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3 Alguns episódios de uma ilustração na literatura […] Examinei com uma lupa a lombada gasta e as capas e rechacei a possibilidade de algum artifício. Comprovei que as pequenas ilustrações distavam duas mil páginas uma da outra. Fui anotando-as em uma caderneta alfabética, que não demorei a encher. Nunca se repetiram. De noite, nos escassos intervalos que a insônia me concedia, sonhava com o livro. O verão declinava e compreendi que o livro era monstruoso. De nada me serviu considerar que não menos monstruoso era eu, que o percebia com olhos e o apalpava com dez dedos com unhas. Senti que era um objeto de pesadelo, uma coisa obscena que infamava e corrompia a realidade. Pensei no fogo, mas temi que a combustão de um livro infinito fosse igualmente infinita e sufocasse o planeta de fumaça. Lembrei haver lido que o melhor lugar para ocultar uma folha é um bosque. […]. Jorge Luiz Borges, 2000. A fim de passear por narrativas visuais escolhemos alguns momentos da trajetória do livro códice como conhecemos hoje. Anteriormente à Idade Média, o livro era comumente apresentado no formato rolo, em que uma folha era enrolada e à medida que se desenrolava, os trechos ali escritos eram lidos. Entretanto, foi o período medieval, com as Cruzadas e as Missões, que disseminou um outro formato de livro, o códice. Mudanças ocorridas na construção do livro na Idade Média culminaram em um momento muito importante na história dele: a prensa de Gutenberg. Neste período renascentista avanços tecnológicos fomentaram um mercado de livros nascente, e tipógrafos e gravuristas especializavam-se em se relacionar com este novo produto. Tais mudanças, juntamente com reflexões de uma sociedade humanista do final do século XVIII, contemporâneas à Revolução Francesa e Industrial, culminaram no embrião do livro infantil com ilustrações que conhecemos hoje, e que nos serviu de base para discutir o livro-ilustrado infantil, conforme veremos no capítulo 4 desta tese. 3.1. Livros da Idade Média ilustrados Idade Média - Na era medieval, o papiro cedeu o lugar de suporte de escrita para o pergaminho, uma pele de animal, um couro. Sem o pergaminho, “a arte sublime da iluminura

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3 Alguns episódios de uma ilustração na literatura

[…] Examinei com uma lupa a lombada gasta e as capas e rechacei a possibilidade de algum artifício. Comprovei que as pequenas ilustrações distavam duas mil páginas uma da outra. Fui anotando-as em uma caderneta alfabética, que não demorei a encher. Nunca se repetiram. De noite, nos escassos intervalos que a insônia me concedia, sonhava com o livro. O verão declinava e compreendi que o livro era monstruoso. De nada me serviu considerar que não menos monstruoso era eu, que o percebia com olhos e o apalpava com dez dedos com unhas. Senti que era um objeto de pesadelo, uma coisa obscena que infamava e corrompia a realidade. Pensei no fogo, mas temi que a combustão de um livro infinito fosse igualmente infinita e sufocasse o planeta de fumaça. Lembrei haver lido que o melhor lugar para ocultar uma folha é um bosque. […].

Jorge Luiz Borges, 2000.

A fim de passear por narrativas visuais escolhemos alguns momentos da trajetória do livro códice como conhecemos hoje. Anteriormente à Idade Média, o livro era comumente apresentado no formato rolo, em que uma folha era enrolada e à medida que se desenrolava, os trechos ali escritos eram lidos. Entretanto, foi o período medieval, com as Cruzadas e as Missões, que disseminou um outro formato de livro, o códice. Mudanças ocorridas na construção do livro na Idade Média culminaram em um momento muito importante na história dele: a prensa de Gutenberg. Neste período renascentista avanços tecnológicos fomentaram um mercado de livros nascente, e tipógrafos e gravuristas especializavam-se em se relacionar com este novo produto. Tais mudanças, juntamente com reflexões de uma sociedade humanista do final do século XVIII, contemporâneas à Revolução Francesa e Industrial, culminaram no embrião do livro infantil com ilustrações que conhecemos hoje, e que nos serviu de base para discutir o livro-ilustrado infantil, conforme veremos no capítulo 4 desta tese. 3.1. Livros da Idade Média ilustrados

Idade Média - Na era medieval, o papiro cedeu o lugar

de suporte de escrita para o pergaminho, uma pele de animal, um couro. Sem o pergaminho, “a arte sublime da iluminura

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não teria jamais conhecido tal brilho[...]" (JEAN, 2002, p.81- 2).

E ainda: O aparecimento do pergaminho trouxe dois avanços decisivos: de um lado, permitiu a utilização de pena de ganso, que proporcionava possibilidades infinitamente mais variadas que o velho pincel de caniço; e, de outro, as folhas podendo ser dobradas e costuradas, chegava-se à generalização dos “codex”, os códices, “ancestrais de nossos livros, constituídos de folhas sobrepostas e unidas umas às outras – formando as páginas –que são apenas uma face da folha dobrada (JEAN, 2002, p.81- 2). Os livros medievais traziam muitas ilustrações,

desenhos ornados com ouro, denominados iluminuras. Eram produzidos em mosteiros por monges copistas, iluminadores e encadernadores, sendo os primeiros os encarregados de desenhar, dourar e pintar suas páginas. Os monges iluminadores “eram[...] amadores, incapazes de reconhecer um sentido estético no livro. Assim é que o “trabalho intelectual[...] incidia sobre a cópia e transcrição dos textos, e não sobre a sua ornamentação” (BARROS, 2010).

Havia para o iluminador algumas orientações vindas nos manuscritos encomendados, instruções, dados precisos sobre a ilustração, tipo de decoração e dimensão das miniaturas, além dos contratos fixados no ato da encomenda da obra. O iluminador optava por representar o texto verbal através de uma única ilustração ou construir várias cenas de um mesmo assunto, sendo-lhe permitido dar forma a esboços feitos pelo copista. Tentava reproduzir do original transcrito o esquema das composições anteriormente utilizadas. Para esta reprodução, e para a multiplicação dos modelos, ele utilizava o decalque ou traçava os contornos do desenho e preenchia o interior da figura. Também lhe era atribuída a função de, depois do texto escrito, fazer as capitulares: letras ornamentadas de entrada de páginas e capítulos. Estes frequentemente figuravam em cenas isoladas, em iniciais historiadas e, mais eventualmente, nas margens de um manuscrito iluminado (JEAN, 2002).

Uma ilustração podia ser inspirada no conteúdo global do texto, promovendo cenas que procuravam representar o que ali estivesse escrito. A interpretação do texto era representada pelos desenhos e motivos decorativos, produzidos para títulos de caráter ideológico e litúrgico.

Existiu, ainda, uma ilustração presente em obras de conteúdo mais abstrato, como: tratados filosóficos, jurídicos e livros de oração. Nestes casos, o iluminador podia construir leituras paralelas, utilizando-se de alegorias e signos. Nos finais da Idade Média, os Livros de horas, produzidos nos séculos XIV e XV, com seus motivos florais, eram impregnados de elementos figurados. A Figura 3 a seguir

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representa os “diversos estágios da fabricação do livro: a entrega do pergaminho a um monge, traçado de linhas pelo escriba, aparagem das folhas de velino e execução de um retrato”, nas representações de letras iniciais manuscritas, de meados do século XII (JEAN, 2002, p.86).

Figura 3: Ilustração, etapas da fabricação de um livro.

Fonte JEAN. A escrita, memória dos homens, 2002, p. 86

A Figura 4 traz um detalhe de interpretação de pintor do século XVIII pertencente à escola holandesa, representando uma reprodução do manuscrito de copista da Idade Média. Decorado com uma iluminura à direita. À esquerda, está a ilustração de página inteira, representando Cristo.

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Figura 4: Pintura, A Bíblia de São Jerônimo, Roejmersvaller.

Fonte JEAN. A escrita, memória dos homens, 2002, p. 81.

Depois da segunda metade do séc. XV, a gravura sobre madeira ofereceu outra possibilidade de impressão. Logo, as iluminuras deram lugar a gravuras produzidas em matriz de madeira. Inicialmente, o conteúdo desses livros restringia-se a obras que pretendiam divulgar o cristianismo, como já referido. Posteriormente, ampliou-se a obras que possuíam caráter humanístico, o que foi motivado pelo aparecimento das universidades (JEAN, 2002).

Com o surgimento das universidades na Europa, necessitou-se ampliar a difusão livreira. Muitas cópias ilegais substituíram os livros ricamente ilustrados nos mosteiros. Este processo foi semelhante ao da escrita hieroglífica que, para facilitar sua difusão, deu lugar a uma escrita cursiva, pobre em imagens, entretanto, mais fácil e rápida de ser produzida (JEAN, 2002).

Ainda no ocidente, com o decorrer dos avanços editoriais, houve um momento divisor de águas no que diz respeito à impressão das palavras. Nasciam as oficinas tipográficas, a prensa de Gutenberg e a figura do gravurista e gravador de ilustrações.

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3.2. Imprensa de Gutenberg e a influência Renascentista na produção de livros

Em 1450, Johannes Gensfleisch, conhecido como

Gutenberg (1397-1468), imprimiu a Bíblia Latina através de uma técnica de impressão que revolucionou a produção livreira. A prensa tipográfica era configurada por tipos móveis, confeccionados em chumbo, que ao se combinarem formavam palavras, linhas e páginas.

Desde o século XI, os chineses já conheciam os caracteres móveis. Na Europa do início do século XV também se imprimiam letras gravadas sobre madeira, além de imagens de santos e cenas bíblicas. Porém, tais impressões eram obtidas, pressionando-se o verso de uma folha aplicada sobre a madeira. Gutenberg mecanizou a impressão. A nova tecnologia aplicada nas oficinas tipográficas, representada na Figura 5, possibilitou um avanço na difusão da literatura no ocidente e tomou o lugar dos monges copistas (JEAN, 2002).

Figura 5: Pintura, Bernard Cennini e seu filho Tito Lessi, 1471.

Fonte: JEAN. A escrita, memória dos homens, 2002, p. 96.

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Com o advento dos tipos móveis, um novo episódio surgiu na história da reprodução de livros. E novas técnicas tiveram que ser incorporadas para reproduzir as ilustrações. Esta produção do livro, de início (como comumente acontece com uma tecnologia recente), copiou o processo anterior, dos monges escribas, sendo assim, eram deixados espaços para que se ilustrassem as iluminuras. Hoje, pesquisadores atribuem a paternidade do livro impresso à China, em 1390. Sua multiplicação e difusão resultaram da invenção da imprensa, e por consequência, da língua escrita, o que deu poder ao indivíduo letrado, “dominar a escrita seria conquistar o mundo” (JEAN, 2002, p.98). Tal afirmativa caracteriza o período histórico do ocidente que pretende resgatar o antropocentrismo.

Após a Idade Média (séculos V a XV d.C.), houve um período de grande transformação na produção artística. Uma concepção antropológica se sobrepunha à visão teocêntrica medieval, a Alta Renascença de 1500 a 1520.

O conceito de Renascença (séculos XV a XVI d. C.) indica “o renascer da cultura sobre bases antigas” (ARGAN, 1992, p.63). No período discutem-se conceitos advindos da Antiguidade Clássica, utilizando-se a perspectiva como método de pesquisa racional e visão de mundo (ARGAN, 1992). Questionamentos acerca da Terra como centro do universo foram feitos e comprovados com Galileu Galilei (1564-1642, Itália). Newton divulgou suas famosas leis (1643-1727, Inglaterra), Descartes discutia a matemática cartesiana (1596-1650, França), que refletia um ponto de vista racional de mundo.

Nas representações visuais, Leonardo Da Vinci (1452-1519, Itália) apresentava novos conceitos de anatomia e proporção, através do Homem Vitruviano (modelo ideal de beleza, segundo os padrões clássicos), que “ilustra o cânon de proporções humanas que Vitrúvio, o arquiteto romano do século I a.C.,” pôs “como base de sua teoria arquitetônica” (ANTUNES, 2004, p.81). Da Vinci também escreve o “Trattado della pintura, mostrando achar necessário que o artista estude anatomia diretamente da vida, isto é, por meio da dissecação” (ANTUNES, 2004, p.125).

A difusão de uma ciência nascente e conhecimentos de anatomia e perspectiva possibilitaram uma releitura dos padrões estéticos greco-romanos. Pintores do século XV e XVI, como Leonardo da Vinci, Michelangelo (1475-1564, Itália) e Rafael (1483-1520, Itália), criavam em suas pinturas novos padrões de conceitos gráficos a serem seguidos. Por este viés, pode-se selecionar da história da arte moderna, que vem a partir da Idade Média, o Renascimento como momento inspirador para discutirmos um novo conceito de imagem em livro.

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Como vimos anteriormente, o livro precisou ter maior velocidade de produção e as ilustrações foram muitas vezes banidas de suas páginas. Entretanto, uma gama de artistas se deteve a ilustrar os tipos que iriam compor as páginas, eram eles os tipógrafos. Havia portanto, ao se criar uma família tipográfica, ou uma gravura a ser acrescida num livro, um código formal do Renascimento a ser seguido. A razão sobrepunha-se à emoção, e o pensamento cartesiano propunha esquemas matemáticos e lógicos de representação. A mímesis era a representação pictórica a ser seguida e critérios gráficos, como sombra, cor, volume, perspectiva e anatomia deveriam ser respeitados para assegurar a qualidade estética das representações visuais, seja nos livros ou fora deles.

Os tipógrafos possuíam oficinas de criação de tipos estruturados em esquemas e matrizes gráficas delimitados. Demarcavam um lugar para um tipo de imagem no livro moderno: o tipo de letra para representar uma ideia, escola e, posteriormente, linha editorial.

Muitos tipógrafos foram influenciados por preceitos da Renascença para criar seus tipos, nela e logo após o período. Malhas constitutivas, cálculos geométricos, matrizes humanas, padrões clássicos de beleza eram considerados ao se criar uma nova tipografia. Em Veneza, por exemplo, berço da Renascença Italiana, o tipógrafo Aldo Manuce (1449-1515) deu existência a tipos para impressão, a Lettera Antiqua (utilizada no século XVI na Europa) e a “Itálica” com a “intenção de reprodução da mais bela grafia possível com caracteres de metal” (JEAN, 2002, p.98).

Em fins de XVI, a Contra-Reforma levou à inquisição muitos tipógrafos, impressores. Entretanto, mesmo neste período pós Renascença, alguns tipógrafos com seus preceitos renascentistas continuavam a criar seus tipos. A Holanda protestante passou a abrigar estes homens eruditos que desprezavam o latim, empenhando-se em imprimir e difundir os clássicos gregos e latinos nas línguas nacionais (JEAN, 2002).

Seguindo os preceitos racionais renascentistas, no reinado de Luís XV, o Rei Sol (1643-1715) mandou o abade Jaugeon, da Academia de Ciências, desenhar para a Imprensa Real um novo alfabeto. Esta letra foi construída por trás de uma grade modular de quarenta e quatro casas, no interior de diagramas de precisão matemática. A proposta era a de construir o arquétipo da perfeição tipográfica (JEAN, 2002).

Em Genebra (Suíça) no reinado de Francisco I, humanista amante das letras, Lutero foi acolhido quando refugiado, e utilizou as letras góticas para difundir ideias da reforma. Essa cidade foi importante centro da editoração europeia em XVI (JEAN, 2002, p.100).

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No entanto, no século XVIII, o Século das Luzes, surgiu uma nova visão de mundo, e uma nova exigência visual. Neste século o interesse depositado no livro cresceu. O leitor passou a pedir mais informações, o texto devia ser mais enxuto. Surgiu a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert. Diderot empenhou-se em criar o caractere mais representativo desse espírito. Em 1755, ele inventou um alfabeto simples. Um grande cuidado dos cheios e finos, nítidos e perfeitos fará da letra Didot a vinheta da tipografia francesa.

No mesmo século em que Gutenberg apresentou a imprensa tipográfica, surgiu uma técnica de impressão que facilitaria a produção em série das imagens: a xilogravura. Tratava-se de um processo de impressão com matriz em madeira, em escavação da superfície e colocação da tinta nesta matriz, que era pressionada sobre o papel. Novas técnicas de impressão de imagem a acompanharam, como a gravura em metal, consistindo em matriz plana de cobre, baseando-se na aplicação de verniz, e logo após escavação do metal. A tinta, aderindo ao local escavado, e uma prensa que transferia o desenho para o papel.

Além dos tipógrafos, passou a existir uma outra classe de técnicos, que geraram um segundo ator para a criação da imagem em livro, o gravador em xilogravura, gravura em metal, litogravura e linotipia. Albrecht Dürer (1471-1528, Alemanha), tipógrafo da letra Franktur, também foi exímio gravador, imprimiu em xilogravura seu famoso Rinoceronte (1515) sem ter visto o animal. Este foi ilustrado a partir de descrições, e dele se tornou uma referência anatômica.

Os pintores Rafael e Ticiano (1473/1490-1576, Itália) faziam cópias através da xilogravura. Enquanto a imprensa acelerava a difusão do pensamento letrado, a xilogravura assegurava o triunfo da Renascença (GOMBRICH, 2000).

No século XVIII, em 1796, um alemão chamado Senefelder descobriu em pedras calcárias a particularidade de rejeitar as tintas oleosas, quando ainda úmidas. Era naquele momento a descoberta da impressão litográfica. Esta definida como impressão com matriz plana, baseada no fenômeno de repulsão entre as tintas e a água, e utilizando como suporte a pedra calcária. Isto acompanhava o crescimento livreiro. Com estes aprimoramentos tecnológicos, surgiram as oficinas do gravador, exemplificadas na Figura 6 (JEAN, 2002, p.109-112).

A litografia possibilitou impressões coloridas, e influenciaria o livro, a imprensa e possibilidades de leitura de ilustrações em texto de literatura. Permitiu imprimir texto e ilustração com uma única passagem da mesma máquina e com um mesmo papel (JEAN, 2002).

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Figura 6 Pintura, O impressor de gravuras, Braekeleer, 1875.

JEAN. A escrita, memória dos homens, 2002, p.109.

Apenas com o tempo, os paginadores tomaram consciência de ordenar a ilustração. Exatamente aí a página de jornal, veículo surgido a partir de declaração de liberdade de imprensa na Revolução Francesa, em 1789 (JEAN, 2002). 3.3. Prenúncios da literatura infantil: um ilustrador de contos de fadas

O século XVII teve uma “evolução” no que diz respeito aos temas artísticos sobre a primeira infância (ARIÈS, 2011). Neste século, os retratos de crianças sozinhas se multiplicaram. E os retratos de família tenderam a se organizar em torno das crianças. Também neste século, houve muitas representações visuais de lições, leituras, desenhos e brincadeiras. Para Ariès:

a descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII, e sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e XVI. Mas os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se particularmente numerosos e significativos a partir do século XVI e durante o século XVII (ARIÈS, 2011, p.28). Apresentava-se no século XVIII na Europa, um tipo de

livro contendo ilustrações. Livros com narrativas escritas de contos de fadas – tendo sido codificados a partir de contos orais da Idade Média – que passaram a pertencer ao universo infantil. Muitos ilustradores contribuíram para configurar essa ficção junto aos autores dos livros.

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As ilustrações de contos de fadas de certa forma beberam em referências artísticas da Renascença e suas influências, apresentando padrões relativos à perspectiva, sombra, anatomia, naturalismo etc.

E em 1783, Diderot alterou a prensa manual de Gutenberg, dotando-a com placa de ferro e quadro de cobre – permitindo a impressão de formatos grandes (JEAN, 2002). Em 1807, a impressão mecânica foi provida de pressão, e em 1812, o sistema de plano se transformou para plano a plano, encontrando com cilindro. Em 1819 na Inglaterra, tornava-se automática a passagem de tintas pelo cilindro (JEAN, 2002).

Avanços tecnológicos e culturais dos séculos XVIII ao XIX, aliados a uma desenvolvida percepção de infância desde o século XVII, proporcionaram a produção de ricas ilustrações para os livros de contos de fadas.

3.3.1. Rédeas soltas à imaginação

As ilustrações para os livros de contos de fadas eram

repletas de simbolismos, acompanhando o lúdico de suas histórias. Seus ilustradores possuíam uma liberdade humorada e lírica. Seus desenhos construíam uma linguagem que muitas vezes apresentava estereótipos de padrões de comportamento, que podem ser melhor entendidos, pela comparação entre a Figura 7 e a Figura 8, a seguir.

Figura 7: Ilustração, primeiro volume, George Cruikshank, 1823.

Fonte: TATAR. Contos de fadas, 2004, p.20.

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Figura 8: Ilustração, segundo volume, George Cruikshank, 1823.

Fonte: TATAR. Contos de fadas, 2004, p.20

O ilustrador George Cruikshank (1729-1878) produziu desenhos “para a primeira tradução britânica dos contos de fadas de Grimm, ‘Contos populares alemães’” (TATAR, 2004, p.20). A cena do primeiro livro, a que nos referimos, representada na Figura 7, ilustra um contador de histórias numa taberna. Ele lê um livro de forma risonha, expressiva (tanto facial, como corporalmente). Seu público é heterogêneo no que diz respeito ao gênero e à idade. Esta espécie de contador não foi seguida por muitos ilustradores. A cena representada pela Figura 8, para o segundo volume do livro, foi considerada uma das cenas-padrão para narração de histórias. Apresenta uma avó, contando histórias para crianças, sem muitas gesticulações e em voz baixa.

Os ilustradores de livros de contos de fadas contavam histórias e influenciavam na leitura. No século XIX, uma gama deles produziu

[...]ilustrações que proporcionavam não só um prazer visual, como também vigorosos comentários sobre os contos. Era comum interromperem o fluxo da história em momentos críticos, oferecendo oportunidades para maior reflexão e interpretação (TATAR, 2004, p.14). O autor segue dizendo ser constatável que “Para muitos

de nós, os encontros mais memoráveis com contos de fadas aconteceram em livros ilustrados.” E as ilustrações ou “As figuras naquelas antologias escapavam ao tipo de censura e expurgo a que os textos eram submetidos” (TATAR, 2004, p.14).

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Walter Crane (1845 –1915) foi um dos que, no século XIX, produzindo belíssimas ilustrações, “legitimou a incursão de artistas sérios para ilustrarem contos de fadas”, tornando-se “um verdadeiro marco na qualidade estética dos livros infantis” (TATAR, 2004, p. 360). Para Crane:

O melhor de desenhar para crianças é que se pode dar rédea solta à imaginação e à fantasia, e há sempre espaço para o humor e até para o patético, tendo-se a certeza de ser acompanhado por aquele senso perene de deslumbramento e romance no coração da criança – um coração que, em alguns casos, felizmente, nunca cresce ou envelhece (CRANE apud TATAR, 2004, p.360-62). Crane afirmava que as crianças podiam “aceitar

representações simbólicas” e que elas “próprias, usam o desenho[…] como uma espécie de escrita com imagens, e acompanham avidamente uma história ilustrada” (p. 360-62). A Figura 9, ilustração de Walter Crane para a história A Bela e a Fera, escrita por Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, exemplifica a qualidade de seu trabalho gráfico.

Figura 9: Ilustração, Walter Crane, 1875.

Fonte: TATAR. Contos de fadas, 2004, p.79.

3.3.2. Lendo ilustração de Gustave Doré

Na Figura 10, a ilustração tem os traços de Gustave

Doré (1832-1883, França), ilustrador de contos de fadas. Promovem uma preocupação visual e movimento, visivelmente expressivo. O livro tem uma altura próxima das personagens, o que sugere que essas criaturas pertencem a ele. Caso tomássemos este livro para leitura, poderíamos supor que estas personagens saíram da história. Elas, em sua maioria, estão direcionadas para frente, o “gato de botas” aponta para uma direção e, utilizando o livro como guia, elas seguem o percurso.

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Nesta ilustração representada pela Figura 10, o peso das sombras no limite entre as personagens e o livro representa fendas e dobras. Tomamos como fenda e dobra elementos que funcionam como margens da linguagem. A primeira representa espaços vazios a serem preenchidos pelo leitor; a segunda alimenta a imaginação do leitor, sugerindo o que está velado. Neste caso, as margens poderiam ser o que o desenho pretende representar (a figura) e o próprio ato de desenhar (de produzir a representação). Um ponto de tensão entre a forma e o gesto. Nesta ilustração, as fendas entre cada personagem denotam uma densidade da obra que provoca um prazer. Os pontos de maior deleite da ilustração estão nas bordas, nas junções de linhas e sombras, e nas dobras formais.

Figura 10: Ilustração de Gustave Doré, 1861.

Fonte: TATAR. Contos de fadas, 2004, p.24.

Entre as personagens convive o orgânico, o entrelaçar de linhas e curvas, o irregular da força do lápis no papel. Em contrapartida, há uma harmonia nas folhas do livro, que tombam com maestria, indicadas por linhas uniformes que quase em silêncio fazem abrir o livro, proporcionando uma nova fenda, instigando a curiosidade do leitor a percorrer esse espaço e participar do livro.

Neste caso, assim como a narrativa verbal, uma ilustração também narra, e ela pode se tornar uma linguagem complementar, suplementar ou paralela ao texto escrito.

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3.4. Preâmbulos para o contexto brasileiro de livro-ilustrado infantil

Entretanto, no início do século XX, as vanguardas

europeias e o modernismo, viraram ao avesso teorias da representação. Na década de vinte do século XX, por exemplo, Monteiro Lobato, como escritor representante da literatura infantil brasileira, resolveu tirar o bolor dos contos de fadas, inserindo o maravilhoso em cenários brasileiros. Estimulava, assim, uma “ideologia e formação de identidade nacional”, recuperando três culturas presentes no Brasil: o “negro africano”, o “indígena autóctone” e o “branco europeu” (AZEVEDO, 1997, p. 167-168).

Atualizava para a época (déc. 1920-40) contos dos pioneiros e padrões da literatura infantil, tais como histórias de Charles Perrault (1628-1703, França), Hans Christian Andersen (1805-1875, Dinamarca), Lewis Carrol (1832-1898, Inglaterra), Irmãos Grimm (Jacob: 1785-1863 e Wilhelm: 1786-1859, Alemanha), Carlo Collodi (1826-1890, Itália), Frank Baum (1856-1919, Estados Unidos) e James Mathew Barrie (1860-1937, Escócia).

E a fim de atualizar tais histórias tradicionais, o escritor recontextualizou os contos de fadas para um público brasileiro, influenciado por ideias positivistas, naturalistas e posteriormente modernistas. Lobato soube atrair o público infantil, convidando artistas conceituados para ilustrarem seus livros, sendo muitos deles caricaturistas de revistas ilustradas das décadas de 20 e 30 do século XX. Tais artistas eram influenciados pelos movimentos artísticos de sua época.

3.4.1. Um ilustrador-designer

A partir deste olhar sobre um ilustrador-designer que

escreve por imagens, levando em consideração aspectos visuais da contemporaneidade, o sujeito pós-moderno e sua contextualização, o desenvolvimento das técnicas de impressão, a influência de movimentos artísticos e a proposta lobatiana de inserção do universo característico da literatura infantil europeia recontextualizada tanto verbal quanto visualmente, levantamos a hipótese de que há uma ilustração no livro infantil brasileiro que é Design, e que carrega representações próprias do campo.

Graça Lima e Roger Mello, ambos ilustradores-designers, são autores-pesquisadores que exemplificam a característica da ilustração como projeto gráfico, hoje. Para cada universo de discurso apresentado a partir do texto verbal, eles buscam por vezes, através de um Design

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Participativo ou a partir de um repertório cultural, estilos gráficos e técnicas de impressão e ilustração, maneiras de representar uma história em questão e com frequência geram novas possibilidades para representações gráficas.

O que chamamos de Design Participativo tem suas origens no Design Social, metodologia de aprendizagem surgida na década de 80 do século XX, no então Departamento de Artes e Design da PUC-Rio, coordenado pelos professores Ana Branco e José Luiz Ripper. Esta ramificação do Design propunha o trabalho com o afeto, e tinha numa tenda intitulada “Barraca” o seu “abrigo/objeto/meio de aprendizagem” para a “concepção, estrutura, utilização e concretização desta metodologia”, apontada na dissertação de mestrado de Heliana Pacheco (1996). Ela descreve como esta metodologia gerou desenhos coletivos, a partir da concepção do espaço projetual como “árvore”, em que o tronco é o movimento, os galhos os caminhos e os frutos geradores de novas “árvores” (PACHECO, 1996, p. 3,4).

Nessa metodologia, o que se propunha era que os alunos trabalhassem com “situações da realidade”, pois se acreditava que “a pesquisa direta, em contexto real”, se constitui como contribuição “não somente para estimular a criatividade e desenvolver o senso crítico, mas também ajuda o aluno a descobrir valores da sua própria cultura” (PACHECO, 1996, p. 1).

Rita Couto considera o Design Social um programa educacional inovador, acrescentando-lhe este enfoque: as “escolhas e decisões” de um projeto com base no Design Social “deverão ser resultado do trabalho participativo” (COUTO, 1991, Resumo). Para Rita, o “Design é basicamente um processo de interação social” (p.12). E afirma que a proposta do Design Social, de trabalhar com contextos reais e com necessidades deste contexto não se definiria apenas por aí. Esta metodologia, segundo Ripper, consiste

em introduzir nas etapas do projeto a participação efetiva da população alvo, e procura contornar a situação da população de usuários marginalizada em relação aos produtos a ela dirigidos (RIPPER apud COUTO, 1991, p.13). Ana Branco completaria tal raciocínio ao incluir que a

“participação de indivíduos e a expressão de seus desejos, fazem parte do modo de ver o objeto como fruto de um trabalho interativo entre designer e usuário” (COUTO, 1991, p.13).

Fui aluna de Heliana Pacheco, que, tendo sido minha primeira professora de projeto na PUC-Rio, ensinou-me a olhar para um projeto não pelo viés do problema e sim pelo “brilho no olhar” de um possível usuário. Como ilustradora

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de livros, percebo que esta metodologia insere o ilustrador no âmbito do Design.

Neste sentido, encontramos importância substancial no ilustrador de livros-ilustrados infantis que, ao despertar mensagens visuais para a história escrita, passa a potencializar novas possibilidades de leitura, incitando atualizações a partir das diferentes leituras que um texto propõe. O papel do ilustrador de livro-ilustrado infantil, percebido no estudo como um designer, será o de produzir ilustrações que carregam um discurso, um texto, um viés inclusivo, para proporcionar uma leitura crítica aprofundada e sensível. Logo, por exemplo, se o ilustrador brasileiro Roger Mello visita um manguezal e passa a conviver com crianças que nele habitam para ilustrar seu livro, ali está um projeto gráfico que aplica o Design Social, participativo, que lida com o objeto livro como uma “árvore”, e suas ilustrações como “galhos”, “ruas”, “bosques” que incluirão tanto os meninos do mangue quanto os meninos leitores de seus “manguezais imaginários”.

3.4.2. Que universo de discurso é esse?

Portanto, até que ponto os aspectos de representação

gráfica não se tornam particulares a cada caso de leitura literária, e seus respectivos universos de discurso? Um designer precisa, em primeiro lugar, conhecer o conceito do livro, a que público se destina, a quem ou a que a história se refere, em que contexto está inserido o livro como um todo, para procurar representar uma dada cultura, tempo e espaço em que o projeto se realiza. Acreditamos que isso esteja presente em alguns casos de livros-ilustrados infantis brasileiros contemporâneos. Desta forma, cabe a questão: não haverá uma narrativa nas ilustrações que se desvenda em elementos de uma linguagem visual aplicada na literatura? Não será o ato de, a partir de um repertório afetivo, nos debruçarmos sobre cada texto, contexto, estilo, um modo de ler uma ilustração em um livro-ilustrado infantil, no caso, brasileiro?

Desta forma, uma ilustração, mesmo que produzida para um público específico, inserida em um universo de discurso, isto é, um projeto gráfico será apenas potência, se não for lida. Ela pertence a uma instância do Design que é o Design na Leitura. Este carrega em si representações gráficas potenciais a serem atualizadas somente no ato de leitura. E também objetiva a leitura em peças de Design, isto é, propõe desenvolver a habilidade de ler aspectos gráficos contextualizados, narrativos, simbólicos, propondo um olhar crítico sobre eles.

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A literatura de contos de fadas foi um parâmetro para muitas das novas histórias infantis que surgiram no século XX, e isso não foi diferente no contexto brasileiro. Entretanto, este teve, e tem, suas particularidades. É do que trataremos no capítulo seguinte.

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