3 de outubro e o futuro do pt. mangabeira unger

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    3 de Outubro e o Futuro do PT (escrito em 30 de novembro de 1994

    e publicado na revista Teoria e Debate do PT)

    Roberto Mangabeira Unger O PT deu forma decisiva eleio de 1994, s no foi a forma que

    quis. Foi s por causa do pavor que causava direita e plutocracia brasileiras a possibilidade da eleio de Lula que estas foram agarrar-se ao PSDB e a Fernando Henrique Cardoso.

    Nisto, porm, o PT apenas desempenhou o papel mais corriqueiro da

    esquerda na poltica moderna: o de espantalho. O espantalho leva os polticos conservadores, os grandes proprietrios, os magnatas da mdia e as pequenas burguesias amedrontadas a transigirem com um reformismo de centro. O parceiro do espantalho o semi-reformista ou o pseudo-reformista. Tal como o pragmtico que agora se elegeu presidente, ele vira para um lado e diz: "Deixem comigo que eu salvo vocs". Vira para o outro lado e diz: "Eu sempre fui politicamente correto; eu sou a mudana vivel. O resto utopia".

    Uma parte do povo sussurrava para o PT: "Ns desconfiamos de

    vocs porque o seu candidato se parece conosco. No tem gabarito para ser presidente. Vocs dizem que so do povo, mas o que a gente v mesmo muito aparelho e muito funcionrio publico e empregado de estatal no meio de vocs. J que a promoo deste pessoal s vai piorar o negcio para ns, e j que pelo menos nos deram agora uma moeda que no derrete no bolso, vamos esquecer de poltica e tratar das nossas vidas".

    A frieza popular foi o trao definidor da campanha de 1994. Enquanto

    isso, as classes proprietrias sopravam: "Vocs j so bem melhores do que eram, mais responsveis, mais maduros. Sorriem mais para a gente, s um pouquinho mais, que, quem sabe, deixamos vocs entrarem na sala. Alis, o seu segundo candidato a vice-presidente at melhor do que o seu candidato a presidente, mais tratvel e mais moderno".

    O fato social mais importante subjacente a este quadro que o povo

    brasileiro permanece mais desorganizado, mais dividido e mais vulnervel do que imaginvamos. Sem compreend-lo no se pode tambm entender o impacto eleitoral da estabilizao econmica.

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    A economia brasileira continua, mais do que nunca, dividida em duas.

    Um dos traos marcantes da diviso o da organizao desigual. A maioria do pas continua desorganizada. E esta massa desorganizada que permanece, em grande parte, prisioneira de uma economia perifrica e atrasada, mngua de acesso aos mercados, ao capital e ao trabalho. Nesta maioria se incluem a maior parte da pequena classe mdia urbana, alm do povo subempregado das cidades e do campo.

    H quatro caractersticas desta maioria que merecem ateno especial pelas suas conseqncias eleitorais. A primeira caracterstica que os membros desta maioria eram as grandes vtimas do regime da moeda dupla: a moeda indexada e a moeda que se aviltava no bolso. No tinham como se defender conquistando um lugar relativamente favorvel no sistema dos salrios indexados. A segunda caracterstica que nutrem ressentimento contra os organizados e suas prerrogativas. A terceira caracterstica que, pelo prprio fato da desorganizao, so specialmente susceptveis s mensagens dirigidas da mdia. A quarta caracterstica que veneram a competncia administrativa e o preparo tcnico, caros, em todo o mundo, aos que tm de enfrentar a vida sem as defesas e sem os slogans das corporaes sociais. Estas caractersticas convergiram para dar a mxima dimenso eleitoral ao plano de estabilizao.

    Ao mesmo tempo, porm, com ou sem plano real, permitiram aliana construda em torno da candidatura de Fernando Henrique Cardoso colocar o dedo na ferida do PT: a relao ambgua com a maioria desorganizada do pas. Desde o incio o PT tem o seu horizonte imaginativo voltado para o Brasil organizado e suas corporaes trabalhadoras e pequeno-burguesas ainda que uma parte crescente dos seus votos venha do outro Brasil. Olha para este outro Brasil - o Brasil da baguna - e diz: "Incorpore-se ao Brasil arrumado". Oferece aos brasileiros do outro Brasil com uma mo a prtica organizadora e com a outra a ajuda material, tipo campanhas contra fome. Esta resposta, porm, insuficiente por duas razes bsicas.

    A primeira razo que deixa de enfrentar o problema da contradio

    de interesses e atitudes que opem os desorganizados aos organizados. Os operrios e os empresrios do Brasil organizado compartilham interesses e preocupaes que os opem tanto ao povo desorganizado quanto s pequenas classes mdias marginalizadas e inconformadas. Aqueles se

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    beneficiaram com a poltica do protecionismo econmico e da inflao consentida. Estes foram suas grandes vtimas. Aqueles admitem que a poltica de adultos possa parecer com a poltica estudantil. Estes preferem a morte ao assemblesmo. Se o PT quer ser um partido verdadeiramente nacional e de massa precisa colocar o Brasil todo no lugar do Brasil corporativo.

    A segunda razo que constitui uma meia verdade dizer que a prtica

    organizadora possa dar ao segundo Brasil os traos do primeiro. verdade que as prticas associativas so necessrias para criar capacidade coletiva de ao. Mas no verdade que o destino de uma sociedade moderna e democrtica possa ser o da integrao corporativa generalizada. Pelo contrrio, a ascenso de formas menores e mais flexveis de produo, a rebelio contra a rigidez autoritria e interesseira das organizaes corporativas, a mobilidade social e geogrfica, a valorizao do capital humano sobre o capital fsico, e at mesmo a cultura do experimentalismo espontneo e individualista - tudo isto contribui para solapar o mundo dos sindicatos, das agremiaes profissionais, das associaes de bairro e das comunidades de base a que a esquerda tradicional ainda se apega. to verdade dizer que o Brasil desorganizado o futuro do Brasil organizado quanto dizer o oposto.

    Disso resulta uma conseqncia poltica que a esquerda em geral e o

    PT em particular ainda no assimilaram. No basta confiar cegamente na prtica organizadora, oferecendo no meio tempo o entendimento com as corporaes organizadas e a assistncia aos desorganizados. preciso desenvolver as formas institucionais de uma economia de mercado e de uma democracia representativa que generalizem na sociedade um poder de atuao individual e coletivo capaz de afirmar-se fora das corporaes tradicionais e contra elas. Num pas como o Brasil a execuo desta tarefa comea numa prtica poltica e econmica que enfrente e supere o nosso dualismo.

    O PT reagiu ao quadro previsvel da campanha de maneira tambm

    previsvel. Por isso, perdeu-se no meio do caminho. Porm, os erros mais graves no foram os ocasionalmente cometidos, por decises mal pensadas. Foram os erros inerentes ao projeto do PT que acabaram por ficar patentes, e a cobrar seu custo, no momento eleitoral. H dois grupos de equvocos ligados entre si. Um diz respeito s idias; o outro, estratgia e s alianas.

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    verdade que uma vez lanado o plano de estabilizao tudo ficou difcil. Nenhum truque ttico, s um acidente dramtico de percurso, que no veio, teria evitado o desfecho. Reconhec-lo, porm, em nada atenua a fora da crtica. O real foi uma trombada no s esperada seno tambm e sobretudo constituda para revelar os limites e as ambigidades do PT e sua relativa insensibilidade s preocupaes e s preferncias do Brasil no-corporativo. Ao recolher as lies da campanha, temos de distinguir os equvocos tticos facilmente corrigveis, porm secundrios, dos erros arraigados - arraigados tanto na identidade do PT quanto nas tradies da esquerda contempornea. Estes foram decisivos. O fato de no terem conserto rpido ou fcil s refora a necessidade de estud-los.

    O erro das idias foi deixar de transmitir ao pas a imagem clara e

    simples de uma alternativa estrutural. O que prevaleceu no discurso do PT foi a proposta da negociao corporativista (tal como na idia das cmaras setoriais) para o primeiro Brasil e da assistncia social (estilo campanhas do Betinho) para o segundo Brasil. Este discurso no apresentava uma estratgia antidualista de desenvolvimento nacional - uma maneira de superar a diviso do pas.

    Tal estratgia exigiria que se consolidasse uma vanguarda produtiva e

    tecnolgica voltada para as necessidades tanto de produo quanto de consumo da retaguarda econmica. Requereria, tambm, que o governo central encontrasse uma maneira de fazer parceria com empresas privadas que, pelo cunho descentralizado, experimentalista e participativo, ajudasse a levantar os pequenos e mdios empreendimentos, urbanos e rurais, da nossa vasta economia marginalizada, ainda pobres em acesso ao capital, aos mercados e tecnologia.

    Mesmo a poltica da educao pblica, o ponto nevrlgico da emancipao popular, tem de preocupar-se em dar aos brasileiros do outro Brasil no um adestramento estreito em tcnicas de trabalho seno uma abertura para as capacidades e prticas gerais que permitem ao indivduo ascender. Mas no foi nada disso que o PT ofereceu ao pas.

    O programa, em suas sucessivas verses, foi uma obra tpica de

    grupos de trabalho, preocupados em catalogar uma enciclopdia de polticas setoriais que resumem, como os progressistas bem pensantes do pas encaram, o politicamente correto. Faltou-lhe um cerne estrutural que o pas pudesse captar. E quando se exigiam dos candidatos uma definio clara das

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    mudanas estruturais pretendidas, respondiam com acenos a uma poltica de estilo gandhiano, tipo ajuda s indstrias artesanais no Norte e no Nordeste.

    Todo o mundo percebe que no esta uma resposta para valer; uma confisso de malogro imaginativo. Da no ter sido surpreendente que pensadores conhecidos do PT e do PSDB trocassem amabilidades pela televiso e reconhecessem as numerosas semelhanas entre seus respectivos programas. No surpreendente porm desmoralizador para os que buscamos uma alternativa verdadeira ao iderio hegemnico.

    A lngua franca da poltica brasileira virou o vocabulrio social-

    democrata: retirada do Estado das atividades produtivas, com reserva de setores "estratgicos", e polticas sociais compensatrias para contrabalanar o efeito desigualizador da economia de mercado. Como esta viso deixa de propor uma forma estrutural diferente e igualizadora para a economia de mercado, como ela se cala sobre as formas especficas de parceria entre o Estado e as empresas privadas, ela no ameaa ningum e pode ser abraada por todos. O discurso do "apartheid social" confundiu-se com este vocabulrio poltico dominante.

    Este no um erro superficial. Ele est, pelo contrrio, enraizado na vida interna do PT e nas atitudes de suas lideranas maiores. Organizam-se as tendncias internas do PT num espectro de radicalizao progressiva das reivindicaes redistribuidoras. como se os mais moderados (e "modernos") dissessem, como disse Fernando Henrique Cardoso, somos ns o vivel, enquanto que os mais radicais protestassem, somos ns que queremos a redistribuio para valer mesmo custa de amedrontar as classes proprietrias. O grave que nem os mais radicais oferecem uma proposta que fundamente este distributivismo mais ou menos afoito numa concepo produtiva. Apenas compartilham a mesma confuso tpica da esquerda mundial: desencanto com o estatismo, insatisfao com as polticas sociais meramente compensatrias e valorizao de uma prtica organizadora, como se tal prtica pudesse substituir a definio de rumos claros.

    Para formular de modo abrangente a proposta programtica que faltou

    na campanha de 1994 vale a pena tomar como pontos de partida de um lado a situao mundial da esquerda e, de outro, as oportunidades especficas que o governo de Fernando Henrique Cardoso abrir para as esquerdas brasileiras. Em todo o mundo, rico ou pobre, a esquerda permanece desorientada buscando um caminho que substitua o mero estatismo sem cair

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    no conservadorismo institucional nem se restringir s polticas de ajuda e investimento sociais. Em toda a parte a realizao desta tarefa depende do xito que se tiver em fundamentar as reivindicaes distributivistas numa reconstruo do sistema da produo e da estratgia do desenvolvimento. Sem que se cumpram estas condies no h a menor possibilidade de oferecer uma alternativa atraente e vivel ao projeto poltico-econmico que hoje hegemnico no mundo e que se convencionou chamar o Consenso de Washington: o programa da estabilizao sem ameaa aos credores do Estado, da liberalizao parcial, da privatizao radical e das polticas sociais compensatrias.

    Quando se procura executar este projeto hegemnico numa sociedade

    muito desigual como a nossa, a execuo seletiva e truncada. Do contrrio, deixaria de ser politicamente vivel. Afinal, tomado ao p da letra e radicalizado, o projeto feriria muitos dos interesses que supostamente o sustentam: a liberalizao incondicional implicaria combate aos oligoplios e promoo das pequenas empresas enquanto que as polticas sociais compensatrias, levadas dimenso necessria sua eficcia, exigiriam a imposio s classes proprietrias de um nus tributrio incompatvel com a manuteno do seu padro de vida atual. Por isso, mesmo, uma execuo radical do Consenso de Washington requereria para sustent-lo uma base popular ampla e exigente. S que esta base no se resignaria ao projeto tal como convencionalmente formulado. Insistiria numa democratizao mais rpida e clara do poder econmico, poltico e cultural do que o Consenso de Washington faculta.

    Deste raciocnio resulta a concluso de que o programa do Consenso

    de Washington , embora hegemnico, confuso e instvel. No h, nas condies de uma sociedade desigual, um projeto poltico consistente que corresponda ao seu projeto econmico. Se ele for executado seletivamente para atender aos interesses dominantes, mantm e aprofunda o dualismo, transformando os ainda excludos em inimigos polticos potenciais. Se ele for executado radicalmente, a base popular que possibilitaria sua radicalizao tambm acabaria por redefini-lo.

    Este dilema prenuncia tanto a direo do governo de Fernando

    Henrique Cardoso quanto a natureza do terreno em que as esquerdas brasileiras tero de enfrent-lo. Ser um governo do Consenso de Washington seletivo: se mais seletivo ou menos seletivo depende essencialmente da vontade e da capacidade do novo presidente em impor-se

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    aos seus aliados polticos e aos seus quadros de tecnocratas. Oferecer um trato ao empresariado brasileiro: aceitem mais concorrncia estrangeira em troca da oportunidade de enriquecer, e de deixar que o governo enriquea, com a privatizao do setor pblico. Procurar desenvolver as polticas de ajuda e investimento sociais e organizar a previdncia na estrita medida em que se possa financiar com um nvel de tributao compatvel com o padro de vida gozado pelas classes aquinhoadas. Tomar iniciativas vistosas de ativismo e autonomia nacionais no plano da poltica externa enquanto trata de desmontar de fato os resqucios da nossa rebeldia nacional contra a nova ordem mundial e o iderio que nela se tornou dominante.

    A alternativa que faltou na campanha de 1994, e que ser necessria

    no confronto com o novo governo, tem de insistir na idia da democratizao simultnea do Estado e da economia de mercado. A economia democratizada de mercado num Brasil que deixou de ser dualista deve ser o seu compromisso norteador. Para afirm-lo, o PT precisa desmontar o discurso corporativo-assistencial em que se viciou. No lugar da idia da negociao entre os grandes interesses organizados do primeiro Brasil, o que importa a guerra contra os privilgios e os oligoplios e a formao de parcerias descentralizadas e participativas entre os governos e as firmas privadas. A preocupao central destas parcerias deve ser a de consolidar, dentro e fora do setor pblico, uma vanguarda econmica, tecnolgica e cultural que atenda s necessidades de produo e de consumo da nossa vasta retaguarda econmica. No lugar do enfoque na misria e na insegurana do povo - que todas as foras polticas brasileiras alegam compartilhar - o que importa propor um sistema tributrio e uma reconstruo das relaes entre governos e empresas que comprimam de forma duradoura a hierarquia dos padres de vida e libertem o dinamismo experimentalista do povo brasileiro.

    Estes substitutos do discurso corporativo e assistencial precisam, por

    sua vez, repousar numa viso clara das exigncias essenciais da emancipao cultural do povo e da mobilizao popular institucionalizada e permanente. Esta viso ope-se, dentro das esquerdas e do PT, contrapartida poltica do discurso corporativo-assistencial: o gosto pelas causas jurdico-liberais - parlamentarismo, pluralismo sindical e voto facultativo. Em condies to desiguais como as nossas, a promoo destas causas significaria dar ao primeiro Brasil um microfone e ao segundo uma mordaa. No h poltica de mudana estrutural que no seja uma poltica de alta energia.

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    O problema identificar e estabelecer as instituies que dem

    sobrevida e normalidade ao que de outro modo seriam momentos efmeros de entusiasmo e esperana. No haveremos de encontr-las na agenda tradicional do liberalismo.

    Emancipao cultural do povo significa investir na educao pblica

    que seja no s acessvel a todos, mas tambm acessvel a todas as idades e que ponha a conquista de capacidades de fazer e apreender no lugar da memorizao passiva. Significa tambm propor alternativas aos oligoplios da informao e da diverso que no regridam a frmulas estatistas.

    Mobilizao institucionalizada e permanente do povo requer, num primeiro passo, diminuir abruptamente a influncia do dinheiro sobre a poltica pelo financiamento pblico das campanhas eleitorais. Exige transformar o presidencialismo brasileiro numa mquina para a prtica freqente de reformas estruturais. O caminho para isso manter a grande alavanca desestabilizadora da eleio presidencial enquanto se criam os mecanismos, tais como plebiscitos ou referendos e poderes de convocao de eleies antecipadas, que engajem o eleitorado na pronta resoluo dos impasses de poder.

    O bloqueio imaginativo que continua a negar ao PT clareza sobre um programa transformador como este est ligado ao problema congnito e central do partido: a ambivalncia sobre o papel dos organizados num mundo de desorganizados e sobre o destino do primeiro Brasil - o Brasil arrumado e europeizado - dentro do Brasil todo.

    As tendncias internas do PT so, de forma geral, irrelevantes ou

    antagnicas tarefa de imaginar e sustentar um tal programa. Esto em outra, preocupadas em moderarem ou extremarem o discurso redistributivista. Continuam, portanto, mais ou menos eqidistantes dos problemas reais do pas. Tanto sabem e sabiam disso as lideranas nacionais do PT que, no auge das pesquisas favorveis, davam a impresso de que tanto tinham medo de ganhar quanto tinham medo de perder as eleies de 3 de outubro de 1994.

    Falhas de viso programtica esto na raiz do segundo conjunto de

    erros cometidos pelo PT na campanha de 1994 - erros de estratgia. Os

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    equvocos estratgicos so graves justamente porque no resultam de clculos casualmente enganados; vinculam-se desorientao programtica.

    Uma reflexo sobre a estratgia da campanha de 1994 deve comear

    com um esforo para resolver um paradoxo aparente. De um lado, acusa-se o PT de no ter cultivado alianas e de ter se isolado na luta pelo poder central. Os apelos aos partidos nanicos da esquerda e aos dissidentes do PDT e do PMDB apenas confirmam a realidade do isolamento ao qual no ofereciam uma alternativa substancial. De outro lado, porm, o PT tambm conduziu uma poltica de busca sistemtica da respeitabilidade. No incio da campanha, Lula deu sinais de que repetiria o erro estratgico de Brizola no comeo da campanha de 1989: conduzir-se como se j fosse capito do povo e se pudesse dar ao luxo de negociar os vetos das elites. uma concepo que confunde fatalmente duas fases da luta: primeiro preciso ganhar para depois, numa posio de fora, negociar.

    Foi assim que, meses a fio, ficou o PT negociando com o PSDB, um

    partido que, conforme dizem seus dirigentes a quem tivesse ouvidos para ouvir, queria desde o comeo apresentar-se ao pas como a alternativa providencial ao PT. Foi assim que se sucederam numerosas conversas com empresrios nas quais as recadas de autenticidade se revezavam com os protestos de confiabilidade. Foi assim que o candidato viajou aos Estados Unidos e Alemanha para assegurar aos americanos e aos alemes que, no fundo, s queria resolver o problema dos pobres e que nada tinham a temer dele. Foi assim que na hora do programa de televiso prevaleceu a esttica da sofisticao e do xarope, fazendo com que Lula aparecesse, desde as palavras at o terno, como um candidato produzido. Com a notvel exceo das caravanas - a inovao mais importante da campanha - conduziu-se o PT como se estivesse decidido a dar credibilidade pirraa de Darcy Ribeiro: a esquerda de que a direita gosta. Ao que se poderia acrescentar: gosta mais no vota.

    Como, ento, acusar o PT simultaneamente de se haver isolado e de se

    haver entregue busca intil do charme e da cordialidade? As duas coisas no s so compatveis como tambm se reforam reciprocamente. Por no haver sabido ampliar a unidade no plano das foras de esquerda e das classes trabalhadoras e pequeno-burguesas, o PT procurou um substituto desta unidade na campanha pela respeitabilidade.

    Esta campanha, porm, estava e est fadada a malograr, bloqueando

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    ainda mais o caminho da unidade popular sem render os resultados prticos esperados. Ampliao da base popular significa em termos sociais a abertura ao Brasil majoritrio e no-corporativo e o distanciamento arrojado dos interesses e dos preconceitos do Brasil corporativo. Ampliao da base popular significa em termos de idias o abandono do discurso corporativo-assistencial e sua substituio por um discurso de reconstruo institucional como aquele que antes esbocei. Ampliao da base popular significa em termos polticos e partidrios a busca da fuso com os segmentos da esquerda brasileira que contestam o PT, especialmente o PDT, e a imposio de disciplina partidria s sees regionais do PT que dificultem esta unio.

    Pior ainda do que para o PT, foi a eleio de 1994 para o PDT. No s que Brizola, o nosso patriota mais intransigente, houvesse afundado, sem saber furar o bloqueio da mdia nem reinventar uma mensagem de que o pas cansou. que, como resultado do pleito, trs tendncias ganharam fora no PDT: a tendncia dos oportunistas deslumbrados, a tendncia dos conservadores honestos e a tendncia dos conservadores bandidos. Nada disto, porm, deve alegrar o PT. No s ajudou a negar esquerda um segundo turno presidencial como tambm, e sobretudo, complicou o caminho indispensvel da convergncia.

    Se o PDT no existisse seria preciso invent-lo. Originando-se numa

    encarnao histrica anterior do mundo corporativo-estatal a que o PT continua agarrado, ele avanou lentamente em direo ao outro Brasil: o Brasil do povo desorganizado e das pequenas classes mdias patriticas, ressentidas e marginalizadas. Por isso mesmo, cultivou preocupaes que o PT subordinou: com a autonomia da Nao e do projeto de desenvolvimento, com o uso do Estado e do setor pblico para atacar o dualismo e com a emancipao cultural do povo, vitimado pela ignorncia e pela televiso. Por isso mesmo, tambm, permaneceu imune propaganda jurdico-liberal do pluralismo sindical, do parlamentarismo e do voto facultativo, que perigosamente seduziu as lideranas do PT.

    O problema hoje que temos duas esquerdas, exprimindo

    confusamente uma diviso social e cultural que a esquerda brasileira unida deveria ter por tarefa superar. Por estarem contrapostas, as duas esquerdas acabam sendo partes do problema em vez de serem partes da soluo. Agora precisamos de magnanimidade e clarividncia para aprender a lio penosa dos fatos. Que fazer?

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    Primeiro, dissolver todas as tendncias internas constitudas do PT. Esto organizadas em torno de um equvoco, que o grau relativo de moderao e radicalismo nas reivindicaes redistribuidoras. Dentro desta carroceria falta a mquina, que o projeto de reconstruo institucional e de crescimento econmico. Ademais, tal como hoje praticadas, estas tendncias ajudam a compor o clima da poltica estudantil a que o pas tem ojeriza.

    Segundo, distanciar-se dos compromissos corporativos desde o

    discurso das cmaras setoriais at a intimidade irrestrita com os sindicatos pequeno- burgueses de funcionrios pblicos e de operrios relativamente privilegiados.

    Terceiro, desenvolver uma alternativa clara ao discurso corporativo-

    assistencial: um discurso que, como a argumentao anterior exemplifica, enfrente o dualismo e responda s exigncias do Brasil no-corporativo, que quer um futuro diferente da assimilao ao Brasil corporativo.

    Quarto, aprofundar a prtica organizadora, mas sem deixar que

    substitua as propostas feitas para uma sociedade que continuar a ser, como so todas as sociedades, desigualmente organizada e sem esquecer a advertncia de Oscar Wilde de que o problema do socialismo que tem reunio demais.

    Quinto, cultivar lideranas nacionais, eventualmente capazes de

    substiturem Lula, que no se enquadrem em nenhuma das duas categorias seguintes: 1) a esquerda de que a direita gosta ("modernos", linguagem vaga social-democrata, gosto pelo parlamentarismo e outras causas do udenismo de esquerda); 2) a esquerda de que a esquerda gosta (caretas, estatistas que perderam f no Estado, polticos estudantis envelhecidos). Procurar a esquerda de que o povo e os assalariados possam gostar. As preferncias do prprio Lula devem pesar quase nada.

    Sexto, buscar imediatamente a fuso com o PDT e atacar de frente os

    que dentro do PT de cada estado da federao sacrificam a causa nacional ao jogo das rivalidades e dos preconceitos.

    Impossvel? Claro que impossvel. Porm, necessrio. Quando o

    necessrio impossvel, o jeito buscar a melhor aproximao que as circunstncias, empurradas por uma vontade forte, possam permitir.

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    Se o raciocnio parasse a, numa srie de crticas e de propostas, estaria ainda faltando o essencial, que s a generosidade no julgamento pode revelar. A campanha de 1994, que terminou em desapontamento para a esquerda e que revelou a vulnerabilidade persistente do povo brasileiro, foi, apesar de tudo, um momento esclarecedor na histria do pas. H duas maneiras que uma poltica transformadora se pode desvirtuar. Uma entregar-se inteiramente mxima de Bismarck, segundo a qual a "poltica a arte do possvel".

    Quem respeita sempre os limites do possvel e cultiva a imagem do

    realista acaba prisioneiro do sistema atual de interesses e preconceitos. Submete-se, como tm feito a generalidade dos partidos socialistas e trabalhistas nas democracias ricas do Ocidente. Procura apenas humanizar a ordem existente. No tenta reinvent-la. Mas quem perde contato com as realidades refratrias e obscuras desorienta-se no vcuo das utopias soltas. Foi o que fizeram, no decurso do sculo XX, as esquerdas sectrias e revolucionrias. So poucos os exemplos que temos tido no sculo XX de uma esquerda que, percorrendo o caminho estreito entre estes dois perigos contrapostos, haja insistido em testar os limites do possvel. O PT - no o PT das reivindicaes corporativas, do discurso corporativo-assistencial e das simpatias criptoliberais, seno o PT das caravanas e da prtica organizadora - tem sido um destes exemplos.

    Por isso, o PT j demonstrou que tem potencial para transformar o pas. Dissipar este potencial se no se transformar em si mesmo.