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3 Metodologia de Pesquisa A proposta deste capítulo é discutir os aspectos metodológicos da pesquisa. Pretendemos apresentar o conjunto de escolhas e atividades que auxiliaram nossas decisões quanto à seleção e ao emprego de diferentes técnicas de investigação científica. A metodologia está relacionada “ao que é estudado, como é estudado e aos meios pelos quais é estudado” (McDERMOTT, 2007, p. 21). Tendo em vista esta acepção ampla e a abordagem teórica previamente discutida, o presente capítulo destina-se a refletir sobre: a) alguns aspectos relacionados à fase exploratória da pesquisa: escolha do objeto de pesquisa, o “estado da arte da literatura” 171 e recorte empírico (os fenômenos sociais a serem observados); b) os traços qualitativos da investigação; c) os atores investigados; d) as técnicas de coleta dados utilizadas; e, e) a aplicação da técnica de análise de dados escolhida às informações obtidas com os atores investigados, por meio de entrevistas (fundamentalmente) e de questionários (de forma suplementar). De pronto, vale esclarecer que, apesar da pesquisa reconhecer a importância de justificar as escolhas das estratégias metodológicas utilizadas, não compartilha da presunção de que a fidelidade cega a um único e exclusivo método é indispensável para prestar validade científica ao empreendimento de pesquisa. Com efeito, na discussão acadêmica sobre a aplicação do método nas ciências sociais, a tradição consiste em presumir diferenças inconciliáveis entre as pesquisas de natureza quantitativa e qualitativa nas fases de coleta e de análise de dados. A pesquisa quantitativa é vista como aquela que privilegia “a mensuração de variáveis pré-estabelecidas, procurando verificar e explicar a sua influência 171 A opção por discutir o “estado da arte” no capítulo metodológico se deve ao fato de que foi a partir do contato inicial com a produção literária que se tornou possível chancelar a opção de trabalhar com a tomada de decisões de políticas públicas de propriedade intelectual. A constatação de escassez de estudos sobre o assunto estimulou o viés de novidade que a pesquisa pretende apresentar.

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3 Metodologia de Pesquisa

A proposta deste capítulo é discutir os aspectos metodológicos da

pesquisa. Pretendemos apresentar o conjunto de escolhas e atividades que

auxiliaram nossas decisões quanto à seleção e ao emprego de diferentes técnicas

de investigação científica.

A metodologia está relacionada “ao que é estudado, como é estudado e aos

meios pelos quais é estudado” (McDERMOTT, 2007, p. 21). Tendo em vista esta

acepção ampla e a abordagem teórica previamente discutida, o presente capítulo

destina-se a refletir sobre:

a) alguns aspectos relacionados à fase exploratória da pesquisa: escolha do

objeto de pesquisa, o “estado da arte da literatura”171 e recorte empírico (os

fenômenos sociais a serem observados);

b) os traços qualitativos da investigação;

c) os atores investigados;

d) as técnicas de coleta dados utilizadas; e,

e) a aplicação da técnica de análise de dados escolhida às informações

obtidas com os atores investigados, por meio de entrevistas

(fundamentalmente) e de questionários (de forma suplementar).

De pronto, vale esclarecer que, apesar da pesquisa reconhecer a

importância de justificar as escolhas das estratégias metodológicas utilizadas, não

compartilha da presunção de que a fidelidade cega a um único e exclusivo método

é indispensável para prestar validade científica ao empreendimento de pesquisa.

Com efeito, na discussão acadêmica sobre a aplicação do método nas

ciências sociais, a tradição consiste em presumir diferenças inconciliáveis entre as

pesquisas de natureza quantitativa e qualitativa nas fases de coleta e de análise de

dados. A pesquisa quantitativa é vista como aquela que privilegia “a mensuração

de variáveis pré-estabelecidas, procurando verificar e explicar a sua influência

171 A opção por discutir o “estado da arte” no capítulo metodológico se deve ao fato de que foi a partir do contato inicial com a produção literária que se tornou possível chancelar a opção de trabalhar com a tomada de decisões de políticas públicas de propriedade intelectual. A constatação de escassez de estudos sobre o assunto estimulou o viés de novidade que a pesquisa pretende apresentar.

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sobre outras variáveis, mediante a análise da freqüência de incidências e

correlações estatísticas” (CHIZZOTTI, 2000, p. 52). Já a pesquisa qualitativa é a

que se fundamenta “em dados coligidos nas interações interpessoais, analisadas a

partir da significação que estes dão aos seus atos. O pesquisador participa,

compreende e interpreta” (ibid, p. 52).

KING, KEOHANE E VERBA (1994) também explicitam diferenças entre

as pesquisas quantitativas e qualitativas. As primeiras são as que se utilizam de

métodos numéricos e estatísticos e se baseiam em medições de aspectos

específicos do fenômeno estudado. As pesquisas quantitativas procuram abstrair

casos ilustrativos particulares para perseguir descrições gerais e medições e

análises que podem ser replicadas por outros pesquisadores com facilidade (ibid,

p. 3). Por outro lado, as pesquisas qualitativas são aquelas que cobrem uma ampla

gama de abordagens, mas com nenhuma delas repousando em medições

numéricas ou estatísticas. (ibid, p. 4).

De acordo com os autores, durante várias décadas, as diferenças de

opiniões entre os pesquisadores sobre os méritos de uma ou de outra tradição

metodológica contribuíram para cristalizar uma situação de bifurcação nas

ciências sociais, colocando em lados opostos estudos de natureza “quantitativa-

sistemática-generalista” e os de natureza “qualitativa-humanista-discursiva” (ibid,

p. 4). Contudo, na realidade, as diferenças entre as pesquisas quantitativas e

qualitativas são apenas de estilo e de técnicas específicas. Em termos

metodológicos e substantivos, não são relevantes (ibid, p. 3).

De forma a romper as barreiras que separam as pesquisas quantitativas das

qualitativas, KING, KEOHANE E VERBA entendem que é preciso questionar a

pesquisa qualitativa no que tange à desnecessidade de utilização de técnicas

características das pesquisas quantitativas (ibid, p.5). Por outro lado, reconhecem

que muitos dos temas de interesse dos cientistas sociais não podem ser formulados

de uma forma compreensível que permita o teste estatístico de hipóteses através

do material empírico o que, nestes casos, deve desencorajar o uso exclusivo desta

técnica (ibid, p. 6). Enfim, há situações em que uma pesquisa não se encaixa

devidamente tanto na categoria quantitativa, quanto na qualitativa, e em que

alguns dados são mais receptivos a uma análise estatística, enquanto outros não:

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Padrões e tendências no comportamento econômico, social ou político estão sujeitos mais diretamente à análise quantitativa do que o fluxo de idéias entre pessoas ou a diferença exercida por uma liderança individual excepcional. Se nós pretendemos compreender o mundo em rápida transformação, precisamos incluir informação que não pode ser facilmente quantificada assim como a que pode (ibid, p. 5, grifo nosso).

Concluímos que um estudo que pretende compreender a influência das

ideias e de lideranças individuais na formação da política brasileira de propriedade

intelectual deve privilegiar técnicas de coletas de dados da tradição de pesquisas

qualitativas. Contudo, isto não impede que sejam utilizadas técnicas de coletas de

dados com características da tradição quantitativa como forma de complementar

ou conferir maior consistência aos argumentos construídos, moldados e refinados

ao longo da pesquisa.

3.1 A fase exploratória da pesquisa

A pesquisa qualitativa é, a princípio, exploratória, e mantém esta

característica durante boa parte do seu curso, já que os argumentos ou hipóteses

estão sempre submetidos à construção e teste contínuos. Isto ocorre pelo fato das

pesquisas exploratórias se concentrarem em conhecer a fundo um ou poucos

fenômenos e coincidir deste ou destes não serem objeto de muitas investigações

anteriores. Uma das prioridades da pesquisa exploratória é justamente tornar

familiarizável um fenômeno sobre o qual pouco se conhece ou se estudou. Enfim,

a fase exploratória da pesquisa auxilia a formular e a refinar as hipóteses. Vale

transcrever o conceito de pesquisa exploratória, presente em Theodorson e

Theodorson (1970):

Pesquisa exploratória é um estudo preliminar em que o maior objetivo é se tornar familiar com o fenômeno que se quer investigar, de maneira que o estudo principal a seguir será planejado com grande entendimento e precisão. O estudo exploratório (que pode utilizar qualquer uma de uma variedade de técnicas habitualmente com uma pequena amostra) permite ao pesquisador definir seu problema de pesquisa e formular hipóteses mais cuidadosamente. A pesquisa exploratória demandou uma imersão no “estado da arte” da

literatura de teoria de relações internacionais, da economia política, da análise de

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política externa e de propriedade intelectual. Constatou-se que estudos na área de

análise da política externa brasileira de propriedade intelectual são bastante

escassos, não obstante a profícua literatura, nacional e estrangeira que trabalham

especificamente com propriedade intelectual ou análise de política externa,

encontrada nas mais diversas disciplinas, em especial a Economia, as Ciências

Políticas e as Relações Internacionais.

Entre as produções literárias nacionais, uma das que mais se aproxima de

uma análise da política externa brasileira de propriedade intelectual é

“Propriedade Intelectual: Tensões entre o Capital e a Sociedade”, editada pela

Editora Paz e Terra, em 2007.172 A Rede de Propriedade Intelectual, Cooperação,

Negociação e Comercialização de Tecnologia – REPICT, em alguns de seus

encontros anuais, ofereceu palestras e mesas-redondas com a participação de

diplomatas, tendo como foco o posicionamento do Brasil no cenário internacional

de propriedade intelectual.173 Merecem menção também os anais dos seminários

anuais organizados pela Associação Brasileira da Propriedade Intelectual – ABPI,

que em algumas de suas edições contemplaram a realização de mesas-redondas ou

palestras dedicadas às questões internacionais de propriedade intelectual e à

inserção do Brasil neste cenário.174

Notamos, nos trabalhos mencionados, a contribuição importante dos

diplomatas. Este aspecto insinuava um considerável pró-ativismo da diplomacia

brasileira na área temática da propriedade intelectual, no período pós-TRIPS. Por

outro lado, justamente por haver notável influência do Itamaraty na produção

bibliográfica nacional sobre propriedade intelectual em relações internacionais, a

literatura se concentra quase que exclusivamente nos interesses do Estado

brasileiro enquanto ator unitário e racional em busca do aprimoramento de sua 172 O livro é composto de vários artigos, de autoria de estudiosos e diplomatas, que apresentam abordagens interessantes sobre os espaços para estratégias dos países em desenvolvimento nas negociações internacionais em propriedade intelectual. Contudo, nenhum se dedica exclusivamente a compreender a posição diplomática brasileira, atual ou passada. Para mais detalhes, ver VILLARES (2007). 173 Tem-se, como exemplos, a Palestra Magna, proferida pelo Embaixador José Alfredo Graça Lima no encontro de 2001, intitulada “A Propriedade Intelectual e as Relações Internacionais” e a Mesa-Redonda “O Posicionamento do Brasil diante do Cenário Internacional de Propriedade Intelectual”, realizada no encontro de 2002 e que contou, entre outros, com a participação da Elza Moreira Marcelino de Castro, Chefe da Divisão de Propriedade Intelectual – DIPI do Ministério das Relações Exteriores, na ocasião. Ver, respectivamente, REPICT (2002a) e REPICT (2002b). 174 É o caso, por exemplo, da Sessão Plenária “A Propriedade Intelectual e o Comércio Internacional”, que contou com a participação do Embaixador Luiz Felipe Seixas Corrêa, então Representante Permanente do Brasil junto aos organismos internacionais em Genebra. Ver ABPI (2005).

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inserção internacional. Perspectivas ideacionais na visão diplomática sobre a

propriedade intelectual não foram encontradas.

Na academia, perspectivas que privilegiam análises estruturais com base

na teoria de regimes foram desenvolvidas com vistas a compreender a formação

do regime internacional de propriedade intelectual, até o Acordo TRIPS175. Do

mesmo modo, foram localizados trabalhos que visam examinar, também sob a

perspectiva dos regimes, a atuação do Brasil no conflito internacional em torno da

discussão sobre o acesso dos países em desenvolvimento aos medicamentos para

combater o vírus HIV/AIDS.176

Em resumo, a produção literária privilegia análises estruturais sobre o

regime internacional de propriedade intelectual. Notamos que pouca atenção é

conferida pela produção nacional ao processo doméstico de formulação de

políticas públicas na área de propriedade intelectual, seja antes ou após o advento

do Acordo TRIPS. Inicialmente, pretendíamos privilegiar também a perspectiva

da teoria de regimes, mas a escassez de produções sobre o processo doméstico de

tomada de decisões em matéria de propriedade intelectual nos estimulou a nos

debruçar sobre este objeto de pesquisa, mesmo porque entendemos que era uma

forma recomendável de atingir o objetivo de compreender possíveis alterações no

padrão de inserção do Brasil no regime internacional de propriedade intelectual,

do Governo Fernando Henrique Cardoso para o Governo Luiz Inácio Lula da

Silva.

Assim como a imersão na literatura, os contatos interpessoais preliminares

com alguns atores do aparelho estatal e com representantes da academia, feitos

através de entrevistas, participações em simpósios e conversas informais, foram

decisivos para definir os rumos na pesquisa, em sua fase exploratória.177 Estas

investidas em espaços institucionais e sociais diferenciados apresentaram

evidências de que era preciso buscar, no âmbito da política doméstica, as

respostas para compreender de forma convincente como, desde o fim da Rodada

Uruguai do GATT até o fim do Governo Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil

definiu sua inserção no regime internacional de propriedade intelectual. 175 Destaca-se o trabalho de GANDELMAN (2004). 176 Conferir o trabalho de CEPALUNI (2005). 177 Foi particularmente importante a entrevista exploratória realizada com Leopoldo Coutinho, Coordenador de Cooperação Internacional do INPI, com vistas à confecção do projeto de pesquisa para a defesa. A entrevista nos sugeriu que era necessário atentar para a proeminência de lideranças individuais no processo decisório.

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Chamou atenção a insuficiência de uma variável explicativa178 no nível

estrutural que ajudasse a explicar possíveis mudanças na trajetória da formulação

das políticas públicas de propriedade intelectual do Governo Fernando Henrique

Cardoso ao Governo Lula, em virtude da flagrante estabilidade e da imutabilidade

do regime internacional de propriedade intelectual desde 1995179. No que tange

especificamente à política externa, episódios como o da participação do Governo

brasileiro no embate diplomático internacional entre países desenvolvidos e em

desenvolvimento na discussão sobre a universalização do acesso aos

medicamentos contra o vírus HIV/AIDS, entre 1997-2001, e o lançamento, pelo

Brasil e mais um grupo de países, da “Agenda para o Desenvolvimento”, no

marco da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, em 2004, sugeriam

movimentos inéditos e contundentes de posicionamento crítico em relação ao

regime que demandavam explicações satisfatórias, para além do nível estrutural.

Justamente por se tratarem dos dois fatos mais emblemáticos e de maior

repercussão que marcaram a atuação diplomática brasileira nas negociações

internacionais de propriedade intelectual desde o Acordo TRIPS é que a opção da

pesquisa foi a de recortar apenas estes dois eventos, sem ignorar que há outros

assuntos da agenda que são também de interesse direto para a política externa

brasileira. Assim, cientes de que a agenda internacional de propriedade intelectual

é amplíssima, são estes os eventos exclusivamente abordados na pesquisa.

Em resumo, foram recolhidas informações na fase exploratória da pesquisa

que indicaram que era preciso deixar de privilegiar o nível estrutural de análise

para atentar para o processo decisório de políticas públicas de propriedade

178 Foram fundamentais os comentários e críticas realizadas pelo Professor Amâncio Jorge de Oliveira ao artigo “As Políticas Externas dos Governos FHC e Lula e a Inserção do Brasil no Regime Internacional de Propriedade Intelectual: da subordinação ao TRIPS à Agenda do Desenvolvimento”, que apresentamos na mesa “Propriedade Intelectual e desenvolvimento”, integrante do programa do V Simpósio de Pós-Graduandos de Ciência Políticas da Universidade de São Paulo – USP, realizado em agosto de 2008. Os comentários do Professor nos estimularam a buscar a variável explicativa que ajudasse a explicar possíveis mudanças de curso na formulação da política externa brasileira de propriedade intelectual, do Governo Fernando Henrique Cardoso pra o Governo Luiz Inácio Lula da Silva. Ver o artigo apresentado na USP em ARDISSONE (2008). 179 Presume-se que, após o Acordo TRIPS, o regime internacional de propriedade intelectual guarda características praticamente imutáveis, de uma variável de ordem estrutural de natureza ideacional e material que impõe determinados constrangimentos, o que revela a necessidade de explicar as razões preponderantes de eventuais mudanças na formulação das políticas públicas de propriedade intelectual (como a política externa) não no nível internacional, mas no plano doméstico.

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intelectual. Essas informações auxiliaram no recorte empírico dos dois fenômenos

sociais a serem observados e analisados.

No que tange especificamente ao processo decisório de políticas públicas,

o fato da observação do objeto se dar, pelo menos em parte, de forma simultânea

aos acontecimentos, como o da reestruturação do INPI a partir da, Gestão Roberto

Jaguaribe (2004), depois de um longo processo de abandono administrativo desde

o início dos anos 90, nos estimulou a refletir sobre qual a participação das

instituições e de lideranças individuais na formulação de políticas. A reação

institucional do INPI ao processo de reestruturação nos sugeriu que instituições

não são neutras no processo de apreensão de novas ideias e que a aceitação destas

em muito depende da atuação das lideranças por elas responsáveis, desde o

âmbito da Chefia do Executivo (presidencial), passando pelo ministerial até o

intrainstitucional. Era, portanto, com foco na participação das lideranças e das

ideias por elas defendidas (e nas estratégias materiais e simbólicas utilizadas para

defendê-las), que poderíamos buscar um bom caminho para compreender

eventuais mudanças na trajetória de formulação da política brasileira de

propriedade intelectual, do Governo Fernando Henrique Cardoso ao Governo Luiz

Inácio Lula da Silva.180

As informações obtidas na pesquisa exploratória, somadas ao

aprofundamento da pesquisa bibliográfica, demonstraram que o padrão de

concentração do poder decisório de política externa brasileira no Poder Executivo

mantém-se de forma inequívoca como traço característico e preponderante até os

dias atuais.181 Já o lançamento da PITCE e do PDP sugeriam que novos arranjos

180 Na entrevista exploratória realizada com Leopoldo Coutinho, em contatos informais com servidores do INPI e com atores não pertencentes ao Instituto (advogados e acadêmicos) e em notícias veiculadas na imprensa, surgiu como relevante a centralidade de determinadas personalidades na concepção e condução de políticas públicas do Poder Executivo em matéria de propriedade intelectual. Uma destas personalidades, o Embaixador Roberto Jaguaribe, que assumiu a Presidência do INPI em 2004. Embaixador de carreira, Jaguaribe ocupou antes outros cargos importantes na Administração Pública, especialmente no MDIC, além de ter sido um dos principais negociadores brasileiros em matéria de propriedade intelectual durante a Rodada Uruguai do GATT. Trata-se de uma das lideranças que mais destacamos para compreender as mudanças ocorridas na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual durante o Governo Luiz Inácio Lula da Silva. 181 Conforme discutido no capítulo anterior, a democratização política no Brasil não encontrou correspondência similar num processo de democratização do processo decisório de política externa. Ela implicou em rearranjos institucionais que, embora rompendo com a tradicional insularidade do Itamaraty, procuraram manter o poder decisório concentrado no aparelho estatal do Poder Executivo, notadamente na Presidência, no Ministério das Relações Exteriores e em alguns outros Ministérios, com um grau de influência relativamente limitado de outras agências estatais como o INPI na concepção das políticas. No que se refere às políticas públicas de propriedade

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institucionais e mudanças nos perfis ideacionais de tomadores de decisão no

âmbito do MDIC poderiam explicar o inédito posicionamento estratégico

conferido à propriedade intelectual no âmbito da política industrial.

Foi então necessário optar por técnicas de coletas de dados adequadas aos

objetivos de identificar as principais instituições envolvidas na formulação de

políticas públicas de propriedade intelectual e as lideranças individuais

comprometidas com a institucionalização de determinadas ideias sobre a relação

entre propriedade intelectual e desenvolvimento. As entrevistas surgiram então

como a opção metodológica per se da pesquisa.

3.2 Traços qualitativos da investigação

Ao discorrer sobre os principais aspectos da pesquisa qualitativa,

CHIZZOTTI esclarece que, nela, a delimitação do problema não é feita de uma

forma apriorística, em que o objetivo é apenas o de confirmar ou não uma

hipótese previamente aventada (op. cit., p. 81). Para o autor:

O problema decorre, antes de tudo, de um processo indutivo que se vai definindo e se delimitando na exploração dos contextos ecológico e social; onde se realiza a pesquisa; da observação reiterada e participante do objeto pesquisado, e dos contatos duradouros com informantes que conhecem estes objetos e emitem juízos sobre ele (ibid, p. 81). CHIZZOTTI afirma que, na delimitação do problema em pesquisas

qualitativas, a questão inicial é explicitada, revista e reorientada de acordo com o

contexto e as informações obtidas das pessoas ou grupos envolvidos na pesquisa

(ibid, p. 81). Enfim, as incursões do pesquisador na vida e no contexto social que

condiciona o problema e suas experiências e interações sociais com os sujeitos-

pesquisados são vitais na definição dos rumos da investigação. Não se deve

esperar de quem realiza a pesquisa a postura de distanciamento que o pesquisador

experimental se impõe para a elaboração de leis que explicam o problema e cuja

frequência e regularidade ele acredita ser possível comprovar (ibid, p. 81). Enfim,

intelectual, a experiência do Grupo Interministerial da Propriedade Intelectual (GIPI) sugere o reconhecimento pelo Governo Federal de que a transversalidade do assunto justificava a institucionalização de um grupo em que não só a voz do Itamaraty fosse ouvida, mas também a de outras instâncias ministeriais do Poder Executivo.

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o processo de pesquisa qualitativa “não obedece a um padrão paradigmático. Há

diferentes possibilidades de programar a execução da pesquisa. Vale muito o

trabalho criativo do pesquisador e dos pesquisados (ibid, p. 105).”

Portanto, na pesquisa qualitativa há amplo espaço para a iniciativa do

pesquisador, o que não significa que este não aja com critério e cientificidade e

buscando consistência na construção do argumento. A pesquisa qualitativa

permite ao pesquisador avançar no conhecimento das questões de fundo que lhe

afligem através de micro-decisões que, de forma gradual, contínua e

sistematizada, vão definindo rumos e conferindo contornos mais nítidos ao

problema de pesquisa. Vimos que a insuficiência de variáveis estruturais para

explicar mudanças no padrão de inserção do Brasil no regime internacional de

propriedade intelectual nos sugeriu que o melhor a fazer era adentrar no exame do

processo decisório de políticas públicas. Em seguida, a constatação de

concentração do poder decisório em poucos atores e agências do Executivo nos

sugeriu que o melhor seria analisar as lideranças individuais que, mergulhadas no

ambiente institucional insulado do Executivo Estatal, tem influência decisiva

sobre o curso das tomadas de decisão.182 Foram essas duas micro-decisões que

delinearam novos contornos para o problema de pesquisa inicial. O problema foi

ganhando contornos mais nítidos até chegar a sua enunciação, que ora

apresentamos: há diferenças na forma como ideias, instituições e lideranças

influenciaram a formulação das políticas públicas brasileiras de propriedade

intelectual dos Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da

Silva? Em caso positivo, quais?

182 Para WEBBER & SMITH (op. cit, p. 58), estudos que se concentram em lideranças tendem a focar o excepcional mais do que o comum. Os autores afirmam que, quando baseados em biografias, eles podem dizer bastante de um indivíduo, mas pouco da natureza da liderança de forma geral. Estando cientes destas críticas, entendemos que elas ajudam inclusive a demonstrar a utilidade da abordagem já que o que se pretende é explicar a mudança (o excepcional) mais do que a continuidade (o comum) na formulação de políticas. Entendemos também que as biografias pessoais de algumas das lideranças em destaque, como Luiz Fernando Furlan e Roberto Jaguaribe, auxiliam a compreender por que e como mudaram as políticas públicas de propriedade intelectual durante o Governo Luiz Inácio Lula da Silva. Com efeito, o objetivo do trabalho não é discutir a natureza da liderança enquanto uma categoria teórica, in abstrato, mas entender como lideranças específicas foram fundamentais para modificações na dimensão de formulação de políticas públicas de propriedade intelectual na trajetória recente do Brasil. Para ter acesso a amplas revisões da produção bibliográfica sobre lideranças, ver McDERMOTT (op. cit., pp. 215-238) e HUDSON (2007, pp. 37-63). Entre os pesquisadores, destacamos Margaret Hermann. O estudo das lideranças se alinha ao objetivo central das pesquisas cognitivas que é “conhecer as estratégias cognitivas nas quais os tomadores de decisão se fiam para construir e manter suas imagens simplificadas do ambiente” (TETLOCK & McGUIRE Jr, 2005, p. 485).

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Se, como afirmam KING, KEOHANE E VERBA, “a característica

distintiva que separa as ciências sociais da observação casual é a de que as

ciências sociais perseguem alcançar conclusões válidas através do uso sistemático

de procedimentos de inquirição bem estabelecidos” (op. cit., p. 6), não se pode

negar o caráter científico das pesquisas qualitativas. Estas possuem procedimentos

de investigação em profusão, à disposição dos pesquisadores. Entre eles, podemos

mencionar, por exemplo, a Análise de Conteúdo183.

A pesquisa qualitativa rompe com a ideia de que o pesquisador, enquanto

observador, pode conseguir total distanciamento do seu objeto de pesquisa. Em

outras palavras, não compartilha da crença do positivismo científico de que é

possível alcançar a condição de plena neutralidade axiológica em relação ao que é

investigado. Muito menos acredita no argumento positivista de que o pesquisador

deve “abstrair-se de toda a subjetividade passional que conduz ao erro, à

precipitação e à irracionalidade, para assumir uma neutralidade diante de

divergências, oposições ou conflitos ideológicos, tornando-se um sujeito neutro

[...]” (CHIZZOTTI, op. cit. p. 29). Para os pesquisadores qualitativos, a busca

pela neutralidade não é uma “obsessão”. Ao contrário, entendem que há

argumentos mais do que suficientes a atestar a impossibilidade da neutralidade

total por parte do pesquisador, visto que é inevitável partir de um marco de

referência a priori para iniciar a investigação. Enxergam que a imersão do

pesquisador no objeto de estudo abre possibilidades negadas pelo rigor positivista.

Defendem que a impossibilidade de uma posição neutral não invalida a busca de

objetividade no conhecimento.

É o caso, por exemplo, de Roger Chartier. Em defesa dos méritos dos

estudos de “História do Tempo Presente”184, (CHARTIER, 1992, apud,

FERREIRA, 1995, p. 18) sustenta que:

183 A Análise de Conteúdo é a técnica de análise de dados empregada na investigação para examinar os dados obtidos em entrevistas. Sobre ela, discorremos mais adiante. 184 A “História do Tempo Presente” tem como característica básica a presença de testemunhos vivos, que podem vigiar e contestar o pesquisador, afirmando sua vantagem de ter estado presente no momento do desenrolar dos fatos (VOLDOMAN, 1987, apud, FERREIRA, 1995, p. 15). Desenvolvida durante o século XX, defende que o passado é construído segundo as necessidades do presente, chamando atenção para os usos políticos do passado (objetivo é o resgate das relações entre Memória e História).

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[...] o pesquisador é contemporâneo de seu objeto e divide com os que fazem a história, seus atores, as mesmas categorias e referências. Assim, a falta de distância, ao invés de um inconveniente, pode ser um instrumento de auxílio importante para um maior entendimento da realidade estudada, de maneira a superar a descontinuidade fundamental, que ordinariamente separa o instrumento intelectual, afetivo e psíquico do historiador e aqueles que fazem a história.

Para a pesquisa qualitativa, o observador é “parte integrante do

conhecimento e interpreta os fenômenos, atribuindo-lhe um significado”

(CHIZZOTTI, op. cit., p. 79). A obtenção de depoimentos – geralmente por

intermédio da realização de entrevistas – é um dos veículos privilegiados de

técnicas de coleta de dados que podem auxiliar o pesquisador, especialmente

quando seu objetivo é conhecer e analisar ideias, geralmente não tão claramente

enunciadas em fontes impressas. De fato, ela propicia uma aproximação maior

com os sujeitos investigados.

Assim, torna-se importante agora apresentar os atores observados na

pesquisa. A escolha do primeiro grupo de atores deu-se em função das posições

institucionais que ocupam ou que ocuparam no processo de tomada de decisões de

políticas públicas de propriedade intelectual, seja no Governo Fernando Henrique

Cardoso ou no Governo Lula. Já o segundo grupo é composto por atores cuja

influência é bastante limitada no processo decisório de política externa de

propriedade intelectual, mas que mereceram compor o mosaico total de

observados por terem envolvimento direto nas questões relacionadas às políticas

públicas de propriedade intelectual no Brasil, seja por razões pessoais,

profissionais, corporativas ou intelectuais. Vale também explicar os motivos que

determinaram a escolha de todos os atores e das técnicas de coleta de dados que

foram empregadas.

3.3 Atores investigados e técnicas de coleta de dados

O processo decisório das políticas públicas de propriedade intelectual é um

processo encapsulado no Poder Executivo, mais especificamente num limitado

número de instituições estatais, sendo atribuída a um conjunto igualmente

limitado de indivíduos oportunidade de participar e influenciar decisivamente na

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formulação de políticas. A pesquisa tratou então de localizar alguns destes atores

e de realizar entrevistas com os mesmos.

Chegamos, primeiramente, à delimitação do que decidimos denominar de

“Grupo 1”, composto por Atores do Executivo Estatal. Eles foram organizados de

acordo com a tabela a seguir:

Grupo 1 - Atores do Executivo Estatal

Instituição Entrevistados185

Ministério do Desenvolvimento, Indústria

e Comércio Exterior – MDIC

Ministros do Desenvolvimento, da

Indústria e do Comércio Exterior

Ministério das Relações Exteriores -

MRE

Chanceleres do Brasil, Chefes da Divisão

de Propriedade Intelectual e diplomatas

com histórico de participação nas

negociações internacionais em

propriedade intelectual.

Grupo Interministerial de Propriedade

Intelectual – GIPI

Coordenador-Geral da Secretaria

Executiva

Instituto Nacional da Propriedade

Industrial – INPI

Presidentes do INPI, Diretores de

Articulação e Coordenadores da Área de

Cooperação Internacional

Como é possível constatar, as categorias dos atores pertencentes ao Poder

Executivo foram estabelecidas levando em consideração a posição hierárquica

ocupada pelos mesmos na Administração Pública e o pertencimento a uma

determinada instituição estatal. Fundamental também foi que houvesse um

equilíbrio numérico mínimo entre os que ocuparam cargos-chave ou

desempenharam funções relevantes no Governo Fernando Henrique Cardoso e os

185 A lista com os nomes dos entrevistados, com suas respectivas atribuições e os cargos que ocuparam ou ocupam atualmente, dentro ou fora da Administração Pública, se encontra no Anexo I. Foram entrevistadas, ao todo, 13 (treze) pessoas.

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que ocuparam os mesmos cargos ou desempenharam as mesmas funções durante

o Governo Lula.186

Embora não façam parte do conjunto de atores entrevistados do Grupo 1,

outros atores relevantes como, por exemplo, os Presidentes Fernando Henrique

Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, o Chanceler Celso Amorim e o Secretário-

Geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães tiveram alguns discursos

integrados à análise. O mesmo vale para economistas participantes da formulação

de políticas públicas nos dois governos. No caso desses, as informações foram

coletadas basicamente na mídia impressa, virtual ou televisiva e em livros e

periódicos, dada a dificuldade de realizar entrevistas.

Entende-se que este grupo é composto pelos atores com mais poder

decisório na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual no Brasil.

No que tange especificamente à política externa, isso resultou da emergência de

novos atores no Poder Executivo que passaram a rivalizar com o MRE na sua

condução, especialmente considerando a necessidade de competências técnicas

específicas para lidar com os assuntos de propriedade intelectual, que tiveram que

ser buscadas em outras instituições estatais ou institucionalizadas em novas (DA

SILVA, SPÉCIE & VITALE, op. cit., p. 10).

O “Grupo 2” é composto por indivíduos com vínculos profissionais com

diferentes instituições públicas ou privadas – como universidades ou escritórios de

advocacia – que desempenham atividades diretamente relacionadas ao campo da

propriedade intelectual e também atividades intelectuais como a divulgação de

trabalhos em congressos, seminários e periódicos especializados, além da

publicação de livros. São indivíduos com reconhecido ativismo e que gozam de

experiência de militância na arena estatal. Assim, o outro requisito do perfil destes

atores é que já tenham tido alguma participação como atores do Poder Executivo

em negociações internacionais sobre propriedade intelectual ou na formulação de

políticas públicas, seja participando do governo ou em estreita cooperação com

este. Enfim, apesar da atuação destes atores não ocorrer mais na arena do

186 Em alguns casos, como o de Márcio Heidi Suguieda, Coordenador-Executivo do GIPI, o fato de estar na Administração Pública desde 1997, possibilitou aferir uma visão ampla e retrospectiva do entrevistado sobre a política de propriedade intelectual dos dois últimos governos, sem que fosse necessário buscar um discurso comparativo com outro ator. Por questão de dificuldade de acesso, não tivemos oportunidade de entrevistar José Graça Aranha, presidente do INPI durante a maior parte do Governo Fernando Henrique Cardoso, e Luiz Fernando Furlan, Ministro da Indústria durante o primeiro mandato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

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Executivo, eles possuem notável familiaridade com os “bastidores das

negociações” das políticas públicas de propriedade intelectual. Por este perfil

duplamente facetado, decidimos denominá-los de “atores híbridos”.

Grupo 2 – Atores Híbridos

Instituição Atores187

Instituições de Ensino e Escritórios de

Advocacia.

Indivíduos com vínculos profissionais

e/ou acadêmicos com o campo da

propriedade intelectual e história

pregressa de atuação na arena pública,

como servidor ou como consultor do

Governo (Poder Executivo).

Os integrantes dos grupos 1 e 2, somados, resultaram em 16 (dezesseis)

entrevistados. Foi este um dos principais universos de fontes utilizadas nos

capítulos de análise de dados (capítulos 5 e 6). A entrevista consistiu na técnica de

coleta de dados empregada.

Finalmente, chegamos ao terceiro grupo, ora denominado “Grupo 3”,

formado principalmente por atores que não fazem parte da esfera estatal, mas com

alguma espécie de relação direta, seja de ordem profissional, corporativa ou

intelectual, com as questões que envolvem as políticas públicas de propriedade

intelectual no Brasil. Estes atores, embora não tenham influência na formulação

de políticas públicas de propriedade intelectual semelhante àquela exercida pelos

atores integrantes do “Grupo 1”, tentam, de alguma forma, participar da tomada

de decisões de políticas públicas de propriedade intelectual, mediante alguns

mecanismos de pressão, notadamente a atuação em Federações da Indústria e

Associações Setoriais (no caso dos empresários) ou Associações Profissionais (no

caso dos agentes de propriedade intelectual). Organizados como grupos de

interesse, procuram afetar as decisões do Executivo.188 Foram categorizados da

forma exposta a seguir:

187 A lista completa com os nomes dos entrevistados, com suas respectivas formações, se encontra no Anexo II. Foram entrevistadas, neste grupo, apenas 3 (três) pessoas. 188 Pela análise de HALL (1989) que trata da abordagem “centrada em coalizões” (coalition centered) e pela de SIKKINK (1997), pode-se dizer que os indivíduos integrantes do Grupo 3 representam grupos sociais fundamentais para a consolidação de novas ideias na formulação de políticas públicas, após a sua “adoção”, com o estímulo decisivo da atuação de lideranças, e sua

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Grupo 3 - Atores Não-Estatais

Atores/Instituição Respondentes189

Empresas190

Integrantes de assessorias ou

departamentos de “Negociações

Internacionais”, “Propriedade Intelectual”

ou áreas congêneres; gerentes de

Propriedade intelectual.

Agentes da Propriedade Industrial

Associados da ABPI e da ABAPI e/ou

membros de escritórios de advocacia da

área de propriedade intelectual, envolvidos

com temas internacionais

Instituições e Programas de Pesquisa em

Relações Internacionais

Pesquisadores de Relações Internacionais,

com produção acadêmica e/ou trabalhos

desenvolvidos nas áreas de negociações

comerciais internacionais e política

externa, sem histórico de vínculo com o

Governo

Vale esclarecer quem são os agentes de propriedade industrial e

demonstrar a sua importância para a pesquisa. Os agentes são os procuradores

domiciliados no Brasil que, entre outras atribuições, representam os interesses dos

depositantes nacionais e estrangeiros de pedidos de registro de ativos intangíveis

(como marcas e patentes) apresentados ao INPI. Enfim, são os representantes dos

interesses dos proprietários de direitos de propriedade industrial no Brasil. Não

“implantação”, via instituições. Como nos concentramos na fase de adoção ou formulação, o peso conferido a estes atores foi menor do que o conferido aos indivíduos integrantes dos Grupos 1 e 2. Daí termos optado por realizar entrevistas com os indivíduos dos Grupos 1 e 2, e questionários com os do Grupo 3. Pode-se dizer que os questionários dirigidos aos atores não estatais foram mais uma consulta a estes segmentos da sociedade, do que um survey com alto rigor técnico. 189 A lista completa com os nomes dos respondentes se encontra no Anexo IV. Chamamos de respondentes porque, por que estes indivíduos foram submetidos a questionários, e não a entrevistas. 190 Os contatos das empresas para os quais foram enviados os questionários resultaram de recomendações da Coordenação de Cooperação Nacional da Diretoria de Articulação do INPI ou foram obtidos de forma interpessoal pelo pesquisador nos contatos com os respondentes em simpósios e congressos.

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precisam ser necessariamente advogados inscritos na OAB – Ordem dos

Advogados do Brasil, mas todos devem possuir a devida habilitação para exercer

a função, após aprovação em teste de conhecimentos realizado perante o INPI.191

Quanto aos pesquisadores de Relações Internacionais, uma das referências

mais úteis para buscar acesso aos que desenvolvem trabalhos na área de política

externa foi o trabalho de Almeida (2006). Por intermédio deste artigo, tentamos

chegar a um rol de nomes com um número razoavelmente equilibrado entre

aqueles a que o autor denomina de “apoiadores externos” – os membros da

academia que concordam, no essencial, com as linhas do discurso e da prática

diplomática do Governo Luiz Inácio Lula da Silva e os que mantêm um olhar

mais crítico sobre os fundamentos e as tomadas de posição da diplomacia deste

mesmo governo.192

O somatório dos atores integrantes dos três grupos apresentados e dos

atores entrevistados compõe uma amostragem significativa do que podemos

chamar de “comunidade brasileira de política externa de propriedade intelectual”.

Inspiramo-nos na definição de “comunidade brasileira de política externa” do

professor Amaury de Souza: “[...] universo constituído por pessoas que participam

do processo decisório e/ou contribuem de maneira relevante para a formação da

opinião no tocante às relações internacionais do país” (SOUZA, 2002, p. 15). Se

acrescentarmos, ao final desta definição, “[...] na área da propriedade intelectual”,

temos o que podemos chamar de “comunidade brasileira de política externa da

propriedade intelectual”. Não consideramos impróprio nos referirmos a esta

comunidade também como uma “comunidade brasileira de políticas públicas de

propriedade intelectual”, dado o reconhecido processo de ampliação da

participação na política externa de outros espaços burocráticos do Executivo

191 A CEHAPI – Comissão de Exame de Habilitação de Agente da Propriedade Industrial é o órgão do INPI responsável pela realização do exame para os agentes, bem como pelo cadastramento. 192 Admitimos, contudo, que esta é uma classificação arbitrária do autor e, portanto, sujeita a críticas. Apesar de termos utilizado-a para auxiliar na seleção dos entrevistados, não nos ativemos somente a ela. Foram também úteis as listas de consultores (pesquisadores) cadastrados no CEBRI. Os nomes dos consultores com seus respectivos endereços eletrônicos foram fornecidos, via correio eletrônico, por Mariana Luz, funcionária da instituição, em 01 de dezembro de 2008. Por não haver lista de colaboradores no tema “propriedade intelectual”, entendemos que as listas que mais se aproximavam do que desejávamos eram as listas de “negociações internacionais” e “política externa”. Realizamos uma filtragem pessoal para chegar àqueles que, entre os nomes constantes das duas listas, desenvolvem pesquisas e/ou publicam trabalhos sobre propriedade intelectual. Finalmente, outros nomes foram incluídos na lista de entrevistados por decisão do pesquisador, por comprovadamente desenvolverem pesquisas sobre propriedade intelectual.

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Federal, além do MRE193, o que deveria estimular a sinergia da política externa

com outras políticas públicas.

Vejamos agora as técnicas de coletas de dados empregadas para registrar

as informações fornecidas pelos atores investigados.

3.4 Técnicas de coleta de dados: entrevistas e questionários

Realizamos entrevistas com todos os atores dos Grupos 1 e 2 e

questionários com os atores do Grupo “3”. Esta escolha se deu por duas razões.

Em primeiro lugar, por se tratar de uma pesquisa preponderantemente qualitativa.

Em segundo, porque os indivíduos integrantes dos Grupos 1 e 2 são aqueles que,

de fato, têm participação significativa na adoção de novas ideias e também na sua

fase de implantação no âmbito institucional. Quanto aos indivíduos constantes do

Grupo 3, representam grupos sociais relevantes, cujo peso mais significativo se dá

na fase de consolidação de novas ideias, etapa que foge ao escopo da investigação.

De acordo com MARCONI E LAKATOS (2007, p. 197), “a entrevista é

um encontro entre duas pessoas, a fim de que uma delas obtenha informações a

respeito de um determinado assunto, mediante uma conversação de natureza

profissional”.194 Entre os diversos objetivos da entrevista, os autores mencionam

um particularmente importante para a investigação: a determinação das opiniões

dos entrevistados sobre os fatos, ou seja, procurar conhecer o que as pessoas

conhecem, pensam ou acreditam sobre os fatos (ibid., p. 198). QUIVY E

CAMPENHOUDT (1995, p. 193) seguem a mesma direção e apontam para um

objetivo para o qual o método de entrevista é particularmente adequado:

A análise do sentido que os actores dão às suas práticas e aos acontecimentos com os quais se vêem confrontados: os seus sistemas de valores, as suas referências normativas, as suas interpretações de situações conflituosas ou não, as leituras que fazem das próprias experiências, etc.

Foi exatamente com este objetivo que realizamos as entrevistas.

Procuramos interpretar compreensivamente a linguagem de cada pesquisado e 193 LIMA (2000) analisa o contexto nacional de descentralização da política externa. 194 Não obstante os autores se referirem a uma conversa de natureza profissional, as entrevistas realizadas de forma presencial procuraram reproduzir ao máximo um ambiente natural e informal de conversação, como é considerado recomendável nas entrevistas qualitativas.

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perceber essa linguagem como veículo transmissor de informações vitais para a

compreensão do processo de formulação de políticas públicas de propriedade

intelectual, no período determinado. Forjamos assim o material discursivo para a

análise de dados. Compreendemos que os discursos enunciados pelos

entrevistados nas suas respostas ajudaram a revelar suas percepções sobre o papel

das suas ideias ou das ideias de outros atores estatais na tomada de decisões em

matéria de propriedade intelectual.

Na realização das entrevistas, foi elaborado um roteiro de perguntas para

cada conjunto de atores dispostos em cada uma das linhas das tabelas referentes

aos Grupos “1” e “2”195, o que possibilitou a comparação entre os discursos dos

entrevistados. O objetivo da padronização foi obter, dos entrevistados, respostas às

mesmas perguntas, permitindo que todas elas fossem comparadas e que as

diferenças refletissem suas visões de mundo e ideias (LODI, 1974, p. 16, apud,

MARCONI E LAKATOS, op. cit., p. 199). Ao submetermos o mesmo roteiro de

perguntas a indivíduos que exerceram a mesma função durante o Governo

Fernando Henrique Cardoso e O Governo Luiz Inácio Lula da Silva, foi possível

identificar suas diferentes ideias sobre a política brasileira de propriedade

intelectual.

Quanto aos roteiros estruturados para as entrevistas (as realizadas de forma

presencial), procuramos aplicá-los de forma flexível, de modo a respeitar o fluxo

mental do entrevistado (NICOLACI DA COSTA, 2007, p. 69). Significa dizer

que a ordem pré-estabelecida para as perguntas por horas teve que ser alterada,

respeitando-se a sequência de pensamento do entrevistado ou mesmo porque o

próprio se encarregou de antecipar suas impressões sobre determinado assunto

que era objeto de pergunta ainda não formulada, tornando desnecessária sua

enunciação pelo entrevistador. Valorizamos os insights oferecidos pelos

entrevistados, o que, em algumas ocasiões, estimulou a formulação de perguntas

não previstas inicialmente, de modo a obter informações sobre fatos que o

entrevistador desejou conhecer mais a fundo. Novas perguntas foram ser

incorporadas aos roteiros das perguntas apresentadas a entrevistados posteriores, e

mesmo reapresentadas em novas arguições aos que já haviam sido

195 Todos os roteiros das entrevistas realizadas se encontram no Anexo III.

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entrevistados.196 Portanto, as entrevistas presenciais foram realizadas de forma

semiestruturada.

Já no que tange às entrevistas realizadas por meio eletrônico, foram todas

estruturadas, pois não havia como deixar de seguir fielmente os roteiros

preestabelecidos. As perguntas foram enviadas por correio eletrônico e suas

respostas recebidas posteriormente. A dificuldade de acesso pessoal a alguns dos

entrevistados determinou que parte das entrevistas fosse realizada por meio

eletrônico.197 Alguns dos entrevistados se encontravam (e ainda se encontram) em

missões diplomáticas no exterior, enquanto outros, pela natureza dos cargos que

ocupam na Administração Pública ou em empresas privadas, não dispunham de

agenda para um encontro presencial198, embora tenham se disposto a receber as

perguntas por meio eletrônico e respondê-las.199

As entrevistas realizadas por meio eletrônico possuem uma série de

diferenças em relação às realizadas de forma presencial.200 Uma delas é a de que a

entrevista eletrônica não permite ao entrevistador que esteja atento aos aspectos da

linguagem não-verbal do entrevistado como as entonações, as pausas na fala e os

gestos. Elimina-se o contato “face a face” e perde-se a possibilidade de leitura do

que não é dito, mas que pode revelar muito sobre a personalidade do entrevistado

(HAMILTON e BOWERS, 2006, p. 827-828). Por outro lado, a transcrição das

informações obtidas em entrevistas por correio eletrônico guarda maior

confiabilidade, uma vez que as respostas já são recebidas por escrito. O “ruído” na

mensagem original do entrevistado que pode ocorrer com o ato de transcrição pelo

entrevistador ou por uma terceira pessoa tende a ser eliminado (ibid, p. 827-828).

Outra suposta vantagem das entrevistas eletrônicas é o da eliminação da “intrusão

196 Os roteiros das perguntas, constantes do Anexo III, correspondem às versões finais, depois de finalizadas todas as entrevistas. Significa dizer que não se trata necessariamente dos roteiros iniciais, montados antes que as entrevistas fossem realizadas. 197 Quanto às listas constantes dos Anexos I e II, especificamos, nas referências bibliográficas, os atores que foram entrevistados de forma presencial e os que foram entrevistados por correio eletrônico. 198 Uma das opções para a realização de entrevistas por meio eletrônico é o do uso de ferramentas como chats e similares para que elas possam ser realizadas em tempo real, de forma sincrônica, aproximando-se mais de uma conversa presencial. Contudo, as dificuldades apontadas no texto nos obrigaram a optar pelo correio eletrônico. Sobre estas questões operacionais envolvendo as entrevistas eletrônicas, sugerimos ver KVALE E BRINKMANN (2009, p. 148-150). 199 Foi o caso, por exemplo, de Miguel Jorge, Ministro da Indústria, Desenvolvimento e Comércio Exterior do Governo Lula entre 2007 e 2010. 200 Ver HAMILTON e BOWERS (2006) e FONTANA e FREY (2000, pp. 666-667).

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da tecnologia”: a utilização de câmera, gravador, microfone ou quaisquer artefatos

eletrônicos que, de alguma forma, podem inibir o entrevistado (ibid, p. 829).

Estando cientes das diferenças entre as entrevistas presenciais e

eletrônicas, consideramos que elas não comprometem o mérito da pesquisa e a

opção metodológica de comparar as respostas obtidas pelos entrevistados, ainda

que todos eles não tenham sido abordados presencialmente pelo entrevistador.

Consideramos que verdadeiramente prejudicial para a pesquisa seria nos

depararmos com essas diferenças e deixarmos de realizar entrevistas com atores

relevantes para a pesquisa por uma mera questão logística e operacional, que foi a

dificuldade de acesso pessoal.

Outra opção, na tentativa de padronizar o processo metodológico, seria

tentar realizar todas as entrevistas por correio eletrônico, abdicando das que

podiam se realizar presencialmente. Julgamos que esta outra opção não era

atraente porque acreditávamos que as possibilidades oferecidas pela forma

semiestruturada de condução das entrevistas presenciais permitiriam obter

informações relevantes no contato pessoal com os entrevistados. A experiência da

pesquisa mostrou que tínhamos razão neste julgamento porque, de fato, algumas

informações que não esperávamos obter inicialmente e que se mostraram úteis,

nos foram transmitidas espontaneamente nas entrevistas presenciais. Enfim, não

ignoramos as diferenças entre as entrevistas presenciais e eletrônicas, mas

decidimos por considerar as informações resultantes dos dois tipos como

qualitativamente iguais. Afinal, apesar de a entrevista presencial privilegiar a

comunicação oral e a entrevista eletrônica privilegiar a comunicação escrita, “se a

essência da entrevista é a linguagem então a entrevista por correio eletrônico

captura esta essência” (ibid, p. 829).

Quanto aos empresários da indústria, agentes da propriedade industrial e

pesquisadores de Relações Internacionais, ao invés de realizarmos entrevistas,

optamos pela apresentação de questionários, via formato eletrônico201. O motivo

desta diferenciação é que o objetivo em relação a estes atores não era o de obter

informações privilegiadas e detalhadas sobre as políticas públicas de propriedade

intelectual, mas meramente a de realizar uma consulta a estes setores da sociedade 201 O questionário pode ser definido como o “instrumento de coleta de dados constituído por uma série ordenada de perguntas, que devem ser respondidas [...] sem a presença do entrevistador.” (MARCONI E LAKATOS, op. cit., p. 203). O programa utilizado para o envio do questionário foi o “Google Docs”.

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de forma a verificar o quanto suas visões sobre as políticas de propriedade

intelectual dos Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva

se aproximam das conclusões da pesquisa. Desta forma, os questionários

apresentados foram compostos de perguntas fechadas202 que permitiram medir os

percentuais das respostas, tabulá-las e confrontar os dados com alguns

posicionamentos defendidos, de modo a verificar possíveis pontos coincidentes

entre as visões dos atores questionados e as do autor.

De modo a complementar os dois principais instrumentos de coleta de

dados utilizados na pesquisa, as entrevistas e os questionários, recorremos à

pesquisa bibliográfica e documental. Na pesquisa documental, interessou-nos

principalmente documentos oficiais do INPI como os “planos estratégicos” e os

“relatórios anuais de gestão”, de modo a verificar, por meio de dados, as

principais ações de políticas e de gestão desenvolvidas durante a Gestão Roberto

Jaguaribe entre 2004 e 2006, que contribuíram para a reestruturação da

instituição.203

Quanto à pesquisa de fontes, cuja extensão pode ser constatada nas

referências bibliográficas, recorremos a um amplo conjunto de publicações

(periódicos, livros, dissertações, teses) e materiais produzidos pela imprensa

(jornais e revistas) disponíveis em formato impresso ou eletrônico que tratam da

discussão de questões afetas à propriedade intelectual.

202 A única exceção foi o questionário dirigido aos agentes que conteve algumas perguntas abertas. Os agentes enviaram suas respostas às perguntas abertas, mas optamos por não requisitar suas identificações, salvo alguns que se identificaram espontaneamente. Vale dizer que os questionários foram dirigidos a um número específico de indivíduos e contou com adesões diferenciadas em matéria de respondentes. Os questionários enviados constam do Anexo V. 203 Focamos apenas a Gestão Roberto Jaguaribe, por entendermos que foi o período no qual começou a se operar uma verdadeira mudança paradigmática na instituição, favorecida por atributos pessoais do Presidente na adoção de novas “ideias sobre o desenvolvimento” e na relação destas ideias com a propriedade intelectual. Jaguaribe foi importante, junto com seu staff, para a institucionalização dessas ideias no âmbito do INPI, via diversos gestos materiais e simbólicos. Da mesma forma que McNamara foi fundamental para a institucionalização da preocupação com a pobreza no Banco Mundial, Jaguaribe foi fundamental para a institucionalização da “ideia da propriedade intelectual como instrumento para o desenvolvimento”, no INPI. Contribuiu também para que se iniciasse um processo de implantação dessa ideia, calcado numa concepção da instituição afastada da de uma entidade meramente cartorial, até então dominante. Mais detalhes desta análise estão no capítulo 6.

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3.5 Técnica de Análise de dados: a Análise de Conteúdo

Conforme é possível deduzir do exposto até o momento, o discurso dos

atores entrevistados constituiu-se na principal matéria-prima para a análise de

dados. Coube-nos, assim, definir uma técnica adequada de aproximação com este

material. Como afinal lidar com as informações produzidas pelos atores

entrevistados ou encontradas em fontes bibliográficas? Entre as diferentes técnicas

que se destinam a examinar a linguagem dos discursos, optamos pela Análise de

Conteúdo, por duas razões.

A primeira razão remete ao tratamento que conferimos à linguagem como

veículo e fonte de informações passíveis de serem consolidadas de alguma forma,

seja das transcrições das entrevistas, ou do material coletado em pesquisas

bibliográficas.204 Importou-nos, enfim, que a informação estivesse consolidada em

textos ou documentos, para que pudéssemos analisá-la.

Como leciona CHIZZOTTI (op.cit., p. 98):

A Análise de Conteúdo é um método de informações colhidas por meio de técnicas de coleta de dados, consubstanciadas em um documento. A técnica se aplica à análise de textos escritos ou de qualquer comunicação (oral, visual, gestual) reduzida a um texto ou documento. QUIVY E CAMPENHOUDT (op. cit., p. 226) também enfatizam que a

Análise de Conteúdo pode incidir sobre informações bastante variadas, como as

que constam de obras literárias, artigos de jornais, documentos oficiais, programas

audiovisuais, declarações políticas, atas de reuniões ou relatórios de entrevistas. O

que importa, assim, é que a informação (compreendida como linguagem) esteja

consolidada e disponível em algum texto ou documento, para que seja analisada.

Vale esclarecer a concepção de linguagem que a Análise de Conteúdo

encerra. Segundo FRANCO (2008a, p. 13), a Análise de Conteúdo repousa no

pressuposto de uma concepção crítica e dinâmica da linguagem, compreendida

como “uma construção real de toda a sociedade e como expressão da existência

204 Não diferenciamos os conteúdos, em termos de qualidade, de acordo com o meio de obtenção dos mesmos. Os discursos obtidos por meio de entrevistas (presenciais e eletrônicas) e pesquisa bibliográfica foram considerados equivalentes, não obstante estarmos cientes de que, epistemologicamente, há controvérsias quanto às diferentes naturezas dos mesmos.

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humana que, em diferentes momentos históricos, elabora e desenvolve

representações sociais” (ibid., p. 12-13). As representações sociais, por sua vez,

são as “elaborações mentais construídas socialmente, a partir da dinâmica que se

dá entre a atividade psíquica do sujeito e o objeto do conhecimento” (ibid., p.12).

Assim, a presunção da Análise de Conteúdo é a de que as representações sociais

contidas na linguagem têm implicações na vida cotidiana, influenciando não

apenas a comunicação e a expressão das mensagens, mas também os

comportamentos (ibid, p. 12). Ou seja, a linguagem não pode ser tratada apenas

sob uma perspectiva formalista, atentando-se somente para o seu conteúdo

observável. Suas expressões verbais estão carregadas de componentes cognitivos,

afetivos, valoráveis e historicamente mutáveis que podem revelar muito sobre os

produtores da mensagem (ibid, p. 12).205 A linguagem é utilizada pelos atores para

revelar como compreendem os fenômenos sociais (ABDELAL, HERRERA,

JOHNSTON et. al. 2006, p. 702). Através dela, os atores revelam suas crenças,

perspectivas futuras e experiências afetivas e sociais, em determinadas condições

contextuais (as situações econômicas e socioculturais em que se inserem).

Por essas razões que, em determinados momentos da análise, remissões à

forma com que os entrevistados revelaram suas ideias – se de forma enfática,

irônica, sarcástica, inconformada, bem-humorada etc – foram feitas. Mas estas

remissões são apresentadas na forma de pequenos insights, e não de maneira

sistemática. Preponderantemente, a linguagem foi tratada como qualquer outro

“texto” recolhido de outras fontes. Trata-se da “metáfora do conduite”, a que já

aludimos anteriormente, que vislumbra as ideias como objetos capazes de serem

traduzidos em palavras, de forma que a linguagem é um mero “contêiner” para as

ideias.206

Há outro motivo determinante para a escolha da Análise de Conteúdo: a

sua pertinência para realizar inferências sobre o comportamento e a personalidade

205 Como afirmam QUIVY E CAMPENHOUDT (op.cit., p. 227) “os aspectos formais da comunicação são então considerados indicadores da atividade cognitiva do locutor, dos significados sociais ou políticos do seu discurso ou do uso social que faz da comunicação”. 206 Ver p. 30. De acordo com CARLSNAES (2001, op. cit., p. 340), o que diferencia as abordagens discursivas das cognitivas é que aquelas não se concentram apenas na análise dos “sistemas de crenças” dos tomadores de decisão individuais. As abordagens discursivas baseiam-se na presunção de que os significados são intersubjetivos e que não podem ser apreendidos por si mesmos; ao contrário, eles são constituídos pela linguagem. Assim, o discurso fornece a base na qual as preferências políticas, interesses e objetivos são definidos. Como já esclarecemos no capítulo teórico, nossa análise é cognitiva.

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dos indivíduos entrevistados e suas ideias. De acordo com MCDERMOTT, a

Análise de Conteúdo pode ser definida como “a técnica para realizar inferências

psicológicas sobre aspectos politicamente relevantes da personalidade de atores

políticos, a partir do estudo sistemático e objetivo de material oral escrito e

transcrito” (op.cit., p. 31) ou compreendida ainda como “o conjunto de técnicas de

análise de comunicação que contém informação sobre o comportamento humano

atestado por uma fonte documental” (BADIN, 1977, apud, ibid., p. 98). A autora

demonstra que o uso da Análise de Conteúdo é útil para o estudo da personalidade

individual, particularmente na área de estudos sobre liderança (ibid., p. 32). Já

QUIVY E CAMPENHOUDT sublinham que se trata de uma técnica

recomendável se um dos objetivos da investigação for “a análise das ideologias,

dos sistemas de valores, das representações e das aspirações, bem como da sua

transformação”207 (op. cit., p. 230).

Portanto, a Análise de Conteúdo foi uma escolha que atendeu ao objetivo

da pesquisa de investigar o papel das ideias e de lideranças individuais na

formulação de políticas públicas de propriedade intelectual. Foi a partir

principalmente destas variáveis que as informações contidas nos discursos

puderam ser interpretadas, por intermédio de comparações dos conteúdos das

respostas dos diferentes atores, reunidos em cada uma das linhas hierárquicas de

cada um dos grupos entrevistados. Conforme menciona FRANCO (2008a, op.cit.,

p. 30), o investigador deve ser capaz de poder compatibilizar o conteúdo do

discurso com alguma, ou algumas, teorias explicativas. É a partir do

conhecimento teórico que se pode atribuir significado ao discurso.

Resta-nos esclarecer como, operacionalmente, se deu a aplicação da

Análise de Conteúdo aos discursos dos atores, sob uma perspectiva comparativa.

Em termos operacionais, a espécie de Análise de Conteúdo que realizamos foi a

“análise temática” que é aquela que tenta revelar as representações sociais ou

juízos dos “locutores” (no nosso caso, os atores dos Grupos 1 e 2), a partir do

exame de certos elementos constitutivos do discurso (QUIVY E

CAMPENHOUDT, op. cit., p. 228) 208.

207 Entendemos que o que os autores denominam de “ideologia” e “sistemas de valores” possui afinidade e proximidade conceitual com a nossa concepção de “ideias”, exposta no capítulo anterior. 208 QUIVY E CAMPENHOUDT referem-se, ainda, a mais duas espécies de Análise de Conteúdo: as “análises formais”, que são as que incidem sobre as formas e encadeamento do discurso e as

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Na análise temática, é possível distinguir ainda duas subespécies. A

primeira delas é a “análise categorial” que, tomando como base determinados

elementos, como palavras, símbolos, termos, ou mesmo frases e parágrafos

(também chamados de “unidades de registro”), pretende verificar a frequência

com que eles são enunciados, para daí tirar conclusões (FRANCO, 2008a, op. cit.,

p. 42). A presunção que informa a análise categorial é a de que um elemento do

discurso tende a se repetir quanto mais importante ele for para quem emite o

discurso. Esta análise é especialmente recomendável quando se adotam

procedimentos estatísticos (QUIVY E CAMPENHOUDT, op. cit., p. 228).

Como nossa pesquisa é preponderantemente qualitativa, optamos por

recorrer à outra subespécie de análise temática: a “análise de avaliação” (ibid, p.

228). Trata-se da análise que incide sobre as ideias ou juízos formulados pelo

emissor do discurso. Nela, não importa somente a frequência das ideias, expressas

resumidamente em “unidades de registro”, mas também – e, nosso caso,

exclusivamente209 – o que elas revelam, em termos valorativos (visões negativas

ou positivas, otimistas ou pessimistas, assertivas ou hesitantes etc).

Assim, em nossa análise temática sobre as ideias expostas pelos atores

investigados acerca das políticas públicas brasileiras de propriedade intelectual,

procuramos compreender como o “desenvolvimento” é apreendido como

categoria, entre aquelas presentes nos principais discursos do pensamento

econômico brasileiro, a saber, o “neoliberal”, o “nacional-desenvolvimentista”

(ou, simplesmente, “nacionalista”), o “liberal-desenvolvimentista” (ou

“desenvolvimentista não-nacionalista”) e o “novo desenvolvimentista”.

Estas diferentes categorias ajudaram a situar as distintas “ideias do

desenvolvimento” que informaram as políticas públicas de propriedade intelectual

dos Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. De que

modo elas persuadiram tomadores de decisão brasileiros sobre quais deveriam ser

os rumos das políticas públicas de propriedade intelectual, e como, por iniciativa

“análises estruturais”, aquelas que enfatizam a maneira como os elementos da mensagem estão dispostos (ibid., p. 228-229). 209 Portanto, não nos preocupamos em medir frequências. Vale frisar que os dados obtidos nas entrevistas aparecerão de forma disseminada ao longo dos capítulos 5 e 6 e não são tratados em tópicos apartados. Esperamos, assim, que seja garantida maior fluidez à narrativa, apesar de que, no capítulo referente ao Governo Luiz Inácio Lula da Silva, em parte dedicado à comparação com o seu antecessor, tenha sido inevitável uma maior concentração de dados analisados, em um tópico à parte.

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destes decision makers, foram institucionalizadas, é o que nos propomos a

compreender.

Dos textos constantes de cada uma das respostas dos entrevistados,

destacamos os trechos em que entendemos que os atores transmitem suas ideias.

Em síntese, a Análise de Conteúdo que empreendemos foi uma “análise temática

de avaliação” que procurou revelar e interpretar as ideias dos entrevistados sobre a

política brasileira de propriedade intelectual, a partir de um exame comparado das

diferentes respostas obtidas (QUIVY E CAMPENHOUDT, op. cit., p. 228).

Revistos os aspectos metodológicos que demarcaram a pesquisa, passamos

agora a uma compreensão da trajetória do regime internacional de propriedade

intelectual do Acordo TRIPS. A questão de fundo a ser discutida neste capítulo é:

tal regime representa (ou não) um chute definitivo na escada do desenvolvimento?

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