3.1.4 o monte teofania todos os povos, assim como também ... · 152 3.1.4 o monte lugar símbolo...
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3.1.4 O MONTE
Lugar símbolo do encontro de céu e terra, da ascensão humana e da
teofania.39 Todos os povos, assim como também muitas cidades têm seus
montes sagrados. Na Bíblia, várias são as cenas narradas que acontecem em
uma montanha. Elas não são apenas elevações de terra e rochas, mas são
representadas como monte da aliança com Deus, a exemplo do Sinai (Ex. 19.
1,14), Carmelo (Rs. 18.20,21) e das Oliveiras (Lc. 22.39,40).
Na representação em estudo, o monte sobre o qual está assentado a
figura do Menino Jesus é elaborado em estrutura piramidal, com base larga e
redonda, dando o suporte necessário à distribuição dos objetos no cenário de
forma harmônica e equilibrada, lembrando os montes escarpados das imagens
do Bom Pastor em marfim.
39 Conceito de cunho teológico que significa a manifestação de Deus em alguma coisa. É uma revelação ou manifestação sensível da glória de Deus, ou através de um anjo, ou através de fenômenos impressionantes da natureza.
(Fig. 126) Detalhe de monte de uma imagem do Bom Pastor em marfim Séc. XVII Museu de Arte Sacra da UFBA Fotografia da autora
(Fig. 125) Desenho de estrutura piramidal de um dos montes produzido no Recolhimento dos Humildes, com a disposição dos objetos. Desenho da autora
153
Esculpidos em madeira de casca de cajá, seguem o mesmo modelo
indo-português, que lembra uma montanha, tendo ao centro uma gruta com
espelho d’água e animais. Difere apenas por não existir, no monte dos
Humildes, a figura de Madalena no interior da gruta que, no caso da imagem
baiana, representa o local do nascimento de Cristo. A gruta aparece em
representações da Igreja Oriental do nascimento de Cristo, pois era comum na
Palestina utilizar esse espaço como estábulo.
A casca de cajazeira foi muito utilizada por artistas para a produção de
esculturas em tamanho reduzido, como no caso de Erotides Américo D’Araújo
Lopes, citado por Manoel Querino como o “especialista em miniaturas”, todas
feitas com esse material.40
Identificamos três tipos de montes executados de formas diferentes. No
primeiro modelo, bastante estilizado, o trabalho escultórico é mais elaborado
apresentando curvas escavadas com traços bem definidos e uma cavidade
central profunda, servindo como espaço adaptado para a elaboração do lago.
Além disso, destaca-se o processo de douramento com excelente qualidade
técnica envolvendo várias etapas (fig. 127)
Sobre o suporte entalhado o artista aplicava a base de preparação com
gesso e cola animal. Essa base, segundo Guanais41, era aplicada em
camadas. As primeiras, mais espessas, deveriam cobrir as eventuais falhas na madeira; as seguintes, mais diluídas, eram passadas a pincel observando se a camada anterior estava totalmente seca. Após a aplicação destas camadas, aguardava-se a secagem completa, pois a menor umidade poderia provocar a descamação do ouro e da pintura.
Concluindo a primeira etapa de preparação e após o lixamento desta,
aplicava-se o bolo armênio42, tornando a superfície bem lisa e com maior
aderência para a etapa seguinte, que consistia na fixação das folhas de ouro
ou prata. “Quanto mais lisa e macia a camada de bolo, mais aderida, lisa e
40 QUERINO, Manoel Raymundo, Op. Cit. p.32 41 GUANAIS, Cláudia, Descrição da técnica e análise formal da policromia na imaginária baiana, Revista Ohun, ano 3, n.3, 2007, p. 44 Fonte: http://www.revistaohun.ufba.br/PDFs/artigo2.pdf Acesso em: 11/04/10 42 Mistura de argila com cola animal
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brilhante ficava a folha metálica.”43 A coloração esverdeada, conseguida
através da aplicação de laca44, reproduz as tonalidades do rochedo, dos limos
e da vegetação em verde musgo e tons de cinza.
No segundo modelo, a estrutura do monte é executada também em um
único bloco que apresenta forma mais próxima a uma elevação de terra, tendo
ao centro um espaço mais alargado para a composição do lago. As curvas são
sinuosas e de superfície lisa, evidenciando um traço escultórico mais
simplificado que o primeiro modelo. Neste caso também há o processo de
douramento e aplicação de laca (fig. 128)
43 COELHO, Beatriz, Materiais, técnicas e conservação, In: Devoção e Arte: Imaginária Religiosa em Minas Gerais, EDUSP, 2005, p. 239 44 Verniz natural muito utilizado no acabamento da madeira
(Fig. 128) Monte - segundo modelo Coleção particular Fotografia da autora
(Fig. 127) Detalhe do monte - primeiro modelo (frente/verso) Fotografia da autora
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Analisaremos o terceiro monte de forma mais detalhada. Tem como
característica um aspecto mais naturalista, assemelhando-se a escarpa de
vegetação abundante45. Sua manufatura se desenvolve através da junção de
pequenos pedaços de madeira (fig. 129), servindo como suporte para a etapa
seguinte, que consiste na modelagem com pó de serra e cola. Este é também o
momento da aplicação do espelho na cavidade central ou “interior da gruta”,
assemelhando-se a pequeno lago que, posteriormente, poderá ser decorado
com animais (fig.130).
45 Este monte foi elaborado pelo restaurador Cláudio Lemos
(fig. 129) Primeira etapa: distribuição das madeiras, dando forma ao monte Fotografia: Cláudio Lemos
(fig. 130 ) Segunda etapa: preenchimento e modelagem do monte com pó de serra e cola; aplicação de lâmina de vidro. Fotografia: Cláudio Lemos
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Após o processo de preenchimento e modelagem, aplica-se camada de
gesso como acabamento para, em seguida, realizar procedimento de pintura
do objeto, neste caso, sem douramento (fig. 131)
Finalmente, inclui-se a figura do Menino Jesus sobre o monte e este é
decorado com vários objetos em miniatura.
(fig. 131) Terceira etapa: acabamento com gesso e pintura Fotografia: Cláudio Lemos
(fig. 132) Monte já decorado Fotografia: Cláudio Lemos
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Objetos dos mais variados materiais eram utilizados para compor o
monte, com figuras dispostas de forma a ocupar todo o espaço, constituindo
um equilibrado jogo de volumes. São elementos que fazem parte de um vasto
repertório simbólico, correspondendo não apenas a linguagem plástica cristã,
como também aqueles ligados a religiosidade popular, frutos de adaptações
sincréticas. Alguns exemplares chegam a atingir o exagero decorativo, com
profusão de personagens posicionando-se em toda cenografia do
espaço/monte.
A grande quantidade de elementos em cada imagem dificultou a
classificação dos mesmos, entretanto, elaboramos um demonstrativo onde
destacamos as figuras que são encontradas com maior freqüência,
confeccionadas em vidro, papel, porcelana, pedra-sabão, madeira, metal,
madeira, dentre outros.
São estes:
ovelhas;
jarros;
taças;
cálices;
xícaras e pires;
flores de papel dourado na base;
miçangas coloridas
penas coloridas (rosa, verde, amarelo, vermelho);
conchas;
animais (cavalo, pássaro, cachorro, carneiro, coelho, ganso,
cisne, galo);
diversos bonecos (figuras femininas e masculinas);
borboleta; laços;
correntes douradas (enroladas nos montes, nos anjos ou no bloco
de nuvens);
miçangas e pingentes coloridos;
moedas e medalhas;
anjos com instrumentos musicais
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3.1.4.1. FLORES
Assim como na ornamentação que circunda o Menino, aparecem
também em grande quantidade na decoração dos montes, sendo muito comum
encontrá-las cercando toda a base (fig. 133). Das quinze imagens analisadas,
oito apresentam esse modelo ornamental. Além da base, encontram-se
também espalhadas, soltas ou em pequeninos jarros de vidro, confeccionadas
em papel, seda, penas de animais ou flores secas (figs. 134/135)
(Fig. 133) Detalhe – flores e pequenas contas coloridas ao redor do monte Fotografia da autora
(fig.134) Detalhe das flores nos jarros em miniatura Fotografias: Cláudia Guanais (esquerda) e Edjane Silva (direita)
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3.1.4.2 OVELHAS
De todos os animais utilizados na decoração a ovelha se destaca,
estando presente na maioria dos montes analisados. Na iconografia cristã pode
significar o próprio Cristo que foi sacrificado por Deus em lugar do homem,
entretanto, no contexto simbólico da representação em estudo, representa o
rebanho ou almas sendo guiadas por Jesus, seguindo os modelos da arte
cristã primitiva (fig. 136).
Assim como as ovelhas que figuram no mosaico, as que compõem as
representações do Menino Jesus estão, na maioria das vezes, observando
atentas ao seu pastor, espalhadas por todo o monte. São esculpidas em
madeira de casca de cajá ou pedra sabão e algumas apresentam tratamento
em esgrafiado do tipo tracejado.46 (fig. 137)
46 Depois que é aplicada a folha de ouro a superfície é pintada e, quando a tinta estiver seca, remove-se partes desta com ferramenta de ponta fina, elaborando desenhos de formas e dimensões variadas, deixando aparecer o douramento. As formas mais encontradas são: tracejado, caminho sem fim, rendas e traços circulares.
(fig.135) Monte do Menino Jesus Fotografia: Cláudia Guanais
160
.
(fig. 136) O Bom Pastor, mausoléu de Gala Placidiana, Ravena Fonte: http://apologetica.ning.com/forum/topics/arte-na-igreja-os-primeiros, acesso em 19/04/2010
(fig. 137) Detalhe de ovelhas no monte Fotografia da autora
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3.1.4.3 AVES
As aves aparecem pela primeira vez na arte cristã em imagens das
catacumbas de S. Domitila, Roma e, posteriormente, em inúmeros afrescos,
pinturas, relevos e mosaicos.47 Em diversas representações cristãs é muito
comum aparecer a figura da pomba como símbolo do Espírito Santo e como
mensageira da vontade divina.
Além de decorar a ornamentação que envolve o Menino Jesus, pássaros
encontram-se espalhados por todo o monte, confeccionados em murano,
porcelana ou penas de animais, muitos de tamanho bastante reduzido. Para
dar mais leveza e movimento, alguns são presos a pequenas molas. Este é um
recurso interessante que dá aos delicados objetos um efeito bastante gracioso
de movimentação ao menor toque. Os maiores apresentam delicado trabalho
de pintura (Figs. 138/139/140/141)
47 HEINZ-MOHR, Gerd, Op. Cit. p. 45
(Fig. 138)Detalhe da decoração de aves nos montes, presos com pequenas molas Fotografia da autora
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(Fig. 139)Detalhe da decoração de aves nos montes, presos com pequenas molas Fotografiada autora (esq.) / Cláudia Guanais (dir.)
(Fig. 140) Pequeno pássaro colorido, confeccionado com penas Fotografia: Cláudia Guanais
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3.1.4.4 OUTROS ANIMAIS
Coelhos, felinos, cães, veados, cavalos, dentre outros, espalham-se
pelos montes, reforçando a simbologia do reino de paz que, na arte cristã,
sempre esteve associada à representação de um ambiente belo e de
integração entre fauna e flora, lugar esperado para a redenção de todos os
cristãos (fig. 142).
Além de referências no Antigo Testamento (AT) encontramos, nos textos
bíblicos, outras citações acerca dos animais, como no Salmo 50, que descreve
em um trecho: “[...] pois são minhas todas as feras da selva, e os animais nas
montanhas, aos milhares; conheço as aves todas do céu, e os rebanhos do
campo me pertencem.”48
48 Bíblia de Jerusalém
(Fig. 141)Aves em miniatura espalhadas pelo monte e no lago Fotografia da autora
164
(Fig. 142) Diversos animais em miniatura espalhados pelo monte Fotografia da autora e Cláudia Guanais (borboleta)
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3.1.4.5 CONCHAS
Muito utilizada em túmulos como representação de que um dia o homem
ressuscitará, na arte cristã surgem raramente. A imaginação de história natural
que se fazia a Idade Média, pensando que os caracóis eram fertilizados pela
queda do orvalho fez das conchas, símbolos da virgindade de Maria. Boticelli e
Ticiano, seguindo este motivo, usaram posteriormente o símbolo da concha na
representação do Nascimento de Vênus, pois partilha do significado simbólico
da água que representa a fertilidade.49
Podem aparecer em ornamentações de presépios portugueses, também
relacionados aos trabalhos conventuais femininos, a exemplo do Presépio do
Museu de Évora, em Portugal (fig.143/144). Os materiais marinhos, no interior
da maquineta, compõem o cenário da Natividade que figura em um espaço
característico de arquitetura palaciana.
49 HEINZ-MOHR, Gerd, Op. Cit. p.105
(Figs 143) Presépio Séc. XVIII Fonte:http://museudevora.imc-ip.pt/Data/Documents/Cenaculo3/B3PresepioEstudo2008Final.pdf
(Fig. 144) Detalhe do interior do presépio com decoração em conchas
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Nos montes as conchas criam jogos cromáticos de tonalidades rosa,
branco e nacarado, contrastando com os tons verde e dourado da superfície
(Fig. 145). Encontradas em moluscos bivalves, animais que apresentam duas
valvas (conchas), estão espalhadas por todo litoral brasileiro, com formatos e
cores variadas50.
50 ABSALÃO, Ricardi, CAETANO, Carlos, PIMENTA, Alexandre, Novas ocorrências de gastrópodes e bivalves marinhos no Brasil (Mollusca) In: Revista Brasileira de Zoologia Vol. 20, n.02, 2003, Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-81752003000200024 Acesso em 10/04/10
(Fig. 145) Detalhes das conchas espalhadas pelos montes Fotografia: Sérgio Benutti
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3.1.4.6 REPRESENTAÇÕES DE FIGURAS HUMANAS
Compondo a paisagem naturalista, personagens isolados aparecem
sendo comum a figura de um jovem, posicionado à direita ou à frente do monte,
representando um pastor de ovelhas (fig. 146/147). Pequenos bibelôs também
são acrescentados, incluindo bonecas de porcelana (fig. 148).
(Fig. 146) Detalhe - Figura do pastor e bibelôs no monte Fotografia: Sérgio Benutti
(Fig. 147) Detalhe – Personagens que compõem o monte Fotografia da autora
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3.1.4.7 CORRENTES, MOEDAS, MEDALHAS E PINGENTES
Moedas presas a correntes também servem como elemento decorativo.
O exemplar identificado em algumas imagens é uma réplica de moeda do
Brasil Império, datada de 1827, tendo no reverso a inscrição em latim In hoc
signus vinces (Com este sinal vencerás) (fig.149/150).
A tradição cristã diz ser esta a mensagem que Constantino viu no céu,
enquanto rezava, antes de entrar em combate. Após isso, o Imperador teria
mandado pintar o sinal nos escudos dos soldados, vencendo a batalha. Em
outra versão conta-se que a visão de Constantino ocorreu durante um sonho,
resolvendo, desde então, cunhar moedas com a inscrição como forma de
lembrar o fato. O modelo “constantiniano” foi copiado mais tarde por outros
governantes como D. Manoel, o Venturoso, de Portugal, D. Pedro I e D. Pedro
II, do Brasil. 51
Presentes também nas pencas de balangandãs usadas pelas escravas,
esses objetos serviam como elemento mágico para atrair riqueza. É provável 51 CARLAN, Claudio Umpierre, O Museu Histórico Nacional e as Moedas de Constantino I, História Revista, Goiânia. V. 12, n. 2 p. 187-185, jul/dez 2007 Fonte: http://www.revistas.ufg.br/index.php/historia/article/viewFile/5467/4449
(Fig. 148) Detalhe de bonecas de porcelanas Fotografia: Cláudia Guanias
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que sua utilização, nas imagens analisadas, também tenha essa mesma
função simbólica.
Em forma de medalha vazada o hexagrama, também conhecido como
“estrela de Davi”, simboliza a união do fogo, água, ar e terra. É também o
emblema nacional do Estado de Israel e elemento muito utilizado pelos
esotéricos. Neste exemplar, as medalhas estão penduradas em correntes, que
também sustentam pingentes em formas de gotas ou de bolas, com cores
variadas (fig. 151).
(Fig. 150)Réplica encontrada na decoração do Menino Jesus do Monte Fotografia da autora
(Fig. 149)Reverso da moeda original do Império Brasileiro - 1827 Fonte:http://www.dplnumismatica.com.br/ cbimperio.html
(Fig. 151) Detalhe – Corrente com medalhas e pingentes Fotografia da autora
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3.1.4.8 A FLOR QUE BROTA DO MONTE Uma flor brotando do monte aparece em doze das quinze imagens
analisadas. Dez apresentam o mesmo padrão escultórico e trabalho de pintura
em esgrafiado tracejado, sendo a maioria na tonalidade rosa, mas também
aparece em vermelho. Na base da flor, as folhagens são pintadas em tons de
verde (fig 152).
Em um exemplar, a flor esculpida é conhecida como “flor de lótus”,
característica da iconografia hindu, revelando a influência da imaginária sacra
católica produzida na Índia. No contexto simbólico da religião hindu, Brahma e
Buda são geralmente representados sobre uma flor de lótus ou emergindo dela
simbolizando elevação do espírito, da luz, da meditação, da pureza e
imortalidade (fig. 153).
Essa característica ornamental aproxima-se muito das composições
artísticas da Árvore de Jessé, tema ligado à genealogia de Cristo e de sua
(fig 152)Detalhe da flor brotando do monte Fotografia da autora
(fig.153)Flor de lótus em um dos montes Fotografia: Sérgio Benutti
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descendência “davídica”52. Está ligada a profecia de Isaías, que define
determinados traços do Messias, conferindo-lhe virtudes de seus
antepassados. O texto profético diz: “Um ramo sairá do tronco de Jessé, um
rebento brotará de suas raízes.”Is 11.153
Um dos retábulos da Igreja de São Francisco, no Porto, possui
primoroso trabalho de talha representando essa temática. A imagem de Jessé
dormindo encontra-se na parte inferior da composição, da qual sai uma árvore
com treze flores, de onde brotam os doze reis da sua descendência
(Fig.154/155). No topo, a figura de José segurando cajado lírio, atributo
simbólico representativo de sua união virginal com Maria, cuja imagem
encontra-se no camarim do retábulo, na parte superior, segurando o Menino
Jesus nos braços.
52 Jessé, Pai de Davi, considerado antepassado de todos os reis de Judá e do próprio Messias, representante terreno da santidade de Iahweh. 53 Bíblia de Jerusalém
(Fig. 154)Altar e retábulo da Árvore de Jessé Séc. XVIII Igreja Monumental de São Francisco - Porto Postal
(Fig. 155)Detalhe - Um dos descendentes de Jessé está sobre um ramo com grande flor.
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3.1.5 BLOCO DE NUVENS Em dez imagens do Menino Jesus surge, sobre a flor, bloco de nuvens
possuindo semelhante trabalho de policromia, com pequenas diferenças.
Suaves tons de amarelo, rosa e azul são encontrados na maioria e, em todos,
há tratamento em esgrafiado, do tipo tracejado (fig.156). Pequenas flores e
estrelas pintadas decoram alguns desses blocos (Fig.157).
Á frente de nove dos dez blocos de nuvens, anjos aparecem tocando
instrumentos musicais. Figuras angelicais simbolizam, nas cenas da natividade,
o ato de adorar e louvar a Deus, servindo de mensageiros e portadores da
revelação divina. “No decorrer da Idade Média enriquece-se sua ornamentação: anjo do lírio na Anunciação de Maria; ramo de palmeira como sinal da vitória, instrumentos musicais e turíbulos para o louvor de Deus, espadas flamejantes para combater o mal, instrumentos da paixão para aludir à Paixão de Cristo...”54
Estão presentes em algumas representações de Maria com o Menino
Jesus, como na pintura A Virgem no caramanchão de rosas (fig. 158), datado
de cerca de 1440. A Virgem encontra-se rodeada de pequenos anjos com
54 HEINZ-MOHR, Gerd, Op. Cit., p. 23
(Fig. 156)Detalhe – Bloco de nuvens de imagem do Menino Jesus do Monte Fotografia da autora
(Fig. 157) )Detalhe – Bloco de nuvens de imagem do Menino Jesus do Monte Fotografia da autora
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instrumentos musicais que tocam música e de outros, que espalham flores ou
oferecem frutos ao Menino Jesus.
Nas mãos dos anjos músicos que compõem a representação do Menino
Jesus do Monte os instrumentos que mais aparecem são o violino, trombone,
trompete, violoncelo e flauta (Fig.159). Estão geralmente à frente da nuvem,
mas pode haver variações.
Encontramos, em uma das imagens, os anjos espalhados sobre o
monte, sendo possível que essa forma de apresentação aconteça pelo simples
fato de ter-se perdido o bloco de nuvens da imagem. Em outra, dois anjos
segurando uma flor ladeiam um coração com a figura do Divino Espírito Santo
à frente (Fig.160/161).
(Fig..158) A Virgem no caramanchão de rosas / c. de 1440 - Stefan Lochner Fonte: GOMBRICH, E.H.., A história da Arte, p. 272
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Figuras angelicais oferecendo o Sagrado Coração ao Menino são
encontradas em duas das imagens analisadas. Na primeira o anjo está
centralizado, posicionado à frente do bloco de nuvens, segurando o coração
com a mão esquerda (fig.162). Na outra, dois anjos ajoelham-se, ladeando a
figura do Menino Jesus e um deles segura um coração flamejante (fig.
163/164).
(Fig..159) Detalhe de anjos a frente do bloco de nuvens Fotografia: Sérgio Benutti
(Fig.160) Detalhe dos anjos espalhados sobre o monte. Fotografia: Sérgio Benutti
(Fig..161) Detalhe de anjos nas laterais do coração Fotografia: Sérgio Benutti
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(Figs..162) Detalhe dos anjos no bloco de nuvens e um, centralizado, oferecendo o coração ao Menino Fotografia: Cláudia Guanais
(Figs..163) Detalhe do Menino Jesus do Menino Jesus do Monte Fotografia: Francisco Portugal
(Figs..164) Detalhe de um dos anjos oferecendo Sagrado Coração ao Menino Fotografia: Francisco Portugal
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Destacamos que esta particularidade também foi identificada em uma
imagem de Nossa Senhora dos Anjos (fig. 165), atribuída por Manoel Querino
ao escultor Domingos Pereira Baião55. Assim como na figura apresentada
anteriormente, um anjo posicionado à frente do bloco de nuvens, sobre o qual
está a Virgem, oferece-a o Sagrado Coração.(fig. 166)
Segundo Querino, esta imagem foi encomendada ao artista pelo
Convento dos Humildes. Haveria então a possibilidade de serem as imagens
do Menino Jesus também de Domingos Baião, entretanto, para que
chegássemos a tal afirmação, seria necessário um estudo mais apurado
dessas imagens, definindo pontos de identidade na fatura escultórica.
Apontamos um dado relevante para a pesquisa, que também abre a
possibilidade dessa atribuição a duas das imagens do Menino Jesus do Monte
analisadas, mais especificamente, aquelas pertencentes hoje ao Museu do
Recolhimento dos Humildes.
55 QUERINO, Manoel, Op. Cit. p. 23
(fig. 165)Nossa Senhora dos Anjos Domingos Pereira Baião Museu do Recolhimento dos Humildes Fotografia: Cláudia Guanais
(fig. 166) Detalhe – imagem do anjo oferecendo o Sagrado Coração a Nossa Senhora.
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Outra curiosa e importante informação foi encontrada, através de uma
transcrição do testamento de Madre Maria Germana Calmon Du Pin, já
mencionada no segundo capítulo56. Irmã Maria entrou para a casa do
Recolhimento em maio de 1846, com treze anos completos. Na idade de
dezesseis, conforme relata em testamento abraçou, por livre e espontânea
vontade, a vida religiosa e, aos oitenta e dois anos, resolve fazer seu
testamento;
Na transcrição do testamento, Madre Maria atesta como uma de suas
últimas vontades, deixar:
[...] uma imagem do Senhor Deus Menino, bem preparada, para ornato da capela de Nossa Senhora dos Humildes, e outra igual que foi da minha finada irmã D. Rosa, para o mesmo fim, por esta ser sua última vontade, não se podendo dá-las, nem trocá-las.
Em outro trecho, madre Germana declara:
Deixo para o Recolhimento imagem de Nossa Senhora dos Anjos, que foi de minha finada irmã D. Rosa, com seis aparadores de prata.
As duas imagens de Menino Jesus são, possivelmente, as duas únicas
que se encontram hoje no Recolhimento, além da Divina Pastora, que também,
foi doada para o Recolhimento pela religiosa, conforme consta no testamento,
bem como a imagem de Nossa Senhora dos Anjos.
Em uma observação superficial, percebemos que, a grande maioria das
imagens do Menino que fazem parte do nosso estudo apresenta características
formais de um trabalho com excelente qualidade técnica em sua escultura e
policromia, sobretudo as pertencentes ao Museu do Recolhimento dos
Humildes. Não sendo o objetivo principal da nossa pesquisa a análise
escultórica e policrômica das imagens, apontamos esses dados para futuros
estudos. 56 A transcrição do testamento de Madre Maria Germana foi cedida pela Prof. Maria José Souza Andrade, já citada nesta dissertação, que já publicou estudos sobre recolhimentos baiano, atualmente professora da Universidade Católica. Quando tivemos conhecimento dessa transcrição, voltamos ao Convento São Raimundo com a expectativa de encontrar o documento original, entretanto, mais uma vez obtivemos a resposta negativa da parte da Irmã Elizete, atual superiora da Congregação de Nossa Senhora dos Humildes. A transcrição encontra-se anexo.
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3.2 CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS MATERIAIS UTILIZADOS NA
ORNAMENTAÇÃO DO MENINO JESUS DO MONTE.
Destacamos anteriormente que a fatura das imagens do Menino Jesus
do Monte sempre esteve relacionada à devoção feminina, na cidade de Santo
Amaro, intensificando sua produção e que sua ornamentação dependia do
poder aquisitivo de quem as encomendava. Mas aonde eram adquiridos os
materiais para essa ornamentação?
Desconhecemos a origem de tais objetos utilizados, entretanto,
lançamos algumas hipóteses. Mais uma vez, a inexistência de qualquer
documentação referente à produção dessas peças levou-nos a procurar
indicadores baseados em análises do contexto da sua manufatura.
Alguns dados de inventários da alfândega, consultados no Arquivo
Público da Bahia, referentes ao século XIX, destacam a importação de
mercadorias diversas que podiam servir como elementos de composição das
imagens. Há registros de tecidos, brinquedos, jóias, artigos de prata e
miudezas, vindos da França, Alemanha e Inglaterra57.
A dinâmica da economia Salvador/Recôncavo já foi levantada no
segundo capítulo desta dissertação, portanto, sabemos que as cidades do
recôncavo, todas com localização estratégica junto à baía de Todos os Santos
e com importantes portos marítimos e fluviais, constituíam fonte de intensa
comercialização de mercadorias diversas.
Com o fluxo variado de bens de consumo e objetivando a venda de suas
mercadorias, comerciantes da então vila de Santo Amaro ofereciam seus
produtos ao público consumidor da época, anunciando nos jornais locais
variedade importadas, como é o caso do Jornal Echo Santamarense.
O proprietário da Loja Consciência de fazendas, miudezas e roupas
feitas, senhor Constantino Martins Simões anunciava “[...] um completo
sortimento de fazendas francezas, inglezas e allemães [...]”, além de
“miudezas”. Também o senhor Laurindo de Araújo Britto, em sua Loja de
57 Esses dados podem ser encontrados na Seção Alfândega – Inventário Alfândega/Entrada e Saída de Mercadorias - 060.12 Registro de Despachos de Importação – Arquivo Público do Estado da Bahia
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fazendas e modas, divulgava ao “[...] respeitável publico desta cidade e do
recôncavo [...]” ter recebido “[...] grande factura de fazendas inglezas e
francezas [...]”, além de “perfumarias e miudezas”58.
58 Jornal Echo Santamarense – Jornal político, comercial e agrícola, anno VI, n. 83 outubro/1886 – Arquivo Público de Santo Amaro da Purificação – Cópia microfilmada
(fig. 167) Anúncio de loja comercial – Jornal Echo Santamarense (1886) Fonte: Arquivo Público Municipal – Santo Amaro da Purificação Cópia microfilmada
(fig. 168) Anúncio de loja comercial – Jornal Echo Santamarense (1886) Fonte: Arquivo Público Municipal – Santo Amaro da Purificação Cópia microfilmada
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Dentre os tantos elementos utilizados para o ornato das imagens do
Menino Jesus do Monte, consideramos que alguns poderiam ser encontrados
nessas lojas e armazéns da região, sobretudo as finas “fazendas” e “bicos”,
usados na a confecção do enxoval do Menino, como também as “medalhas” e
“voltas”, para a decoração dos montes. Outros, conforme relato oral de Irmã
Iolanda, eram trazidos da Europa por Padre Miguel, irmão do fundador da
Congregação.
Se faltam dados documentais que comprovem a importação de alguns
dos materiais ou contratos de encomendas de pagamentos e serviços, sobram
evidências que atestam o excelente nível de execução que envolvia a
decoração dessas imagens, sobretudo, no que diz respeito à incorporação de
elementos naturais, de marcante efeito visual
A falta de materiais “nobres”, em alguns momentos, não impediu o
processo de ornamentação dessas imagens, ao contrário, estimulou a
produção de uma variedade fantástica de elementos decorativos, próprios
dessa representação, definindo sua singularidade.
3.3 DEMAIS TRABALHOS PRODUZIDOS NO RECOLHIMENTO DE NOSSA
SENHORA DOS HUMILDES
Até aqui procuramos apresentar as imagens do Menino Jesus do Monte,
objetivo principal da nossa pesquisa, destacando todo o aparato ornamental
que o cerca, fruto do trabalho das religiosas dos Humildes, contudo, julgamos
importante também registrar que, além dessas imagens, outras composições
artísticas eram produzidas, com a mesma qualidade técnica e criatividade,
utilizando os mesmos materiais.
Não podemos deixar de mencionar a produção dos quadros de papel
dourado, com função decorativa, cuja delicadeza atesta, mais uma vez, a
habilidade manual de quem os confeccionava. Lembram os quadros de
181
filigrana em papiers roulés (papel laminado), confeccionados por religiosas
francesas, nos séculos XVII, XVIII e XIX 59 .
Nas figuras em destaque podemos observar que o resultado visual
conseguido com esse tipo de papel dourado, ou laminado, assemelha-se ao
ouro. Em ambos os casos, é elaborado um modelo de altar em homenagem a
um santo, que figura no centro da composição, representado por uma gravura.
O papel dourado é delicadamente recortado, lembrando uma espécie de renda,
onde são acrescentadas pequenas contas de cores variadas. Lembramos que
esse era o tipo de papel utilizado para a confecção de flores presentes em
algumas das imagens já analisadas, bem como as contas coloridas (figs.
169/170).
Em outras composições os temas são desenvolvidos com a utilização de
tecidos, além dos papéis dourados. Nesse caso, para os rostos, mãos e pés
59 Para obter mais informações a respeito dos trabalhos em papel dourado das religiosas francesas, acessar http://chris.monnier.free.fr/tresorsdeferveur/association.htm Também existe um livro que trata do assunto, intitulado Tresors de ferveur Reliquaires à papiers roulés des XVIIe, XVIIIe, XIXe siècles .
(Fig. 170) Quadro de papel dourado produzido no Recolhimento dos Humildes Fotografia: Edjane Silva
(Fig. 169) Quadro de papel dourado Association Tresórs de Ferveur Fonte:http://chris.monnier.free.fr/tresorsdeferveur/acquisition.htm
182
dos personagens utilizam-se as gravuras do santo em papel e, para a
indumentária, tecidos, dando tridimensionalidade ao objeto (figs. 171/172).
Também apresentam características dos modelos franceses.
Na representação dos Humildes vemos a Virgem no centro de um altar,
vestindo túnica azul e manto rosa, confeccionados em tecido, cercada por
cinco jovens. O altar recebe detalhes ornamentais com flores artificiais, jarros e
castiçais, confeccionados em papel dourado, enriquecendo ainda mais a
composição.
Em sua grande maioria, os trabalhos franceses em papel dourado estão
ligados aos relicários domésticos. São desenvolvidos em caixas de madeira
com ou sem molduras. No exemplar em destaque, é colocado a figura do santo
no eixo da composição e os motivos florais, confeccionados em papel,
desenvolvem-se ao seu redor (fig.173).
(Fig. 172) A mesma técnica, com papel e tecido, produzida no Recolhimento dos Humildes Fotografia: Edjane Silva
(Fig. 171) Quadro com detalhes em papel e tecido Association Tresórs de Ferveur Fonte:http://chris.monnier.free.fr/tresorsdeferveur/diaporama%20cires%20de%20Nancy/slides/95080M.html
183
Encontramos, nos Humildes, um exemplar de caixa relíquia com uma
elaboração mais simplificada que as francesas, mas seguindo a mesma
estrutura (fig.174). Possui cavidade ovalada, de tamanho maior, na região
central e, ao redor deste, vinte quatro cavidades menores, com minúsculas
relíquias em todas elas. A figura do santo parece ter se perdido, pois não
aparece na composição. O papel é todo trabalhado com desenhos de
inspiração vegetal, com folhas e cachos de uva. O papel dourado está
presente, emoldurando o conjunto e nas folhagens centrais.
(Fig. 174) Quadro relicário produzido no Recolhimento dos Humildes Fotografia da autora
(Fig. 173) Quadro relicário Association Tresórs de Ferveur Fonte:http://chris.monnier.free.fr/tresorsdeferveur/diaporama% 20cires%20de%20Nancy/slides/95080M.html
184
A Assunção de Nossa Senhora é o tema de outro primoroso trabalho do
Recolhimento baiano, também ornado com papel dourado e miçangas. As
imagens feitas em madeira policromada e dourada, no interior de uma
maquineta, apresentam Nossa Senhora sobre bloco de nuvens, cercada por
arranjos de flores douradas e minúsculos pássaros. Doze apóstolos figuram,
ajoelhados, na parte inferior, extasiados com a cena.
Trata-se de mais um trabalho onde a execução das flores em papel
contribui para uma sofisticação estética que valoriza o sentido místico do tema,
neste caso, a Assunção de Nossa Senhora. Assim como nas representações
do Menino, aparecem dispostos no bloco de nuvens, abaixo da Virgem, anjos
tocando instrumentos musicais (fig. 175/176).
(fig. 175) Assunção de Nossa Senhora Fotografia da autora
(fig. 176) Detalhe das flores em papel dourado e miçangas Fotografia da autora
185
Uma das imagens mais conhecidas do acervo do Museu do
Recolhimento dos Humildes é a Divina Pastora. A origem dessa devoção inicia
no século XVIII com uma visão de Frei Isidoro de Sevilha, na qual a Virgem
aparece, para ele, em traje pastoril. Na visão, Nossa Senhora surgiu sentada à
sombra de uma árvore, com vestes longas, cajado e chapéu. Com uma das
mãos segurava o Menino e com a outra, acariciava uma ovelha, tendo ao seu
redor outras, formando o seu rebanho. No início do século XIX, a devoção se
expande atingindo os diversos países católicos (figs. 177/178)
A imagem que encontramos nos Humildes atesta a popularidade do
culto. A erudição escultórica e policrômica denotam a habilidade do artista.
Seria um trabalho escultórico executado pelo artista Domingos Baião como a
(fig. 177) A Divina Pastora Fotografia: Sérgio Benutti
(fig. 178) Detalhe – Nossa Senhora segurando o Menino Jesus
186
Nossa Senhora dos Anjos apresentada anteriormente nesse estudo? Não
sabemos. Sua ornamentação traz o mesmo padrão, suntuoso e curioso, dos
realizados nos Meninos Jesus do Monte, com os arranjos florais
confeccionados com arames, fios dourados, pedrarias e asas de besouro.
Aparecem também alguns adornos decorativos destacados nas imagens do
Menino, como pingentes, medalhas, figas, correntes e jóias, além do diadema,
que também está presente, decorando o belo chapéu de Nossa Senhora.
Obtivemos informaçõs, através de relatos orais, que eram também
confeccionadas pelas religiosas, caixas de conchas e búzios, destinadas a
guarda de doces e finíssimos sequilhos, também feitos no Recolhimento. Muito
solicitadas pela comunidade local, estas caixas decoradas eram muito
encomendadas pela comunidade, para presentear familiares e amigos.
Infelizmente não foram encontrados exemplares para figurar nesta dissertação.
3.4 OUTRAS INTERPRETAÇÕES DO MENINO JESUS DO MONTE
A significativa variedade de interpretações relacionadas à representação
do Menino Jesus do Monte, encontrada nos museus baianos, reflete a
intensidade devocional pela figura do Jesus Infante, presente nas várias
comunidades religiosas femininas e que propiciou uma vasta produção dessa
imaginária.
Ainda na introdução, deixamos clara a opção pela escolha das quinze
imagens que fazem parte do nosso estudo, pela complexidade e qualidade na
elaboração ornamental que apresentam e por agruparem algumas
características comuns, a exemplo da sua dinâmica decorativa e utilização dos
mesmos materiais.
A falta de registros documentais dificulta a identificação de procedência
da grande maioria dessas imagens que, muitas vezes, são apontadas como
sendo de produção dos Humildes. Observando suas características, entretanto,
percebemos o quanto diferem dos modelos apresentados até o momento.
187
A graciosidade chama atenção para a escultura do Menino que compõe
a representação da figura 179. Segura, em uma das mãos, cajado com alguns
poucos elementos pendentes e tem na cabeça diadema com flores trabalhadas
em papel dourado. Veste túnica clara e manto vermelho, ambos em seda,com
pouquíssima elaboração. O monte, com várias cavidades aparentes, é
decorado com pequeninas conchas, ovelhas e coelhos.
Em outro exemplar a decoração do monte contém, predominantemente,
animais, conchas, folhagens e algumas casas pintadas em azul e vermelho. O
Menino veste túnica vermelha, com interessante acabamento em minúsculas
contas douradas por toda a extensão do tecido. É provável que tenha sido
executado no início do século passado (fig. 180).
Na figura 181, o Menino Jesus encontra-se sobre o monte, também
decorado com uma infinidade de elementos, tendo a sua volta o arquinho, com
ornamentação bastante harmoniosa, que se estrutura em flores trabalhadas
com sedas e penas. O Menino está com peruca e veste túnica bordada, com
(Fig. 179) Menino Jesus do Monte Casa da Providência Fotografia: Sérgio Benutti
(Fig. 180) Menino Jesus do Monte Coleção particular Fotografia: Sérgio Benutti
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menor elaboração técnica no trabalho de bordado. O monte apresenta
composição diferente, mas com o mesmo exagero ornamental, com
predominância de conchas, flores e carneirinhos.
O monte, na figura 182, decorado com muitas conchas e animais,
apresenta visível desproporcionalidade com relação ao Menino, existindo a
possibilidade de não ser a imagem original do conjunto. De qualquer forma, o
tratamento simplificado dado a sua indumentária, bem como os poucos objetos
significativos de seus atributos, dão a esta peça, um caráter ingênuo, bastante
diferente da estética suntuosa que vimos nas imagens anteriormente
analisadas.
(Fig. 181) Menino Jesus do Monte Convento do Desterro Fotografia: Francisco Portugal
(Fig. 182). Menino Jesus do Monte Museu Henriqueta Martins Catharino Fotografia: Sérgio Benutti
189
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estudamos, especificamente, as imagens do Menino Jesus do Monte,
produzidas pelas religiosas do Recolhimento de Nossa Senhora dos Humildes,
em Santo Amaro da Purificação/BA, no século XIX. Nossa proposta principal foi
a de aprofundar conhecimentos acerca dessa imaginária baiana, fruto da devoção feminina e ainda pouco conhecida pelos historiadores de arte.
O projeto teve início através da observação de uma das imagens que
hoje integra o acervo do Museu de Arte Sacra da UFBA. A escolha inicial dessa
imagem como primeira fonte material da pesquisa, nos conduziu ao processo
de seleção de outras, que apresentavam similaridade quanto ao material
utilizado em sua ornamentação, bem como na manufatura empregada.
Dessa forma, a pesquisa envolveu quinze imagens do Menino Jesus do
Monte, sendo seis pertencentes a instituições museológicas e nove a
particulares.
A análise formal das imagens nos deu indícios bastante esclarecedores
de que poderiam ser todas de procedência dos Humildes, visto que
apresentavam características muito similares.
Pretendíamos comprovar com mais certeza essa possibilidade, na
conclusão da pesquisa, apresentando informações documentais que pudessem
dar sustentação ao processo de análise formal, unindo dados, entretanto, não
encontramos material suficiente para isso. Nenhum documento que
comprovasse venda e compra das imagens, como contratos de encomendas,
pagamentos e serviços foi encontrado.
Muitas foram as visitas ao Convento de São Raimundo na esperança de
poder ter acesso à documentação do Recolhimento dos Humildes, entretanto,
inúmeras vezes, fomos informados de que nenhuma documentação existia.
Tivemos acesso apenas ao “Cerimonial para Imposição de Hábito e Recepção
de Recolhidas de Nossa Senhora dos Humildes da Vila de Santo Amaro,
extraído do Cerimonial das Recolhidas do Senhor Bom Jesus dos Perdões”,
encontrado em estado de conservação muito precário.
190
Quando chegou às nossa mãos uma transcrição do testamento de uma
das religiosas que viveu no Recolhimento, já no final do nosso estudo, vimos a
possibilidade de encontrar o documento original. Recorremos ao Arcebispo
Primaz do Brasil, Dom Geraldo Magella Agnelo, que prontamente atendeu
nossa solicitação, autorizando e recomendando nossa pesquisa.
A autorização do Arcebispo abriu a possibilidade de abertura do Arquivo
São Raimundo e, novamente, buscamos informações com a superiora da atual
Congregação dos Humildes. Dessa vez fomos informados que o material
poderia estar em Santo Amaro, mas que seria inviável, naquele momento, uma
viagem para tentar localizá-lo, frustrando nossas expectativas.
Julgamos pertinente deixar registrado, em nossas considerações, a
dificuldade que a maioria dos pesquisadores encontra em ter acesso aos
registros documentais em nosso país, sobretudo, os pertencentes a instituições
religiosas. Dessa forma, muitas lacunas históricas que poderiam ser
elucidadas, ficam “em aberto”.
A parca documentação, entretanto, não inviabilizou a pesquisa, visto
que, a investigação primordial de um historiador de arte se baseia na análise
visual do objeto artístico.
Atendo-nos às características formais e técnicas dos objetos
selecionados, ressaltamos termos, de fato, identificado similaridade nos
materiais utilizados na sua ornamentação. Além disso, observamos um
virtuosismo na sua execução, demonstrando elevada habilidade técnica
manual de quem as elaborava.
Essas características constantes nas peças justificam uma possível
procedência de produção manual realizada no Recolhimento de Nossa
Senhora dos Humildes, revelando a singularidade no processo de manufatura.
O processo de análise formal de imagens, contudo, nos apresenta muito
mais do que dados materiais. A linguagem plástica desses objetos pode nos
revelar aspectos que vão além do material. Considerando-os dentro do
contexto histórico de produção, as fontes visuais incorporam elementos
simbólicos e ideológicos significativos ao estudo das artes plásticas.
No caso específico, podemos concluir que as imagens do Menino Jesus
do Monte apresentam características de uma espontaneidade popular,
191
baseada na devoção e sensibilidade feminina, encontrada no ambiente cultural
baiano, no século XIX.
Essa representação cristã, que se tornou objeto particular de devoção
das religiosas do Recolhimento dos Humildes e da população de Santo Amaro,
ressalta um diferente nível devocional, próprio da espiritualidade feminina, que
se “materializa” através de sua riqueza iconográfica.
Sua produção reforça também um aspecto importante já registrado por
inúmeros estudiosos da arte no Brasil: as influências culturais européias
sentidas na imaginária sacra brasileira. Com relação a isso, as várias
representações artísticas de temática similar ao nosso objeto, apresentadas em
nosso trabalho, comprovam essa influência.
Contudo, registramos, na representação baiana, a grande variedade de
elementos que a definem como um modelo iconográfico singular, impregnado
de elementos da cultura local.
Sua singularidade baseia-se na estética exuberante e exagerada, no
primoroso trabalho em bordados e papel dourado, na utilização de asas de
besouro para a confecção das flores e em outros objetos produzidos com
elementos encontrados na fauna e flora santamarense.
Fruto da devoção pessoal, encontrada na Bahia oitocentista, essas
imagens foram perdendo, progressivamente, sua função de culto, atribuído a
mudança de valores sociais, religiosos e estéticos no decorrer do início do
século XX.
Mesmo com a continuidade do trabalho educacional realizado
atualmente pelas religiosas da Congregação de Nossa Senhora dos Humildes,
o processo de produção dessas imagens foi caindo em desuso, provavelmente
pelas circunstâncias da vida moderna, onde o papel da mulher “prendada” e
dedicada apenas à criação dos filhos não é mais priorizada.
Outro fator significativo foram as mudanças simbólicas representativas
do Natal, onde o tema da Natividade foi sendo, cada vez mais esquecido e
substituído por outras concepções natalícias.
Hoje encontram-se, algumas dessas imagens, expostas em instituições
museológicas, apreciadas muito mais pelo seu aspecto “pitoresco”. Poucos são
os estudos que envolvem essa representação, talvez pela mínima
documentação encontrada ou por não despertarem o interesse dos
192
pesquisadores, que optam, geralmente, em realizar estudos de imagens mais
conhecidas.
Esperamos que esse trabalho possa instigar outros pesquisadores ao
estudo da imaginária sacra baiana, contemplando outros aspectos que
envolveram sua produção. Nosso trabalho é apenas uma das muitas
interpretações possíveis. Há muito ainda a ser estudado.
193
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194
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202
ANEXO A – Menino Jesus do Monte
Coleção: Museu de Arte Sacra da UFBA Fotografia: Rômulo Fialdini Fonte: Catálogo Museu de Arte Sacra da Ufba
203
ANEXO B – Menino Jesus do Monte
Coleção: Museu do Recolhimento dos Humildes Fotografia: Sérgio Benutti
204
ANEXO C – Menino Jesus do Monte
Coleção: Museu do Recolhimento dos Humildes Fotografia: Cláudia Guanais
205
ANEXO D – Menino Jesus do Monte
Coleção: Museu Hnriqueta Martins Catharino Fotografia: Sérgio Benutti
206
ANEXO E – Menino Jesus do Monte
Coleção: Museu Hnriqueta Martins Catharino Fotografia: Sérgio Benutti
213
ANEXO L – Menino Jesus do Monte
Coleção particular Fotografia: Claudiomar Gonçalves Fonte: Catálogo Meninos Deus: os meninos do Recolhimento dos Humildes e outros Meninos Deus
215
ANEXO N – Menino Jesus do Monte
Coleção: Museu Hnriqueta Martins Catharino Fotografia: Sérgio Benutti
216
ANEXO O – Menino Jesus do Monte
Coleção particular Fotografia: Claudiomar Gonçalves Fonte: Catálogo Meninos Deus: os meninos do Recolhimento dos Humildes e outros Meninos Deus
218
APÊNDICE A – Representações Iconográficas do Menino Jesus
Natividade
Fuga para o Egito
Apresentação do Menino Jesus no Templo Jesus entre os Doutores da Lei
Históricas
Bom Pastor
Menino Jesus com instrumentos da Paixão Niño Del Dolor
Menino Jesus Crucificado
Menino Jesus dormindo sobre a cruz
Ligadas a Paixão
Menino Jesus com instrumento
musical
Menino Jesus Salvador do Mundo
Menino Jesus no Trono
Menino Jesus de Cebu
Menino Jesus de Praga
Menino Jesus Triunfante
Menino Jesus Ressuscitado
Gloriosas ou Triunfantes
Menino Jesus com a coroa imperial
Inca e vestes católicas sacerdotais
Menino Jesus Presbítero Relativos à função litúrgica
Menino Jesus Papa
Menino Jesus de Huanca
Menino Jesus Carpinteiro
Menino Jesus Peregrino
Menino Jesus na Caminha
Outros
Menino Jesus de Olinda