conta do que ia fazer, deteve-se a tempo. O hálito quente acariciando-lhe o pescoço deixava-a com as pernas bambas. Como o amava! Como o desejava! — Cansada? — ele perguntou, após um instante de silêncio. — Não. Por que pergunta? — Por que não demonstra seu antigo entusiasmo pela dança. — Como você disse, as pessoas mudam. Mas ainda gosto de dançar. — Mas não comigo? Suzanne riu baixinho. — Por que diz isso? É um dos melhores dançarinos que conheço. E olhe que conheço muitos — confessou com franqueza.

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— Obrigado — ele murmurou, irônico Pelo jeito, essa observação é quase um elogio. Posso contar um ponto a meu favor? Suzanne não pôde deixar de sorrir. — Não sabia que estávamos contando pontos. — Às vezes isso acontece no jogo da vida — ele comentou. — Aliás, acho que precisa se alimentar melhor. Está magra demais. Será que está definhando de paixão, por um amor impossível? Enquanto falava, sua mão atrevida passeava pelas costas dela, explorando cada centímetro. Imediatamente ela se retraiu. Precisava se controlar ou acabaria confessando-lhe seu amor ali mesmo. — Você mudou mesmo — disse ela. — Está até ficando romântico. Silvana deve ser uma mulher especial. Ele a apertou contra si, apertando-lhe a mão delicada com os dedos fortes. — O que Silvana tem a ver com isso? — Conseguiu suavizar você. Deve gostar muito dela. — Silvana é uma boa garota — disse Raul, lacônico. — Estivemos falando de você. Um arrepio gelado a percorreu, e ela perguntou com voz trêmula: — Estava discutindo nossos problemas com Silvana? — Não, meu bem — ele a fitou com um olhar irônico. — Todos nós voltaremos em breve a Paris, e eu lhe disse que você irá conosco. — E ela? — perguntou, procurando ganhar tempo e orientar-se melhor. Não queria alimentar falsas ilusões. — Também vai. Só Miles não irá a Paris, pois tem negócios urgentes em Londres. A música estava acabando, e Suzanne disse, depressa: — Não posso ir a Paris. Tenho de voltar a Londres. — Sabia que tentaria recusar. — É muito bondade sua, mas tenho outros planos — agradeceu polidamente. Quando a música parou, ele a pegou pelo braço, conduzindo-a para um pequeno terraço, com uma bela vista dos picos de Kowloon. Ela se sentou numa das cadeiras, e Raul puxou a outra para bem perto, acomodando-se nela. Recostado na cadeira, ele apoiou a mão forte sobre a mesinha.No fundo, o que Suzanne mais queria era estar nos braços dele, sentindo aqueles lábios macios e atrevidos, o calor daquele corpo. Percebeu que ele a fitava como se estivesse lendo seus pensamentos. E, de novo, seus olhares se cruzaram. Suzanne estremeceu, e Raul pegou-lhe a mão, preocupado. — Você está gelada. Vou buscar seu agasalho no carro.

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Absorta em seus pensamentos, nem se moveu depois que ele saiu. Com ar distraído, olhava para o nada, até que uma voz familiar chamou-lhe a atenção. — Onde está Raul? Os olhos escuros de Silvana faiscavam ao observar seu rosto pálido. Suzanne estava sentindo uma dor de cabeça atroz, e tudo que queria era sair dali o mais depressa possível. Apesar das pernas bambas, levantou-se e respondeu: — Foi buscar meu agasalho no carro. — Não se sente bem? — Miles demonstrava preocupação. — Quer voltar para casa? Num esforço, Suzanne tentou sorrir. — Não é nada demais. Só estou com dor de cabeça. Acho que vou pegar um táxi. Não quero estragar o programa de vocês. — Pobre Suzanne! — murmurou Silvana, num tom falsamente doce, passando o braço à volta dela. — Miles poderá levá-la para casa, não é? Raul voltava nesse momento. Olhou-os interrogativamente, sem entender o que estava acontecendo. — Que tal um drinque para nos aquecer? — sugeriu. Em seguida, perguntou, franzindo a testa. — Qual é o problema? — Vou levar Suzanne para casa — disse Miles. — Ela não está bem. Posso pegar um táxi. — Não está bem? — Raul fitou o rosto pálido de Suzanne. — Por que não me disse? — Os olhos dele se suavizaram ao fitá-la. — Vamos nos sentar e tomar um drinque. Depois iremos todos para casa. Por favor, sentem-se. — Tem um cigarro, Raul? — pediu Silvana, com um sorriso insinuante. Raul tirou o maço do bolso e ofereceu a Silvana e a Miles.Em seguida, pegou o isqueiro para acender os cigarros. — Fume um, Suzanne. Vai acalmar seus nervos. Suzanne não respondeu, nem Raul se moveu para oferecer-lhe o maço. Estavam sentados tão próximos que não conseguia agir naturalmente. Só queria ir para casa. — Como está se sentindo, Suzanne? Raul inclinou-se e pegou o copo, oferecendo-o num gesto que não admitia recusas. — Beba. Depois dirá como se sente. Os dedos fortes apertaram-se sobre os dela, provocando uma corrente elétrica em seu braço. Suzanne tomou a bebida num gole. Uma onda de, calor percorreu-a de cima a baixo, e não saberia dizer se era efeito da bebida ou da proximidade de Raul. O coração batia forte, como se quisesse saltar-lhe do peito. — Estou bem — assegurou, afastando os cabelos do rosto corado.

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A música tinha começado de novo, e Silvana batia o pé, impaciente. Em tom insistente, pediu a Raul: — Vamos dançar mais uma vez. Ainda é cedo. Miles não se importará de levar Suzanne para casa. Suzanne apressou-se em liberá-los, alegando que daria uma volta e logo estaria bem. Miles, no entanto, fez questão de acompanhá-la. Ele era adorável e desdobrou-se em cuidados para descontraí-la.E conseguiu. Aos poucos, Suzanne foi melhorando e sentiu-se grata por suas palavras diretas e seu sorriso franco. Não se enganara desde que pusera os olhos em Miles pela primeira vez. Pena que fosse embora logo... Como se pressentisse seus pensamentos, ele falou: — Partirei para Londres amanhã à tarde, Raul já deixou reservada minha passagem... Ela mordeu o lábio, pensativa. Aquilo lhe dava uma grande idéia. Muniu-se de coragem e perguntou: — Acha que poderia ir com você? No mesmo avião? Raul pensa que não posso me cuidar bem sozinha. — Engoliu seco tentando ser convincente. — Não fará objeção se viajarmos juntos. Ele a olhou, espantado. — Fale com Raul, se ele concordar será um prazer. Suzanne resolveu mudar de assunto, para não parecer muito ansiosa. Quando Raul e Silvana voltaram, eles riam descontraídos.Apesar do ar despreocupado e jovial, Suzanne já tomara sua decisão. Não avisaria o ex-marido antes de ter a passagem marcada. A caminho de casa, Silvana tinha o cenho cerrado, e Miles quase não falou. Talvez o silêncio de Raul os incomodasse. O carro deslizava velozmente, e ele não tirava os olhos do trânsito.Ao chegarem, já passava de meia-noite. Janete e Philippe já tinham ido para a cama, e Raul convidou Silvana para entrar. Alegando cansaço, Suzanne despediu-se e retirou-se para seu quarto. Ao despedir-se, ficou imaginando o que Raul e Silvana estariam fazendo no salão, sozinhos, já que Miles também se retirara. No carro, a caminho de casa ele não lhe dirigira a palavra e nem ao menos a olhara ao dar-lhe boa-noite. Já tinha acabado de se trocar quando deu por falta da pulseira. Aflita, procurou por todo o quarto, inutilmente. Onde teria caído? Era provável que estivesse no carro, ou talvez no restaurante. Embora fosse um presente de Raul, Suzanne não queria perdê-la. Onde teria ido parar? Procurou dormir, mas, depois de muito se virar na cama, decidiu descer até a garagem para procurar no carro. Já era muito tarde, e

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Raul já devia estar dormindo. Deslizou silenciosamente pelas escadas, tomando todo o cuidado para não fazer nenhum ruído. Com gestos rápidos, examinou os bancos e o assoalho do carro, constatando que não havia nada ali. Virou-se em direção à saída, e deu com Raul parado junta à porta. Ele se aproximou devagar, e Suzanne apressou-se em explicar. — Já ia entrar. Mas Raul não parecia disposto a dar-lhe passagem, fitando-a intensamente. — Sabe que eu estava aqui esperando você aparecer? — perguntou com o ar mais natural do mundo. — O quê? — Suzanne não escondeu a indignação. — Estava me espionando? Raul deu de ombros. — Sei o que estava procurando. Tome. Ele tirou a pulseira do bolso do paletó e estendeu-a para Suzanne. — Mas... onde a encontrou? Por que não me devolveu antes? — Pretendia devolver — ele respondeu com calma. — Mas só depois de conversarmos. — Que conversa? Não temos nada a dizer um ao outro. — Poderia sair comigo amanhã à tarde? Miles vai embora e, depois de deixá-lo no aeroporto, podemos ir a um lugar sossegado. Como sabe, logo voltaremos a Paris. — E o que eu tenho com isso? — Possui algumas ações da minha companhia — lembrou Raul, com voz fria. — Então quer que as venda para você. É isso? — Não. — O que quer, então? — Quero que pare de me tratar como inimigo. Por que não fazemos uma trégua e sai comigo amanhã? — Não se preocupe. Assim que chegar a Londres falarei com o meu procurador. Pode ter suas ações de graça. Acho que é um bom presente de casamento para Silvana. Sem dizer mais nada, Suzanne fugiu para o quarto, antes que as lágrimas lhe escorressem pelo rosto. Raul chamou-a várias vezes, mas ela não parou.

CAPÍTULO X

A primeira providência que tomou logo ao se levantar foi arrumar as malas. Tinha dormido muito mal. Devia estar com uma

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aparência péssima, pensou. Suas pálpebras inchadas pesavam, enquanto ela olhava as paredes do quarto, numa despedida. Antes mesmo de tomar o café da manhã, ligou para o aeroporto e conseguiu uma reserva. Para evitar comentários, deixou os objetos pessoais em cima da penteadeira. Assim, qualquer pessoa que viesse até o quarto não perceberia sua intenção. Olhou a cidade através da janela, deixando que as lágrimas corressem livremente. Se ao menos Raul a quisesse... Ele era tudo que mais queria neste mundo. Para Suzanne, Raul era como um ponto de referência numa vida sempre agitada, sem paradas nem grandes reflexões. Talvez por isso se ligasse tanto àquele homem. Tentou convencer-se do contrário, inutilmente. Na verdade, ela o amava com todas as suas forças.

Sentiu-se aliviada por não encontrar ninguém quando desceu. O dia estava nublado, com uma garoa fina caindo sem parar.Ela se serviu com gestos rápidos. Precisava ganhar tempo. Decidida, vestiu uma capa impermeável branca e amarrou um lenço nos cabelos, colocando a bolsa a tiracolo. Assim que estivesse com a passagem, poderia relaxar. Ao se dirigir para a porta da frente, esbarrou em Raul, que entrava apressado, com um maço de papéis na mão. —Vai sair na chuva? — perguntou, erguendo uma sobrancelha. — Sim — balbuciou Suzanne, sentindo o sangue gelar. — Faz bem para a saúde. — Vai longe? — perguntou, olhando-a de alto a baixo. Forçando um sorriso, ela respondeu de modo displicente, morrendo de medo que Raul desconfiasse de suas intenções. — Só vou tomar um pouco de ar. Os olhos dele se estreitaram, como se quisesse ver através de Suzanne. — Espere no carro — disse em tom incisivo. — Em cinco minutos estarei lá e a levo onde quiser. Tomando o silêncio dela como assentimento, sorriu, dirigindo-se ao escritório. Suzanne, no entanto, apressou o passo. Precisava chegar até a rua e encontrar um táxi. Se tivesse sorte, chegaria ao aeroporto em poucos minutos. Como havia planejado, logo conseguiu um táxi. Chegando ao aeroporto, correu ao balcão da companhia aérea. Quando estava com a passagem na mão, suspirou aliviada. Como o tempo estava melhor e faltavam algumas horas até a partida, Suzanne resolveu comprar umas lembranças no centro da cidade. Distraída, demorou-se mais do que o necessário. Consultou o relógio, preocupada. Ainda tinha de passar na casa de Silvana para despedir-se.

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Ela não estava. Então, deixou o presente com a empregada, desejando ardentemente que a italiana fizesse Raul feliz. O ponto do bonde estava sob o sol forte. Com uma das mãos, tirou o lenço dos cabelos, enquanto equilibrava os pacotes na outra. Nem percebeu um carro parando a seu lado. — Afinal a encontramos — disse Raul, abrindo a porta do carro. — Dê-me seus pacotes e entre. Ele pegou os embrulhos e colocou-os no banco, deixando espaço para que ela se sentasse. Ao entrar, Suzanne viu Miles e Silvana no banco de trás. Estava consciente de sua aparência descuidada, das faces coradas e do cabelo despenteado. Após um momento de silêncio, Raul perguntou, um tanto brusco: — Por que não me esperou? Miles queria fazer algumas compras de última hora, e você poderia ter vindo conosco. Sem querer, Suzanne ouviu-se explicando: — Tinha pressa de apanhar minha passagem. Parto para Londres hoje à tarde, no mesmo avião de Miles. — Ria se virou para o jovem inglês com um sorriso. — Tive sorte, pois houve uma desistência. O silêncio no carro era pesado e tenso não ousava olhar para Raul, temendo sua reação. Mas sua decisão era definitiva, e não admitia réplicas. — Quando decidiu partir? — indagou Raul, sem revelar nenhuma emoção. Pelo menos, diga o motivo. Estamos curiosos. Suzanne umedeceu os lábios. — Não é uma decisão súbita. Estava pensando nisso desde que tio Philippe voltou. Além do mais, todos vocês voltarão a Paris em breve, — Devia ter nos avisado — disse Raul, secamente, ao pegar o caminho de volta para casa. — Ou não queria que eu soubesse? — É claro que não — ela tentou rir. Em seguida, Suzanne virou-se para Silvana, dizendo que estivera em sua casa para se despedir. Mas não mencionou o presente, agradecendo apenas pela gentileza com que a recebera ali. Sun Yu-Ren tinha feito um almoço especial, e o sorriso brilhante de sempre estava apagado quando ela se despediu com um beijo. Com um nó na garganta, acenou para todos e entrou no carro. Silvana não os acompanharia ao aeroporto, porque Raul tinha um encontro de negócios em seguida e não poderia trazê-la de volta. O trajeto para o aeroporto foi rápido e silencioso. Raul insistira em que saíssem cedo de casa, e tinham muito tempo até a partida do avião. Jamais devia ter vindo a Hong Kong. Tinha se torturado sem necessidade e acabara magoando Raul. Mas ao menos tinha a certeza de que tudo estava acabado; não havia mais a mínima esperança nem a ilusão de que ocorresse um milagre.

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Assim que chegaram ao aeroporto, Suzanne sentiu os nervos tensos. Preferia ter vindo sozinha, evitando despedir-se de Raul.Com expressão séria e decidida, ele se virou e falou: — Fique onde está. Vou tirar as bagagens, mas quero falar com você. Miles já estava fora do carro, pegando as malas, e Suzanne esperou, procurando manter-se calma. Ele entrou e manobrou depressa. O silêncio era pesado e havia uma tensão palpável no ar. Já tinham dito tudo. O que mais poderia querer dela? — Para onde vamos? — ela perguntou, ao notar que ele aumentava a velocidade. — Para algum lugar onde possamos conversar — respondeu, lacônico. No rosto dele pairava uma máscara indecifrável, um misto de dor e paixão profunda, como se fosse algo prestes a explodir. Suzanne observou-o atentamente, preocupada. Esboçou uma pergunta, mas não conseguiu falar. Tinha de manter a cabeça fria para conseguir dominar aquela situação cheia de subterfúgios. Por um momento chegou a imaginar que ele não desejasse que fosse embora. Como seria bom! Mas era hora de parar de sonhar, pensou consigo mesma. Atônita, viu Raul diminuir a marcha e estacionar junto a um mirante. Em seguida, ele desceu e deu a volta para abrir a sua porta. — Não quero perder o avião — lembrou Suzanne. Raul não disse nada, seu rosto estava transtornado, e ela podia jurar que em seus olhos brilhavam uma ternura infinita. Em silêncio, sentaram-se num gramado que dava para o mar. — Não precisa tremer. Não vou machucá-la. Relaxe. Suzanne olhava para as árvores cheias de flores, sem entender o que ele pretendia. Tinha dito que não ia machucá-la, mas era uma afirmação leviana. Suas palavras doíam muito mais. Apoiado num cotovelo, Raul olhava para o mar, com a maior calma do mundo. Era a última vez que o via, e queria registrar aquela imagem para sempre. Mal podia conter as lágrimas, e desejou que Raul terminasse logo com aquilo. — Por que me trouxe aqui? Não podíamos ter conversado no aeroporto? — Não houve resposta, desesperada, insistiu. — Por que me trouxe aqui, Raul? Embora falasse em tom incisivo, não olhava para ele. Tinha medo de não resistir. Também sem encará-la, ele respondeu: — Acho que queria apenas algumas respostas sinceras. Você é feliz, Suzanne? — Será que alguém consegue ser feliz? — ela retrucou o mundo se torna um lugar hostil quando não se tem mais nada! Perdi meu pai e não tenho parentes.

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— E nós? Suzanne suspirou, sentindo o ar puro da montanha. — Bem, gosto muito de todos, mas tenho que seguir minha vida. — Por que não vai para Paris conosco? Raul a fitava com intensidade, e Suzanne virou o rosto. — Porque tenho outros planos. — Planos que fez depois que a convidei, não é? — Sou livre! — protestou, indignada. — Não tem direito de me fazer essas perguntas. — Só quero saber a verdade. — A voz de Raul era impessoal. Onde queria chegar se não se importava realmente com ela? — Que verdade? — Ela temia que a frágil barreira que erguera para separá-los se rompesse. — Por que você não me diz o que deseja, só para variar? Por um momento, ele ficou em silêncio. — Do que está falando? — Ora, não importa! — ela exclamou, desesperada. — Quero ir embora ou perderei o avião. E você tem seu encontro de negócios. Raul segurou-lhe o pulso, enquanto ela lutava para se soltar. — Que verdade quer ouvir de mim? Vamos, diga! Suzanne tremia, sem conter as lágrimas. Aquilo não podia estar acontecendo. Por que fora se meter naquela situação tão perigosa? — Esqueça. Nós dois nos casamos por motivos errados. Eu, para satisfazer a vontade de meu pai, e você para cumprir um acordo de negócios. — É mesmo? — Ele parecia chocado. — Isso é novidade para mim. Mas já passou. O que pensa do casamento agora que já me fez de tolo? — O quê? Raul de Brecourt ser feito de tolo por uma mulher? Não posso acreditar. Não seja cínico. — Ela tentou dar um fim àquela conversa absurda. — Você teria se casado comigo de qualquer forma, sem se importar com os meus sentimentos. — É verdade — ele admitiu, com um meio sorriso. — Só que meus motivos eram bem diferentes dos seus. Eu a amava. Pensei que depois do casamento pudesse se apaixonar por mim. Agi como um cavalheiro, tentando conquistá-la, sem me esquecer de que não passava de uma garotinha inexperiente. Mas errei, devia ter agido com mais firmeza. Suzanne, no entanto, não estava mais ouvindo. A única coisa que sabia era que Raul a amara. E ela conseguira matar esse amor. Agora era tarde demais. — Sinto muito que tenha sido assim — ela sussurrou. — Agora acho melhor voltarmos para o aeroporto. Raul soltou-lhe o pulso, segurando-a pelos ombros. — Não está pensando em partir sem me dar um beijo, não é?

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Por um longo momento, seus olhares se encontraram. Raul baixou a cabeça, beijando-a de leve a princípio, mas em seguida aprofundando o beijo com tal paixão, que Suzanne não pôde deixar de corresponder. O sangue corria-lhe pelas veias como fogo líquido, e nada mais importava. O orgulho e a decisão de não ceder caíram por terra. A única coisa que importava era Raul, que a abraçava contra o peito. As mãos de Suzanne rodearam-lhe o pescoço, enquanto ela correspondia aos beijos com uma paixão que a surpreendeu. — Você mudou. Suzanne sabia que seus olhos brilhavam como estrelas, e mal podia respirar. — De que jeito? — Você sabe. O rosto de Suzanne estava corado, e lentamente ela se deitou na grama, fechando os olhos. — Acho que é melhor irmos embora, Raul. — Como quiser — ele replicou, ajudando-a a se levantar. Suzanne andou cambaleante até o carro; toda ela era uma decepção só. Os beijos ainda queimavam seus lábios, mas Raul não parecia nem um pouco perturbado ao abrir a porta. A descida da colina foi rápida. Mas, em vez de ir para o aeroporto, Raul pegou outro caminho, parando na frente de um prédio. Virando-se para Suzanne, sorriu. — Venha. Estamos em cima da hora. Ah, era isso! Depois daquela encenação toda, queria que ela assinasse os documentos cedendo as ações da companhia. Nada mais lógico do que a precaução de dissolver o último vínculo que os unia antes de se separarem para sempre. — Quer que eu assine algum documento? — Quero. Lutando para se controlar, ela o seguiu, entorpecida pela dor, pela desilusão. Não via a hora de assinar tudo que fosse preciso e ir embora. A tensão daqueles dias deixara seus nervos em frangalhos. Ao entrar na sala, Suzanne mantinha os olhos baixos, sem se importar com mais nada. O homem que se levantou detrás da escrivaninha usava óculos e sorria. Confusa, ela o viu inclinar a cabeça num cumprimento formal. — Sra. e sr. Brecourt, é um prazer tê-los aqui. Podemos começar? Ele tocou uma campainha e apanhou alguns papéis. Achando estranho que não a convidasse a sentar. Suzanne fitou Raul, que sorria largamente. Então ele sussurrou junto ao seu ouvido: — É isso, minha querida. Vamos nos casar de novo.

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Os minutos seguintes passaram como num sonho. Duas testemunhas apareceram, respondendo ao toque da campainha. Eram um homem e uma mulher, que devia trabalhar ali, e ofereceram a Suzanne um buquê de rosas. Só quando Raul colocou a aliança em seu dedo, ela começou a acreditar que era verdade. O beijo que lhe deu, após a cerimônia, não deixava dúvidas. De volta ao carro, com lágrimas nos olhos, ela perguntou: — Era assim tão evidente que o amo, Raul? — Se eu tivesse alguma dúvida, saberia quando a beijei. Você me ama de verdade. — Ele a fitava com os olhos cheios de amor. — Mais do que tudo no mundo. Quase morri ao pensar que não ia mais vê-lo. Prometo que vou compensá-lo por tudo que lhe fiz antes. O olhar de Raul a fez corar. — Sua dívida é muito grande. É bom começar logo. Todas as suas aflições, suas dúvidas, seus temores se dissiparam. Ambos tinham sido infantis no passado, mas agora já não havia nada que pudesse separá-los. Nem desconfianças, nem Silvana, nada nem ninguém. Só havia eles e seu grande, seu imenso amor.

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