3.1.4. contribuições sociais e filosóficas para a mudança...
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84 3.1.4. Contribuições Sociais e filosóficas para a mudança de Paradigma e a
formação do Hospital Contemporâneo: o Hospital Terapêutico.
Foi no decorrer dos Séculos XVII e XVIII que grandes transformações sociais se
desencadearam, configurando agentes secundários, mas responsáveis por marcar
significativamente a configuração de um novo paradigma no entendimento dos
espaços hospitalares, assim como da doença e dos doentes.
Em 1776, foi iniciada a Revolução Americana que desencadeou a Guerra de
independência dos Estados Unidos da América, conquistada apenas em 1783 e
sacramentada pelo Tratado de Paris. Iniciada em 1783, a Revolução Francesa
marca o início da Idade Contemporânea e a proclamação dos direitos universais
Liberté, Egalité, Fraternité21. Ambas revoluções partilhavam dos ideais iluministas22,
a partir dos quais se explicava o universo com base na ciência, na razão e na
valorização do Homem, contrapondo-se diametralmente aos ideais dogmáticos da
fé.
As grandes transformações sociais marcam o novo paradigma na concepção dos
hospitais do decorrer dos Séculos XVII e XVIII. A ruptura paradigmática é constituída
por vários agentes diretos e indiretos ao processo construtivo e o idealismo
iluminista que estabelece a razão e ciência como explicação do universo. Também
buscam explicar os processos de identificação das doenças e dos doentes,
contribuindo com alterações conceituais dos espaços e dos procedimentos 21 "Liberdade, Igualdade e Fraternidade", frase de Jean-Nicolas Pache. 22 O Iluminismo ou Esclarecimento foi um movimento intelectual surgido na segunda metade do Século XVIII, o chamado "Século das luzes". Enfatizava a Razão e a Ciência como formas de explicar o Universo. Os principais filósofos do Iluminismo foram: John Locke, Voltaire, Jean-Jacques Rousseau, Montesquieu, Denis Diderot e Jean le Rond d’Alembert. Fonte: disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Iluminismo> , acessado em 15/10/2007).
85 hospitalares. Mesmo estando inseridos “numa época em que ainda não se dominava
a microbiologia e os métodos anti-sépticos” (ANTUNES, 1991, p.151), esses fatores
marcaram um novo paradigma para a elaboração dos edifícios hospitalares. Assim,
a partir do Século XVIII, o conceito de hospital é modificado, pois ele “é concebido
como um instrumento de cura, e a distribuição do espaço torna-se um instrumento
terapêutico” (FOUCAULT, 2006, p.109).
Pode-se identificar claramente os ideais iluministas na abordagem de Foucault
(2006, p.109), ao descrever as alterações projetuais e administrativas dos hospitais
contemporâneos. É clara a utilização da ciência e da razão como bases conceituais,
assim como a preocupação com o Homem, e não apenas uma busca de recuperar a
alma como realizado anteriormente pelas unidades hospitalares religiosas.
Com base nessa forma diferente de se ver o mundo, houve uma mudança na
maneira de se organizar o hospital que, até então, utilizava-se a forma do claustro,
comum nas comunidades religiosas. Essa forma de organização dos hospitais é
banida em proveito de um espaço que deve ser organizado medicamente. Além
disso, se o regime alimentar, a ventilação, o ritmo das bebidas e outras variáveis
ambientais são fatores de cura, o médico, controlando o regime dos doentes,
assume, até certo ponto, o funcionamento econômico do hospital, até então de
privilégio das ordens religiosas (FOUCAULT, 2006, p.109).
Em Portugal, onde a igreja católica detinha grande influência sobre o país, os ideais
iluministas foram sendo admitidos de forma mais moderada, onde praticamente
todos os estabelecimentos de saúde estavam sob a administração das casas de
misericórdias. Esse poder será delimitado quando promulgado, em 1867, o primeiro
código civil português. Juntamente com essa promulgação, “[a] lei de 22 de Junho
86 de 1866, que veio ampliar a desamortização dos bens das Misericórdias (e de outras
irmandades e confrarias, além dos respectivos hospitais) que tinham constituído,
durante quase quatro séculos, o paradigma das nossas instituições de assistência.
Essa lei obrigava-as a vender em hasta pública a maior parte do seu patrimônio e a
converter o seu valor em obrigações do Estado que rapidamente se desvalorizaram”
(GRAÇA, 2000, n.86 apud Castro, 1981; Ferreira, 1957).
Pode, pois, dizer-se que 1867 foi marcado o fim de uma era, e nomeadamente o início do lento colapso financeiro do hospital tradicional que, nascido da caridade religiosa, se vê então amputado das suas principais fontes de receita, constituídas, sobretudo por bens de raiz quer próprios quer das misericórdias que os administravam (GRAÇA, 2000, n.86).
3.1.5. O Hospital Terapêutico.
Mesmo com toda a mudança paradigmática dos hospitais ocasionada pelo
desenvolvimento dos modelos pavilhonares, os hospitais ainda apresentaram altas
taxas de mortalidade até o Século XIX devido ao elevado índice de contaminação
que ”dava estatística arrasadora: de 2.089 operados em hospitais e igual número
operado em residências privadas, entre o primeiro haviam morrido 855 (41%) e entre
o segundo 266 (13%)” (RIBEIRO, 1993, p.26). Mesmo com a descoberta da
microbiologia, foi necessário primeiro descobrir como esses seres invisíveis ao olho
nu se comportavam e como poderiam ser transmitidas as doenças para, em um
segundo momento, iniciar-se a utilização de métodos profiláticos eficazes.
A partir do Século XX, o hospital perdeu as missões de penitência e misericórdia da
Idade Média e tornou-se, definitivamente, um lugar de tratamento e recuperação.
Com a incorporação do cientificismo da medicina e com a produção industrial dos
87 quimioterápicos e de equipamentos, o hospital adquire características e missões
novas, próprias do hospital contemporâneo (RIBEIRO, 1993, p. 27).
O hospital terapêutico, grande modificador do paradigma de atendimento aos
doentes, contribuiu significativamente para a evolução da medicina e dos espaços
onde ela é oferecida. No entanto, como salienta Ribeiro (1993), foi somente na
metade do Século XX que a medicina, associada a outras ciências e tecnologias,
adquiriu uma eficácia considerável na luta contra as doenças.
Este foi o perfil institucional com que os hospitais atravessaram todas as mudanças
posteriores nas concepções médicas e sociais a respeito da doença e de seu
tratamento. Caracterizando o tipo contemporâneo da organização hospitalar, esse
perfil sobreviveu até mesmo à forma arquitetônica que dividia as unidades
hospitalares em pavilhões de poucos andares, de pequenas dimensões e
espaçamentos regulares. A supressão desse plano, no início do Século XX, atende
à imposição de novos critérios de valorização do espaço urbano e só foi possível
graças aos avanços técnicos da medicina, que proveu métodos alternativos, aliás[,]
muito potentes e eficazes, para a manutenção da assepsia hospitalar (ANTUNES,
1991, p. 157).
A ruptura de paradigma é dada neste momento com características marcantes do
desenvolvimento das práticas médicas, do desenvolvimento das ciências aplicadas à
medicina e ao desenvolvimento tecnológico. Essas características estabelecem um
paradigma rígido e volátil em que os espaços dos hospitais devem acompanhar a
velocidade do seu desenvolvimento para contemplar suas exigências e carências.
88 O Hospital Pavilhonar.
Juntamente com as mudanças administrativas, destaca-se a importância da
concepção do projeto para Hôtel-Dieu Paris de Jacques René Tenon, “o projeto
Jacques René Tenon deteria o mérito de ter deflagrado esse processo e de ter
construído o marco inicial do tipo hospitalar contemporâneo” (ANTUNES, 1991,
p.151).
Do ponto de vista arquitetônico, esse projeto foi responsável pela introdução do
pavilhão hospitalar, forma que predominou nos hospitais até o início do Século XIX.
(ANTUNES, 1991, p.152), esta concepção está baseada em fatos profiláticos,
embasado nos experimentos da microbiologia publicados dos cientistas Louis
Pasteur23 e Robert Koch24, que destacavam a bactéria como um causador de
doenças e, supostamente, poderiam conter o aumento de contágio.
Os hospitais terapêuticos sofreram algumas modificações organizacionais que
alteraram completamente os espaços hospitalares. Tais fatores podem ser
destacados da seguinte forma: 1) divisão da unidade hospitalar em diversos
pavilhões, na busca de aumentar a iluminação e ventilação, diminuindo a
insalubridade; 2) estudo do número de leitos por enfermaria com relação à
iluminação e à ventilação; 3) estudo com relação ao número de andares da unidade,
sendo que fora estabelecido o número máximo de três andares, com escadas muitas
23 Louis Pasteur (1822-1895): Estudou o papel dos microrganismos nas doenças dos seres humanos e dos animais. Em 1880, ele descobriu que bactérias atenuadas conferiram proteção contra a cólera aviária e, em 1884, relatou que os vírus atenuados protegiam contra a raiva. Coma finalidade de matar esporos, Pasteur iniciou a prática de esterilizar as infusões empregando o vapor sob pressão (15 libras a 121oC), enquanto que materiais estáveis eram esterilizados em fornos com calor seco na temperatura de 160oC. 24 Robert Koch (1843-1910): Foi o primeiro a provar que um tipo específico micróbio causa um tipo definido de doença. Em 1877 foi o primeiro a utilizar violeta com sucesso para a coloração do antraz, Paul Ehrlich utilizou o azul de metileno Ziehl e F. Neelsen desenvolveram a coloração pelo ácido, permitindo que Koch observasse, mais tarde, o bacilo da tuberculose. Introduziu também o meio contendo ágar, identificou o bacilo da tuberculose e foi o primeiro a isolar as bactérias causadoras do antraz e da febre asiática. Koch, por volta de 1880, organizou postulados para provar que um micróbio específico causa uma doença particular.
89 bem ventiladas; 4) divisão dos pavilhões em categorias de enfermidades, sendo que
cada pavilhão tinha local destinado para seus próprios serviços, evitando-se, assim,
o contágio inter pavilhonar; 5) divisão dos pavilhões em duas alas, separando os
sexos e 6) proibição do leito coletivo e adoção obrigatória do leito individual
(ANTUNES, 1991).
Importantes descobertas científicas a partir da segunda metade do Século XIX
como, por exemplo, a da origem microbiana das infecções pelo químico francês
Louis Pasteur, em 1850, provocaram transformações na assistência médica com
reflexos diretos na concepção do edifício hospitalar. A partir deste período,
intensifica-se a construção de hospitais na forma pavilhonar com a separação dos
pacientes por categorias de moléstias em áreas isoladas, visando resguardá-los dos
riscos de serem infectados pelos micróbios de outros doentes (FERNADES, 2003,
p.9).
A separação em pavilhões proporciona maior proteção para os pacientes e maior
integração com a natureza, por meio da disponibilização de pátios ajardinados que
proporcionavam um aumento na insolação e na ventilação, conforme recomendado
pelos estudos da enfermeira Florence Nightingale (TOLEDO, 2003), ilustrados pelas
Figuras 16A e 16B. “Pode parecer um estranho princípio enunciar como primeira e
mais importante função de um hospital a de que ele não cause nenhum mal à saúde
do paciente” (BITENCOURT, 2004, p.31).
Os estudos realizados por Florence Nightingale transformaram radicalmente a
enfermagem a partir da segunda metade do Século XIX. Buscando racionalizar a
prática por meio de um trabalho calcado em bases mais científicas, a enfermagem
obtém, assim, a configuração profissional necessária ao auxílio na luta contra
90 doenças. Florence Nightingale encontrou o hospital com condições precárias para a
promoção da cura devido às baixas condições de higiene e à alta promiscuidade
presentes. Tais fatores favoreceram a entrada da enfermagem em cena, numa forma
de buscar a normalização e a regulamentação, bem como a organização do espaço
terapêutico do doente. Para tanto, Florence Nightingale legitima uma hierarquia
institucional, preparando enfermeiras para ocuparem posições de chefia em
enfermarias e superintendência, bem como treinando aprendizes para o cuidado
propriamente dito. As primeiras enfermeiras-chefe foram denominadas lady-nurses25
por possuírem alta posição social, enquanto que aquelas que prestavam o cuidado
direto eram denominadas apenas de nurses, de nível social inferior. Os hospitais
passam a ser considerados como espaços terapêuticos para a cura, onde se
privilegia, principalmente, a relação médico-paciente, sendo que as demais
profissões passam a ser vistas como as que fornecem suporte infra-estrutural
(BELLATO; PASTI; TAKEDA, 1997).
Observa-se nas Figuras 17A e 17B, que os leitos são individuais e localizados de
forma a receber luz e ventilação natural, com janelas posicionadas nas duas faces
da enfermaria. Observa-se também o distanciamento mínimo entre os leitos e o
distanciamento dos sanitários, localizados no final do corredor.
25 Lady = Senhora, Dama; Nurse = enfermeira.
91
A B Figura 17 Enfermaria proposta por Florence Nightingale.
Legenda: A) Planta modelo proposta de Florence Nightingale e B) Foto de uma enfermaria modelo de Nightingale.
Fonte: A)Planta: TOLEDO, 2003 apud St. Thomas Hospital, 1857, B) Foto: TOLEDO, 2003 apud VICENT; PROST,1987.
No final do Século XVIII, o hospital terapêutico passa a ser também local de estudo,
onde a figura do médico será revigorada, uma vez que o saber médico se formará e
se transmitirá no hospital, mediante as práticas médicas (ALMEIDA, 2003).
Ao desenhar o Hospital Naval de Stonehouse (Figura 18) na cidade de Plymouth,
Inglaterra, Roverhead foi o primeiro a adotar a solução pavilhonar, em 1760.
92
Figura 18 Hospital Naval de Stonehouse - Plymouth/Inglaterra.
Fonte: TOLEDO, 2003 apud TOLLET, 1892.
Entre outras propostas, destacam-se os projetos de 1786 por Bernard Poyet (Figura
19) e de1 773 por Lê Roy (Figuras 20A e 20B), para reconstrução do Hôtel-Dieu de
Paris (TOLEDO, 2006, p.22. apud MIGNOT, 1983, p. 224).
Figura 19 Projeto de Bernard Poyet pra reconstrução do Hôtel-Dieu Paris em 1786.
Fonte: TOLEDO, 2003 apud TOLLET, 1892.
93
A
B Figura 20 Projeto de Lê Roy pra reconstrução do Hôtel-Dieu Paris em 1773.
Legenda: A) Fachada Principal do projeto de reconstrução do Hôtel-Dieu Paris e B) Planta do projeto de reconstrução do Hôtel-Dieu Paris
Fonte: TOLEDO, 2003 apud TOLLET, 1892.
94 3.1.7. O Hospital Monobloco
As concepções e teorias de Jacques René Tenon e Florence Nightingale associados
à utilização do modelo pavilhonar de construção de hospitais se disseminaram por
toda Europa e também pelo Novo Mundo26. Na América do Norte, a evolução das
tecnologias para utilização estrutural do ferro e aço associadas ao domínio da
construção de elevadores mais potentes que possibilitavam o transporte vertical em
distâncias maiores, abriu espaço para o desenvolvimento de edifícios mais altos e a
conseqüente discussão do modelo pavilhonar de construção de hospitais. Baseados
nos princípios das tecnologias construtivas, na tecnologia da microbiologia e
contando com a sabedoria necessária para identificar o tratamento das doenças
infecto-contagiosas, Toledo (2003) destaca, entre outros fatores, que “na América do
Norte o modelo começava a ser substituído por um novo paradigma: o partido
arquitetônico de bloco compacto, com vários pisos, também conhecido como
monobloco vertical”. Assim, as críticas feitas ao modelo pavilhonar são de escala
técnica, construtiva e de gestão administrativa. “(...) a adoção do partido vertical,
capaz de diminuir de forma dramática os longos percursos impostos, principalmente
aos médicos e às enfermeiras, pelos intermináveis corredores dos hospitais
pavilhonares“ (TOLEDO, 2006, p.24). O hospital pavilhonar também levava
desvantagem quando comparado ao hospital monobloco de vários andares nos
quesitos economia da construção, facilidade operacional de controles de acesso,
gestão de pessoal, distribuição de fluxos, como de alimentos, medicação, roupas e
de pessoas (TOLEDO, 2003; SAMPAIO, 2005; TOLEDO, 2006).
26 Novo Mundo = América.
95 Segundo Miquelin (1992), no período compreendido entre as duas guerras mundiais,
o conceito pavilhonar evoluiu para o partido monobloco, passando a constituir-se em
uma sobreposição de enfermarias conforme o modelo proposto e testado por
Florence Nightingale em projetos de hospitais pavilhonares. O domínio da tecnologia
de elevadores mais eficientes propiciava a ligação entre essas várias enfermarias:
Construídos na década de 20 organizavam as funções hospitalares em quatro setores básicos: no subsolo os serviços de apoio, no térreo os consultórios médicos, o pronto atendimento e o serviço de raios-X (então chamado de eletro-medicina), no primeiro andar o laboratório e os serviços administrativos, nos pavimentos intermediários, as áreas de internação, no último o bloco operatório. O sótão era usualmente ocupado pelos residentes médicos e de enfermagem (MIQUELIN, 1992, p.54).
Toledo (2003) apresenta como exemplos dos hospitais de modelo monobloco:
Columbia Presbyterian Medical Center em Nova York desenhado por James Gamble
Rogers em 1929, Cornell Medical Center em Nova York, projetado por Coolidge,
Shepley, Bulfinch & Abbot Architects (Figura 21A) e Hartford Hospital em
Connecticut (Figura 21B), projetado por Coolidge, Shepley, Bulfinch & Abbot
Architects.
A B Figura 21 Projetos de Hospitais Monobloco.
Legenda: A) Cornell Medical Center em Nova York e B) Hartford Hospital em Connecticut. Fonte: TOLEDO, 2003.
96 O advento do hospital monobloco e a conseqüente verticalização dos edifícios
voltados à saúde constituíram o novo paradigma na concepção e construção de
hospitais, espalhando-se rapidamente pelos continentes americano e europeu. Com
a quebra do paradigma do hospital pavilhonar e a adoção do paradigma do hospital
monobloco, a separação dos hospitais em pavilhões passou a ser desnecessária e
dispendiosa. Outros fatores, como o desenvolvimento das ciências aplicadas à
medicina, das novas tecnologias de diagnósticos e dos novos conceitos de
administração hospitalar, se somaram e tornaram importante a concepção
arquitetônica do projeto hospitalar que deve abranger e controlar todos esses fatores
dos quais o perfeito funcionamento da unidade é função.
3.1.8. O Hospital do final do Século XX e início do Século XXI.
O edifício hospitalar é um edifício complexo, pois compreende inúmeras áreas e
necessita ser minuciosamente estudado como define Karman (1994, p.21): “(...) o
hospital é considerado uma das instituições mais complexas, tanto sob o ponto de
vista arquitetônico, de engenharia, de instalações, de equipamentos, como de
tecnologia e de administração”. Complementam Bitencourt; Krause (2004):
A elaboração do projeto arquitetônico para construção de estabelecimentos assistenciais de saúde é um processo complexo que deve buscar, invariavelmente, satisfazer a uma significativa diversidade de critérios técnicos e de compatibilidades físico-funcionais. A concepção da solução projetual, além de atender às demandas da tecnologia médica, às características geográficas regionais, à flexibilidade dos espaços determinada pelas variáveis epidemiológicas, deve contemplar, com fundamental relevância, a satisfação do usuário através do conforto ambiental em seus diversos aspectos (BITENCOURT; KRAUSE, 2004 p.2).
97 A elaboração de um projeto hospitalar passa por diversas etapas, mas a
necessidade de compreender a real grandeza dos serviços a serem prestados é de
suma importância, conforme ressalta Bross (2006, p.2): “(...) o edifício não parte de
um programa arquitetônico, mas de uma definição da estratégia de negócio”. Rino
Levi (1954) também descreve a importância do planejamento físico-funcional do
edifício de assistência à saúde:
O primeiro trabalho ao se iniciar o estudo de um hospital é o de organizar o seu programa funcional. Este deverá ser precedido de um trabalho de pesquisa e da coleta de dados. O programa deverá ser minucioso e preciso. Certos detalhes, à primeira vista secundários, podem influir decisivamente na concepção do projeto (LEVI, 1954, p.39).
A etapa de investigação da estratégia do empreendimento deve ser bem concisa,
pois um empreendimento hospitalar é um investimento muito elevado e, com a clara
definição do escopo dos serviços prestado, é possível mensurar as necessidades do
edifício, partindo para a definição de seu partido arquitetônico. Como define Ching
(2000, p.73): “[partido é um] esquema básico ou conceito de um projeto
arquitetônico, representado por um diagrama”. Para o autor, diagrama é ainda o
“desenho, não necessariamente figurativo que esboça, explica ou esclarece o
arranjo e as relações entre as partes de um todo” (CHING, 2000, p. 73).
Já para Martinez (2000), a definição de partido é muito mais complexa, sendo
primariamente definida como:
(...) todo projeto é o desenvolvimento de um anteprojeto, cuja estrutura costuma ser denominado “partido”. Diferentes projetos podem ser desenvolvidos com base em um mesmo partido. O processo consiste em passar de etapas de maior generalidade e menor definição para etapas de maior definição (MATINEZ, 2000, p. 13).
Adotaremos na perspectiva da concepção projetual de um hospital que “[partido é
um] esquema básico ou conceito de um projeto arquitetônico” (CHING, 2000, p.73),
98 que tem como desafio “passar de etapas de maior generalidade e menor definição
para etapas de maior definição” (MARTINEZ, 2000, p.13), e cujo “primeiro trabalho,
ao se iniciar o estudo de um hospital, é o de organizar o seu programa funcional”
(LEVI, 1954, p.39).
Com a evolução do pensamento de projetos específicos para os Estabelecimentos
Assistenciais de Saúde (EAS) e, avaliando-se as tendências de desenvolvimento
das áreas hospitalares, são criados novos conceitos, ou linhas, que possivelmente
delinearão as novas unidades de EAS e, assim, estabelecerão um paradigma para o
projetar unidades de saúde. Estes novos modelos são amplamente discutidos por
profissionais da área, sendo até mesmo propostos como desafios para novos
projetos, pois são elementos que não constam em legislações e normatizações, mas
constituem o entendimento do arquiteto e de sua capacidade de projetar para esse
novo tempo, propondo partidos arquitetônicos coerentes e com flexibilidade para o
futuro de novas intervenções.
A elaboração do partido arquitetônico para um edifício hospitalar deve levar em
conta que o mesmo deve possibilitar ao edifício uma flexibilidade de mudança de
seu espaço físico; essa característica é amplamente ressaltada pelos profissionais
da área por vários fatores, sendo que, entre eles, destacam-se os seguintes: a
grande evolução tecnológica dos procedimentos médicos, o aumento do número de
usuários a serem atendidos e a mudança de uso do espaço por decisões políticas,
dentre outros.
Uma possível definição de flexibilidade é apresentada por Hertzberger (1999):
Flexibilidade significa – já que não há uma solução única que seja preferível a todas as outras – a negação absoluta de um ponto de vista fixo, definido. O plano flexível tem seu ponto de partida na certeza de que a solução correta não existe, já que o problema que requer solução
99
está num estado permanente de fluxo, i.e., é sempre temporário (HERTZBERGER, 1999, p.146).
E ainda enfatiza a sua posição com relação à flexibilidade em concepções
projetuais:
A flexibilidade parece inerente à relatividade, mas, na verdade, está ligada apenas à incerteza, à falta de coragem em nos comprometermos e, portanto, à recusa da responsabilidade inevitável ligada a cada ação que empreendemos. Embora uma formulação flexível a cada mudança que surja não pode ser nunca a melhor e a mais adequada solução para nenhum problema, pode fornecer qualquer solução em qualquer momento, mas nunca a melhor solução. A flexibilidade representa, portanto, o conjunto de todas as soluções inadequadas para um problema (HERTZBERGER, 1999, p.147).
A posição com relação à flexibilidade de projetos apresentada por Hertzberger
(1999) é oposta aos discursos de arquitetos que se especializaram na concepção de
projetos hospitalares, como se pode observar no discurso de Jarbas Karman que,
em sua apresentação no 1º Seminário de Arquitetura Hospitalar, ressalta “(...) os
edifícios de saúde são especialmente sujeitos à introdução de novas técnicas e
tecnologias, e, portanto, requerem grande potencial de atualização para não entrar
em obsolescência física e funcional” (KARMAN apud CORBIOLI, 2003, p. 1).
O discurso de flexibilidade nos estabelecimentos assistenciais de saúde também é
relatado em entrevista por Bross (2006, p. 5): “O hospital precisa de uma ossatura,
uma estrutura, e fechamento que permitam constante flexibilidade. É necessário
organizar as instalações e estruturas de tal forma que se possam adequar, com
certa facilidade, aos ambientes internos”.
Observa-se que a questão de flexibilidade dos projetos faz parte dos discursos dos
arquitetos que projetam hospitais e nota-se que essa característica é destacada
100 desde 1954 por Rino Levi em seu discurso, palestrando na Comissão de
Planejamento de Hospitais do IAB:
(...) o planejamento do hospital, o estabelecimento de um organismo tanto quanto possível flexível facilmente adaptável a circunstâncias novas. (...) vemos a evolução rápida da medicina e da técnica hospitalar, novas condições e necessidades surgem incessantemente, exigindo a modificação contínua da organização do hospital e do seu arranjo interno (LEVI, 1954, p. 41-42).
O Ministério da Saúde também publica seu parecer a respeito desse assunto, nos
textos de apoio à programação física de estabelecimentos de saúde dizendo:
Uma vertiginosa dinâmica é inerente à própria natureza das atividades desenvolvidas no edifício hospitalar. Grandes mudanças na área médica e o avanço tecnológico, seja nas técnicas terapêuticas, ou na própria construção e na manutenção do edifício hospitalar, tem pressionado mudanças na forma de se conceber os hospitais. Estes devem ser capazes de ser cada vez mais rapidamente adaptados e adaptáveis, tanto no que diz respeito à alteração de uso, à introdução de novas instalações e equipamentos, quanto a mudanças espaciais seja de adaptação ou de expansão. Essencialmente são dois grandes aspectos que importam do ponto de vista da materialização dos edifícios, a sua funcionalidade e sua construção. A última diretamente ligada aos requisitos do sistema construtivo e de construtibilidade, a primeira ancorada nos requisitos de flexibilidade e racionalidade. A Flexibilidade é a capacidade dos espaços construídos se adaptarem às novas necessidades hospitalares. Aqui, se destacam, por um lado, a própria expansão da construção, fruto do crescimento ou complexidade das atividades e aumento da capacidade instalada, e, por outro lado, das demandas de modernização e adaptação fruto do desenvolvimento dinâmico da instituição hospitalar (WEIDLE, 1995, p.32).
Indo ao encontro do posicionamento dos arquitetos especializados na criação e
desenvolvimento de projetos de unidades de saúde em todo o Brasil, considera-se
que a flexibilidade é necessária como uma característica a ser observada nos
objetos de estudo.
Associado diretamente à característica de flexibilidade da concepção projetual, está
a proposta de funcionalidade e a racionalização dos espaços, defendida novamente
por arquitetos que se especializaram na concepção de projetos hospitalares. A
funcionalidade está ligada diretamente à disposição dos ambientes dentro de um
hospital e à interligação entre eles. O Arquiteto Augusto Guelli (coordenador de
101 projetos da Bross Arquitetura), em palestra durante o 1º Seminário de Arquitetura
Hospitalar, discursa sobre essa característica e propões anotações e esboços
genéricos (Figuras 22A e 22B) sobre o assunto: “As instituições de saúde funcionam
como redes interligadas de serviços e, por isso, requerem a otimização dos recursos
disponíveis – o que está diretamente relacionado ao fluxo entre setores” (GUELLI
apud CORBIOLI, 2003, p.2). Assim também defende Jarbas Karman no mesmo
seminário:
Um dos pontos mais importantes para a racionalização do funcionamento hospitalar inclui a análise de todo tipo de deslocamento interno. Os percursos que devem ser feitos por profissionais, pacientes, carrinhos e equipamentos, bem como os trajetos de energia elétrica, água e gases medicinais, dependem da provisão de corredores, ruas, dutos, poços de elevador, escadas, condutores elétricos ou tubulações. O conjunto formado por esses elementos dinâmicos e estáticos, que o arquiteto denomina valência, está sujeito a diversas variáveis, como comprimento, largura, horário, velocidade, tempo, pressão, potência e temperatura, entre outras. Essas variáveis constituem as covalências. O planejamento racional do hospital resulta do equacionamento de valências e covalências (KARMAN apud CORBIOLI, 2003, p. 2).
A B Figura 22 Organograma de Funcionamento dos espaços internos hospitalares. Legenda: A) Organização do edifício de saúde; e B) Organização dos espaços.
Fonte: Augusto Guelli, Bross Consultoria e Arquitetura, reportagem sobre 1º seminário de Arquitetura Hospitalar – (Melkan &Chiarello), São Paulo, Revista Projeto Design, Edição 283, Set. 2003.
102 A funcionalidade é um tema também discutido por Hertzberger (1999), que observou
obras funcionalistas e apontou algumas características:
Na arquitetura funcionalista, a forma é derivada da expressão de eficiência (o que significava automaticamente que toda arquitetura funcionalista fosse igualmente eficaz). (...) o pensamento sobre soluções para os problemas arquitetônicos foi prejudicado pela segregação de funções, que acabou prevalecendo sobre a integração. A rápida obsolescência de soluções demasiadamente específicas conduz não só à disfuncionalidade como também a uma grave falta de eficiência (HERTZBERGER, 1999, p.146).
Analisando-se as Figuras 22A e 22B, associadas aos relatos de Hertzberger (1999,
p.146), observa-se que a ‘funcionalidade’ proposta por Augusto Guelli e Jarbas
Karman vem ao encontro das afirmações de Hertzberger, quando a proposta
funcionalista apresentada pelos autores estabelece a relação entre as funções -
necessárias em um ambiente hospitalar - e suas integrações, estabelecendo e
definindo, assim, os fluxos entre elas e solucionando a falha grave mencionada por
Hertzberger (1999, p.146), que é a “segregação de funções”.
O elo entre todas as áreas e todas as funções exercidas por cada unidade funcional
é dado pela circulação. Os percursos dentro de um hospital devem ser sugeridos de
forma a organizar as várias atividades exercidas, até mesmo controlando-as de certa
forma. Há vários tipos distintos de circulação dentro de um hospital, que em alguns
casos devem ser separadas, ou mesmo setorizadas.
O Hospital além de ser um edifício que deve contemplar diversas áreas distintas,
com inúmeras especialidades, deve fazer com que elas sejam complementares e
coexistam de forma harmoniosa, para atingir o objetivo de uma eficiente prestação
de serviço, mensurada também pela satisfação de seus usuários. Essa tarefa é
extremamente custosa, pois seus ‘usuários’ (aqui destacando apenas o tipo de
usuários dos serviços prestados pela unidade), são pacientes ou acompanhantes
103 que estão em seu espaço exclusivamente por uma necessidade que está na maioria
dos casos vinculada à doença ou para tratamentos decorrentes da mesma, com
exceção das parturientes, conforme ressalta Givisiez (2004, p.8), “um bom projeto de
hospital, além de formalmente bem resolvido, deve ser coerente com suas funções e
com seus usuários”.
O comprometimento com a satisfação do usuário deve ser um dos fatores
predominantes da elaboração de uma proposta para edifícios de saúde, como
salienta Bross (2006, p.5), “a questão ambiental é muito importante porque estudos
feitos no Brasil e em outros países mostram que o espaço físico é um componente
na recuperação dos pacientes”. Também ressalta Carlos Eduardo Pompeu (2003),
em seu discurso no 1º Seminário de Arquitetura Hospitalar, a importância de um
ambiente humanizado, nas unidades de saúde:
O projeto deve reunir características que assegurem funcionalidade, mas sem esquecer o bem-estar dos usuários. O hospital tem de ser bom e parecer bom para dar a sensação de confiança, afirma. Segundo ele, médicos norte-americanos já constataram que o psiquismo é fator determinante para a rápida recuperação do paciente: ‘Nosso psiquismo pode ser motivado ou deprimido e isso é regulado em grande parte pelas emoções’ (POMPEU apud CORBIOLI, 2003, p.2).
3.2. BRASIL – O REFLEXO DOS PARADIGMAS EUROPEUS E NORTE
AMERICANOS.
A transposição dos modelos existentes em Portugal para a colônia Brasileira se
traduz, inicialmente, de forma imediata com a instalação das Santas Casas de
Misericórdia, que seguem o modelo de Portugal. Mais tarde, a partir do Século XVIII,
foram construídos em todo o país hospitais gerais, hospitais militares, asilos,
104 colônias leprosários ou dispensários, assim como os hospícios, refletindo não
apenas as influências Portuguesas, mas sim, as Européias como um todo.
Acompanhando a evolução das políticas de saúde pública, observa-se o
desenvolvimento das práticas da medicina e, conseqüentemente, a necessidade de
estabelecer padrões mínimos para garantir a qualidade de saúde à população.
Dessa maneira, foi sendo desenvolvida uma formação das legislações de saúde,
embasada em estudos, nas experiências apreendidas dos profissionais de saúde e
do desenvolvimento tecnológico.
O processo de busca de uma regulamentação para as áreas de saúde é observado
desde o Século XVIII, quando se iniciou a utilização de “disciplinas” (normas) como
mecanismo de controle das ações nos hospitais conforme descreve Foucault (2006,
p.107): “É, portanto, o ajuste desses dois processos, deslocamento das intervenções
médicas27 e disciplinarização do espaço hospitalar, que está na origem do hospital
médico28”. Assim como, também complementa Antunes (1991, p. 154) que a partir
do Século XVIII, novos projetos do médico Jacques René Tenon e John Howard
marcaram o “nascimento” do hospital com foco na cura, um hospital terapêutico, que
seria, segundo o autor, a convergência de duas práticas, a médica e a hospitalar, e
que geraria a disciplina dos espaços e da rotina do hospital.
No Brasil, a preocupação em estabelecer o controle com a disciplinarização dos
ambientes hospitalares é decorrente do reflexo do comportamento apreendido por
outros países. Mesmo sendo uma colônia de exploração de Portugal, o Brasil
apresentava em seus hospitais algum desenvolvimento tecnológico como reflexo das
27 Entende-se como “modificação da intervenção médica: a transformação do saber e da prática médica” (FOUCAULT, 1992, p.107). 28 Entende-se como “Hospital Médico” aquele que busca a cura do paciente e não somente seu isolamento.
105 descobertas e inovações européias na época que podem ser observados nos
projetos da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (Pavilhonar) e do Hospital
Emílio Ribas, que segue o modelo proposto pelo projeto de Jacques René Tenon,
para o Hôtel-Dieu Paris.
Durante o período monárquico brasileiro, o cuidado com a saúde no país era
praticamente oferecido pelas Santas Casas, formadas por serviços religiosos não
governamentais. Foi somente em 1920 que “o Departamento [de Saúde Pública]
caracterizou-se como uma das primeiras iniciativas de saúde do Estado Brasileiro no
âmbito realmente nacional” (MORAES, 2005, p.13).
Observa-se que, até a década de 1930, a grande maioria dos hospitais construídos
era de cunho religioso (administrado pelas Santas Casas de Misericórdia) e
unidades assistenciais voltadas a cuidados sanitários, como asilos, colônias,
leprosários, que tinham como intuito conter as grandes epidemias.
3.2.1. As Unidades Filantrópicas: A Irmandade da Santa Casa de Misericórdia
no Brasil.
Portugal deu continuidade em terras brasileiras ao modelo existente de assistência à
saúde. O primeiro hospital a ser construído no Brasil foi uma unidade da Santa Casa
de Misericórdia.
Braz Cubas, fidalgo português e líder do povoado do porto de São Vicente, posteriormente vila de Santos, auxiliado por outros moradores, iniciou em 1542 a construção da Santa Casa da Misericórdia de Santos, o mais antigo hospital brasileiro, inaugurando-o em novembro de 1543. D. João III concedeu-lhe o alvará real de privilégios em 2 de abril de 1551. A construção do segundo prédio foi concluída em 1665, no Campo da Misericórdia, atual Praça Visconde de Mauá. O terceiro, inaugurado pelo Dr. Cláudio Luiz da Costa em 1836, junto ao
106
morro de São Jerônimo, atual Mont Serrat, foi parcialmente destruído por um deslizamento de terra em 1928. O conjunto atual, único remanescente, foi inaugurado pelo Presidente Getúlio Vargas em 1945, com 1400 leitos (IVAMOTO, 2006).
A primeira implantação da Santa Casa de Misericórdia ocorreu em Santos, próximo
ao porto, cuja administração determinou a criação do hospital para tratar dos
marinheiros e forasteiros, “gente estranha a terra, sem um teto para as receber
nessas dificuldades, ficava a padecer os maiores sofrimentos, quando aqui aportava”
(SANTOS; LICHTI; 1986). Dessa forma, a primeira instalação hospitalar de Santos
estabelece a mesma proposta do modelo assistencial Português, no formato dos
Espritais ou dos Nosocomium Portugueses, como descreve Toledo (2006, p.25-26):
“As ‘Misericórdias’, antes de serem construídas no Brasil, já tinham se difundido por
Portugal e suas colônias, constituindo um verdadeiro sistema hospitalar, não
obstante a independência administrativa e econômica de cada unidade.”
Ainda afirmam Santos; Lichti (1986) que, ao fundar o hospital de caridade em Santos
(Figura 23), Braz Cubas baseou-se nos conceitos e nos moldes já existentes da
Irmandade da Santa Casa da Misericórdia em Portugal desde 1498.
Segundo outras fontes, como a unidades da Santa Casa de Recife, há uma
divergência na informação sobre a primeira unidade estabelecida no Brasil. A
Irmandade de Recife garante que a primeira Santa Casa a ser implantada no Brasil
foi a unidade de Olinda, Pernambuco, supostamente instalada em 1539. Sendo que,
somente em 1860, foi inaugurada a Santa Casa de Misericórdia do Recife (Figura
24), incorporando a Santa Casa de Olinda. Devido à impossibilidade de se confirmar
tais informações por meio de documentação ou estudos acadêmicos, adotar-se-á,
neste trabalho, a versão dos autores Santos; Lichti (1986).
107
Figura 23 Imagem do Primeiro Hospital Santa Cruz da Misericórdia de Santos fundado em 1543.
Fonte: Imagem: tela de Benedito Calixto, apud texto publicado por Francisco Martins dos Santos e Fernando Martins Lichti na obra conjunta História de Santos/Poliantéia Santista (volume I, 1986, Editora Caudex Ltda.,São
Vicente/SP): disponível em: http://www.novomilenio.inf.br/santos/h0260d1.htm, acessado em: 11/10/2007.
Figura 24 Santa Casa de Misericórdia de Recife.
Fonte: Santa Casa de Misericórdia de Recife, disponível em: http://www.santacasarecife.org.br.
Outras unidades da Santa Casa de misericórdia foram implantadas no Brasil, como a
de Olinda, Rio de Janeiro e São Paulo. De acordo com a Irmandade da Santa Casa
de Misericórdia de São Paulo, “Por volta de 1560, deu-se a possível criação da
Confraria da Misericórdia de São Paulo dos Campos de Piratininga que esteve
alojada no Pátio do Colégio, nos Largos da Glória e Misericórdia, sucessivamente”
(SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE SÃO PAULO, disponível em:
<http://www.santacasasp.org.br/>, acessado em: 28/10.2007). Também foi instalada
108 uma terceira unidade da Santa Casa de Misericórdia na Chácara dos Ingleses,
ilustrada juntamente com as outras localidades na Figura 25.
Figura 25 Primeiros locais de Implantação da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
Legenda: A) Imagem do primeiro local de instalação da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, sitiada na Igreja da Misericórdia, B) Imagem do segundo local de instalação da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, sitiada não Largo da Glória, e C) Imagem do terceiro local de instalação da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, sitiada na Chácara dos Ingleses.
Fonte: http://www.santacasasp.org.br.
Ao observarem-se as instalações apresentadas na Figura 25, pode-se notar o
modelo adotado pela Irmandade da Santa Casa de Misericórdia portuguesa de
estabelecer o atendimento aos necessitados juntamente com a capela ou igreja,
fornecendo conjuntamente os préstimos ao corpo e ao espírito enquanto resgatava
as quatorze Obras da Misericórdia que têm guiado as atividades da Irmandade
desde sua criação em Portugal em 1498.
Segundo Cabral (2006), a fundação da Santa Casa do Rio de Janeiro ocorreu em
meados do Século XVI, porém, o autor afirma que não é possível precisar a data.
Cabral (2006) afirma ainda que muitos estudiosos atribuem ao padre José Anchieta
a construção de um barracão de palma coberto de sapé, localizado na praia de
B
C A
109 Santa Luzia, atual Rua de Santa Luzia - em que permanece até hoje - na orla
marítima do morro do Castelo, que teria dado origem à Santa Casa da Misericórdia
do Rio de Janeiro em 1582 para cuidar dos enfermos da esquadra espanhola que se
encontrava ancorada no porto do Rio de Janeiro.
Durante o período de colonização, o Brasil não dispunha de leis próprias que
regulamentassem a construção de hospitais e, assim, as concepções eram
importadas da Europa por engenheiros e arquitetos que de lá vinham trazendo
conceitos na bagagem e os aplicavam aqui, contextualizando com os materiais
existentes, ou mesmo importando parte deles.
A preocupação vigente era sanear os espaços urbanos e controlar as epidemias. O
atendimento era restrito às instituições filantrópicas como a Santa Casa de
Misericórdia, modelo espalhado por todas as colônias portuguesas no mundo e que
tinha como objetivo a prática da caridade para confortar e curar doentes, indigentes,
pobres, velhos, ou qualquer outra pessoa necessitada, sem distinção.
As construções que abrigavam as unidades de atendimento das Santas Casas de
Misericórdia nos primeiros séculos de vida brasileira resumiam-se a edifícios
construídos em taipa com um ou dois pavimentos, sendo seu programa físico-
funcional constituído por: 1) enfermarias coletivas separadas por sexo; 2) quartos
para dois leitos; 3) área destinada à administração; 4) recepção; 5) serviços
(dormitório dos empregados, cozinha e botica) e 6) igreja ou capela anexa ao prédio.
Inexistiam salas de cirurgia e de curativos. Tanto a administração como os serviços internos aos pacientes, inclusive, eram exercidos por leigos sem qualquer formação específica: os serviços de enfermagem estavam em mãos de escravos. De um modo geral, faltava tudo: medicamentos, instrumental, rouparia e alimentos. Higiene também (SILVA, 1999).
110 Outras unidades de atendimento da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia foram
construídas em todo o país, principalmente nas capitanias provinciais que, hoje,
representam os estados. Após a proclamação da república, a construção de
unidades de atendimento nesse modelo foi mantida ainda por vários anos
(CAMPOS, 1950, p. 54).
3.2.2. A mudança de paradigma - Hospital Terapêutico (pavilhonar) e sua
repercussão em solos brasileiros.
A mudança de paradigma com estudos e projetos de Jacques René Tenon, Bernard
Poyet, Le Roy, Gauthier, não ocorreu de forma imediata na Europa. Tampouco no
Brasil, onde as repercussões desse novo paradigma só se fariam sentir cerca de 40
anos depois de o primeiro hospital pavilhonar ter sido instalado na Europa.
Até 1822, o Brasil continuou sendo colônia de Portugal e, como tal, manteve-se sob
o mando e administração da coroa portuguesa. Após a independência, o Brasil
passou a ter que se administrar e defender seu território de ameaças externas e
internas. O exército ganha importância nesse processo de controle territorial e a
construção de novos hospitais militares ganha espaço, inicialmente nas sedes das
capitanias e subseqüentemente em pontos avançados do território. Assim, no final
do Século XVIII e início do Século XIX, observa-se no Brasil que, enquanto por um
lado os valores de saúde pública no Brasil continuavam a se restringir ao
saneamento público e o controle das epidemias, por outro, há um aumento na
construção de hospitais administrados e mantidos pelo exército e também de
111 hospitais para lazaretos e de isolamento. Como um exemplo dessa época, pode-se
citar a instalação de uma base de enfermaria militar no Palácio do Governo no antigo
Colégio dos Jesuítas, em 1765 e em 1792, onde é construído o Hospital da
Capitania de São Paulo (FERNANDES, 2003).
Nesse mesmo período, a Santa Casa de Misericórdia de Santos já apresentava
necessidades de melhorias na configuração do local de atendimento e, tais
necessidades culminaram com a construção do terceiro hospital próprio da
Misericórdia, cujas obras foram iniciadas em 2 de julho de 1835. Esse hospital
(Figura 26) estava localizado na base do antigo morro de São Jerônimo (atual Mont
Serrat), junto à capela de São Francisco de Paula, sendo inaugurado somente em 4
de setembro de 1836 (SANTOS; LICHTI, 1986).
Figura 26 O Hospital da Santa Casa de Santos 1835, na atual Av. São Francisco.
Fonte: texto publicado por Francisco Martins dos Santos e Fernando Martins Lichti na obra conjunta História de Santos/Poliantéia Santista (volume I, 1986, Editora Caudex Ltda., São Vicente/SP).
Baseados na proposta de hospital pavilhonar de Jacques René Tenon, esses
hospitais representaram a mudança de paradigma no Brasil. Tal mudança repercutiu
também na construção do Hospital Emílio Ribas (Figura 27), em São Paulo, Brasil,
no período de 1876 a 1880, que se baseia também na proposta filosófica abordada
por Foucault (2006, p.107) da ”origem do hospital médico”.
112
Figura 27 Hospital Emílio Ribas - Pequeno hospital construído entre 1876 e 1880, com planta de
autoria do engenheiro Wallace da Gama Cochrane. Hospital da Câmara Municipal, depois denominado Hospital de Isolamento. Desenho de Jules Martin.
Fonte: DIM/DPH/SMC CAMPOS, Eudes. Arquitetura paulistana sob o Império. 1997. Tese de doutorado em arquitetura - FAU USP, São Paulo. V.3), disponível em: http://www.fotoplus.com/dph/info07/index.html - arquivo
Histórico Municipal - Prefeitura de São Paulo .
De forma semelhante, a Santa Casa de São Paulo apresenta características “de
partido pavilhonar, foi projetada em 1884 pelo engenheiro italiano Luis Pucci,
fortemente influenciado pelos conceitos de planejamento hospitalar adotados no
Hôpital Lariboisière” (MIQUELIN, 1992, p. 45).
É possível notar a utilização do mesmo conceito ao observarmos as Figuras 28 e 29,
em que se pode ver a repetição dos cinco pavilhões interligados por um corpo
central que se abre para um pátio interno, além de sua fachada permitir acesso a
todos os pavilhões. Esses pavilhões mantinham isolados os enfermos por tipo de
doença, por sexo e por idade (adultos e crianças)
113
A B
C
D Figura 28 Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
Legenda: A) Implantação da Santa Casa; B) Enfermaria., C) Fachada Original do Hospital Central da Santa Casa; e D) Imagem da fachada do Hospital Central da Santa Casa, com algumas alterações no projeto original. Fonte: A) TOLEDO, 2003; B) http://www.santacasasp.org.br; C e D) SANTA CASA DE MISERICÓRDIA Em artigo escrito em 1910, Oliveira Fausto aponta esta fachada como sendo a do projeto original de Luiz Pucci para o prédio do Arouche (mas foi modificado).
114
A B Figura 29 Hospital Laribosiére de Paris, projetado por Gauthier – 1839.
Legenda: A) Planta Geral do Hospital Laribosière de Paris e B) Foto da fachada principal do Hospital Laribosière de Paris. Fonte: TOLEDO, 2003.
O projeto original proposto por Luis Pucci sofreu algumas alterações na fachada,
conforme se pode observar nas Figuras 28B e 28C, em que o corpo central de
entrada do edifício foi alterado completamente. Com relação às plantas não
obtivemos notícias de alterações consideráveis.
Observa-se também na comparação da Figura 28A com a Figura 17A (página 91),
que o modelo proposto para as enfermarias da Santa Casa de Misericórdia de São
Paulo, segue a mesma linha adotada pela enfermeira Florence Nightingale, com
amplas janelas que permitem a eficiente troca de ar associada à grande iluminação
natural da enfermaria, proporcionando o conforto necessário e almejado no período.
A grande preocupação com o controle das doenças infecto-contagiosas levou à
construção de leprosários e asilos, que receberam o nome mais prudente de
colônias. “O espaço asilar sofreu severas críticas, que condenavam o caráter
absolutista da instituição, no emergente contexto de ‘Liberdade, Igualdade e
Fraternidade’ da Revolução Francesa. Assim, o modelo foi reformulado dando
115 origem às colônias” (FONTES, MARIA P.Z. in SANTOS; BURSZTYN (ORG), 2004,
p.59), como relacionados a seguir.
Foram construídos colônias, asilos, leprosários e hospícios, por todo o país, entre os
quais pode-se destacar:
1) 1741- Hospício dos Lázaros, Recife - Pernambuco;
2) 1759 - Hospital dos Lázaros (atual Hospital Frei Antonio), Rio de Janeiro
(Figura 30);
3) 1787 – Leprosário Dom Rodrigo José de Menezes - Bahia;
4) 1803 - Hospício dos Lázaros, instalado em uma casa no bairro do Gloria; São
Paulo; 1805 – Leprosário Asylo de Olaria – São Paulo;
5) 1814 a 1816 - Hospital São José dos Lázaros – Mato Grosso;
6) 1815 - Hospício dos Lázaros de Tocunduba, Pará;
7) 1858 - Hospício da rua de São João que, em 1858, foi transferido para uma
chácara na ladeira da Tabatinguera, São Paulo;
8) 1870 - Hospital do Gavião, Maranhão;
9) 1883 - Hospício dos Lázaros de Sabará, Minas Gerais;
10) 1893 - Desinfectório Central de São Paulo, São Paulo (Figura 31);
11) 1893 - o Hospital de Isolamento localizado na estrada do Araçá, adiante do
cemitério da municipalidade (Figura 32), São Paulo;
12) 1895 - O Asilo do Juquery, Franco da Rocha, São Paulo;
116
13) 1903 – Desinfectório de Botafogo, Rio de Janeiro (Figura 33);
14) 1903 a 1922 – Fazenda Manguinhos – Fundação Oswaldo Cruz : 1904 –
Pavilhão da Peste ou Pavilhão do Relógio, Manguinhos, Rio de Janeiro,
projeto do arquiteto Luiz Moraes Júnior (Figura 34);
15) 1905 - Leprosário Asilo de Guapira, São Paulo;
16) 1912 a 1918 - Pavilhão Hospital para moléstias humanas; Hospital de
Manguinhos, projetado pelo arquiteto Luiz Moraes Jr. (Figura 35), Rio de
Janeiro, e
17) 1916 - O Hospital Militar da Força Pública, construído no bairro da Luz, São
Paulo (Figura 36).
Preocupado com o avanço das epidemias, o Governo da Província de São Paulo constrói em 1893, distante do aglomerado urbano e do centro da cidade, o Hospital de Isolamento. Localizado na estrada do Araçá, adiante do cemitério da municipalidade, no alto da Consolação, o edifício era organizado em pavilhões para a internação dos pacientes separados por moléstias como: difteria, febre tifóide, febre amarela, escarlatina, varíola, pavilhões para administração e portaria, desinfectório, cozinha, lavanderia a vapor e crematórios (FERNANDES, 2003, p. 18 apud SEGAWA, 1988; VISCONTI, 2000).
A B Figura 30 Hospital dos Lázaros ou Hospital Frei Antonio - Rio de Janeiro/RJ.
Legenda: A - vista da entrada da recepção; B) Interior do Hospital Frei Antonio Fonte: http://www.leprosyhistory.org.
117
Figura 31 Desinfectório Central no bairro do Bom Retiro no final do Século XIX.
Fonte: FERNANDES, 2003, p. 18 apud SÃO PAULO, Estado.1912.
Figura 32 Entrada Principal do Hospital de Isolamento no início do Século XX.
Fonte: FERNANDES, 2003, p. apud SÃO PAULO, 1912.
A B Figura 33 Desinfectório de Botafogo – 1903 -1097.
Fonte: http://www.coc.fiocruz.br/areas/ph/desenfectorio.htm.
118
A B Figura 34 Fazenda Manguinhos, Pavilhão da Peste ou Pavilhão do Relógio 1904 – Manguinhos – RJ.
Legenda: A) Planta, fachadas e cortes do pavilhão do Relógio e B) Foto da fachada principal. Fonte: http://www.coc.fiocruz.br.
Figura 35 Pavilhão Hospital para moléstias humanas – Hospital de Manguinhos (1912-1918).
Fonte: <http://www.coc.fiocruz.br.> acessado em: 04/06/2006.
Figura 36 Hospital Militar da Força Pública.
Fonte: FERNANDES, 2003, p. apud CARVALHO, 2000.