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3195 Melindrosas e almofadinhas: O masculino e o feminino por meios das charges nas revistas ilustradas (Recife, década de 1920) Alexandre Vieira da S. Melo * RESUMO Objetivamos nessa pesquisa, compreender o processo de ressignificação dos gêneros por meio das charges publicadas revistas e jornais em Recife, especialmente no semanário A Pilhéria, durante a década de 1920. Através dos personagens sociais melindrosa e almofadinha, constatamos o quanto suas práticas e a sua aparência incomodavam a sociedade tradicional em um período marcado pelo fortalecimento da família nuclear burguesa e declínio da família patriarcal. Por meio do traço dos artistas, com suas “chacotas”, visualizamos o quanto as representações maximizavam as características de um “novo padrão” adotado por homens e mulheres adeptos da vida moderna. Em Recife e alhures, o corpo passava por profundas ressignificações e alterações nas noções de masculinidade e feminilidade durante os anos 1920. Ademais, o período ficou conhecido exatamente pelas modificações no que concerne às práticas sociais, evidenciadas, entre outras, pelo advento dos personagens em questão: homens e mulheres que ostentar padrões diferenciados de vida social perante uma sociedade ainda majoritariamente tradicional. Embasados nos estudos de Gênero, conforme Joan Scott; e na História Cultural, segundo Roger Chartier; investigamos e problematizamos essas figuras sociais, seus comportamentos desvirtuantes e polêmicos observando critérios específicos para análise de documentos da imprensa, conforme apresenta Tânia Luca e Ana Luiza Martins. Palavras-chave: História; Melindrosas, Almofadinhas, Imprensa, Gênero. INTRODUÇÃO Eram “Tempos Eufóricos”. Assim define Tânia Luca (LUCA, 2005, p. 121) os primeiros decênios do século XX, período significante pela intensificação do impresso periódico nas principais cidades do país, resultado, entre outros, da modernização dos meios de produção desta imprensa com novas tecnologias, mas também um período riquíssimo no que concerne ao estudo das sociabilidades * Mestrando em História Social da Cultura pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Pesquisa financiada pela Capes, e orientada pela professora doutora Alcileide Cabral do Nascimento. E-mail: [email protected]

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Melindrosas e almofadinhas: O masculino e o feminino por meios das charges

nas revistas ilustradas (Recife, década de 1920)

Alexandre Vieira da S. Melo*

RESUMO

Objetivamos nessa pesquisa, compreender o processo de ressignificação dos gêneros por meio das charges publicadas revistas e jornais em Recife, especialmente no semanário A Pilhéria, durante a década de 1920. Através dos personagens sociais melindrosa e almofadinha, constatamos o quanto suas práticas e a sua aparência incomodavam a sociedade tradicional em um período marcado pelo fortalecimento da família nuclear burguesa e declínio da família patriarcal. Por meio do traço dos artistas, com suas “chacotas”, visualizamos o quanto as representações maximizavam as características de um “novo padrão” adotado por homens e mulheres adeptos da vida moderna. Em Recife e alhures, o corpo passava por profundas ressignificações e alterações nas noções de masculinidade e feminilidade durante os anos 1920. Ademais, o período ficou conhecido exatamente pelas modificações no que concerne às práticas sociais, evidenciadas, entre outras, pelo advento dos personagens em questão: homens e mulheres que ostentar padrões diferenciados de vida social perante uma sociedade ainda majoritariamente tradicional. Embasados nos estudos de Gênero, conforme Joan Scott; e na História Cultural, segundo Roger Chartier; investigamos e problematizamos essas figuras sociais, seus comportamentos desvirtuantes e polêmicos observando critérios específicos para análise de documentos da imprensa, conforme apresenta Tânia Luca e Ana Luiza Martins.

Palavras-chave: História; Melindrosas, Almofadinhas, Imprensa, Gênero.

INTRODUÇÃO

Eram “Tempos Eufóricos”. Assim define Tânia Luca (LUCA, 2005, p. 121) os

primeiros decênios do século XX, período significante pela intensificação do

impresso periódico nas principais cidades do país, resultado, entre outros, da

modernização dos meios de produção desta imprensa com novas tecnologias, mas

também um período riquíssimo no que concerne ao estudo das sociabilidades

* Mestrando em História Social da Cultura pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Pesquisa financiada pela Capes, e orientada pela professora doutora Alcileide Cabral do Nascimento. E-mail: [email protected]

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urbanas. Em Recife, ao mesmo tempo em que efervesceram numerosos títulos

jornalísticos e revisteiros, duas figuras singulares ganhavam cada vez mais

destaque entre as camadas medias urbanas: a melindrosa e o almofadinha. Neste

universo midiático, entretanto, podemos destacar a importância dos periódicos para

o estudo do comportamento social. Para o período em foco aqui estudado, as

“revistas ilustradas”, ou “de variedades” chamam atenção Elas eram plurais no que

concerne aos temas abordados em suas páginas. Tânia de Luca observa como “[...]

a locução adjetiva “de variedades” é aplicada para dar conta de uma gama

extremamente diversa de situações.” (LUCA, 2005, p.121) No geral, eram de fácil

leitura e com um visual mais requintado, chamando atenção do público tanto por seu

tamanho reduzido, quanto pela sua diagramação e imagens. Entre as décadas de

1920 e 1930, por exemplo, alguns títulos ganharam destaque na cidade do Recife,

como A Pilhéria (1921 a 1932); Revista da Cidade (1926 a 1929); Rua Nova (1924 a

1926); Revista de Pernambuco (1924 a 1926) e Pra Você (1930 a 1933).

A aparição dos personagens melindrosa e almofadinha era recorrente nas

páginas dessas revistas, seja nos anúncios, em artigos, e fotografias, ou mesmo em

representações produzidas a mão, como charges e desenhos. Nossa primeira

intenção nas análises seguintes é de questionar e tentar explicar como as relações

entre homens e mulher foram socialmente construídas e apresentadas da forma que

aparecem na documentação consultada dos anos 1920. Scott observa que o

conceito de Gênero é estruturante a toda percepção e organização da vida social,

pois influencia na concepção, construção, legitimação e distribuição do poder. Logo,

o estranhamento e a posterior aceitação dos comportamentos tanto das melindrosas

quanto dos almofadinhas, que eram por muitos mal vistos, podem ser

compreendidos por meio desta categoria de análise histórica. Ao observar o perfil

dos personagens, negamos também o determinismo biológico, quando ressaltamos

que as construções e ressignificações dos gêneros além de não serem fixas, são

construções sociais impostas pela sociedade em que os indivíduos estão inseridos.

Desta forma, abraçamos a definição defendida por Scott, que afirma ser “Gênero um

elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre

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os sexos e o Gênero é uma forma primeira de dar significado às relações de poder”

(SCOTT, 1995, p.86).

Desta feita, procuramos compreender melhor o processo de ressignificação

dos gêneros exatamente por meio das charges publicadas revistas e jornais em

Recife, especialmente no semanário A Pilhéria, durante a década de 1920.

1. Breve passeio histórico: Revistas no Brasil.

Estudar os indivíduos urbanos por meio da imprensa vem ganhado destaque

no campo temático das pesquisas históricas. Todavia, quando falamos

especificamente do mercado editorial revisteiro no Brasil, se faz importante

compreender o percurso que atravessou até configurar-se segmentado e

especializado nas diversas temáticas observadas, tal como hoje se apresentam ao

público. Ana Luiza Martins debruça-se sobre a definição da palavra “revista”, e

assinala que o termo define uma publicação periódica que contém artigos, ensaios,

e contos originais sobre qualquer assunto. Martins destaca que as revistas diferem-

se dos jornais pelo acabamento, possuindo capa, e por objetivar melhor os temas

principais de seu conteúdo característico, e diferem-se, também, dos livros,

principalmente por sua efemeridade. (MARTINS, 2008, p. 45-46)

No início do século XIX, com a chegada da corte portuguesa, a autorização

para se imprimir informação se deu em nosso país. Em 1808 D. João VI instala a

Imprensa Régia no Brasil, e em 1812 surge a primeira revista genuinamente

brasileira: As Variedades ou Ensaios de Literatura, publicação da cidade de

Salvador, que versava sobre costumes, anedotas, literatura, alguns estudos

científicos e novelas. Apesar de pioneira, esta revista tinha “cara e jeito” de livro. Daí

por diante outros periódicos do ramo das revistas surgiram, tal como O Patriota,

(1813) e os Anais Fluminenses de Ciências, Artes e Literatura (1822); ambas do Rio

de Janeiro. (BAPTISTA; ABREU, s/d p.04) Em 1849, surge A Marmota da Corte que

é considerada, ainda segundo Baptista e Abreu, como a primeira publicação que se

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pode denominar como “Revista de Variedades” no Brasil. Este impresso “abusa no

uso das ilustrações como forma de atrair leitores, inclusive os não alfabetizados

pertencentes às classes abastadas.” (BAPTISTA; ABREU, s/d p.04)

Mas somente em 1900, com a Revista da Semana, também do Rio de

Janeiro, que se inicia o surto deste tipo de publicação em território brasileiro. Em

Recife no inicio do século XX, surgiram algumas publicações, como a Revista

Pernambucana (1902-1904), Revista Polyantho (1907), e a Cri Cri (1908). As

revistas atraíam a atenção do público, tinham em suas páginas, humor, conselhos

médicos, poesias, notícias, moda e beleza, etiqueta, jogos, notícias esportivas,

cultura e arte, cinema e teatro, propaganda, ente outros. A diversidade de temas em

uma única publicação é característica desse periodismo do inicio do novecentos, as

revistas traziam diversas colunas que tratavam de temas variados e em alguns

casos absolutamente distintos, outra característica importante é a efemeridade

destes títulos. Alguns não duravam nem um ano de circulação. Ao tratar das

chamadas “mundanidades”, atraía-se os mais diferentes públicos e ampliar as

vendas. “eram revistas de variedades, mas ao mesmo tempo, femininas, masculinas,

infantis, esportivas, humorísticas”(LUCA, 2005, p.122) Entre estes consumidores em

potencial, destacam-se os almofadinhas e as melindrosas dos anos 1920.

Aos poucos, se delineava o seguimento de cada publicação, e novas surgiam

já voltadas a determinada temática, como exemplo, as revistas cinematográficas, as

revistas femininas, feministas, agrárias, médicas, etc. e também tornava-se cada vez

mais separados os públicos consumidores de cada uma delas. Em São Paulo, por

meados dos anos 1920, segundo Ana Martins, a segmentação já estava tornando-se

clara e os periódicos já vinham direcionados aos seus públicos específicos,

libertando-se do aposto “variedades”, além disso, com o crescimento do público

alfabetizado, as emergentes camadas médias urbanas buscavam incansavelmente

ascensão, saber e consumo. Atrelado a isso, a o mercado editorial organizava-se

profissionalmente, otimizando a comunicação e conquistando novos espaços na

sociedade. (MARTINS, 2003, p 64)

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2. As Melindrosas e o Recife

As melindrosas, hoje conhecidas apenas pela caracterização em bailes no

carnaval, estiveram presentes no dia-a-dia das sociedades recifense dos anos 1920.

Sua origem é incerta, sabe-se, contudo, que a personagem já existia na Inglaterra

durante o pós I Guerra, conhecida pelo nome de flapper girl. (BONADIO, 2007,

p.131) Flapper era uma expressão usada para definir mulheres emancipadas, que

dançavam e usavam roupas da moda. Segundo pesquisa de Maria Cláudia Bonadio,

uma definição para o termo, encontrada no dicionário Webster New Explores,

descreve-a como “jovem mulher dos anos 1920 que demonstra liberdade em relação

às convenções e condutas” (BONADIO, 2007, p. 132) Concordamos com a autora

ao dar credibilidade a esta definição, e consideramos que as nossas melindrosas

aproximavam-se mais da flapper que da new woman,, nomenclatura que é muito

mais ligada às mulheres envolvidas em lutas políticas e sociais dos Estados Unidos,

caso que não nos parece característica marcante das melindrosas brasileiras.

Na França, encontramos as garçonnes, alcunha atribuída, principalmente por

conta de serem consideradas “masculinizadas” visto adotarem a moda dos cabelos

curtos. A expressão brinca ao atribuir terminação feminina à palavra “garçon” que

quer dizer, “menino”. O termo fortaleceu-se ainda mais com o romance de Victor

Margueritte, “La Garçonne”1, escrito em 1922, que aborda a história de uma jovem

mulher traída pelo seu companheiro, que decide levar a vida intensamente e à sua

maneira, conquistando independência financeira, buscando a liberdade sexual e

moral, para só depois, buscar uma união estável e igualitária. (SPILBORGHS, 2007,

p. 25) As garçonnes dos anos loucos franceses, tinham como característica

marcante “[...] comportamentos sexuais e sociais extremamente liberais.”

(BONADIO, 2007, P.133) Fato que também as distinguiam das flappers.

Mesmo com singularidades de uma região para outra, este estilo de vida,

bastante disseminado pelos filmes, parecia saltar da ficção para a realidade, e

rapidamente espalhou-se pelo mundo, por meio do acelerado processo de

1 No Brasil, “A Emancipada.”

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modernização das comunicações e dos meios de transporte. A personagem e se

fortalece nos Estados Unidos, graças ao cinema e a imprensa, e chega aos centros

urbanos da América Latina. No Brasil, elas ficaram conhecidas por melindrosas,

principalmente por serem consideras mulheres armadilhas, de melindres, belas, e

perigosas aos homens por seus encantos, fato este que as fez também serem

chamadas, não comumente, de “mariposas”, ou “borboletas”, por frequentarem

muitas flores (homens) levianamente. (MEDEIROS, 2010, p. 107)

A moda melindrosa espalhou-se pelas principais cidades do Brasil. Sabemos

que nem as flappers, nem as garçonnes, nem as melindrosas podem ser

observadas de forma homogênea entre si,

cada sociedade as criou mediante suas

singularidades culturais, contudo observamos

como traziam algumas características

comuns entre elas, e que as diferenciavam

das outras mulheres: Com uma aparência

bem trabalhada, usavam cabelos curtos, com

cortes “a la garçonne” acabando nas orelhas

e com a nuca raspada, maquiagem forte,

saias pouquíssimo abaixo ou mesmo por

cima do joelho, lábios pintados de vermelho

em forma de coração, braços à amostra,

depilavam-se, faziam sobrancelhas, pernas,

usavam pequenos chapéus estilo clochê e

sapatilhas de amarrar. Além disso, seu

comportamento era diferenciado, pois

fumavam, dirigiam, dançavam ritmos

quentes, andavam frequentemente sem a

presença masculina do pai, ou irmão,

frequentando chás, magazines, confeitarias, Melindrosa e almofadinhas na Rua Nova -

Revista da Cidade, Recife - 1926, nº 08. –

Fundação Joaquim Nabuco

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cafés, e festas, além de ousarem lançar flirts2 insinuando-se aos homens. Aos

nossos olhos contemporâneos não estranhamos tais comportamentos e aparência

destas mulheres, contudo, se observarmos bem a mulher de fins do século XIX, se

nota claramente a discrepância e a modificação que o corpo sofreu em tão pouco

tempo. O corpo das mulheres, ao longo da história sofreu e sofre muitas

modificações. Claro, ele não está pronto e constituído. Denise Bernuzzi adverte que

ao se debruçar à analisar o corpo, deve-se problematiza-lo, observando os motivos

para que ele o fosse construído, representado e apresentado à sociedade,

questionando “[...] os gestos e as atitudes que ontem e hoje nos parecem familiares

ou não [...] pois o corpo é, ele próprio, um processo.” (SANT’ANNA, 2005, p.12) É

impossível observá-lo de uma única vez e de forma definitiva, pois seu

conhecimento é interminável e suas transformações percorrem por diversas bases

culturais e por lugares sociais que os transformam. Evidentemente, os anos 1920

também produziram novos corpos aos seus viventes.

3. O almofadinha

Era de praxe que, no século XIX, os homens trajassem roupas

predominantemente em cores escuras, e que ostentassem barbas e bigodes

espessos, destacando sua virilidade, competência e um espírito de liderança nato,

herdado quase que biologicamente; do outro lado, as mulheres, seguiam passivas,

usando roupas mais delicadas, com pomposos vestidos, e compridos cabelos -

sempre cuidadosas - para agradarem aos seus maridos, o que lhes indicava o lugar

de submissão a qual estavam alocadas. Todavia, o cenário modificava-se, e na

Europa, com o fim da I Guerra, controversos sentimentos contribuíram no que se

refere a mudança na indumentária e no comportamento masculino e feminino. No

caso dos homens, roupas mais leves e de cores mais claras personificavam um

novo homem que se levantava das cinzas do conflito. O alivio do pós-guerra

2 Para definir flirt, usaremos as palavras de Almeida Garet: “To flirt é um verbo inocente que se

conjuga ali entre os dois sexos, e não significa namorar — palavra grossa e absurda que eu detesto —, não significa «fazer a corte»; é mais do que estar amável, é menos do que galantear, não obriga a nada, não tem consequências, começa-se, acaba-se, interrompe-se, adia-se, continua- se ou descontinua-se à vontade e sem comprometimento”. GARRET, Almeida Viagens na Minha Terra

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ocasionou um crescente sentimento de “viver a vida intensamente”. Ao buscar

poucas palavras para sintetizar este período, compartilhamos do pensamento de

Marly Rodrigues, que traduz este recorte pelo misto de “sentimentos como a

insegurança, o medo e a esperança” (RODRIGUES, 1997, p. 07). Foi um período

em que principalmente a juventude, buscava diferenciar-se, individualizar-se e isso

refletiu-se em seus trajes.

No Brasil, alguns indivíduos já questionavam a imutabilidade e

inquestionabilidade das suas identidades subjetivas. Durval Muniz observa o fato de

que estar em grandes aglomerações urbanas proporcionava certo anonimato ao

sujeito, e isso de alguma forma facilitava ao indivíduo a “destradicionalização”, onde

sua subjetividade poderia ser lapidada de forma diferente dos modelos tradicionais.

Os novos integrantes de uma camada média urbana preocupavam-se em

esbanjar civilidade, atentavam com aparências e com os modos de se portar em

público, além de mostrarem que haviam superado as elites tradicionais, pois

estavam ligados com a modernidade que vinha do exterior. Essa

destradicionalização vem acompanhada do que Durval chama de “feminização do

social”, onde grupos emergentes urbanos, tal como os industriais, comerciantes e as

camadas médias, além das mulheres, atuavam cada vez mais como agentes em um

processo de “desvirilização” da sociedade, sugerindo a progressiva perda de valores

patriarcais (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2013 p. 29-34) Desta forma visualizamos

que “[...] enquanto a moda do século XIX havia acentuado a diferença entre os

sexos, refletindo seus distintos papeis sociais e a aplicação rígida de um duplo

padrão de moralidade, as modas do pós-guerra apagaram subitamente essas

distinções” (BESSE, 1999, p.31). A individualidade vai aos poucos tomando o lugar

do coletivo dos tempo patriarcais. Nesse ínterim, surgirão novas configurações do

homem dito “moderno” nas cidades do século XX, e entre elas, a polêmica figura do

almofadinha.

Os almofadinhas eram os homens que se preocupavam com a moda e

aparência. Mantinham os cabelos na brilhantina, bem penteados, ternos impecáveis

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com o desenho mais em voga, além de feições faciais limpas, ausência de barba,

bigodes pequenos, e o uso de cosméticos para beleza. Estes personagens

adoravam sapatos novos, brilhantes, ou até em duas cores, e ostentavam um estilo

despojado, quase “malandro”, além do uso de acessórios mais em voga, como

chapéu panamá, gravatas borboleta e óculos redondos. O modelo de

comportamento de certa forma ofuscou os de outros tempos, como no caso dos

dandys3, da belle époque; e os sportsman4, da década de 1910; estes iam cedendo

lugar aos frenéticos almofadinhas dos anos 1920. (SOUSA, 1985, p 136)

Interessados em ostentar uma comportamento moderno, estes personagens iam

além, se preocupando com vaidade, aparência e futilidades. Contudo, esses “novos

homens” foram constantemente ridicularizados pela imprensa, e tornaram-se motivo

de chacota, taxados de efeminados. “O almofadinha mostrava-se assim, uma figura

desviante colocando em xeque a macheza e a honra da sociedade masculina, ou de

toda uma estética de machos acostumados com a "dureza das feições de seus

homens”. (CEBALLOS, 2003, p 68).

Há duas possibilidades para a origem do uso da palavra almofadinha a este

estilo de homem. A primeira versão que encontramos, afirma que a palavra foi criada

em Petrópolis, no Rio de Janeiro, em um concurso de pintura e bordado, organizado

por um grupo de rapazes para mostrarem seus dotes na arte em almofadas de seda.

Veiculada no Jornal A Notícia, convencionou-se que os moços que cuidavam bem

da aparência, e traziam consigo portes mais “delicados” fossem chamados de

almofadinhas (FRÓIS, 1985, p.146); a outra vertente afirma que, quando alguns

homens passaram a levar consigo uma almofada para assentar as nádegas durante

o trajeto de viagem em alguns bondes nas cidades - em uma tentativa de evitar

dores em suas regiões baixas conforme o balançar do transporte - surgiram os

3 O padrão de beleza masculina francês, o dandy era modelo de elegância, de homem de negócios,

eloquente orador, mas cheio de ironias. Usavam luvas, fraque, cartolas, gravatas e sapatos italianos. 4 Modelo norte-americano, os sportsman prezavam pela descontração, e praticidade. Apreciadores

dos esportes acompanhava o cenário dinâmico da economia. Adoravam regatas e football, visitando sofisticados clubes. Pertenciam as elites urbanas.

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primeiros chistes usando a palavra para referir-se a homens “delicados no trato”.

Surgia então o almofadinha (MEDEIROS, 2010, p.89).

As novas formas de apresentar-se, todavia, eram sinais de rebeldia de uma

nova geração. Os almofadas encontrados nos artigos, imagens e fotografias que

pesquisamos, constantemente associados a preocupação com a moda, com a

elegância, com frivolidades, desafiavam as categorizações comuns à época, do que

seria um comportamento típico masculino. Ao mesmo tempo, os conservadores e

moderados eram constantemente afrontados com a frivolidade ostentada pelos

rapazes das modas modernas - tidas como obscenas - Com o embate definido,

vieram as chacotas, e isso incluem as charges publicadas nos periódicos.

4. O humor por meio da ridicularização

Durante nossa pesquisa encontramos diversas passagens em que os

chargistas utilizam-se de seus lápis para criar situações hilárias e ao mesmo tempo

carregadas de ironias acerca destes personagens. Por questões de espaço,

elencamos três destas situações para análise neste breve artigo. Vamos então a

elas:

4.1 A escolha...

Neste exemplo, observamos uma charge publicada em A Pilhéria, a situação é a

seguinte: um senhor sai de sua residência e se depara com uma melindrosa e um

almofadinha em uma situação de flirt. Contudo, para o senhor conservador, parecia-

lhe mais que estava lidando com duas moças. Se pararmos para observar, a

construção do almofadinha na charge está bem característica. Roupas apertadas,

rosto com feições delicadas, sapatos de duas cores... mas há um ar diferenciado, o

desenho não parece de um homem. Percebemos como a linguagem visual proposta

pelo semanário retrata o caráter dúbio que se tinha acerca destes rapazes

modernos. Quando levamos em consideração as representações do mundo social

apresentadas em A Pilhéria, fica evidente que elas refletem os interesses dos

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grupos sociais que as forjam. “[...] um grupo

impõe, ou tenta impor, a sua concepção de

mundo social, os valores que são seus e o

seu domínio.” (CHARTIER, 2002, p.117) Na

charge a virilidade do almofadinha é

questionada, a sociedade tradicional temia

perder seus homens machos para a

modernidade que aos seus olhos, os feminizava. A delicadeza do rapaz é anda mais

aparente, mesmo que o autor tenha lhe posicionado em um momento de flirt. (A

Pilhéria, Recife, 1923, nº 103. Fundação Joaquim Nabuco.)

4.2 Amigos...

Os desenhistas do início do século XX entendiam que pôr um homem em

situação onde sua masculinidade estivesse

em cheque, com certeza seria motivo para

risos. E é o que acontece nesse próximo

exemplo. Observamos a arte, de título

“Amigos...” onde podemos perceber a

pilhéria feita com a aparente feminilidade do

almofadinha Juquinha, com sua amizade

extremamente íntima com o cunhado mais

velho. Ao chegar a casa de sua noiva,

Juquinha parecia mais engraçar-se por ele

do que por sua prometida. O traço do artista

é carregado de intencionalidades. Isso é

uma característica importante: após o artista

defrontar-se com a categorização real:

homem delicado, bem vestido, na moda, etc., passa a apropriar-se desta visão do

sujeito, e posteriormente tende a representá-lo da maneira com que o assimilou, e

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para o caso das charges, o fruto desse processo - a representação - tende a

maximizar características que não são tão gritantes no mundo real. Ora, o

almofadinha representado passa a trazer consigo a intencionalidade do autor, que

propunha a estrapolação de características de feminidade do almofadinha. O intuito,

claro, era ridiculariza-lo, talvez em uma tentativa de conter essa moda que a cada

dia ganhava mais adeptos. Podemos perceber ainda, que os dois sujeitos são

projetados com calças justas e cintura acentuada. A charge humorística faz chacota

com a proximidade dos amigos. Pode-se traduzir o discurso preconceituoso da

seguinte forma: “Homem não deve ter relação próxima com outro homem, isso é

coisa de mulher” desta forma, apresenta-se a feminização. Observe mais uma vez a

intencionalidade do artista ao mostrar a feminização dos almofadinhas, contudo

nossas pesquisas evidenciam que os almofadas não eram de forma alguma homo

afetivos, muito pelo contrário, em determinadas falas, encontramos almofadinhas

considerados como sedutores e arrebatadores de corações das moças. (A Pilhéria,

Recife, 1923, nº 094. Fundação Joaquim Nabuco.)

4.3 Estou de olho...

Mas e as melindrosas? Durante as pesquisas, percebemos como elas, ao

contrário dos almofadas, eram exaltadas em sua beleza e requinte. Contudo, não

fugiam de serem acusadas de desvirtuar os homens, e do iminente perigo que elas

representavam. As saias curtas eram um caso a parte. Em setembro de 1927, R.

Danilo escreveu um poema para A Pilhéria onde expressava seus sentimentos sobre

este assunto:

Elevações

Saia curta... Vejo os teus joelhos e mais acima as tuas ligas... Afastai de mim certos pensamentos maus... Se eu fosse um desses insetos abelhudos, pousaria na tua meia de seda... Tens um sinal na perna esquerda... As meias de algodão eram mais discretas... R.DANILO

5

5 A Pilhéria 1927 n 310

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Esta repentina mostra das pernas era um escândalo para uma sociedade que

não estava acostumada a vê-las, pois passaram

muito tempo escondidas por baixo de enormes

saias e anáguas. Em contrapartida, as pernas

depiladas esboçavam sensualidade e levantavam

os suspiros dos homens. Além do poema, a charge

que ilustra a capa de A Pilhéria em 22 de janeiro de

1927 apresenta o olhar desavergonhado do

almofadinha às pernas da melindrosa. No desenho

paira a dúvida: será que a melindrosa está se

insinuando ou ela apenas é vítima do olhar do

petulante representante do sexo oposto? A

melindrosa esboçava esse sentimento: mulher-

menina, mas mulher-armadilha. Os moços não

resistiam a um flirt, uma olhadinha aos tornozelos das melindrosas. Sette evidencia

com seu olhar de cronista que viveu a época, que “[...] os estudantes, à porta do

Café Rui, [...] gostavam de assistir ao desfile das moças e de vê-las subir aos

bondes da Carril, mostrando uma fração das pernas.(SETTE, 1981, p.31)

Segundo o cronista Álvaro Moreyra, é ao traçado do carioca J. Carlos que é

atribuída a “invenção” da melindrosa. (MOREYRA, 1991, p.28) Entretanto, muitos

artistas por todo Brasil presentearam a posteridade com desenhos de suas flappers

girls, inclusive chargistas pernambucanos como Zuzu (pseudônimo de José Borges

da Silva) e Jota Ranulpho, que colaboraram em algumas publicações em Recife,

inclusive em A Pilhéria. As pictóricas melindrosas eram dessa forma construídas

com traços soltos, que simbolizavam a leveza de seu comportamento, e também

esboçavam sensualidade com o olhar. A uma primeira vista, lembram mocinhas

ingênuas, mas basta observar seus lábios grossos e em forma de coração que se

sente certo ar de indiferença, mas uma indiferença misteriosa, uma indiferença que

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atrai. A ambiguidade foi com certeza, o predicado mais presente nas ilustrações em

que foram representadas as melindrosas.

5. Considerações.

Em síntese, observamos como os corpos criados nas cidades modernizadas

foram peças fundamentais para um aceleramento da quebra com antigos modos

tradicionais. Denise Bernuzzi descreve que “[...] falar do corpo é abordar, ao mesmo

tempo, o que se passa fora dele, mas o inverso também é valido. As cidades

revelam os corpos de seus moradores.” (SAN’ANNA, 2005, p.17) O corpo

propriamente dito, e a sua cobertura, sejam roupas, cremes ou adereços, traduzem

sentimentos internos e externos que afloraram de uma sociedade em ritmo de

transformação, sociedade que buscava representar o futuro, e embalados pelos

desígnios capitalistas, por uma nova configuração do individuo urbano. Conclui-se

que os sentimentos de ser moderno, independente e livre, atrelaram-se aos

desígnios da sociedade moderna capitalista, resultando em um caldeirão de

ideologias que materializaram-se nos corpos das melindrosas e dos almofadas.

Observado a análise histórica-semiótica da mensagem imagética inclusive as

inserida nas charges que pesquisamos, percebemos como este campo tornou-se

ascendente nos asnos 1920, pois “[...] a ilustração com ou sem fins comerciais,

tornou-se parte indissociável dos jornais e revistas e os historiadores incubaram-se

de transformá-la em outro fértil veio de pesquisa.” (LUCA, 2005, p. 123) A imprensa

periódica “[...] seleciona, ordena, estrutura e narra, de uma determinada forma,

aquilo que se elegeu como digno de chegar até o público” (LUCA, 2005, p.139),

sendo assim, os que se posicionam a frente deste veículo de comunicação tendem a

se tornarem-se detentores do poder simbólico sobre seus leitores/as, que

embriagados/as com o fascinante mundo apresentado pela publicidade, seja em

charges, anúncios, ou até mesmo por meio de filmes, acabam por “copiar” os novos

modos de ser apresentados, e representá-los conforme julgam melhor, seja de

forma consciente ou inconsciente. Neste turbilhão conflituoso de ideias entre os

tradicionais e os que defendiam a modernidade, os corpos femininos e masculinos

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modificaram-se, e como resultado, maiores liberdades vieram, principalmente às

mulheres. Esses documentos mostram-nos como a ressignificação do ser homem e

ser mulher já estava presente durante o início do século XX.

Durante os anos 1920 não apenas a aparência e o vestuário mudaram, mas

também o comportamento das pessoas. A evidente influência europeia e

estadunidense foi fator predominante dentro desta configuração, mesmo que após

os anos 1930, este ponto de influência fosse diminuir. Além disso, gradativamente

os personagens foram conquistando maiores liberdades no tocante ao seu cotidiano,

trabalho e mobilidade, aos poucos as mulheres desprendiam-se do lugar majoritário

de submissão aos homens, mesmo que em sua maioria, elas permanecessem como

detentoras do lar e responsáveis pelos filhos; por outro lado, os homens

expressavam mais abertamente suas subjetividades, e buscavam cada vez mais a

individualidade expressada em seus corpos desvirtuantes dos padrões tradicionais e

- principalmente - o seu comportamento. Ora, entende-se que os corpos passaram

por profundas ressignificações, alterando as noções do comportamento masculino e

feminino gradativamente, e conforme a modernidade se estabelecia, criaram-se os

personagens melindrosa e o almofadinha.

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