3-sombras e imagens

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    Sombras e Imagens (aula com filmes)

    () Classicamente, considerava-se que o ERRO era o maior inimigo do pensamento. ParaEspinoza, no entanto, o maior inimigo do pensamento no seria o erro, mas a IGNORNCIA.Quer dizer, o pensamento teria a ignorncia como seu PRINCIPAL NEGATIVO, ou seja, naviso de Espinoza, a ignorncia seria aquilo que impediria o pensamento de se exercer. Em

    funo disso, esse filsofo inventa um MTODO que passa a ser o fundamento da obradele com o objetivo de aumentar a potncia, a capacidade da nossa compreenso.

    Prestem ateno: esse mtodo visa aumentar a nossa capacidade de entender. Ou seja,quanto mais aumentarmos a nossa capacidade de entendimento, mais afastaremos de nsos poderes negativos da ignorncia; sabendo-se, inclusive, que a ignorncia o que leva avida para o que h de mais nocivo para ela a SUPERSTIO. Ento, o que eu estoudizendo que aumentar a potncia do entendimento, aumentar a potncia de compreenso,ou seja, aprender de tal maneira a pensar, a fim de que sejamos capazes de dar conta detodos os processos da natureza, sem ficarmos envolvidos nos mitos e nas narrativasenganosas. E isso s seria possvel se ns aumentssemos a potncia do nossoentendimento.

    Esta aula no tem explicitamente o ensinamento do mtodo espinozista, mas como seestivesse nas veias de minha fala todo o sangue dos objetivos de Espinoza: aumentar anossa capacidade de entender. Sobretudo porque isso que vocs esto vendo aqui uma tela do Turner a tal tela que faltou na aula de ontem que eu disse que

    seria a terceira fase do Turner. [1]Estatela, eu a identifico ao que eu chamei de PRIMEIRO SISTEMA DE IMAGENS, ondetudo luz, e tudo est em contato com tudo. Este o ponto de partida para oentendimento do que cinema para Deleuze. Se no tivermos esse ponto departida, fatalmente iremos nos perder.

    O que eu estou dizendo pra vocs, que no interior desse jorro de luz vai aparecer, agoracom mais preciso, o que chamei de INTERVALO. O que chamei de intervalo na aula passada

    aparece a; ou seja, dentro desse processo de luz que um movimento ininterrupto,movimento infinito, numa velocidade sem fim, comea a surgir (eu vou comear a usarexatamente as expresses que o Deleuze utiliza) em pontos quaisquer, pequenos intervalos.E esses pequenos intervalos so constitudos, em primeiro lugar, de um elemento que naaula passada eu chamei de percepo, e dei o exemplo do filme do Vertov, no sentido de queainda antes da formao do intervalo j existiria percepo aqui dentro. Por qu? Porque naaula passada eu disse que isto que est aqui aquilo que aparece; e aquilo que aparece oque percebido.

    (Essa noo da existncia de um processo de percepo aqui dentro neste momento muitodifcil! Mais duas aulas, e eu acredito que d para entender perfeitamente.)

    Mas o que importa que nesse processo de luz em velocidade infinita que vo comear a

    surgir pequenos intervalos; e esses pequenos intervalos so como vazios que aparecem nointerior desse plano de luz. Nesses pequenos intervalos dentro deles no existe

    http://claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/wp-content/uploads/2012/03/cclulp-William_Turner_-_Sun_Setting_over_a_Lake.jpg
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    movimento. O movimento, que o que marca exatamente essa imagem que umprocesso interminvel de movimento no existe dentro dos pequenos intervalos.

    Esse instante um instante quase de impossibilidade pra vocs. Foi por isso que eu disseque Espinoza teria colocado a necessidade de aumentarmos a potncia de nossacompreenso, porque entender os processos da natureza pressupe um envolvimento muito

    intenso do pensamento. O que eu estou dizendo que toda a dificuldade para apreender oque est sendo colocado no implica falta de cultura ou uma menor inteligncia: que esseprocesso de aumentar a potncia do nosso entendimento no faz parte de nossasubjetivao. Ou seja, ns no somos constitudos para entender; ns somos constitudospara obedecer! O que eu estou dizendo exatamente a composio de nossa existncia.Ento, a Filosofia, ou a Histria do Pensamento, se confronta diretamente com os processospedaggicos que nos constituem, que nos ensinam no a entender, mas a obedecer. Porisso, quando ns investimos em temas nos quais a obedincia no vale absolutamente nada porque, aqui, nada vale obedecer: a nica coisa que importa entender nscomeamos a sentir a dificuldade.

    Ateno para o que eu vou dizer:

    Na primeira aula, eu coloquei que a funo do pensamento criar e inventar conceitos. Eesses conceitos, que o pensamento inventa, ningum tem a obrigao de conhecer deantemo. Por isso, medida que esses conceitos forem produzidos, s sero entendidosaps uma explicao. Mas s vezes parece que ns entramos no reino da impossibilidade,porque eu digo um conceito e ningum entende; mas eu vou explic-lo depois. E isto produzuma certa ansiedade

    Ento, esta aula comea a partir de Espinoza.

    Eu vou chamar o que vocs esto vendo neste Turner, sem nenhuma sustentao tericaainda, porque nem daria tempo para isso, de a natureza antes do surgimento da vida. Ouseja, eu estou dizendo que h um momento anterior ao surgimento da vida. A vida vaiaparecer a. E a vida, vamos simplificar, eu vou cham-la de ESQUEMA SENSRIO-MOTOR.

    No importa qual seja o tipo de ser vivo. Qualquer vivo se constitui por esse esquema oesquema sensrio-motor. E esse esquema uma capacidade que o vivo tem de introduzir oque eu chamei na aula passada de cortar a ao e a reao. Ento, a ao e a reao oprocesso que est inscrito aqui, onde tudo o que existe age e reage ininterrupta einfinitamente. A VIDA um processo que se d entre a AO e a REAO. O que chamei deao e reao foi a ao e a reao de todos os elementos da natureza que agem e reagempor todas as partes de seu corpo. Todos os elementos que esto na natureza agem ereagem. E a vida aparece cortando esse processo: a vida entra no meio da ao e da reao.Quando ela entra ali no meio, de imediato ocorre um fenmeno: a ao fica separada dareao. E o vivo exatamente constitudo por ao e reao separadas por um intervalo. Poristo, o ser vivo esquartejado.

    O que, neste caso, quer dizer esquartejado? Quer dizer que o ser vivo separa a ao dareao atravs de um intervalo que gerado ali. Portanto, todo e qualquer vivo tem umaparte capaz de receber os movimentos que esto na natureza; e outra parte que capaz dedevolver os movimentos natureza. A parte que recebe movimentos chama-se sensria; aparte que devolve movimento chama-se motora. O vivo no altera o processo de ao ereao pelo qual a natureza constituda; mas vai fazer um esquartejamento: separar aao da reao. O vivo no impede o processo de ao e reao, ele separa; e essaseparao o que se chama INTERVALO. Ou melhor, essa separao o que se chamaINTERMDIO, que alguma coisa que est entre a ao e a reao.

    A ao a percepo. Ento, todos os vivos tm a capacidade de perceber o movimento queest na natureza. E a percepo desse movimento uma absoro que o vivo faz domovimento. O vivo prolonga essa absoro do movimento para a parte motora, queimediatamente devolve movimento. Mas como o vivo introduziu entre a ao e a reao umintermdio, um esquartejamento, separou a ao da reao, ele produziu dentro da natureza

    uma ralentao do movimento.

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    (Conseguiram entender?)

    O vivo ralenta o movimento da natureza. Porque a ao e a reao, que todos os elementosda natureza possuem como essncia, no vivo esto separadas.

    A nica coisa que o vivo introduz de diferencial e esse diferencial algo violento

    esquartejar a relao da ao e da reao. O vivo tem a capacidade de absorver omovimento por uma parte de seu corpo e devolver o movimento por outra parte de seucorpo. Ns os homens, por exemplo, costumamos absorver o movimento que vem do mundopelo nosso rosto. O nosso rosto uma espcie de porta-sensibilidade. Pelo rosto eu vejo,sinto cheiro, sinto gosto, eu ouo Ento, o meu rosto o meu ponto essencial sensrio, mas que no tem a funo de devolver movimento. Ele recebe o movimento e passa essemovimento para a parte motora, que devolve o movimento. Quando a parte sensria recebeo movimento e a parte motora devolve o movimento, isto se chama comportamento. Paraque haja o processo de recepo de movimento e devoluo de movimento, vai haver o queeu chamei de pequeno intermdio. Esse intermdio uma parte vazia, aonde o movimento,ao chegar, avaliado, analisado e selecionado, para ser devolvido. O vivo analisa e selecionao movimento. No como os seres fsicos que devolvem o movimento imediatamente. Ovivo no. Ao receber o movimento, o vivo analisa o movimento que recebeu e em seguidaseleciona o movimento que ele vai devolver. Ento, o vivo ANLISE e SELEO. Ao fazer aanlise e a seleo do movimento, evidentemente, o vivo introduz dentro da natureza umadiminuio do movimento.

    Atravs desse pequeno intervalo o vivo introduz na natureza a ralentao do movimento. Ovivo , necessariamente, esquartejado.

    (E agora eu vou abandonar o vivo e comear a falar o homem, para ficar mais fcil.)

    O homem esquartejado: porque recebe movimento por uma parte do corpo e devolve poroutra. Entre a recepo e a devoluo do movimento estaria o intermdio que onde omovimento vai ser analisado e selecionado. A parte que recebe movimento chama-sepercepo. A parte que vai devolver o movimento chama-se ao. A parte que analisa e

    seleciona o movimento chama-se afeco. O vivo constitudo pelo movimento; movimentoesse que ele altera pela percepo e altera pela devoluo, em funo da anlise e daseleo.

    O que vai me importar hoje, se eu conseguir obter xito, no nem a percepo domovimento nem a reao ao movimento, mas o intermdio: a parte vazia a que analisa eseleciona a devoluo do movimento. Esta parte que est dentro do intervalo tem a funode receber o movimento e essa recepo do movimento chama-se percepo do sujeito; equando ela devolve o movimento chama-se ao do sujeito. Percebo, por exemplo, umpredador e vou agir sobre o predador. A percepo do movimento do predador a percepodo sujeito e a devoluo do movimento a ao do sujeito.

    Para haver percepo do sujeito e ao do sujeito necessrio que nasa a relao

    sujeito/objeto. Cada ser vivo se relaciona com a natureza como se ela fosse constituda porum conjunto de objetos. E este conjunto de objetos o que vai interessar a cada tipo de servivo. Mas acontece que quando um ser vivo est em contato com a natureza, com sua faceperceptiva e sua face ativa e, no meio, aquele pequeno intermezzo, ele recebe toda essaquantidade de luz sobre ele; toda essa quantidade de luz, toda a quantidade de movimentodo universo cai sobre ele; mas a percepo seleciona: s apreende da luz aquilo que lheinteressa. Por isso, ela seleciona uma parte da luz e isto se chama enquadramento. Edevolve movimento em funo daquilo que percebeu.

    O ser vivo banhado por toda a luz do universo, e a luz do universo que cai sobre ele,apenas uma pequena parte se torna perceptiva. E ele s devolve o movimento em funodaquela pequena parte que ele percebeu. Ento, toda a luz do universo fica dentro dopequeno intervalo. Ou seja, este pequeno intervalo todo o universo dentro dele.

    Vocs conseguiram distinguir aqui o que eu disse? O que eu disse foi que se eu colocasseaqui um pequeno ponto (), um ser vivo, esse ser vivo estaria circundado por toda a luz que

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    est no universo TODA tocando nele de todos os lados. Agora, ele tem um processoperceptivo com o qual s apreende a luz que lhe interessa. O resto ele no apreende.

    Neste instante daqui, por exemplo, vocs esto apreendendo do universo aquilo que lhesinteressa. O resto est passando. Se esta tela de luz dourada de Turner fosse todo ouniverso e eu colocasse ali um mnimo ser vivo, este vivo estaria circundado por toda a luz

    que est no universo, toda, tocando nele por todos os lados. Mas este mnimo ser vivo temum processo perceptivo com o qual s apreende a luz que lhe interessa. O resto no apreendido. Neste instante, vocs todos s esto apreendendo do universo aquilo que dointeresse de vocs; o resto est passando. Mas o que est passando entra no ser vivo, ficanele. E essa parte que fica nele chama-se AFETO: so os afetos. Esses afetos no esto nomovimento, esto no pequeno intervalo.

    (No sei se eu obtive inteiro xito ainda que no incio eu tenha citado Espinoza para dizerque a gente tem que forar muito o entendimento para atravessar essa dificuldade!)

    O que vai acontecer agora algo surpreendente: o fato de a natureza ser constituda pormovimento movimento de luz, movimento de matria, movimento de imagem.

    O que o movimento? O movimento a passagem que um corpo faz de um lugar paraoutro lugar.

    Ou seja, esse movimento que h dentro do universo chama-se MOVIMENTO EXTENSO. Omovimento extenso , por exemplo, aquele que o Gary Cooper faz numa rua, ao duelar comum bandido. O movimento o deslocamento que um corpo faz de um lugar para outro lugar.

    Mas quando ns vamos para o pequeno intervalo, ali no existe mais movimento: omovimento desaparece ali dentro. Desaparece o que se chama movimento extenso e vainascer o que se chama MOVIMENTO INTENSO. Com a idia de movimento intenso comea aaparecer um tipo de cinema: a IMAGEM AFECO. Nesse pequeno intervalo vai aparecer[pequeno defeito na fita]

    Porque, para ns, a noo de movimento sempre de movimento extenso, no sentido emque o movimento extenso aquele que um determinado corpo faz ao se deslocar de umlugar para outro lugar. O movimento de um avio, de um trem, de um cavalo, de uma bala,de uma nuvem, por exemplo. No importa o qu: quando esse corpo se mover, o movimentode deslocamento desse corpo chama-se movimento extenso. Um exemplo banal pra vocsentenderem: eu sinto amor, e o meu amor por uma pessoa qualquer, no importa o motivo,pode sofrer uma variao; da mesma forma que este copo em movimento [Claudio empurraum copo sobre a mesa] pode sofrer uma variao: aumentar ou diminuir a velocidade,mudar a trajetria Ento, isso significaria alterao no movimento extenso. Mas possosentir amor e o meu amor pode sofrer uma variao: amo mais agora, menos daqui a pouco.Quando h variao no movimento desse copo, trata-se de uma variao no movimentoextenso; enquanto que uma variao no meu amor uma variao de intensidade.

    (Vocs conseguiram entender?)

    H, ento, nitidamente, alguma coisa que se chama movimento intenso. Esse movimentointenso no pode, de maneira nenhuma, ser medido por uma rgua ou uma balana. Essemovimento intenso o que estaria no interior do intervalo. Ele no estaria fora, mas dentrodo intervalo. Vai surgir, ento, o primeiro tipo de cinema que eu vou explicar neste curso: ocinema do movimento intenso, ou o chamado CINEMA AFECO. (Ele vai nos dar trabalhoat a ltima aula, em funo da grandeza e da beleza dele). Aparecendo ento a idia daexistncia de um movimento no qual no h deslocamento de corpo de um lugar para ooutro; mas o que eu chamei de movimento intenso.

    O primeiro exemplo que vou dar o do PRIMEIRO PLANO. E para mostrar o primeiroplano, eu vou-me servir de dois retratos feitos um pela pintura renascentista, e

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    outro pela pintura barroca. [2]Prestem ateno a este retrato(Heinrich Aldegrever Retrato de um desconhecido), aquilo que eu quero que vocs notemnele:

    Em primeiro lugar, eu acho que fica muito ntido inclusive se a gente fizesse um corteaquique esse retrato se parece com o que ns chamamos de close: caso esse retratofosse uma fotografia, a mquina estaria bastante

    prxima. [3]O que privilegiado nestaimagem o rosto: o rosto o que se destaca! E eu gostaria que vocs notassem como opintor teve a preocupao de colocar os contornos, com uma nitidez impressionante: aslinhas que contornam o bon, que contornam o rosto, o contorno do nariz, dos olhos Ento,vocs podem ver que todo esse rosto se destaca pela preciso do contorno; e a tal ponto,que entre o rosto e o fundo h uma distino bastante ntida. A linha que define esse rosto ntida. E eu vou colocar que este rosto est marcando aqui um primeiro plano.

    Agora um rosto barroco:

    [4]Olhem o rosto barroco (Lievens Retratodo Poeta Jan Vos): observem como as linhas de contorno sumiram j no se distinguem.

    http://claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/wp-content/uploads/2012/03/cclulp-lievens-cortado.jpghttp://claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/wp-content/uploads/2012/03/cclulp-maior-aldegrever-cortado.jpghttp://claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/wp-content/uploads/2012/03/aldegrever-toda.jpg
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    Entre o cabelo e o rosto no h mais nenhum trao de distino; aquele contorno claro nonariz desapareceu completamente; e um fenmeno original pode ser observado:

    Notem o primeiro rosto: reparem como o rosto renascentista todo organizado bocafechada, olhar firme, linhas destacadas. Agora, olhem o segundo rosto: nesse, a boca semove, o nariz parece inflado, no se distinguem bem as linhas.

    Ento, esses dois rostos vo ser colocados aqui como exemplos de primeiro planono cinema, e a primeira amostra do que se chama movimento intenso. Atravs danoo de movimento intenso v-se a preocupao do cineasta em introduzir algo de novo nocinema. Esse movimento intenso o rosto, que, como eu expliquei, uma das partes docorpo do vivo, uma das partes do esquartejamento, a parte sensria. A funo do rosto no devolver movimento; a funo do rosto receber movimento. Mas o que vai acontecer, que no primeiro plano o rosto vai devolver movimento. Mas quando o rosto que devolve omovimento, ele no devolve movimento extensivo, devolve movimento intensivo: amor,dio, desprezo, martrio, sofrimento e isso se chama AFETO. (Conseguiram entender?)

    O primeiro plano vai trazer a marca de dois grandes autores: eu vou colocar o Eisenstein,com o filme A Linha Geral e Pabst, no filme A Caixa de Pandora, onde vo aparecer

    esses rostos em primeiro plano.(Ainda no vai ficar inteiramente claro, porque o que euestou dizendo ainda muito pouco. Ainda preciso de mais umas duas aulas at que vocspossam entender completamente o que eu estou dizendo.) Mas aqui j comea a aparecer,porque o rosto no tem o poder de fazer a devoluo do movimento extenso, que feitopelo corpo, o corpo que devolve movimento. Quando o rosto quer devolver movimento, fazessa devoluo por intensidade. E aqui vo aparecer os dois mecanismos de intensidade,que, neste momento, vamos colocar assim: o renascentista e o barroco. As duas maneirasdo primeiro plano, ambas retomadas pelo cinema moderno.

    G.W.Pabst A Caixa de Pandora (1929)

    O da renascena eu vou chamar de contornos; o rosto barroco eu vou chamar de micro-movimentos: micro-movimentos de intensidade. Quem j assistiu a um filme com o Gary

    Cooper e a Grace Kelly chamado High Noon Matar ou Morrer em portugus?Nessefilme aparece um relgio e o filme se conduz para o que se chama de momento paroxista:quando somos conduzidos para o momento em que uma situao vai explodir. Umadeterminada situao vai explodir, vai ser explodida e ns acompanhamos o seu crescimentono relgio: de vez em quando o relgio aparece em primeiro plano onze e meia, onze etrinta e cinco, onze e quarenta, onze e quarenta e cinco E ns vamos vivendo, na mudanados ponteiros, a intensidade do que est ocorrendo no filme.

    Fred Zinnemann Matar ou Morrer (1952)

    Ento, a partir de agora eu vou fazer a seguinte afirmao: o primeiro plano sempreintensidade, no importa que o que aparea seja um rosto, uma mo ou um relgio.(Entenderam?).Tudo o que cair no primeiro plano entra no campo da intensidade. (Nas

    prximas aulas isso ficar mais forte) Tudo o que cair no primeiro plano entra no campo daintensidade. Ento, os autores que privilegiam o primeiro plano so chamados de cineastasda afeco ou da intensidade. (Foi bem aqui? Esse o primeiro exemplo.)

    Agora vamos voltar para o Turner:

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    [1]Aqui est o primeiro sistema de imagens:qualquer objeto pode fazer um movimento extenso aqui dentro, porque aqui um espaoonde um corpo pode se deslocar. Ele pode fazer um deslocamento. Agora, como ns vamospara o interior do intervalo: no interior dele, esse espao em que as coisas podem fazermovimento vai desaparecer. E vai aparecer um espao intenso, que vou mostrar para vocspor dois autores: um chamado Robert Bresson, que no filme Pickpocket, produz o ESPAODESCONECTADO, onde, de maneira nenhuma, um corpo pode se movimentar. Em seguida,um cineasta chamado Joris Ivens que fez dois filmes que se chamam A Chuva e APonte, onde vamos entrar em contato com duas coisas surpreendentes: uma chuvada intensidade e uma ponte da intensidade. Ou seja, uma chuva que nada tem a vercom a chuva que ns conhecemos que a chuva extensa. E ns vamos conhecera tal da chuva intensa. E conhecer uma ponte onde no pode passar nenhum trem,por ser uma ponte cuja nica finalidade ser pura intensidade. Ainda no tenhoexemplo para dar.

    Joris Ivens A Chuva (1929)

    Joris Ivens A Ponte (1928)

    Ento, aqui, no mundo da intensidade j apareceram o primeiro plano e o espaodesconectado.

    (virada de fita)

    Lado B:

    Em terceiro lugar, esse o mais fcil, por exemplo, vocs devem conhecer o Nosferatodo Murnau (ou mesmo o Nosferato do Herzog; o do Coppola no serve). No sentidode que esses filmes se marcam pela presena das sombras: so as chamadas

    SOMBRAS EXPRESSIONISTAS.O autor se liga com as sombras ao invs de se ligar comos corpos. A cmera est muito mais preocupada em seguir as sombras do que em seguir oscorpos. Quando os corpos, em determinado filme, entram em contato por exemplo, nstemos aqui dois atores, Murilo e Camila, se eles fazem uma cena em que os corpos delesentram em contato, isto se chama CONEXO REAL.

    F.W.Murnau Nosferatu Uma Sinfonia do Horror (1922)

    Eu agora vou contar uma histria de um texto que eu li quando tinha uns dez anos de idade.Um texto em que um homem estava apaixonado por uma mulher. E ele estava num salo ea mulher em outro salo de uma mesma casa. Entre os dois sales havia uma porta devidro, onde a imagem da mulher aparecia projetada, e ele via a imagem da mulherprojetada. A, ele vai e muda de lugar de modo a projetar tambm sua imagem no vidro. E

    comea mover a mo at que no vidro ele toque com a projeo da mo dele a projeo damo dela isso se chama CONJUGAO VIRTUAL. (A conjugao virtual no a conexo

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    real.) Diz esse homem que na hora em que ele tocou com sua mo projetada, a projeo damo dela no vidro, o corpo dela, real, tremeu. A conjugao virtual um dos mecanismosprincipais do chamado expressionismo alemo que um cinema da intensidade. Aconjugao virtual, tambm vou mostrar para vocs que uma vez do autor se preocuparcom as conjugaes reais, se preocupa com as conexes virtuais. H um filmefamosssimo da RKO chamado Sangue de Pantera (refeito na modernidade comNatassja Kinski e o Malcolm McDowell, no sei se o ttulo o mesmo) em que nsvemos uma sombra de pantera projetada na parede mas no sabemos se a pantera a real e aquela pantera comea a devorar uma sombra que o que ns estamoschamando de CONJUGAO VIRTUAL.

    Jacques Tourneur Cat People (1942)

    Agora, ns vamos ter que distinguir conjugao virtual da conexo real. Ento, no cinema deintensidade, ns j temos o primeiro plano, que o rosto ou qualquer coisa que estiver noprimeiro plano. Em segundo lugar, temos o espao desconectado ou A COISA EM SI (eu vouusar esse nome, vocs deixem passar at que na prxima aula eu estabelea um domniosobre ele. O Jori Ivens que fez o filme A Chuva, quis fazer a chuva como ela em si mesma:a ESSNCIA da chuva, ao invs das conexes reais da chuva. como se ele quisesse nosdizer o que a chuva nela mesma.Ento, 1) espao desconectado ou a coisa em si; 2) o primeiro plano; 3) as conjugaesvirtuais ou sombras expressionistas.

    Agora, 4) o ABSTRACIONISMO LRICO. Esse abstracionismo lrico, o grande exemplo um autor chamado Josef Von Sternberg. O filme dele, dentre outros, AImperatriz Vermelha, com a magnfica Marlene Dietrich, numa poca em queestava excepcionalmente bonita.

    O que marca exatamente o Expressionismo lrico? Vejam bem, eu ainda no estou dandoaula de intensidade, eu estou comeando a apresentar a intensidade para vocs, para naprxima aula comear a trabalhar nela, est bem?

    O que vai marcar o abstracionismo lrico um fenmeno que a partir do fsico Newtoncomeou-se a querer entender o que so as cores. Comearam a se preocupar em entendero que so as cores. E um autor, chamado Goethe, escreveu um livro que emportugus se chama A Doutrina das Cores;a traduo em portugus mais oumenos, diminuda, mas o que temos; quem l francs, por favor, em francs a traduo magnfica. Essa doutrina das cores nos diz que a luz tem dois processos: a) o primeiro aluz lutando com as trevas. A luta da luz com as trevas exatamente o cinema expressionistaalemo: o cinema da conjugao virtual. No expressionismo alemo, que o cinema dasconjugaes virtuais, das sombras, o que existe a luz lutando com as trevas. (Eu vou daruma aula lindssima sobre isso para vocs na semana que vem.) b) O outro a luz branca seconfrontando (olha que coisa louca!) com a transparncia. O branco e a transparncia. Porisso o abstracionismo lrico costuma fazer processos em que a palidez da lua se confrontacom o vermelho do sol.

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    Al: A que comea a preocupao como entendimento das cores?

    Cl: No. A preocupao com o entendimento das cores foi a partir da fsica do Newton. Se eutiver tempo eu vou explicar isso. A fsica do Newton no fala nas cores. Ela fala na variaoda luz, t? Agora, o Goethe vai falar nas cores. Nas cores existem em dois processos: que o confronto do claro e do escuro, da luz e das trevas. Luz e trevas: vejam se vocs selembram do Nosferato. Nosferato exatamente isso. Vocs se lembram, no Nosferato ocasal feliz est na luz e o Nosferato est na escurido. Ento aquela luz, no ?Infelizmente a luz venceu!

    Agora, no Sternberg o procedimento ser branco sob a transparncia, t? Ento,ns temos aqui os quatro componentes do chamado cinema afeco.

    Joseph Sternberg A Imperatriz Vermelha (1934)

    (Tera-feira eu vou sofrer horrores, para poder mostrar isso para vocs. O que ns vamosfazer o seguinte: na quinta-feira eu vou dar quatro horas de aula, para quem aguentar, t?Quem aguentar porque ns vamos tentar dar conta desse cinema afeco. Eu tenhoimpresso que na semana que vem eu no vou cuidar de outra coisa, s vou cuidar dele.Porque os outros cinemas eu vou passar rpido, depois eu vou entrar no tempo puro.

    Ento, nesse cinema afeco j ficou colocado quatro elementos. Agora, o investimentoneles. Ontem, eu fiz uma distino para vocs entre pensamento e sujeito humano. Eucoloquei que o sujeito humano constitudo por conjunto de faculdades, que a maneiracomo o sujeito humano exerce sua vida: inteligncia, memria, imaginao, linguagem,hbitos, etc. E disse que o pensamento estaria no interior do sujeito humano, mas nopertenceria ao sujeito humano. Foi esse o enunciado que eu fiz, alguns dos alunos jdisseram que eu tinha que prosseguir porque no entenderam bem ento, eu coloquei queo sujeito humano enquanto tal teria as suas prprias faculdades, com as quais ele exerce asua existncia: a inteligncia, a memria, etc. Mas no interior do sujeito humano estariacolocada uma faculdade chamada pensamento.

    As faculdades do sujeito humano trabalham com o que se chama recognio que sinnimo de reconhecimento. O sujeito humano s trabalha com aquilo que ele reconhece,

    ou seja, entra no mundo e busca viver num mundo em que tudo o que ocorre ele capazno de conhecer, mas de reconhecer, certo? Por isso, se aparecer para um homem algumacoisa que ele no sabe dizer o nome, ele se assusta. O que aquilo? Que coisa aquilo? Por

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    isso os monstros costumam chamar-se a Coisa. E isto no brincadeira, o nome de a coisados monstros muito srio, porque o momento em que voc sai do seu campo dereconhecimento. O pensamento no lida com as mesmas coisas com as quais o sujeitohumano lida. O pensamento mergulha no caos da matria. Ele mergulha nesse caos deimagem. O pensamento mergulha nesse caos de luz. Ento, h uma diferena entre o modode ser do pensamento e o modo de ser do sujeito humano. Vou clarear para vocs: umpensador do fim do sculo XIX, chamado Marcel Proust, constituiu um conceito chamadoSujeito Artista. Proust inventou este conceito. E quando a gente ouve um sujeito comoesse: sujeito artista, agente tem a impresso de que o Proust est inventando um conceito,que seria o sujeito artista que teria a funo de produzir arte.No. A funo do sujeito artistaseria desfazer o sujeito humano, para o pensamento emergir.

    (Vejam se vocs entenderam. Dificlimo?)

    A funo do sujeito artista seria desfazer o sujeito humano [pequena falha na gravao].

    () quem as produz no soas faculdades do sujeito, so o pensamento. Ento, se a arteno produzida pelas faculdades do sujeito mas produzido pelo pensamento, preciso queo sujeito humano invente dentro dele um instrumento para quebrar o sujeito humano que

    domina a vida dele. Ou seja, quebrar o eu pessoal, quebrar o sujeito que ns somos paradeixar que o pensamento surja e o pensamento vai lidar com uma matria catica e dessamatria catica o pensamento vai inventar novos mundos, novas regies, novos afetos,novas linhas, novas vidas. Ento, a arte seria a nica maneira que ns teramos de escapardo sufocamento da vida que vivemos.

    (Entenderam?)

    Ento exatamente isso que eu chamei de pensamento que est na base da construo dasquatro imagens afetivas. (Ficou difcil o que eu disse? Eu estou dizendo que o pensamento,conforme eu acabei de explicar, que seria aquele quem produziria as quatro imagensafetivas: o primeiro plano, a conjugao virtual, o abstracionismo lrico e o espaodesconectado. O sujeito humano, jamais, na sua banalidade, poderia entender esses

    processos que muito alm dele. Aqui eu estou ligando Proust integralmente a Espinoza quea arte no produzida para o sujeito humano, nem se enderea a ele. A, Proust retomaNietzsche e diz que a avaliao de uma obra de arte nunca poder ser feita pelo espectador.A obra de arte s pode ser avaliada pelo prprio artista. E quem o artista? opensamento. (Entenderam?) O artista o pensamento. Ento, o pensamento, quando eleproduz a obra de arte, o objetivo dele construir uma linha de fuga.

    O que uma linha de fuga? sair do territrio endurecido do sujeito humano. O territrioenrijecido do sujeito humano. E essa linha que o artista produz uma prtica. Ento, essasnoes de arte pela arte so completamente tolas. A arte uma prtica a servio da vida. Oque a arte objetiva quando ela se produz, trazer para a vida alguma coisa. Mas ateno, nahora que a arte gerada, fazendo da maneira que eu falei pra vocs eu poderia usar oEspinoza, conforme eu usei no comeo da aula. O Espinoza aumentar a compreenso e oentendimento para superar a ignorncia e a superstio. No Proust, a produo do sujeitoartista para quebrar o sujeito humano que nos governa. Quando isso ocorre, Quando osujeito artista quebra o domnio do sujeito orgnico, desparece o que se chama arepresentao orgnica. A representao orgnica desaparece.

    Al: a que se d a quebra do sensrio-motor?

    E a quebra do sensrio-motor por dentro. Quebra-se por dentro. Na hora em que sequebra a representao orgnica, ns entramos no que numa linha cristalina E essa linhacristalina a POTNCIA NO ORGNICA DA VIDA.

    O que significa potncia no orgnica da vida? Significa que a vida est sendo pensada poressas linhas que eu estou produzindo, no como alguma coisa sinnima de organismo. Vida

    e organismo no esto sendo identificados. Pelo contrrio, o organismo est sendo chamadode aquilo que aprisiona a vida: sujeito humano, sujeito pessoal, eu pessoal, todos os valoresde um sujeito pessoal seriam exatamente aquilo que impediria a vida de fluir. Isso que eu

  • 8/9/2019 3-Sombras e Imagens

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    coloquei, a noo de pensamento no Proust, que o pensamento lidaria com isso que esta, enquanto que o sujeito humano lidaria com territrios constitudos. O sujeito humanocom os territrios constitudos e o pensamento mergulharia nessa virtualidade. E da, dessecaos de luz que est a, o pensamento faria emergir novos mundos. Isso rompe com oprocesso de entendimento que ns temos de que s existe um mundo e que esse mundo nstemos que melhorar, ou piorar, no sei. E o que eu estou dizendo que isso uma tolice darepresentao orgnica. Existem tantos mundos quantos forem inventados. Ns s podemosentender isto se pudermos distinguir a noo de sujeito humano com suas faculdades e anoo de pensamento que eu estou colocando aqui. Ento, a idia de que h apenas ummundo uma idia que tem origem numa imagem dogmtica do pensamento. Isto emergecom o nascimento da Filosofia, emerge uma idia de que h um mundo que est pronto e achegada do homem a este mundo trouxe para ele uma degradao. E se o homem chegouneste mundo e trouxe para esse mundo uma degradao, o homem precisa ser curado. Ohomem chamado de culpado, chamado de admico, de criminoso, porque trouxe ainfelicidade para este mundo. E no estou dizendo que isto mentira; estou dizendo que isto absolutamente verdadeiro. Ou seja, o que precisa acontecer irmos alm do homem,produzir alguma coisa que no esteja mais submetida s representaes orgnicas, porqueessas representaes orgnicas so exatamente os modelos do homem que tornam aimpossvel a constituio de um objeto de arte.

    Vamos ver agora alguma parte de A Linha Geral de Eisenstein e Jack, o Estripador dePabst. Em Jack, o Estripador alguma coisa de abstracionismo lrico vai aparecer. Ento,alguma coisa de luz, muita luz vai aparecer. Ento, vocs vo entrar, a primeira vez aindasem a compreenso integral, com a questo do primeiro plano.