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Associação dos Promotores do Júri - Confraria do Júri Cadernos do Júri 3

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Associação dos Promotores do Júri - Confraria do Júri

Cadernos do Júri 3

Cadern

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Nº3

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Associação dos Promotores do Júri Confraria do Júri - é uma associação

civil, sem fins lucrativos, fundada em 3 de julho de 2006, com prazo de duração indeterminado e sede em Cuiabá-MT, cujos associados são membros do Ministério Público brasileiro. A sua Diretoria é eleita bianualmente.

A Confraria do Júri tem, entre outros objetivos e finalidades, o de promover os valores, princípios e a identidade cultural do Tribunal do Júri nacional.

A sua atual Diretoria (biênio 2013/2015) está em assim composta:

Presidente:César Danilo Ribeiro de Novais

Vice-Presidente:Samuel Frungilo

Secretário:Renee do Ó Souza

Tesoureiro:Luciano Freiria de Oliveira

ARevista Jurídica Cadernos do Júri é um periódico que objetiva

enriquecer o debate a respeito de assuntos relevantes e atuais ligados ao Tribunal do Júri, com o incremento da produção acadêmica através da divulgação de ideias e pontos de vistas jurídicos, além de agregar conhecimentos que subsidiem a ação dos operadores jurídicos, na tratativa de questões práticas e científicas enfrentadas no procedimento relativo aos processos da competência desse tribunal.

A obra é publicada pela Confraria do Júri – Associação dos Promotores do Júri e conta com o apoio da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso e da Associação Mato-grossense do Ministério Público.

A

Associação dos Promotores do Júri | Confraria do JúriRua Quatro, s/nº - Centro Politico e Administrativo - Cuiabá/MT

CEP: 78049-921 - Caixa Postal 10.016www.confrariadojuri.com.br

Apoio Cultural:

ASSOCIAÇÃO MATO-GROSSENSE DO MINISTÉRIO PÚBLICO

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Cuiabá-MTKCM Editora

2015

César Danilo Ribeiro de Novais - Organizador

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© 2015. Confraria do Júri / Escola Superior do Ministério Público

Revista Cadernos do JúriPublicação da Confraria do Júri

Nº 3 | 2015

Distribuição em todo o território nacional

Tiragem: 1.000 exemplares

Direitos reservados para os autores, protegidos pela Lei 9610/98.A originalidade dos artigos e as opiniões emitidas são de inteira responsabilidade de seus autores.

“Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio, sem a prévia autorização do(s) autor(es).”

Associação dos Promotores do Júri – Confraria do JúriRua Quatro, s/nº - Centro Politico e Administrativo - Cuiabá/MT

CEP: 78049-921 - Caixa Postal 10.016

Realização Editorial e ImpressãoKCM Editora & Distribuidora Ltda.

Av. Ipiranga 1322 - Bairro: PortoTel.: (65) 3624-3223

CEP: 78031-030 - Cuiabá/MTSite: www.kcmeditora.com.br

E-mail: [email protected]

Colaboradoresdeste Caderno

ALEXANDRE DE MATOS GUEDESPromotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso - Especialista em Direito Constitucional pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul - Especialista em Direito Penal pela Universidade de Cuiabá

ANTÔNIO RODRIGUES DE LEMOS AUGUSTOAdvogado – Jornalista - Assessor de Comu-nicação da Associação dos Promotores do Júri – Assessor de Comunicação da Associa-ção Mato-grossense do Ministério Público

ANTONIO SERGIO CORDEIRO PIEDADEPromotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso - Doutor e Mes-tre em Direito Penal pela PUC/SP - Profes-sor Adjunto de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT - Secretário Geral de Ga-binete do Ministério Público do Estado de Mato Grosso - Ex-Presidente da Confraria do Júri - Professor da Fundação Escola Su-perior do Ministério Público - Professor da Escola Superior da Magistratura do Estado de Mato Grosso

CAIO MARCIO LOUREIROPromotor de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso - Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina - Es-pecialista em Interesses Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo - Especialista em Direito Processual Civil pela Fundação de Ensino “Eurípides Soares da Rocha” (UNI-VEM) - Especialista em Direito Ambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso – Ex-Professor de Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito

CÉSAR DANILO RIBEIRO DE NOVAISPromotor de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso - Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso – Especialista em Direi-to Constitucional pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso – Presidente da Confraria do Júri – Editor do Blogue Promotor de Justiça – Autor do livro A defesa da vida no Tribu-nal do Júri

DANNILO PRETI VIEIRAPromotor de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso

FERNANDO MARTINS ZAUPAPromotor de Justiça do Ministério Públi-co do Estado de Mato Grosso do Sul – Foi Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Rondônia - Especialista em Direito Constitucional pela Fundação Esco-la Superior do Ministério Público de Mato Grosso do Sul

JOÃO BATISTA DE ALMEIDAProcurador de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso - Ex-Diretor da Fundação Escola Supe-rior do Ministério Público do Estado de Mato Grosso - Ex-Coordenador do CEAF e do CAOP do Ministério Públi-co do Estado de Mato Grosso – Ex-Pre-sidente da Confraria do Júri - Coorde-nador da Revista Jurídica do Ministério Público de Mato Grosso, n.ºs 1 a 6 - Co-ordenador da Revista Cadernos do Júri n.ºs 1 e 2

MÁRCIO FLORESTAN BERESTINASPromotor de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso

MÁRCIO SCHLEE GOMESPromotor de Justiça do Ministério Públi-co do Rio Grande do Sul - Especialista em Direito Constitucional pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul - Professor de Direito Penal

MAURO VIVEIROSProcurador de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso – Foi Corregedor-Geral do Ministério Público de Mato Grosso - Mestre e Doutor em Direito Constitucional, Professor na Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso – Foi Pro-motor de Justiça do Tribunal do Júri por mais de uma década – Idealizador da Confraria do Júri e seu Primeiro Presidente - Autor do livro Tribunal do Júri na Ordem Constitucio-nal Brasileira: um órgão da cidadania.

PAULO CÉSAR BUSATOProcurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná - Doutor em Problemas atuais do Direito Penal pela Universidad Pablo de Olavide, de Sevilha - Professor de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná

RÔMULO DE ANDRADE MOREIRAProcurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia - Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-gradu-ação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público) - Pós-gra-duado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal) - Especialista em Processo pela Uni-versidade Salvador – UNIFACS - Autor de diversas obras jurídicas.

SANDRO CARVALHO LOBATO DE CARVALHOPromotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Maranhão - Especialista em Direitos Difusos, Coletivos e Gestão Fiscal pela Escola Superior do Ministério Público do Estado do Maranhão

WESLEY SANCHES LACERDAPromotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso - Especialista em Ciências Penais pela Universidade de Cuiabá - Especialista em Direito Ambiental - Desenvol-vimento Sustentável pela Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público - Especialista em Direito Constitu-cional pela Faculdade de Direito da Funda-ção Escola Superior do Ministério Público

A849c Associação dos Promotores do Júri – Confraria do Júri Cadernos do Júri 3./ Associação dos Promotores do Júri – Confraria do Júri. Organizado por César Danilo Ribeiro de Novais. Cuiabá-MT: KCM Editora, 2015. 214p; 16 x 23 cm. ISBN 978-85-7769-187-6 1.Direito. 2.Tribunal do Júri. 3.Júri. I.Novais, César Danilo Ribeiro de.( org.). II.Título. CDU 34

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Sumário

Nota do organizador

Por uma nova exegese da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri – equívocos atuais da doutrina e jurisprudência e senso comum teórico dos juristas Alexandre de Matos Guedes

O Legislativo brasileiro e as propostas que alteram a competência do Júri Antônio Rodrigues de Lemos Augusto

Teses atentatórias à dignidade da mulher e o princípio da proporcionalidade na vertente da proibição da proteção deficiente Antonio Sergio Cordeiro Piedade

O aparte no Tribunal do Júri Caio Marcio Loureiro

Revisão Criminal contra condenação do Tribunal do Júri César Danilo Ribeiro de Novais

A prova indiciária e o legado da copa Dannilo Preti Vieira

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Nota do organizador

A Constituição Federal de 1988 declara ser a República Federativa do Brasil um Estado Democrático de Direito, cuja missão é realizar os postulados da democracia.

Essa democracia é representativa, que combina representação e participação popular direta, em que o titular do poder é o povo. Nessa espécie de regime político o poder é exercido por poucos em nome de todos.

É o povo que distribui o poder ao estabelecer seus representantes junto aos Poderes Executivo e Legislativo através do sufrágio universal. Isso, porém, não ocorre no Judiciário, já que seus membros são constituídos, em regra, por concurso público.

É, então, através da Instituição do Tribunal do Júri que ocorre a oxigenação democrática do Poder Judiciário, instância em que se vislumbra o julgamento popular em ação e o exercício público, ostensivo e transparente da justiça.

Não há nada mais democrático do que o poder exercido diretamente por seu titular. E é exatamente isso que ocorre no âmbito do Tribunal do Júri, espaço público em que povo é protagonista. Daí a grandeza da instituição.

Seguindo esse espírito democrático, é que temos a honra de apresentarmos mais um número da Revista Cadernos do Júri, inegável fonte de conhecimento e valiosa ferramenta para o exercício intelectual e profissional.

Nesta 3ª edição, variadas questões são tratadas com maestria por nossos colaboradores. Aspectos atuais sobre engenhos jurídicos umbilicalmente ligados à atuação no Tribunal Popular são alvos de análise criteriosa.

Não temos dúvida que a presente edição dará importante contribuição ao debate em torno do Tribunal do Júri.

O conteúdo desta publicação qualifica-se pelo valor dos textos e de seus autores, a quem agradecemos pela inestimável colaboração.

Certamente será de grande utilidade para os leitores e, mais ainda, para os que atuam no Tribunal Popular.

Boa leitura!

César Danilo Ribeiro de Novais

O jurado absolve o réu? Liberdade para qualquer motivação? Fernando Martins Zaupa

A desclassificação no Júri (§§4º e 5º, do art. 483, CPP) João Batista de Almeida

Exibição da prova no Tribunal do JúriMárcio Florestan Berestinas

Tribunal do Júri: uma análise pelo Direito Constitucional Márcio Schlee Gomes

O Júri e os sábios Mauro Viveiros

Homicídio mercenário e causas especiais de diminuição de pena. Um paradoxo dogmático Paulo César Busato

A intimação da decisão de pronúncia: editalícia ou pessoal? Rômulo de Andrade Moreira

Condenação criminal com base em indícios: possibilidade Sandro Carvalho Lobato de Carvalho

Argumentação jusfundamental - jurisprudência e configurações infundadas Wesley Sanches Lacerda

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11Por uma nova exegese da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri... | Alexandre de Matos Guedes

Alexandre de Matos GuedesPromotor de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso - Especialista em Direito

Constitucional pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul - Especialista em Direito Penal pela Universidade de Cuiabá

Por uma nova exegese da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri – equívocos atuais da doutrina e jurisprudência e senso comum teórico dos juristas

1. Introdução – 2. O Tribunal do Júri e o senso comum teórico dos juristas – 3. O conceito de

“soberania” no Tribunal do Júri - 4. Soberania constitucional e revisão criminal– 5. Conclusão

1 Introdução

Ao contrário do que proclamam os arautos do denominado “complexo de vira lata”, os quais pontificam que a única coisa boa existente apenas no Brasil é a jabuticaba, entendemos que em nosso país existem muitas coisas excelentes que são únicas ou típicas desta Terra de Santa Cruz e não apenas a fruta imortalizada por Monteiro Lobato em sua obra infantil.

Mesmo na área do Direito, onde sempre nos abeberamos de todo tipo de fonte norte-americana, inglesa, alemã, italiana, espanhola, francesa, portuguesa ou romana temos institutos genuinamente tupiniquins e bons – como, por exemplo, o nosso Ministério Público, sem qualquer similar planetário, no que se refere ao seu espectro de atribuições, poderes e garantias.

Entretanto, o tratamento jurisprudencial e doutrinário relativo aos poderes e soberania do Tribunal do Júri não é um desses bons institutos originários de nosso direito. Em nosso país as decisões do Conselho Popular sofrem um desprestígio aparentemente sem par nos demais ordenamentos com os quais ordinariamente costumamos nos comparar.

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1312 Por uma nova exegese da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri... | Alexandre de Matos GuedesCadernos do Júri | Nº 3 | 2015

De fato, parece que apenas nesta Terra de Santa Cruz os condenados pelo Tribunal popular saem livres após a decisão dos jurados; em outros sistemas e países, ainda que livre até o momento do julgamento, a decisão do Conselho de Sentença se apresenta como decisiva e de implementação imediata.

Desde a seminal decisão proferida em sede do Habeas Corpus Nº 84.078-7/MG, julgado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em 05 de fevereiro de 2009, em modificação a jurisprudência anterior (a qual estabelecia que os recursos especial e extraordinário não impediam a execução da sentença criminal) passou-se a entender que o réu, salvo situação excepcional, só pode ser preso após o trânsito em julgado da sentença condenatória, ou seja, após esgotados todos os recursos previstos no ordenamento jurídico.

Essa decisão, hoje aceita de forma pacificada pelos Tribunais de todo o país, produziu diversos efeitos deletérios, sendo que a respeito da maior parte dos quais não nos deteremos aqui, com exceção de um, que é a verdadeira razão do nosso artigo, isto é, o fato de que agora as decisões do Tribunal do Júri, soberanas nos termos da Constituição, não o são de fato, eis que podem ser adiadas indefinidamente, às vezes permanentemente, quando a demora dos julgadores profissionais é de tal monta que leva à prescrição da pretensão executiva da pena decidida pela Corte Popular.

O prefalado julgado paradigma do Supremo Tribunal Federal, a propósito, foi tomada em relação a um feito concernente ao Tribunal do Júri.

Essa concepção do tempo de implementação das decisões judiciais condenatórias apenas depois do trânsito em julgado acaba por gerar uma série de aberrações que conduzem ao descrédito do próprio Poder Judiciário.

Verifique-se, por exemplo, o famoso caso “Pimenta Neves”.

O referido processo é paradigmático das contradições e colisões decorrentes da decisão paradigmática citada. Como é público e notório, tratou-se de processo de crime de homicídio onde um famoso jornalista matou a tiros sua ex-namorada. Apesar da inexistência de dúvida quanto à autoria do delito – de resto admitida pelo próprio réu, o mesmo, por força de seus sucessivos recursos à decisão do Conselho de Sentença que o condenara, só foi efetivamente preso vários anos depois do crime (mais precisamente, o fato ocorreu no ano de 2000; o julgamento pelo júri ocorreu em 2006; e a última decisão do STF aconteceu em 2011 – ou seja, mais de uma década após o fato).

É interessante notar que ao decidir pela aplicação da pena no caso acima mencionado, os Ministros do Supremo reconheceram as dificuldades de se cumprir a pena aplicada, em virtude dos sucessivos recursos e os problemas que isso acarreta especialmente

em relação ao longo tempo decorrido desde o crime e da condenação pelo júri1; de qualquer modo, mantiveram o entendimento aqui do acórdão já citado.

Verifica-se o quanto a situação em questão colide com a concepção que se faz, ao menos em tese, do que é Justiça, na medida em que não se compreende porque um cidadão que cometeu um crime confesso e pelo qual foi devidamente condenado pelo órgão soberano do judiciário encarregado de tal função, não possa de imediato cumprir a pena que lhe foi destinada.

Imagine-se o que devem ter pensado os jurados quando, após terem condenado um homem, o veem saindo junto com eles do fórum, livre, leve e solto, como se diz.

É preciso lembrar que os jurados, diferentemente do que ocorre com a maioria dos julgamentos feitos por magistrados profissionais, não proferem suas decisões no interior de seus gabinetes; eles tomam suas decisões de frente para o réu, que também os encara. E mais: ao contrário dos juízes profissionais os componentes do Tribunal popular não possuem para a sua proteção e de suas famílias, o aparato protetivo do Estado; após o veredicto, voltam às suas casas e atividades normais, à mercê de eventuais vendettas.

Não é de surpreender assim que o posicionamento jurisprudencial originado do julgado acima mencionado contribua para prejudicar o prestígio e a eficácia do Tribunal do Júri e do próprio Judiciário – pois dentro deste estado de coisas, o próprio jurado teria de ser compreendido se pensasse que sua decisão tivesse pouca importância, em face da inexistência de qualquer efeito concreto imediato em caso de condenação.

Tal situação apenas se agrava em caso de réus dotados de poder, seja econômico, seja político, seja criminoso (especialmente organizado), em relações a qual a insegurança do jurado aumenta na medida em que, por não confiar que o réu efetivamente irá para a prisão, mesmo que seja por ele condenado para tanto, simplesmente opte pela absolvição, que lhe trará menos riscos.

Anote-se que um dos primeiros fundamentos de qualquer sistema judicial adequado é a garantia da segurança e da tranquilidade de seus juízes; se isto não ocorre, temos mais do que o risco, mas a probabilidade de que as decisões do Conselho de Sentença sejam tomadas de maneira a prejudicar o interesse público, especialmente no caso da chamada “criminalidade dos potentes”, conforme expressão cunhada pelo jurista Walter Maierovitch.

Sabemos que o direito não pode ser aplicado com bases meramente consequencialistas, isto é, usarmos supostos efeitos de certas posições jurídicas como elementos de deslegitimação das mesmas. Em outras palavras, devemos interpretar

1 Nesse sentido cf. http://www.cartacapital.com.br/politica/apos-11-anos-justica-determina-prisao-de-pimenta-neves. Pesquisa-do em 08 de agosto de 2014.

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1514 Por uma nova exegese da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri... | Alexandre de Matos GuedesCadernos do Júri | Nº 3 | 2015

o ordenamento jurídico da forma como ele está efetivamente posto e não da maneira como gostaríamos que fosse, de acordo com a nossa concepção pessoal.

Mas não podemos olvidar que os problemas acima descritos interferem no cotidiano de nossos fóruns e Júris; a liberdade do réu mesmo após a condenação pelos jurados acaba por instilar uma sensação de impunidade que torna ainda mais complexa a aplicação da Justiça.

Não se pode subestimar os efeitos, para a legitimação do sistema de Justiça, de que a mesma deve se apresentar como adequada à segurança dos cidadãos.

Não se trata de buscar o estado policial e a prisão antecipada da pena para todo e qualquer indivíduo acusado, mas de assegurar que os mecanismos constitucionais de realização da Justiça sejam realizados de forma a atender às necessidades da sociedade.

Tal concepção não é nova e nem fruto de empedernidos extremistas: O próprio BECCARIA2, pai do Direito Penal moderno e humano, já pontificava a esse respeito:

Disse que a rapidez da penalidade é útil; é certo que, quanto menos tempo passar entre o crime e a pena, tanto mais ficarão compenetrados ficarão aos espíritos da ideia de que não existe crime sem castigo; tanto mais se acostumarão a julgar o crime como a causa da qual o castigo é o efeito necessário e inelutável.É, portanto, da maior importância castigar rapidamente um delito cometido, se se desejar que, no espírito inculto do populacho [isto é, a sociedade na linguagem de um nobre do século XVIII], a pintura atraente das vantagens de uma atitude criminosa desperte de pronto a ideia de um castigo inevitável. Uma penalidade muito retardada torna menos estreita a união dessas duas ideias: crime e punição. Se o suplicio de um réu provoca então qualquer impressão, é apenas como espetáculo, pois apenas se apresenta ao espectador quando o horror do crime, que ajudou a fortalecer o horror do crime, que ajudou a fortalecer o horror da punição, já está esmaecido nos sentidos.

Entretanto, o que queremos dizer aqui, e esta é a finalidade deste artigo, é que, ao menos nos casos afeitos ao Tribunal do Júri, a aplicação da pena em caso de condenação deve ser aplicada de imediato, ainda que pendentes recursos, em face da soberania dos veredictos, estabelecida constitucionalmente, o que coloca esse tipo de processo fora do regime comum recursal.

Isso porque, ao estabelecer a soberania dos veredictos, a Carta Magna estabeleceu um tipo de decisão que por ser intocável, em seu mérito, pelos demais órgãos do Poder Judiciário – mesmo o Supremo Tribunal Federal – deve ser aplicada imediatamente,

2 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das penas. São Paulo: Hemus Editora, 1983, ps. 55-56.

perdurando até que seja eventualmente cassada por decisão recursal, que se limitará à matéria processual.

Para sustentar esse entendimento é que passamos a desenvolver os argumentos que se seguem, com o intuito de restaurar a verdadeira feição e poder do Tribunal do Júri e de reparar os problemas acima identificados, decorrentes do regime jurisprudencial - HC Nº 84078/200.

2 O Tribunal do Júri e o senso comum teórico dos juristas

Como define STRECK3, o senso comum teórico dos juristas consiste em um

(...) conjunto de crenças, valores e justificativas por meio de disciplinas específicas, legitimadas mediante discursos produzidos pelos órgãos institucionais, tais como os parlamentos, os tribunais, as escolas de direito, as associações profissionais e a administração pública. (…) Por último, o senso comum teórico cumpre uma função politica, como derivativa das demais. Essa função se expressa pela tendência do saber acumulado em reassegurar relações de poder.

Se o ordenamento jurídico brasileiro é compreendido e aplicado dentro desse senso comum acima descrito, especialmente no que se refere a uma ideologia de poder a ser conservado e exercido apenas por seus componentes e iniciados, fica evidente que o Tribunal do Júri se apresenta como um “corpo estranho” dentro dessa cultura, na medida em que, por ter as suas decisões tomadas, de forma soberana por pessoas (ao menos a princípio) alheias ao mundo do direito, as mesmas escapam, ao menos em tese, desse controle do poder de aplicação da violência legítima do Estado.

Não surpreende assim, que o “senso comum” mencionado buscasse, através de seus componentes, meios e discursos aptos a sustentar posições que submetessem, para todos os efeitos práticos, ao arrepio do texto constitucional, as decisões do Tribunal popular ao talante dos magistrados “profissionais” - como ocorreu pela sistemática estabelecida pelo acórdão acima citado.

3 STRECK, Lenio Luiz. Compreender Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, ps. 11 e 12.

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Ocorre que o Tribunal do Júri é instituição que representa uma verdadeira “cabeça-de-ponte” da sociedade civil dentro do Poder Judiciário, na medida em que é a única das poucas instituições previstas na Constituição brasileira que efetivamente funciona de maneira a permitir que pessoas alheias à carreira da magistratura julguem outras pessoas acusadas de crimes, de forma a condená-las ou absolvê-las das imputações que lhe são colocadas4.

Embora não nos esqueçamos – e concordemos – com a crítica de STRECK5 de que o perfil do jurado comum é o de pertencer às camadas superiores da sociedade, o fato é que o Tribunal Popular é, por excelência, terreno da justiça cidadã, eis que o corpo de jurados é composto de pessoas sem conhecimento da ciência jurídica (ao menos em tese).

Diferentemente de outros países, onde o Júri é considerado como parte essencial do funcionamento da Justiça (por exemplo, nos Estados Unidos o conselho de sentença é forma normal de julgamento de ações cíveis e criminais), como ensina GODOY6, no Brasil o Conselho Popular sempre foi tratado como um “corpo estranho” pela cultura jurídica.

Não é de se admirar o estranhamento do Tribunal Popular no imaginário comum de nossos juristas, na medida em que, como se depreende da lição fundamental de FAORO7, a sociedade brasileira sempre foi gerida por estamentos – entre os quais se situam aqueles integrados pelos operadores do direito, notadamente a magistratura – que por serem de feição autocrática não se coadunam com a participação autônoma da população em seus negócios e atribuições.

Assim sendo, não causa espécie que o poder estamental, de forma expressa nos períodos declaradamente autoritários, como na Carta de 1937, e de maneira implícita em períodos de normalidade democrática formal, como nos dias atuais, busque diminuir, mediante a formulação de teses jurídicas e da construção de uma jurisprudência (sem modificar os textos legais, especialmente os de caráter constitucional, mantendo assim a aparência dos institutos criados pelo constituinte originário) a importância e alcance das decisões proferidas pelo Tribunal Popular.

4 A Constituição de 1988 prevê outro instituto que prevê a participação de cidadãos comuns em funções de resolução de con-flitos, mas este nunca foi posto em prática; falo dos “juízes de paz” previstos no art. 98, inciso II da CF, que prevê a criação de tais cargos, a serem eleitos diretamente pela população, com mandatos de quatro anos, para realizarem, além das funções tradicionais de tal função (como a celebração de casamentos) exercerem “funções conciliatórias”; esse dispositivo, embora obrigue a União, os Estados e o Distrito Federal a instituir de tais funções (eis que o texto em questão é de caráter imposi-tivo e não facultativo) é como se não existisse, permanecendo os juízes de paz em suas funções tradicionais. A resistência em fazer implementar esse instituto processual demonstra o posicionamento aqui posto; basta comparar com o Juizados Especiais, órgãos do Poder Judiciário profissional que foram grandemente ampliados, inclusive quanto á sua competência ao longo dos últimos anos, até mesmo por emendas à Constituição.

5 STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Juri, Simbolos e Rituais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 3ª ed., 1998, p. 81.

6 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito nos Estados Unidos. São Paulo: Manole, 2004, ps. 23 e 33.

7 Nesse sentido cf. FAORO, Raymundo. Os donos do poder. São Paulo: Globo; Publifolha, 10ª ed., 2000, Vol. 2., p. 372 e seguintes.

A desconfiança da elite jurídica tradicional para com o Júri é bastante visível quando se verifica que um dos mais famosos erros judiciários da história do Brasil se deu através da decisão, por duas vezes seguidas, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais em condenar os Irmãos Naves8, que tinham sido, por sua vez, duas vezes absolvidos pela Corte Popular em uma cidade em que tanto os réus como a suposta vítima eram pessoas conhecidas da comunidade onde foi selecionado o corpo de sentença e que conheciam as circunstâncias do caso, especialmente as que causaram a prisão dos acusados e a forma ilícita como foram colhidos os depoimentos e supostas provas do caso.

A segunda condenação dos irmãos, como se sabe, foi decidida quando a prefalada Carta de 1937 estava em vigor, de maneira que a soberania dos veredictos do Júri havia sido suprimida; o aparecimento da suposta vítima tempos depois, viva e gozando de boa saúde, apenas pôs em relevo não apenas o erro judiciário em si, mas a autossuficiência dos operadores jurídicos que trabalharam naquele feito e que acreditavam produzir um saber melhor que o dos jurados.

Neste sentido é a palavra expressa de José Frederico Marques, uma dos maiores processualistas brasileiros do século XX, que escreveu toda uma obra para criticar o Tribunal Popular9. Segundo o grande jurista10 (não o deixa de ser em virtude de sua posição neste caso em particular, ressalva a se fazer nos tempos que vivemos, onde a mera discordância se transforma em ódios e rancores eternos):

Colocado assim entre dois extremos, o juiz de carreira, afeito em seu oficio, só tem do que vangloriar-se: temem-lhe as decisões os que em nome das complacências inexequíveis ou das severidades iníquas, não querem a justiça serena, imparcial e segura, onde, sob o império do direito e da lei, cada um recebe o que merece. O júri e os tribunais de exceção constituem os polos da justiça sem lei. Entre eles, incarnando (sic) os ideais do jus suum cuique tribuere, coloca-se o juiz togado, com a rigidez e o formalismo que tanto criticam, mas que no fundo traduzem a garantia do cumprimento da lei e do respeito ao direito instituído.

Mesmo nos dias de hoje, onde o Tribunal de Júri assumiu, desde 1988, foros de garantia fundamental estabelecida no art. 5º, XXXVIII da Constituição Federal e nessa qualidade assumir foros de instituto irreversível cuja supressão não pode sequer ser objeto de emenda pelo constituinte derivado de acordo com os ditames do art.

8 Para maiores detalhes a respeito desse caso, cf. ALAMY FILHO, João. O Caso dos Irmãos Naves. Belo Horizonte: Del Rey, 3ª ed., 1993.

9 MARQUES, José Frederico. O Júri no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2ª edição, 1955.

10 Op. cit. ps. 48/49.

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1918 Por uma nova exegese da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri... | Alexandre de Matos GuedesCadernos do Júri | Nº 3 | 2015

60, parágrafo 4º, IV da mesma Carta Magna ainda existem vozes que clamam pela inferioridade do Júri em face do juiz togado11.

Isso demonstra que apesar de se constituir em cláusula pétrea de nossa Constituição, a ideologia da superioridade do operador jurídico tecnicamente formado é muito forte em nosso país, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, por exemplo, onde a Instituição do Júri, nas palavras de VIVEIROS12, é considerada como

(...) uma das mais importantes salvaguardas da democracia na América do Norte, não só para a administração da Justiça Criminal, como para o espírito cívico e para a consciência jurídica do povo. Daí se dizer, nos Estados Unidos que o Júri faz parte da educação dos cidadãos (…)”.

Ainda, nas palavras do mesmo autor13, a Corte Popular é a “pedra angular da ideia de Justiça nos Estados Unidos”.

Se nos Estados Unidos o Júri é parte indissociável da própria ideia de Justiça, o mesmo, obviamente, não acontece no Brasil, onde a ideologia jurídica é extremamente dogmática e elitizante, típica de um ambiente onde o poder é exercido autoritariamente, como se disse acima, pelos estamento historicamente incrustado na cultura nacional. Neste passo é interessante a lição de STRECK14:

Além de todos os aspectos, cabe frisar, ainda, que a discriminação do júri e, por consequência, dos jurados, tem uma relação muito íntima com o que se pode chamar de cientificismo, ou seja, usar a ciência ou colocar algo como científico para dar status de verdadeiro e digno. O julgamento proferido pelos jurados não teria esse status de pureza, de cientificidade. Afinal, segundo uma expressiva parcela da dogmática jurídica, os jurados, sendo leigos, julgam segundo seu senso comum, além de se deixarem influenciar pela ‘fácil retórica’ (…)

Percebe-se, pois, como a ciência, detentora do discurso da verdade, passa a ter função de legitimar, ideologicamente, o judiciário togado, colocando o Tribunal do Júri como

11 Neste sentido, cf. artigo de autoria de KIRCHER, Luís Felipe Schneider. Visão crítica acerca do tribunal do júri. In http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=3089. Acessado em 31 de julho de 2014.

12 VIVEIROS, Mauro. Tribunal do Júri na Ordem Constitucional Brasileira: Um Órgão da Cidadania. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1ª ed., 2003, p. 114.

13 Op. e página citadas.

14 STRECK, Op. Cit., ps. 79/80.

‘não científico-desviante’. Mariza Correa traz importante contribuição, aludindo que os argumentos favoráveis ou contrários à manutenção do júri ou à sua representatividade popular são sempre argumentos políticos ou ideológicos, ou seja, levantados a partir dos interesses dos envolvidos na discussão – seja em termos de sua função e atuação no júri ou fora dele – e argumentos fundados na visão de mundo dos debatedores.”

Anote-se que sendo uma posição política e ideológica, a ideia da inferioridade da Corte Popular fica internalizada na cultura e da psique dos operadores jurídicos que operam na lógica dogmática-estamental, de modo que nem mesmo a irreversibilidade da instituição do Júri no direito positivo impede que se tomem decisões de modo a na prática negar a letra da garantia constitucional expressada no prefalado art. 5º, XXXVIII, especialmente a estabelecida na alínea “c” do referido dispositivo, qual seja, o da soberania dos vereditos da Corte Popular – verdadeiro ponto fundamental dessa instituição.

Obviamente, em face do comando constitucional expresso, a posição ideológica de redução inconstitucional do poder do Tribunal do Júri não se faz de forma aberta, mas de maneira sub-reptícia, mediante a utilização de mecanismos que na prática servem para que o julgador – que é a autoridade efetivamente responsável pela conversão do texto jurídico em norma, de acordo com a lição de GRAU15 – exerça de forma deliberada as suas preferências pessoais divorciadas do real significado que o ordenamento empresta ao instituto que é objeto de uma decisão específica, que no caso em tela é justamente o alcance e natureza das decisões da Corte Popular.

Esses mecanismos, consoante se verifica da lição de STRECK, seriam, por exemplo, o “pamprincipiologismo”16 e a falsa “ponderação de valores”17 que servem como álibis para que o julgador decida qualquer coisa de qualquer maneira, de acordo com a sua vontade particular.

Obviamente, tal procedimento além de realizar a construção de uma ideologia de redução do poder do Tribunal do Júri, implica em aumento do poder dos operadores do direito e dos órgãos judiciários “tradicionais” que assim mantém a última palavra de fato sobre o real cumprimento das decisões proferidas pelo Conselho de Sentença, notadamente as de caráter condenatório.

15 GRAU, Eros Roberto. Porque tenho medo dos juízes. São Paulo: Malheiros, 6ª ed., 2013, p. 16.

16 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 50. Segundo o referido autor, o Pamprincipiologismo se caracteriza por ser “um fenômeno marcado pela proliferação de princípios, que consolidam uma leitura equivocada do conjunto principiológico abarcado pelo Constitucionalismo Contemporâneo em que os órgãos julgadores elaboram prin-cípios ad hoc sem qualquer normatividade de forma discricionária”.

17 Neste sentido, cf. STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme a minha consciência?. Porto Alegre: Livraria do Ad-vogado, 2010, p. 49 e seguintes.

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2120 Por uma nova exegese da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri... | Alexandre de Matos GuedesCadernos do Júri | Nº 3 | 2015

A soberania não é assim. Como se depreende do conceito acima mencionado, ela é exclusiva e não permite que outros interfiram em suas decisões, ainda que atuando sucessivamente na mesma causa.

Então a soberania do Tribunal do Júri é de tal ordem que não pode sofrer interferência, em seu mérito de quaisquer outros órgãos judiciários, inclusive o Supremo Tribunal Federal; isso é aparentemente pacífico.

O problema é que se utilizando do senso comum teórico dos juristas, bem como do cultural preconceito contra o Conselho Popular, a jurisprudência vigente surgida do Supremo Tribunal Federal entendeu de forma contrária à Constituição limitar a soberania do Tribunal do Júri, estabelecendo em essência, que as decisões deste não são imediatamente aplicáveis, mas dependem de uma série de recursos aos órgãos tradicionais da magistratura profissional.

Ora, se o conceito de soberania do júri implica em dizer que seus veredictos – no que se refere à decisão de mérito - não podem ser modificados pelos tribunais comuns isso também é verdadeiro quanto aos efeitos imediatos dos mesmos veredictos; ou seja, quando o réu é condenado sua pena se aplica de imediato com a prisão do mesmo ao término da sessão, da mesma forma que ocorre quando ele é absolvido.

O que defendemos aqui é que o conceito constitucional de soberania do Tribunal do Júri é de tal ordem que, como ocorre no resto do mundo, suas decisões tem caráter final e devem ser imediatamente aplicadas, para o bem ou para o mal.

As decisões dos Tribunais do Júri são apeláveis, sem dúvida; mas possuem apenas o efeito simplesmente devolutivo, e mesmo este é parcial e limitado à revisão de questões processuais que podem nulificar o veredicto ou manifesto erro que pode levar a novo julgamento por novo Conselho de Sentença; mas até que este último se pronuncie, no primeiro ou último caso fica valendo a decisão anterior.

Ao contrário do que estabelece a doutrina majoritária, representada por NUCCI19, que entende que a apelação do veredicto no Júri tem efeito suspensivo em face do princípio da presunção de inocência este não se aplica nos feitos de competência do Conselho Popular da mesma forma que se aplica nos demais processos criminais, em face justamente da soberania constitucional dos vereditos.

Um exemplo de como o Tribunal do Júri se diferencia dos demais feitos penais vem da própria questão da publicidade da motivação e das decisões dos juízes; enquanto nos juízos ordinários a publicidade, tanto da sentença, quanto das razões para decidir (e a própria existência delas), é a regra (art. 93, inciso IX da CF) sob pena de nulidade,

19 NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 401.

A conclusão de que existe no Brasil uma concepção reducionista do Tribunal do Júri, de forma a diminuir os poderes conferidos a este último pela Constituição se demonstra pelo simples fato de que por uma série de decisões jurisprudenciais – tomadas por Juízes tradicionais - se vedou a efetividade e eficácia das decisões condenatórias da Corte Popular, as quais são adiadas, frequentemente até a inviabilização da aplicação da pena por decisões de Tribunais que reconhecidamente não podem intervir no mérito das decisões do Conselho de Sentença.

Um soberano que não tem o poder de ver aplicadas de forma imediatas as suas decisões não o é de fato; assim urge a necessidade de uma rediscussão a respeito do papel e poderes do Tribunal do Júri e da limitação dos poderes do judiciário tradicional a fim de se cumprir a letra da Constituição e o interesse público que decorre de tal cumprimento.

3 O conceito de “soberania” no Tribunal do Júri

Segundo a lição de MATTUCCI18, a soberania é instituto que “(...) pretende ser exclusivo, onicompetente e onicompreensivo, no sentido de que somente ele pode intervir em todas as questões e não permitir que outros decidam (...)”.

Ora, quando comparamos tal concepção com a da independência funcional, verificamos que a soberania dos vereditos do júri encerra uma maior poder e capacidade que a segunda, prerrogativa inerente à Magistratura e ao Ministério Público.

A independência funcional do magistrado “profissional” - equivalente a do Ministério Público - por sua própria definição é contida dentro dos limites de atuação do próprio agente politico em questão. Em outras palavras, dentro dos limites do ordenamento ele tem poder de decisão que não pode sofrer interferências externas.

Mas – e isso é importante – após exaurida a sua participação dentro do processo, os efeitos da independência se esgotam e o agente politico dotado de competência ou atribuição para atuação sucessiva no mesmo caso (outro juiz ou membro do Ministério Público) assume suas funções na demanda e pode, exercitando sua própria independência, modificar radicalmente o posicionamento do magistrado (sentado ou em pé) que o antecedeu.

18 MATTEUCCI, Nicola. Soberania. In Dicionário de Politica. Vol. 2. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUI-NO, Gianfranco (Coord.) Brasília e São Paulo: Imprensa Oficial do Estado e Editora UNB. 5ª ed., 2000, p. 1180, 1 col.

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2322 Por uma nova exegese da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri... | Alexandre de Matos GuedesCadernos do Júri | Nº 3 | 2015

no Conselho popular temos o contrário, ou seja, o sigilo das votações de maneira a não se saber, ao menos teoricamente, que jurado votou a favor ou contra e muitos menos as razões que levaram a isso (art. 5ª, inciso XXXVIII, alínea “c” da mesma CF). Neste caso, ao contrário da regra geral, a quebra do segredo leva à nulidade da decisão.

As últimas reformas infraconstitucionais da legislação do Júri só fizeram aumentar esse sigilo e segurança, ao impedirem, por exemplo, a ocorrência de veredictos unânimes, uma vez alcançada a maioria absolutória ou condenatória (art. 483, §1ª e §2º do Código de Processo Penal em sua atual redação).

Não haveria qualquer sentido em se estabelecer a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri se eles pudessem ser de forma indefinida procrastinados, porque aí já não seriam por sua própria definição, soberanos.

A interpretação do princípio da presunção da inocência não pode ser aplicado de forma isolada e indistinta para todo e qualquer tipo de caso criminal sem levar em consideração as peculiaridades do Tribunal Popular já explanadas acima. Como ensina BULOS20:

(...) a Constituição não deve ser interpretada em tiras, em pedaços ou porções isoladas do todo. Isto porque o Direito Constitucional possui a índole integrativa, configurando um Direito Político ou Direito do Estado. É, portanto, um Direito Síntese e cumpre ser observado em suas múltiplas conexões, em seus aspectos teleológicos e materiais, pois consigna expressão da vida, dos fatos concretos que circunscrevem a realidade da existência humana.

Não haveria qualquer sentido na adoção do instituto da “soberania dos veredictos” pela Constituição se o objetivo não fosse, justamente, estabelecer a distinção dos efeitos dessas decisões das demais decisões dos juízos ordinários. Aí cabe lembrar a clássica advertência de MAXIMILIANO21:

Pode uma palavra ter mais de um sentido e ser apurado o adaptável à espécie, por meio do exame do contexto ou por meio de outro processo; porém a verdade é que sempre se deve atribuir a cada uma a sua razão de ser, o seu papel, o seu significado, a sua contribuição para precisar o alcance da regra positiva.

20 BULOS, Uadi Lammêgo. Manual de Interpretação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 45.

21 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 9ª ed., 1979, p. 250.

Fica evidente portanto a excepcionalidade das decisões condenatórias do Júri em relação às decisões de direito comum, no que concerne à sua imediata aplicação até que sobrevenha eventual decisão anulatória do julgamento, em caso de falha processual, ou que seja substituída por outra decisão de outro conselho, no caso de se considerar, de acordo com a lei ordinária, que a decisão contrariou a prova dos autos.

Como esta última hipótese interfere diretamente com o mérito da decisão do Conselho de Sentença, a repetição do julgamento é até possível, mas deve ser frisado que, em face da inexistência de efeito suspensivo, a decisão anterior prevalece até que seja modificada, ou confirmada, por outro conselho dotado da mesma soberania constitucional.

4 Soberania constitucional e revisão criminal

A concepção aqui posta da natureza e alcance da soberania dos veredictos pelo Tribunal do Júri não é, ao contrário do que possa parecer, algo simples de se aplicar, na medida em que exige a quebra de vários paradigmas do pseudogarantismo que predomina no direito penal e processual brasileiro, que possui alguns mantras, como “princípio da presunção da inocência” como se o mesmo fosse algo absoluto e infenso a quaisquer interpretações diferentes do que professam os arautos desse dogma, a respeito do qual zelam, como os antigos fariseus, atentos à letra e não ao conteúdo dos textos que dizem seguir.

Um desses paradigmas seria o cabimento, em relação às decisões do Tribunal do Júri, da revisão criminal.

A revisão criminal não é um instituto constitucional, mas sim modalidade processual de impugnação autônoma de sentença transitada em julgado, como ensinam GRINOVER, GOMES FILHO e FERNANDES22, e que tem como base a legislação infraconstitucional, mais precisamente o Código de Processo Penal.

Uma vez que partimos do princípio de que a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri é preceito constitucional denota-se que a decisão da Corte Popular não pode ser desconstituída por meio processual de caráter ordinário, ainda que de competência originária de Tribunal de segunda, superior ou última instância.

22 GRINOVER, Ada Pellegrini, GOMES FILHO, Antônio Magalhães e FERNANDES, Antônio Scarance. Recursos no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª ed., 2001, p. 307.

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2524 Por uma nova exegese da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri... | Alexandre de Matos GuedesCadernos do Júri | Nº 3 | 2015

Ainda que se aceitasse a teoria de NUCCI23 (com a qual não concordamos, diga-se) que a revisão criminal tem um fundamento constitucional, ainda que indireto e implícito decorrente de seus termos, especialmente os artigos 5º, inciso LXXV e seu § 2º e 102, inciso I, alínea “j”, temos ainda que fazer a adequada interpretação sistêmica acima descrita, pela qual esses dispositivos teriam de ser harmonizados aos poderes soberanos do veredicto do Júri, que implicam necessariamente na compreensão de que esse tipo de decisum só pode ser modificado, em seu mérito, por outra decisão proferida por outro Conselho de Sentença.

Neste caso, como fazer em casos extremos, onde fique estabelecido o erro judiciário, como no exemplo acima citado dos irmãos Naves, onde não havia verdadeiramente vítima?

Penso que nestes casos extremos, não se pode simplesmente ir pelo caminho mais fácil – e equívoco – da revisão criminal, pois ela implica, como se disse, em se utilizar meios infraconstitucionais para desconstituir autoridade constitucionalmente proferida, havendo aí, portanto, problema de caráter hermenêutico e metodológico que não se pode desprezar, qual seja, a integridade da Carta Magna e de seus poderes como elemento basilar do ordenamento jurídico.

Aparentemente, neste tipo de situação, teríamos de usar meio constitucional para lidar com problema constitucionalmente fundamentado; em outras palavras, o Habeas Corpus, aí considerado em sua real faceta de remédio heroico.

Em casos de evidente erro judiciário cometido pelo Tribunal do Júri, em sentença transitada em julgado, a impetração de Habeas Corpus perante o Juízo de Superior Instância ao do Juízo da Execução poderia servir para dar liberdade ao condenado (cumprindo-se literalmente a finalidade desta ação mandamental) e nulificar não a decisão do Júri, mas a sentença de pronúncia, pela falta de requisitos suficientes de autoria ou materialidade para a subsistência desta última, de forma a criar nulidade processual dos atos subsequentes, inclusive o da sessão em plenário.

Diga-se que esta concepção não implica em dizer que consideramos como correta a atual abrangência que se dá atualmente ao Habeas Corpus, tornado um “mega recurso” para se questionar absolutamente tudo no processo penal; há que se retornar à concepção da finalidade extraordinária dessa ação constitucional, que foi criada para tutelar a liberdade física do cidadão vítima de abuso de autoridade e não como meio de tumultuar toda e cada etapa do processo penal, levando-o frequentemente à sua inviabilização. Mas esse é um tema para outro trabalho.

Alguns poderiam dizer que a troca de meios de impugnação da sentença transitada em julgado aqui preconizada seria inútil, em face da similaridade de resultados; não se pensa

23 Op. cit. p. 450.

assim, pois nunca é demais se trabalhar pela interpretação que preconize o papel superior dos institutos constitucionais em prol da harmonia e eficácia do ordenamento jurídico.

5 Conclusão

Como ensina NASSIF24:

Não hesito em sustentar que, melhor que o juízo monocrático, expressão da autoridade oficial, deve julgar o ato humano de violência contra o bem mais precioso (vida) carregado de emocionalidade ou envolvido pela pressão social, a própria sociedade, ainda que em sua representação por amostragem (do corpo de jurados), uma vez que, juridicamente constituído pela presença do magistrado no tangente especifico, o Tribunal do Júri é o poder moral mais respeitável, conforme o espírito das palavras de Durkheim.

Após tudo o que foi dito acima fica evidente a necessidade de se reformar o atual paradigma da efetividade das decisões do Tribunal Popular, manietada pela ideologia dos magistrados profissionais – especialmente os da mais alta instância judiciária do país.

Não é segredo que, dentre todas as formas de processos judiciais, o do Júri, em face das características inerentes aos crimes contra a vida e do perfil de seus julgadores recrutados da sociedade civil, é aquela que tem o maior potencial de alcançar os criminosos “potentes” na expressão acima mencionada e consagrada por Walter Maierovitch, escapando ao destino comum da Justiça Criminal brasileira que normalmente só tem sob suas asas e olhos pessoas pobres ou já marginalizadas pelos sistemas de poder econômico e político.

Podemos especular se o entendimento jurisprudencial e doutrinário que manieta a efetividade das decisões do Tribunal Popular – e mesmo as de direito comum – que manifestam uma ideologia claramente depreciativa dos juízos de primeira instância (até mesmo os profissionais) não é uma resposta, ainda que inconsciente, do poder estamental para buscar impedir que seus iguais sofram as sanções decorrentes do descumprimento da lei, o que só acontecia com os pobres antes do advento do regime cidadão estabelecido pela Constituição de 05 de outubro de 1988.

24 NASSIF, Aramis. Júri – Instrumento da Soberania Popular. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, ps. 58/59.

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O legislativo brasileiro e as propostas que alteram a competência do Júri | Antônio Rodrigues de Lemos Augusto 2726 Cadernos do Júri | Nº 3 | 2015

Antônio Rodrigues de Lemos AugustoAdvogado – Jornalista - Assessor de Comunicação da Associação dos Promotores do

Júri – Assessor de Comunicação da Associação Mato-grossense do Ministério Público

O Legislativo brasileiro e as propostas que alteram a competência do júri

1. Introdução – 2. Proposta de Emenda à Constituição – 3. Projetos de Lei que Alteram a Competência

do Tribunal do Júri – 3.1. A Ampliação da Competência do Júri para Qualquer Crime Doloso que

Resulte em Morte – 3.2. Da Criação de Novo Crime Contra a Vida - 4. Conclusão

1 Introdução

A competência do Tribunal do Júri é um tema que continua em debate fértil, mesmo após 26 anos de promulgação da Constituição Federal de 1988. No Legislativo nacional, há propostas nas duas Casas que buscam ampliar ou reduzir a competência do Júri, seja por alteração na Constituição Federal, seja por mudanças nos parágrafos do art. 74, CPP. O objetivo deste texto é apresentar as propostas legislativas que alteram a competência do Tribunal do Júri brasileiro, sem a pretensão de análise ou aprofundamento técnico-jurídico. Importante realçar ainda que diversos outros temas afeitos ao Júri estão contidos em projetos legislativos, mas não serão abordados neste momento.

2 Propostas de Emenda à Constituição Federal

No Congresso Nacional, há duas propostas de emenda à Constituição Federal em andamento, ambas originárias da Câmara dos Deputados. A PEC 39/1999,

Referências Bibliográficas

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O legislativo brasileiro e as propostas que alteram a competência do Júri | Antônio Rodrigues de Lemos AugustoCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 2928

que amplia a competência do Tribunal do Júri para os crimes contra o patrimônio público, é aquela que tem o fato legislativo mais recente relacionado ao tema. Trata-se do parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), assinado pelo deputado-relator Marcos Rogério (PDT-RJ), em 08 de outubro de 2014. O parecer do relator é pela constitucionalidade da PEC 39/1999, dando nova redação à alínea “d”, inciso XXXVIII, artigo 5º, da CF. O texto passaria a ser da forma seguinte1:

art. 5º ...XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:a)...b)...c)...d) a competência para julgar crimes dolosos contra a vida e contra o patrimônio público. A PEC foi capitaneada pelo deputado Ênio Bacci. Na exposição de motivos, Bacci assim se manifestou:É pacífica a tendência que se verifica nos dias atuais no sentido de ampliação da competência do Júri, sobretudo a crimes que lesam interesses do povo em geral, como os crimes ecológicos e os denominados crimes “do colarinho branco”.Por isso que, repita-se, havendo surgido dentro de um espírito democrático, acolhendo a média dos sentimentos do grupo societário ao julgar um dos seus iguais, o Tribunal Popular tem raízes profundas nos anseios que preservam as liberdades públicas e individuais e é tão essencial para a democracia quanto a escolha dos governantes pelo voto popular.Nestes termos, propomos a presente emenda constitucional visando garantir ao próprio povo o julgamento daqueles que lesam propositadamente o patrimônio público, em sintonia com o espírito democrático da nossa Carta Magna.

Há outra PEC originária da Câmara dos Deputados relacionada ao Júri. Porém, ao contrário da anterior, a PEC 486/2010 reduz a competência do Tribunal do Júri, retirando de suas atribuições os crimes cometidos ou apoiados por organizações delituosas ou facções criminosas, que passariam a ser julgados pelo juízo singular. A autoria é do deputado Vital do Rêgo Filho, sob a justificativa de que os jurados e seus familiares ficam expostos aos integrantes de tais grupos criminosos. A consequência,

1 Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD08JUN1999.pdf#page=105>. Acesso em 23 de out. 2014.

na justificativa de Vital do Rêgo, é a absolvição de criminosos em razão do temor que os jurados sentem em tais julgamentos. O alvo da PEC também é a alínea d, inciso XXXVIII, do art. 5º, CF, que passaria a ter o seguinte texto2:

art. 5º ...XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:a)...b)...c)...d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, exceto em se tratando de crimes cometidos ou apoiados por organizações delituosas ou facções criminosas a competência será do juízo criminal singular.

Esta PEC estava arquivada, após receber parecer contrário da Relatoria na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, em 2010. Na ocasião, o deputado-relator Régis de Oliveira entendeu que a PEC violaria cláusula pétrea, atingindo direito e garantia individual3:

Com efeito, basta a simples restrição desse princípio, com a supressão do direito dos integrantes das organizações criminosas de serem julgados pelo Tribunal do Júri, para que a emenda seja considerada inconstitucional. (...)Ademais, sem pretender entrar no mérito da questão, sou contra a presente proposta, porque a alteração de competência do júri para o juízo singular, de certa forma, representará uma vitória do crime organizado, porquanto ficará evidenciado o temor dos jurados no que se refere à ação dos integrantes dos grupos criminosos.(...)Finalmente, a exposição de motivos da presente proposta não apresentou nenhuma estatística ou qualquer fato concreto de absolvição de integrante de organização criminosa decorrente do temor dos jurados, que pudesse justificar a adoção desta medida drástica.

2 Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessioni-d=2678E33FEBCE52644BF281DD49823883.proposicoesWeb1?codteor=766428&filename=PEC+486/2010>. Acesso em 23 de out.2014.

3 – Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessioni-d=2678E33FEBCE52644BF281DD49823883.proposicoesWeb1?codteor=792639&filename=Tramitacao-PEC+486/2010>. Acesso em 24 de out. de 2014.

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O legislativo brasileiro e as propostas que alteram a competência do Júri | Antônio Rodrigues de Lemos AugustoCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 3130

No entanto, menos de um ano após o arquivamento, mas já em nova Legislatura, a PEC 486/2010 foi desarquivada e aguarda nova Relatoria na CCJC. O relator até então é o deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR).

3 Projetos de Lei que Alteram a Competência do Júri

A maioria dos projetos de lei afins à competência do Tribunal do Júri em tramitação é da lavra de deputados federais. Mas há, no Senado, o PLS 39/2012, de autoria do senador Cyro Miranda, que em 06 de agosto de 2014 foi distribuído ao senador Paulo Bauer, relator na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania. O PLS 39/2012 amplia a competência do Júri para o julgamento dos crimes de corrupção ativa e passiva, alterando a redação do artigo 74, CPP, em seu §1º4:

Art. 74... § 1º - Compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes previstos nos arts. 121, §§ 1º e 2º, 122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127, 317, §§1º e 2º, e 333, parágrafo único, do Código Penal, consumados ou tentados.

A crítica que faço a esse projeto de lei é a ausência do crime de concussão (art. 316, CP) em sua proposta, silenciando-se em sua “Justificativa” sobre esta questão. Observa-se que o PLS 39/2012, de certa forma, tem íntima conexão com a PEC 39/1999 tratada acima, coincidentemente com a mesma numeração.

Já na Câmara dos Deputados, um dos projetos de lei de maior envergadura que trata da ampliação da competência do Júri é o PL 3267/2012, de autoria do deputado Miro Teixeira (PDT/RJ). O PL altera o §1º do art. 74, CPP, acrescentando competência ao Tribunal do Júri para julgar os crimes descritos nos artigos 312 (peculato, incluindo também o peculato culposo), 313 (peculato mediante erro de outrem), 313-A (inserção de dados falsos em sistema de informações), 316 (concussão), 317 (corrupção passiva), 332 (tráfico de influência) e 333 (corrupção ativa) do Código Penal5.

4 Senado da República. Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=103724&tp=1>. Acesso em 24 de out. 2014.

5 Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codte-or=966166&filename=PL+3267/2012>. Acesso em 24 de out. 2014.

Percebe-se que o PL 3267/2012 não comete a omissão do PLS 39/2012, que trata da ampliação do Júri apenas para os crimes de corrupção ativa e passiva, omitindo-se em relação à concussão. Porém, por outro lado, o PLS 3267/2012 de certa forma amplia por demais a competência do Júri para crimes que talvez não precisem ter tal status, como o crime de peculato mediante erro de outrem ou o crime de inserção de dados falsos em sistema de informações.

Importante registrar que o PL 3267/2012 inclui, na competência do Júri, o peculato culposo, como pode ser observado na Justificativa do projeto de lei, o que seria uma inovação polêmica no Júri brasileiro, tradicionalmente voltado apenas para o julgamento de ação ou omissão dolosa. De qualquer maneira, o projeto de lei está pronto para entrar na pauta da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados.

3.1 A Ampliação da Competência do Júri para qualquer Crime Doloso que Resulte em Morte

O ano de 2007 pode ser considerado singular para o debate sobre a ampliação do Tribunal do Júri na Câmara dos Deputados. Quatro projetos de lei, praticamente idênticos e com a mesma fundamentação teórica em suas justificativas, foram apresentados, buscando a ampliação do Tribunal do Júri para crimes dolosos que resultem em morte, mesmo que não sejam crimes contra a vida.

O primeiro deles foi apresentado em abril de 2007: PL 779/2007, de autoria do deputado Celso Russomanno (PP/SP). Este PL acrescenta o §1º-A ao artigo 74, CPP, ampliando a competência do Tribunal do Júri para o “julgamento dos crimes previstos no Código Penal e na legislação especial que, quando praticados dolosamente, resultem na morte da vítima”. Em sua justificativa, Russomanno ressalta a possibilidade de alteração da competência do Júri por norma infraconstitucional6:

O legislador constituinte conferiu ao Tribunal do Júri responsabilidade para velar por bem jurídico de relevância singular: a vida.

6 Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codte-or=452827&filename=PL+779/2007>. Acesso em 23 de out. 2014.

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Isso porque, nos termos do art. 5.º, XXXVIII, alínea “d”, da Carta da República, determinou competir ao Tribunal Popular o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.Esse dispositivo constitucional, contudo, não impede ou veda a ampliação da competência do Júri para julgar outros delitos, haja vista ser uníssono entendimento no sentido de se tratar de competência mínima, e não exclusiva.Os tribunais, sobretudo o Supremo Tribunal Federal, entendem, no entanto, que os chamados “crimes dolosos contra a vida” são aqueles descritos nos arts. 121 a 127 do Código Penal, razão pela qual o Tribunal do Júri só pode julgar esses delitos.Quanto aos “crimes dolosos com evento morte”, estão em outros Títulos e Capítulos do mesmo Código repressor, como, por exemplo, nas partes “dos crimes contra o patrimônio” e “dos crimes contra os costumes”.Por esse motivo, não podem ser julgados pelo Júri, mesmo que ocorra, de forma intencional, o sacrifício do bem jurídico vida.Ocorre, nesses casos, o crime complexo, assim denominados pela doutrina penal, ou seja, o roubo + homicídio = latrocínio, estupro + homicídio = estupro seguido de morte, extorsão mediante sequestro + homicídio = extorsão mediante sequestro seguida de morte, etc.A interpretação jurisprudencial nessas situações exemplificadas desprezam, por inteiro, o objeto jurídico vida, o primeiro na escala de valores atribuída pelo art. 5.º, caput. Com isso, valoriza-se bens jurídicos secundários, como o patrimônio.Pretendeu o legislador constituinte que o bem “vida” fosse integralmente de responsabilidade do Júri, isto é, sem qualquer restrição do ponto de vista jurisprudencial ou doutrinário.Enfim, se esse bem jurídico é violado, dolosamente, a competência para julgamento do crime complexo cometido há de ser do Tribunal do Júri.

Ainda em 2007, com a mesma intenção, o deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB/SP) apresentou o PL 1639/2007. A diferença é singela. Altera o conteúdo do §2º, do art. 74, CPP, renumerando os demais parágrafos. O conteúdo do §2º determinaria a competência do Tribunal do Júri para “o julgamento dos crimes dolosos com o evento morte previstos no Código Penal e em leis especiais”7.

Menos de um mês após a apresentação do PL 1639/2007, outro deputado, William Woo (PSDB/SP), apresentou o PL 1665/2007. O PL 1665/2007 é idêntico ao PL 1639/2007, até mesmo na forma de alteração do CPP, com a ampliação da competência do Tribunal do Júri contida no §2º, do artigo 748.

7 Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codte-or=484656&filename=PL+1639/2007>. Acesso em 23 de out. 2014.

8 Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codte-or=486711&filename=PL+1665/2007>. Acesso em 24 de out. 2014.

Em setembro de 2007, foi também apresentado o PL 2043/2007, de autoria do deputado João Dado (PDT/SP). Também praticamente idêntico aos projetos de lei de autoria de Celso Russomanno, Arnaldo Faria de Sá e William Woo. O PL 2043/2007 altera o §1º, do art. 74, CPP, incluindo – ao final do texto atual – a expressão: “e também todos os demais crimes dolosos com o evento morte”9.

Esses quatro projetos de lei apresentados em 2007 tramitaram em conjunto e, em 2011, receberam – em apenso - uma quinta proposta semelhante: o PL 210/2011, de autoria do deputado Sandes Junior (PP/GO). Este PL repete a proposta do deputado Celso Russomanno de acrescentar o §1º-A, ao artigo 74, CPP, ampliando a competência do Tribunal do Júri para o “julgamento dos crimes previstos no Código Penal e na legislação especial que, quando praticados dolosamente, resultem na morte da vítima”10.

Os cinco projetos foram analisados em conjunto pela Relatoria da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania na Câmara dos Deputados, quando da emissão do parecer afim ao primeiro deles, o PL 779/2007. Em 29 de julho de 2013, todos eles receberam parecer favorável do deputado-relator Félix Mendonça Júnior (PDT/BA), que, para unificá-los e corrigir leve falha técnica legislativa, apresentou um texto substitutivo, que agora será apresentado à CCJC. Assim, manifestou-se o relator11:

No mérito, os Projetos merecem prosperar, uma vez que não há impedimento para a atribuição de novas funções ao Tribunal do Júri. A garantia constitucional diz respeito à competência mínima, podendo a lei ampliar esse rol de matérias sujeitas à apreciação do Júri.

Quanto ao substitutivo, que tem ampla possibilidade de aprovação na CCJC considerando o envolvimento multipartidário nos cinco projetos de lei unificados, o relator Félix Mendonça Júnior propõe a criação do §4º, ao artigo 74, CPP12:

9 Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codte-or=504999&filename=PL+2043/2007>. Acesso em 25 de out. 2014.

10 Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codte-or=837907&filename=PL+210/2011>. Acesso em 24 de out. 2014.

11 Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codte-or=1111759&filename=Tramitacao-PL+779/2007>. Acesso em 24 de out. 2014.

12 Idem.

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Art. 74... §4º - Ao Tribunal do Júri compete, ainda, o julgamento dos crimes previstos no Código Penal e na legislação especial que, quando praticados dolosamente, resultem na morte da vítima.

O parecer favorável aos cinco projetos de lei, bem como o substitutivo apresentado que os unifica, reduz a importância de outros projetos de lei que abordam mais especificamente apenas a ampliação da competência do Júri para os crimes de latrocínio e de lesão corporal seguida de morte. É o caso do PL 6998/2006, que aguarda votação do parecer da Relatoria na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania na Câmara dos Deputados. O deputado-relator Vieira da Cunha (PDT/RS), embora tenha atestado a constitucionalidade do PL, argumentou pela injuricidade e má técnica legislativa, defendendo ainda a rejeição do projeto de lei, em dezembro de 201213.

3. 2 Da Criação de Novo Crime Contra a Vida

A possibilidade da interrupção da gravidez de feto anencéfalo, decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em abril de 2012, reacendeu – no Congresso Nacional – dois antigos projetos de lei sobre o tema e que se relacionam ao Tribunal do Júri. O primeiro deles é o PL 1459/2003, de autoria do deputado Severino Cavalcanti (PP/PE), que acrescenta um parágrafo ao Art. 126, CP, determinando a aplicação das penas do crime de aborto “aos casos de aborto provocado em razão de anomalia na formação do feto”14.

Dois anos depois, o deputado Takayama (PMDB/PR) apresentou o PL 5166/2005, muito mais amplo do que a proposta do deputado Severino Cavalcanti, criando novo crime em lei especial: o crime de antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico ou inviável. Para tanto, Takayama utilizou-se de estrutura similar à disposta para o crime de aborto no Código Penal15.

13 Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposi-cao=323389>. Acesso em 23 de out. 2014.

14 Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codte-or=147011&filename=PL+1459/2003>. Acesso em 24 de out. 2014.

15 Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codte-or=304198&filename=PL+5166/2005>. Acesso em 24 de out. 2014.

O PL do deputado Takayama foi apensado ao PL 1459/2003, do deputado Severino Cavalcanti. Em 2008, antes - portanto - da decisão do STF sobre a interrupção de gravidez de feto anencéfalo, os projetos receberam parecer favorável da Relatoria da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados (CSSF), que também apresentou um substitutivo, pelo qual o novo crime – se aprovado - será disposto junto com o crime de aborto, com alterações nos artigos 124, 125, 126, 127 e 128, do Código Penal16. O deputado Dr. Talmir (PV-SP) foi o autor do substitutivo. Porém, os dois projetos de lei foram arquivados no início de 2011.

Em fevereiro de 2011, em razão de desarquivamento, os dois PLs retornaram para a CSSF. Novo parecer da Relatoria, agora de responsabilidade do deputado Nazareno Fonteles (PI/PT), praticamente repetiu o texto apresentado anteriormente, inclusive no que tange ao substitutivo alterando os artigos 124 a 128, CP. Coincidência ou não, o parecer ocorreu cerca de três meses após a decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre o tema.

No momento, os dois projetos que tipificam o crime de antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico ou inviável, bem como o substitutivo correlato, continuam em debate na CSSF. Em março de 2014, foi determinada nova Relatoria, agora sob a análise da deputada Jô Moraes (PCdoB-MG).

4 Conclusão

O Tribunal do Júri é tema que preocupa, de fato, o legislador brasileiro. A busca pela ampliação de sua competência envolve parlamentares de partidos políticos diversos, de tendências ideológicas por vezes distantes entre si. A ferramenta legislativa mais utilizada para tanto é o projeto de lei, de tramitação obviamente menos árdua. Mesmo assim, há duas propostas de Emenda à Constituição em tramitação no Congresso Nacional relacionadas ao tema. O fato é que, se todas as propostas legislativas em tramitação, que ampliam a competência do Tribunal do Júri hoje, fossem aprovadas e – no caso dos projetos de lei – sancionadas, o Tribunal do Júri teria um leque de atuação extremamente amplo. O jurado, que hoje julga inclusive homicídio qualificado, passaria a julgar, em outro extremo, o peculato culposo.

16 Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codte-or=559342&filename=Tramitacao-PL+1459/2003>. Acesso em 25 de out. 2014.

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Teses atentatórias à dignidade da mulher e o princípio da proporcionalidade na vertente... | Antonio Sergio Cordeiro Piedade 37Cadernos do Júri | Nº 3 | 201536

A ampliação da competência do Tribunal do Júri, se de fato implementada nos termos das propostas em andamento, teria efeito forte na forma de se pensar e ensinar o Direito no país, bem como na própria estruturação do Poder Judiciário, das defensorias públicas e do Ministério Público. Como hoje vigente, o júri popular decidiria sobre todos os crimes contra a vida, com a inclusão de mais uma tipificação: o crime de antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico ou inviável. Mas também decidiria sobre qualquer crime doloso que possa resultar em morte, uma verdadeira cláusula legislativa em aberto para futura tipificação que surja e que não esteja contida no capítulo do Código Penal sobre Crimes Contra a Vida. Decidiria ainda sobre os crimes contra a Administração Pública considerados mais nefastos, tanto praticados por funcionários públicos, quanto por particulares: todos os casos de peculato, corrupção ativa e passiva, concussão, entre outros. E, conforme a PEC 39/1999, o jurado decidiria sobre qualquer crime contra o patrimônio público.

Pode-se afirmar que seria um poder revolucionário que o Legislativo colocaria nas mãos dos jurados, inserindo na doutrina desses tipos penais - hoje fora do alcance do Tribunal Popular - os princípios que abraçam o Júri, fundamentalmente o da “soberania dos veredictos”.

Antonio Sergio Cordeiro PiedadePromotor de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso - Doutor e Mestre em

Direito Penal pela PUC/SP - Secretário Geral de Gabinete da Procuradoria Geral de Justiça de Mato Grosso - Ex-Presidente da Confraria do Júri - Professor Adjunto de Direito Penal

da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT - Professor da Fundação Escola Superior do Ministério Público - Professor da Escola Superior da

Magistratura do Estado de Mato Grosso

Teses atentatórias à dignidade da mulher e o princípio da proporcionalidade na vertente da proibição da proteção deficiente

1. Introdução. 2. Princípio da Proporcionalidade na vertente da Proibição da Proteção Deficiente

(Untermassverbot). 3. O crime de homicídio. 4. Homicídio Privilegiado. 5. A legítima defesa da

honra. 6. Conclusão. Referências bibliográficas.

1 Introdução

O presente artigo tem por objetivo fazer uma análise das teses do homicídio privilegiado e da legítima defesa da honra, comumente invocadas pela defesa no Tribunal do Júri, à luz do princípio da proporcionalidade na vertente do princípio da proibição da proteção deficiente.

No cenário doutrinário e jurisprudêncial brasileiro há uma forte tendência em consagrar um supergarantismo negativo, que, muitas vezes, leva a uma proteção insuficiente, sobretudo no que se refere ao alargamento interpretativo de teses defensivas que vulneram à proteção ao bem jurídico vida.

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Teses atentatórias à dignidade da mulher e o princípio da proporcionalidade na vertente... | Antonio Sergio Cordeiro PiedadeCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 3938

Muitas vezes, ameaças e lesões corporais praticadas contra a mulher não chegam ao conhecimento da polícia, pois o ato de noticiar o ocorrido é complexo, na medida em que o agressor está dentro do próprio lar. Em decorrência da ausência de providências, o quadro de agressividade se exacerba e muitas vezes têm como desfecho o homicídio, no qual teses defensivas, a exemplo do homicídio privilegiado e da legítima defesa da honra, são apresentadas.

2 Princípio da proporcionalidade na vertente da proibição da proteção deficiente (untermassverbot)

Com o propósito de tutelar, em sua plenitude, os direitos fundamentais surge o princípio da proporcionalidade na vertente da proibição da proteção deficiente como desdobramento do princípio da proporcionalidade.

Investigar o alcance e a aplicação da proibição da proteção deficiente, dentro da concepção de um garantismo pleno, não significa propor um recrudescimento simplista da intervenção punitiva, muito menos uma apologia ao totalitarismo penal, mas traçar um horizonte que permita uma resposta penal adequada, pois o crime de homicídio, notadamente os derivados de violência de gênero traz efeitos deletérios ao corpo social, em razão de sua grande nocividade, pois desestrutura a unidade familiar e demonstra o grau de intolerância e desrespeito que ainda permeiam as relações entre homens e mulheres em uma sociedade nitidamente machista.

Como salienta Lenio Luiz Streck1,

trata-se de entender, assim, que a proporcionalidade possui uma dupla face: de proteção positiva e proteção de omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de Excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando desproporcional o resultado do sopesamento (Abwägung) entre fins e meios; de outro, a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de um direito fundamental-social, como ocorre quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de

1 STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista Aju-ris, Ano XXXII, nº 97, março 2005, p. 180.

todos os atos estatais à materialidade da Constituição, e que tem como consequência a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de conformação) do legislador.

Em uma democracia é necessário romper com a visão de um garantismo hiperbólico monocular2, alicerçado em uma perspectiva exclusivamente limitadora da vertente da proibição de excesso, a qual possui um viés exclusivamente individualista, sem nenhum enfoque de proteção da sociedade.

O princípio da proporcionalidade deve ser aplicado, conforme recomendado pela hermenêutica constitucional, tanto em sua face de proibição de excesso, como no reverso na proibição de insuficiência.

A incidência da proibição da proteção deficiente é tema candente na academia, que descarta uma aguçada discussão no que se refere a sua incidência, dada a necessidade de compatibilização das duas facetas que norteiam esta ferramenta imprescindível na formulação dos tipos penais e na incidência da lei penal nos casos concretos.

Conter os excessos e arbítrios do Estado em face do indivíduo, nem de longe se contrapõe à ideia de intervenção penal necessária, a qual tenha a capacidade efetiva de acautelar a sociedade. Quando se enfrenta de forma eficiente a debilidade de tutela penal, principalmente nos delitos de homicídio é necessário uma resposta penal diferenciada, que muitas vezes mitigue no primeiro momento as garantias fundamentais individuais como forma de assegurar o convívio social. Não se trata de ficar adstrito a rótulos estigmatizantes, mas dentro de uma leitura inerente a um Estado Democrático de Direito, assegurar o respeito às garantias fundamentais coletivas. A não compatibilização da proteção individual com a proteção coletiva traz consequências à própria finalidade do Estado, que é assegurar o convívio de forma tolerável.

Nesse diapasão encampando a idéia da proibição da proteção deficiente (Untermassverbot) Luciano Feldens, afirma que um Direito Penal de intervenção mínima não se contrapõe conceitualmente a um Direito Penal de intervenção minimamente (constitucionalmente) necessária3.

Ingo Wolfgang Sarlet4 afirma que a proporcionalidade na vertente da proibição de excesso

2 FISCHER, Douglas. O que é garantismo penal (integral). In: CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; PELELLA, Eduardo (org.). Garantismo penal integral: questões penais e processuais, criminalidade moderna e a aplicação ao modelo garantista no Brasil. Salvador: Editora JusPodium, 2010, p. 27-28.

3 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal. A dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005, p. 213.

4 SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 47. Março de 2004, p. 63-64.

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acabou transformando-se em um dos pilares do Estado Democrático de Direito e da correspondente concepção garantista do direito (...). De outra parte, a noção de proporcionalidade não se esgota na categoria da proibição de excesso, já que vinculada igualmente, como ainda será desenvolvido, a um dever de proteção por parte do Estado, inclusive quanto a agressões contra direitos fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que se está diante de dimensões que reclamam maior densificação, notadamente no que diz com os desdobramentos da assim chamada proibição de insuficiência no campo jurídico-penal e, por conseguinte, na esfera da política criminal.

O Direito Penal deve evitar excessos, pois está vinculado a princípios constitucionais que limitam sua incidência, mas por outro lado deve tutelar bens jurídicos com densidade social e reafirmar a sua autoridade, donde surge o imperativo de proteção, com a necessidade de uma resposta penal proporcional e adequada.

A legitimação da intervenção penal seja vinculando o legislador na criação de tipos penais ou o Judiciário, na aplicação de uma pena suficiente e adequada é corolário, da proibição da proteção deficiente.

Nesse sentido preconiza Ingo Wolfgang Sarlet5, que

o Estado na esfera penal poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese, por sua vez, vinculada (pelo menos em boa parte) à problemática das omissões inconstitucionais. É nesse sentido que - como contraponto à assim designada proibição de excesso - expressiva doutrina e inclusive jurisprudência têm admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado e como tradução livre do alemão Untermassverbot).

Menciona Detlev Sternberg-Lieben que na República Federal Alemã, o Tribunal Constitucional tem afirmado em numerosas decisões que os direitos fundamentais, como direito objetivo, não se limitam somente à obrigação do Estado de não permitir a intromissão nos bens e liberdades dos cidadãos constitucionalmente protegidos como direitos fundamentais (segurança frente ao Estado), mas também a obrigação de proteger tais bens e liberdades de ataques provenientes de outros cidadãos (segurança através do Estado).6

5 Idem, p. 98.

6 STERNBERG-LIEBEN, Detlev. Bien jurídico, proporcionalidad y libertad del legislador penal. In: HEFENDEHL, Holand (ed.). La teoría del bien jurídico: ¿fundamento de legitimación del Derecho penal o juego de abalorios dogmáticos? Madrid:

O Superior Tribunal de Justiça em sede de Embargos de Declaração no Habeas Corpus n. 170.092-SP (2010/0073325-7) em voto condutor da Ministra Maria Thereza de Assis Moura asseverou que:

o princípio da proporcionalidade tem ampla aplicação na seara penal- a fim de abrandar os rigores punitivos. Todavia, a sua dimensão de proibição de proteção deficiente não se justifica no Direito Penal, bastando contemplar a realidade e ter em linha de consideração o crescente recrudescimento legislativo.

O aresto do Superior Tribunal de Justiça, sob o pálio do recrudescimento legislativo, em total desprezo a uma leitura constitucional do Direito Penal contemporâneo, nega aplicação à proibição da proteção deficiente.

Porém, no Recurso Extraordinário n. 418.376, o Supremo Tribunal Federal aplicou pela primeira vez o princípio da proibição da proteção deficiente, em um caso em que se buscava extinguir a punibilidade de agente condenado por atentado violento ao pudor praticado contra uma menina de nove anos, de quem abusou por quatro anos e que, aos doze, engravidou, iniciando com o seu agressor uma união “estável”; o relator, Ministro Marco Aurélio, votou pela extinção da punibilidade do agente7.

A decisão do Supremo Tribunal Federal representa um avanço significativo, na medida em que se faz no caso concreto um juízo de ponderação, no qual se analisa a magnitude da lesão e a necessidade de proteção de um direito fundamental coletivo, com enfoque social.

Entretanto, é necessária a aplicação de referido princípio, com a exaltação de valores como justiça e segurança pública, de forma a não deixar sem proteção bens de grande importância para o corpo social.

A densidade e a relevância do bem jurídico é que determinam a necessidade de proteção.

Marcial Pons, 2007, p. 105-106.

7 A discussão gravitava em torno da aplicação da extinção da punibilidade prevista no inciso VIII do art. 107 do Código Penal, que foi revogado pela Lei 11.106/05, o qual extinguia a punibilidade dos crimes sexuais (estupro e atentado violento ao pudor) na hipótese de casamento da vítima com o acusado. Em razão do dispositivo constitucional preco-nizado pelo art. 226, § 3 º), o qual equiparou a união estável ao casamento, o réu, via Recurso Extraordinário, buscava a extensão do beneplácito da lei, em razão de supostamente viver em concubinato com a vítima. Entre os Ministros houve severa divergência e se formaram três posicionamentos: o primeiro acolhia a tese sustentada pelo acusado e asseverava que o dispositivo deveria ser aplicado por interpretação analógica, dando-lhe, por conseguinte, eficácia; o segundo posicionamento entendeu que as particularidades do caso concreto (estupro de uma menina de 9 anos) impediam a concessão do dispositivo, não podendo ser estender o conceito de casamento para os casos de concubi-nato e união estável; por sua vez, a terceira posição firmada em voto condutor do Ministro Gilmar Ferreira Mendes não acolheu o recurso manejado invocando violação ao princípio da proporcionalidade, na vertente da proibição da proteção deficiente dos direitos fundamentais.

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Teses atentatórias à dignidade da mulher e o princípio da proporcionalidade na vertente... | Antonio Sergio Cordeiro PiedadeCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 4342

A proibição da proteção deficiente, portanto, é um instrumento de materialização da dignidade da pessoa humana de índole social, visto que havendo uma insuficiência de proteção nos delitos de homicídio com o acolhimento sem critério de teses defensivas se vulnera os direitos fundamentais em seu viés coletivo.

3 O crime de homicídio

O Código da República de 1890 adotou a nomenclatura de homicídio para definir o crime de matar alguém, diferentemente de diplomas legais de outros países, que o classificaram como assassinato, quando por algum motivo apresentasse maior gravidade e homicídio, para a modalidade comum.

O Código de 1940, a exemplo do Código Penal republicano, também utilizou a terminologia homicídio como nomem iuris do tipo penal que suprime a vida alheia, independentemente das condições ou circunstâncias em que o crime é perpetrado. Todavia, criou três espécies: homicídio simples (art. 121, caput), homicídio privilegiado (art. 121, § 1.º) e homicídio qualificado (art. 121, § 2.º).

Nosso atual diploma legal optou por não criar figuras especiais, tais como fraticídio, parricídio, matricídio, em contraposição, a longa catalogação que o Código de 1890 contemplava (art. 294, § 1.º, do Código Penal de 1890), ou femicídio (significa morte de mulheres em razão do sexo feminino). As causas e circunstâncias é que deverão nortear a sua adequação típica a uma das três espécies de homicídio disciplinadas- simples, privilegiado e qualificado.

Homicídio segundo assevera Nélson Hungria8 é

o tipo central dos crimes contra a vida e é o ponto culminante na orografia dos crimes. É o crime por excelência. É o padrão da delinqüência violenta ou sanguinária, que representa como que uma reversão atávica às eras primevas, em que a luta pela vida, presumivelmente, se operava com o uso normal dos meios brutais e animalescos. É a mais chocante violação do senso moral médio da humanidade civilizada.

8 HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Cláudio Heleno. Comentários ao Código Penal. vol. V. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 25.

Cezar Roberto Bitencourt9 afirma que “embora a vida seja um bem fundamental do ser individual-social, que é o homem, sua proteção legal constitui um interesse compartido do indivíduo e do Estado”.

Dada a lesividade social inerente ao crime de homicídio, sobretudo o perpetrado contra a mulher, o qual representa uma violência de gênero é imperiosa uma resposta penal adequada e proporcional, sob pena de termos uma violação ao princípio da proibição da proteção deficiente.

Precisamos traçar um novo horizonte para o Direito Penal. A tutela penal nos crimes decorrente de preconceito de gênero precisa ocorrer de forma efetiva, pois o Estado deve proteger o cidadão contra os excessos/arbítrios do direito penal e do processo penal (garantismo no sentido negativo, que pode ser representado pela aplicação do princípio da proporcionalidade enquanto proibição de excesso - Übermassverbot). Por outro lado, esse mesmo Estado não deve pecar por eventual proteção deficiente (garantismo no sentido positivo, que se materializa pelo princípio da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente – Untermassverbot)10.

4 Homicídio privilegiado

O Tribunal do Júri, que possui conotação nitidamente democrática é o local apropriado, para a demonstração de que o povo não mais tolera a indignidade, o desrespeito a violência de gênero, ou seja, é um instrumento de defesa da sociedade, nos julgamentos das tragédias familiares e sociais.

Uma das teses as quais sempre são invocadas pela defesa no Tribunal do Júri é a do homicídio privilegiado, passional, também denominado homicídio emocional, que possui a natureza jurídica de uma causa de diminuição de pena.

Referida modalidade de homicídio encontra-se no §1º do artigo 121 do Código Penal. Todavia, a defesa costuma tentar induzir os jurados em erro fazendo uma confusão conceitual e terminológica.

9 BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 45.

10 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 113.

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Teses atentatórias à dignidade da mulher e o princípio da proporcionalidade na vertente... | Antonio Sergio Cordeiro PiedadeCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 4544

Será privilegiado o homicídio praticado: “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço”.

A primeira figura trazida pelo legislador se refere ao relevante valor social que é aquele, como esclarece Cezar Roberto Bitencourt, que tem “motivação e interesse coletivos, ou seja, a motivação fundamenta-se no interesse de todos os cidadãos de determinada coletividade (...) como, por exemplo, por amor à pátria, por amor paterno ou filial”11. A jurisprudência é iterativa no sentido de que o motivo seja realmente relevante, ou seja, notável, digno de apreço12.

A segunda possibilidade se refere ao relevante valor moral, também denominado como homicídio piedoso, que visa abreviar o sofrimento da vítima, como por exemplo, nos casos de eutanásia.

Por fim, a terceira modalidade de homicídio privilegiado é a do agente que comete o crime sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima.

A tese do homicídio privilegiado pela violenta emoção é bastante invocada no Tribunal do Júri, no que se refere aos crimes passionais, pois13,

a opção de alegar o privilégio decorrente da violenta emoção e não de relevante valor moral ou social, resulta do fato de que, nos dias de hoje, pouca gente lança mão do cinismo de dizer ter matado a mulher, namorada, companheira ou ex-companheira, por ‘relevante valor moral ou social’.

Os requisitos para a incidência da causa de diminuição de pena, decorrente do homicídio emocional, são os seguintes: a provocação injusta da vítima; agir sob o domínio de emoção violenta e a reação imediata.

Em nosso ordenamento jurídico a violenta emoção recebeu tratamento diferenciado segundo o grau de influência que possa ter sobre a capacidade de autodeterminação do agente, pois poderá ser uma atenuante, quando se

11 Op. cit., p. 70.

12 “Deve-se entender por motivo social, aquele que corresponde mais particularmente aos objetivos da coletividade; contudo, para que a figura privilegiada possa ser reconhecida, é necessário que o motivo seja realmente relevante, isto é, notável, importante, especialmente digno de apreço” (TJPR – AP – Rel. Lima Lopes – RT 689/376).

13 ELUF, Luiza Nagib. A paixão no banco dos réus: casos passionais célebres: de Pontes Visgueiro a Pimenta Neves. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 158.

limitar a uma “influência”, ou causa de diminuição de pena, quando se referir a “domínio”14.

O legislador, portanto, conforme assevera César Danilo Ribeiro Novais15, “foi sábio: enalteceu o direito à vida ao prever a influência de violenta emoção como mera circunstância atenuante (artigo 65, III, “c”, do Código Penal), reservando a causa de diminuição de pena do homicídio emocional para casos excepcionais, já que há patente diferença entre estar dominado pela violenta emoção e estar influenciado de violenta emoção”.

O homicídio emocional caracteriza-se na hipótese do indivíduo perpetrar o delito “sob o ímpeto ou choque emocional. Sem este, ainda que o fato, objetivamente considerado, o favoreça, não haverá lugar a minorativa especial”16.

Também é necessário que a reação à injusta provocação seja incontinenti, ou seja, sine intervallo, não havendo que se cogitar em incidência da causa de diminuição de pena quando o agente age de forma tardia e premeditada17.

Segundo o critério trazido pelo nosso Código Penal, conforme enfatiza Nélson Hungria18,

14 A distinção entre estar sob a influência e sob o domínio da violenta emoção é enfrentada de forma precisa pela jurisprudên-cia: “Revisão criminal. Homicídio qualificado. Violenta emoção. Privilégio não admitido – “Revisão. Condenação. Homicídio qualificado. Distinção entra a violenta emoção do homicídio privilegiado da atenuante geral relativa à violenta emoção. Renovação do mesmo debate já ocorrido na fase da apelação criminal. Improcedência. Não se contradiz o corpo de jura-dos, quando examinando a prova dos autos de processo sob seu julgamento nega o homicídio privilegiado, crime, que em sua composição considera a violente emoção do agente ao reagir a uma injusta provocação da vítima e ao depois admite a atenuante genérica da ação com violenta emoção por ato injusto da vítima. É que o privilegiado envolve três requisitos, contemporâneos isto é a injusta provocação, a reação imediata e o domínio da violenta emoção, já a atenuante reconhece que o agente foi influenciado por violenta emoção decorrente de ato injusto da vítima, que necessariamente não preciso ser contemporâneo à ação do criminoso. Revisão improcedente repetindo um debate jurídico já esgotado na fase da apelação” (TJRJ – Rev. 109/2002 – Rel. Rudi Loewnkron – j. 09.04.2003 – RDTJRJ 59/326).

15 NOVAIS, César Danilo Ribeiro. A defesa da vida no Tribunal do Júri. Cuiabá: KCM Editora, 2012, p. 31.

16 NORONHA. E. Magalhães. Direito Penal. vol. 2. 28 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 23. A jurisprudência confirma referido entendimento: “O homicídio privilegiado a que alude o art. 121, § 1.º, do CP/40 é o determinado pelo impetus, pelo impulso psicofísico reativo que surge no auge da emoção. Mas não é apenas esta, em si, que faz merecer o privilegium, porém a emoção derivada da injusta provocação da vítima” (TJSP – AP – Rel. Jarbas Mazzoni – RT 608/324).

17 A jurisprudência é torrencial no sentido de que são necessários os três requisitos para a incidência da causa de diminuição de pena, não havendo que se cogitar em privilégio quando age tardiamente, de forma premeditada. Vejamos: “Simples existência de emoção por parte do agente não basta para o reconhecimento do privilégio do art. 121, § 1.º, do CP. Há de restar demonstrado um impulso emocional decorrente de ato injusto da vítima. Exige-se, outrossim, a sucessão imediata entre a provocação e a reação. Se a reação não se exerce incontinenti à ofensa, mas ex intervallo, o que a transforma em vingança intempestiva, não há que se falar em homicídio privilegiado” (TJMG – 2.ª C. – AP 311.588-8/00 – Rel. Herculano Rodrigues – j. 10.04.2003 – JM 165/422). “O homicídio praticado friamente horas após pretendida injusta provocação da vítima, não pode ser considerado privile-giado. A simples existência de emoção por parte do acusado igualmente não basta a seu reconhecimento, pois não se pode outorgar privilégios aos irascíveis ou às pessoas que facilmente se deixam dominar pela cólera” (TJSP – AP – Rel. Gonçalves Sobrinho – RT 572/325).

18 Op. cit., p. 152.

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a mora na reação exclui a causa de atenuação, pois, de outro modo, estaria criado um motivo de sistemático favor a criminosos. Não transige o preceito legal com o ódio guardado, com o rancor concentrado, com a vingança tardia.

Por fim não há como se falar em injusta provocação da vítima, em situações sem razoabilidade, sem plausibilidade, tais como o desejo de separação externado pela mulher ou eventuais críticas ao comportamento do companheiro ou namorado. Nos crimes passionais, conforme obtemperou Luiza Nagib Eluf “na grande maioria das vezes, não há nenhuma ´provocação’ da vítima, mas apenas a vontade de romper o relacionamento, o que não pode ser considerado ‘provocação’”19.

Nélson Hungria20 realiza síntese oportuna sobre a perversidade dos matadores passionais, salientando que

(...) o amor-açogueiro é uma contrafação monstruosa do amor: é o animalesco egoísmo da posse carnal, é o despeito do macho preterido, é a vaidade malferida da fêmea abandonada. É o furor do instituto sexual da Besta. O passionalismo que vai até o assassínio muito pouco tem a ver com o amor. Quando não seja a expressão de um desequilíbrio psíquico, é um chocante espetáculo de perversidade. Os matadores chamados passionais, para os quais se invoca o amor como escusa não passam, na sua grande maioria, de autênticos celerados: não os inspira o amor, mas o ódio inexorável dos maus. Impiedosos, covardes, sedentos de sangue, porejando vingança, mas só agindo diante da impossibilidade de resistência das vítimas, estarrecem pela bruteza do crime, apavoram pela estupidez do gesto homicida. Para eles não basta a punhalada certeira em pleno coração da vítima indefesa: na volúpia da destruição e da sangueira, multiplicam os golpes até que a lâmina sobre si mesmo se encurve. Não basta que, ao primeiro tiro a vítima tombe numa poça de sangue: despejam sobre o cadáver até a última bala do revólver. Dir-se-ia que eles desejam que a vítima tivesse, não uma só, mas cem vidas, para que pudessem dar-lhes cem morte!

Sendo assim, a aplicação sem critérios, com a relativização dos requisitos legais para o reconhecimento da causa de diminuição de pena, em análise, levam a banalização do valor vida, com a indubitável ofensa ao princípio da proporcionalidade na vertente da proibição da proteção deficiente, pois como outrora consignado neste escrito o Estado não deve agir de forma arbitrária, assim como não poderá agir de forma insuficiente, na proteção de valores ínsitos ao Estado Democrático de Direito.

19 Op. cit., p. 159.

20 Op. cit., p. 152-153.

5 A legítima defesa da honra

O Livro V das Ordenações Filipinas, que foi o primeiro diploma legal o qual vigorou no Brasil admitia que um homem matasse a mulher e seu amante se surpreendidos em adultério. Estabelecia o Título XXXVIII que: “Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assi a ella, como o adultero (...)”

O Código do Império de 1830 extirpou do ordenamento este esdrúxulo dispositivo. O Código da República de 1890, em seu art. 27, §4.º contemplava a excludente do agente que perpetrasse o crime sob um estado de total perturbação dos sentidos e da inteligência, que era utilizada para justificar determinados estados emocionais, como os provenientes da descoberta pelo marido do adultério da mulher. Referida situação desencadearia uma insanidade momentânea, que eximiria o agente de responsabilidade.

Em 1925, liderados pelos, a época, Promotores Públicos Roberto Lyra e Carlos Sussekind de Mendonça e pelo juiz Nélson Hungria surge o Conselho Brasileiro de Hygiene Social, o qual tinha o firme propósito de coibir e punir os matadores de mulheres, que até então contavam com a permissividade da sociedade. O movimento, apesar de importante, não conseguiu neutralizar a ação dos homicidas e a complacência dos jurados.

O Código de 1940 representou um avanço, pois excluiu a excludente da “perturbação dos sentidos e da inteligência”, que era um instrumento nocivo de impunidade dos delitos denominados passionais.

Com a eliminação do ordenamento jurídico das excludentes acima descritas, os advogados, sobretudo até a década de 1970, começaram a invocar a tese da legítima defesa da honra, pois de acordo com Luzia Nagib Eluf21 “ainda havia na sociedade um sentimento patriarcal muito forte. A concepção de que a infidelidade conjugal da mulher era uma afronta aos direitos do marido e um insulto ao cônjuge enganado encontrava eco no sentimento dos jurados, que viam o homicida passional com benevolência”.

Todavia, com a morte de Ângela Diniz, no dia 30 de dezembro de 1976, na Praia dos Ossos, Búzios, litoral do Rio de Janeiro, assassinada a tiros pelo seu companheiro Raul Fernandes do Amara Street, conhecido por Doca Street e sua diminuta condenação no primeiro julgamento, surge um grande movimento social que tinha como lema: “Quem ama não mata”.

Nos dias de hoje, em razão da equiparação entre homens e mulheres em direitos e obrigações trazidos pela Constituição Federal, proibindo todas as formas de

21 Op. cit., p. 163.

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Teses atentatórias à dignidade da mulher e o princípio da proporcionalidade na vertente... | Antonio Sergio Cordeiro PiedadeCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 4948

discriminação, sem deixar dúvida, conforme assevera Luiza Nagib Eluf22 “quanto à plena cidadania feminina, seria inadmissível que um defensor ousasse apresentar a tese da legítima defesa da honra em plenário do Júri, por ser inconstitucional”.

A honra é atributo pessoal, a qual é insuscetível de ser transferida para outra pessoa. O acolhimento da tese da legítima defesa da honra, inegavelmente confronta-se com o atual estágio de nossa sociedade, representando seu acolhimento flagrante afronta aos princípios da dignidade da pessoa humana, da não discriminação e da igualdade23.

Nesse sentido Magalhães Noronha24 de forma enfática afirma que:

Ponto forçado a considerar é se age em legítima defesa da honra o marido que mata a esposa colhida em flagrante adultério. Não existe legítima defesa no caso. A honra é um atributo pessoal, próprio e individual. Por que se dizer desonrado o marido que, ao se saber iludido, divorcia-se ou desquita-se? Se ele se porta com dignidade e correção no convívio social, por que será desonrado? E sobretudo por que colocar-se sua honra na conduta abjeta de outra pessoa e, principalmente, numa parte não adequada de seu corpo? Desonrada é a prevaricadora. É absurdo querer que o homem arque com as conseqüências de sua falta. É dizer com Sganarello: ‘Elles font la sottise et nous somes les sots’. Não existe legítima defesa no caso; o que há é, na frase brutal, mas verdadeira, de Leon Rabinovicz, orgulho de macho ofendido(...)

22 Idem, p. 165.

23 Nestes termos é a jurisprudência, a qual sistematicamente tem afastado a legítima defesa da honra: “Hodiernamente, afi-gura-se inconcebível a tese da legítima defesa da honra, eis que não se pode admitir que honra, bem em tese juridicamente protegido pela excludente da ilicitude, possa se sobrepujar à vida, bem supremo do ser humano. A honra constitui atributo personalíssimo e nessa qualidade é insuscetível de ser maculada pela conduta de outrem, razão pela qual o ato de infideli-dade da mulher não atinge a honra de seu companheiro, sendo inadmissível o homicídio perpetrado por legítima defesa da honra, eis que não se justifica a utilização de ‘pena de morte’ para hipótese de infidelidade conjugal” (TJMG – AP 270.179-5/00 – Rel. Reynaldo Ximenes Carneiro – j. 09.05.2002 – JM 161/702). “A defesa da honra pela infidelidade do cônjuge não pode ser invocada para justificar a prática de homicídio, pois é inadmis-sível, no estado atual da civilização, sobrelevar-se a honra ao bem maior do ser humano, que é a vida (...) o que realmente torna aberrante o reconhecimento da referida tese é o fato de se justificar a utilização da ‘pena de morte’ para as hipóteses de uma suposta infidelidade conjugal, sobrelevando-se a honra sobre o bem maior do ser humano, que é a vida, conquanto não se olvide dos preconceitos sociais ainda arraigados em nosso povo. (...) Por fim, há que se dizer, ainda em desabono à tese da legítima defesa da honra, que esta se constitui de um atributo personalíssimo e, nesta qualidade, insuscetível de ser maculada pela conduta de outrem. Por esta razão, qualquer ato desonroso que na teoria tenha se praticado, somente em si refletirá de forma negativa, não podendo de modo algum atingir a honra de seu companheiro, a justificar a perpetração de violência” (TJMG – 2.ª C. – AP 345.394-1/00 – Rel. Reynaldo Ximenes Carneiro – j. 04.09.2003 – JM 166/346). “O marido que atira em esposa que comete adultério não age à sombra do instituto penal da legítima defesa da honra. A perda da honra é do cônjuge infiel e não do inocente, portanto não se configura a excludente de ilicitude” (TJAL – AP – Rel. José Agnaldo de Souza Araújo – RT 761/645).“José Frederico Marques, depois de salientar que não há desonra para o marido na conduta da esposa, acrescenta judicio-samente que ‘tais atos traduzem antes desforço e vingança, por isso que a ofensa já estava consumada’ (Curso de Direito Penal, v. 2, p. 122). Na verdade, o sangue não lava, mancha. A honra, ensina Basileu Garcia, no sentido de pudicícia ou pudor – esta sim – pode ser objeto de legítima defesa. Suponha-se uma mulher assaltada por alguém que lhe quer macular a honra, atentando contra o seu pudor. Ela tem o direito de matar, se necessário, o ofensor, em legítima defesa (Instituições de Direito Penal, v. 1, t. 1, p. 312)” (TJSP – AP – Rel. Rocha Lima – RJTJSP 36/292).

24 NORONHA. E. Magalhães. Direito Penal. vol. 1. 28 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 192.

O momento não é de silêncio, mas de uma postura firme, de ruptura plena com o equivocado e vetusto modelo de tolerância com a violência contra a mulher que preponderou ao longo da história, sob pena de se violar o princípio da proporcionalidade no enfoque da proteção deficiente.

6 Conclusão

A jurisprudência de nossos tribunais avançou sobremaneira e passou a não mais admitir as teses que serviam como instrumento de apologia aos denominados homicidas passionais, sob pena de se afrontar, ou no mínimo vulnerar a aplicação do princípio da proporcionalidade na vertente da proibição da proteção deficiente, em razão de um desequilíbrio de proteção.

O Tribunal do Júri passou a ser um instrumento de consolidação dos valores democráticos e de demonstração de que a sociedade evoluiu e não mais tolera teses estapafúrdias que ofendam a clara opção política feita pelo legislador constituinte, materializada no princípio da proporcionalidade em sua plenitude, que não permita excessos do Estado contra o indivíduo, bem como não tolere afrontas à dignidade da pessoa humana e via de consequência gere uma desproteção ao bem jurídico vida.

Referências Bibliográficas

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FISCHER, Douglas. O que é garantismo penal (integral). In: CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; PELELLA, Eduardo (org.). Garantismo penal integral: questões penais e processuais, criminalidade moderna e a aplicação ao modelo garantista no Brasil. Salvador: Editora JusPodium, 2010.

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O aparte no Tribunal do Júri | Caio Marcio Loureiro 51Cadernos do Júri | Nº 3 | 201550

HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Cláudio Heleno. Comentários ao Código Penal. vol. V. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981.

NORONHA. E. Magalhães. Direito Penal. vol. 1. 28 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1991.

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NOVAIS, César Danilo Ribeiro. A defesa da vida no Tribunal do Júri. Cuiabá: KCM Editora, 2012.

SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 47. Março de 2004.

STERNBERG- LIEBEN, Detlev. Bien jurídico, proporcionalidad y libertad del legislador penal. In: HEFENDEHL, Holand (ed.). La teoría del bien jurídico: ¿fundamento de legitimación del Derecho penal o juego de abalorios dogmáticos? Madrid: Marcial Pons, 2007.

STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista Ajuris, Ano XXXII, nº 97, março 2005.

______________________. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

Caio Marcio LoureiroPromotor de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso - Mestre em Direito pela

Universidade Estadual de Londrina - Especialista em Interesses Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo - Especialista em Direito

Processual Civil pela Fundação de Ensino “Eurípides Soares da Rocha” (UNIVEM) - Especialista em Direito Ambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso – Ex-Professor

de Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito

O aparte no Tribunal do Júri

1. Considerações preambulares – 2. Apontamentos sobre o instituto do aparte em searas diversas do

Tribunal do Júri – 3. Discursos, Debates e Argumentações: Locus Naturale do Aparte - 4. Aspectos

conceptuais, desvio de finalidade, previsão normativa e exemplos do aparte no Tribunal do Júri – 5.

Princípios processuais informadores do aparte – 6. Espécies de aparte no Tribunal do Júri – 7. Conclusões

“Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar será réu de juízo.” (Mt 5:21).

1 Considerações preambulares

Não é pleonasmo. Longe o vício de linguagem do título proposto. Equivocam-se os que inferem ser o aparte necessariamente atrelado ao Tribunal do Júri, ou que ao se falar desta expressão somente poder-se-ia se referir a este Tribunal. Não se trata o aparte de exclusividade do ritual do Júri.

Bem por isso, não é desarrazoado firmar desde o proêmio do estudo um antecedente teórico, segundo o qual em uma pesquisa há que se ponderar sobre o sujeito cognoscente e o ser cognoscível, na esteira do que propõe a Ontognoseologia, que é a teoria transcendental do conhecimento e que, consoante escólio de Miguel Reale1 cuida-se da “doutrina do ser enquanto conhecido e das condições primeiras do pensamento em relação ao ser”.

1 REALE, Miguel. Introdução à filosofia. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 23.

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O aparte no Tribunal do Júri | Caio Marcio LoureiroCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 5352

Destarte, busca-se com este escrito analisar o instituto do aparte sem desconsiderar as proposições daqueles que exerceram cognição (sujeitos), como também do instituto em si (objeto), não distante das posições ontológicas e ônticas, bem como da sempre pertinente interdisciplinariedade.

2 Apontamentos sobre o instituto do aparte em searas diversas do Tribunal do Júri

No teatro e nas obras da literatura o aparte encontra seu espaço e sua origem, tratando-se de forma de discurso dramático em que o personagem fala com o público, sendo que para realizar um aparte uma personagem afasta-se das outras2. Revés, pois, do monólogo (o eu que fala), o aparte ocorre, geralmente, no meio de um diálogo, no interior da fala de uma das personagens, em que esta interrompe o seu discurso para fazer um comentário (dito num tom diferente, como se falasse para si próprio, ou também para o público, para o esclarecer com determinada opinião ou situação). É uma espécie de confidência que a personagem considera importante que o público conheça3.

Têm os apartes terreno fértil no Drama, que se traduz em qualquer narração literária ou encenação teatral que tenha por apanágio o conflito ou o atrito. Origina-se o drama na Grécia Antiga. Vejamos:

Origina-se na Grécia Antiga significando ação (δράω). Aristóteles, em sua Poética, compara a literatura de sua época, que se originara da forma oral, nos seguintes modos: narrativo ou épico, dramático e misto. A partir desta análise, central em toda a análise dos gêneros literários até os dias de hoje, teóricos dividiram a literatura nos modos narrativo, dramático e lírico. Significando «ação» em grego, a palavra drama vem associada à representação teatral na Poética de Aristóteles, por aí se distinguindo da epopeia, outra forma literária igualmente assente na imitação (mimesis) de ações. Sendo esta obra aristotélica fundamentalmente uma poética do drama, é sobretudo da definição sobre o conceito de tragédia que mais se ocupa, referindo o espectáculo (opsis) como o seu modo de imitação, e sendo os restantes cinco elementos que a compõem: a fábula (mythos), os caracteres (ethos) e o pensamento (dianoia) -

2 http://pt.wikipedia.org/wiki/Aparte, acesso em 09/09/2014.

3 http://ciberduvidas.com/pergunta.php?id=30193, acesso em 09/09/2014.

como constituindo a sua matéria; a elocução (lexis) e o canto ou música (melos), configurando o seu meio de imitação. Desde cedo, portanto, na teoria e na prática (da Grécia antiga), o drama surge nesta dupla articulação - com a literatura (escrita) e com o teatro (espetáculo) - embora a natureza, o sentido e a função desta articulação tenham posteriormente variado de acordo com os tempos, as práticas artísticas e as proposições (e avaliações) estéticas. Decorrem no campo literário: nas relações que se estabelecem entre os diferentes modos e gêneros; e decorrem no campo do teatral: do que se entende ser a especificidade deste e do grau de intercepção que pode (ou não) operar na matéria literária, bem como da arquitectura teatral e dos códigos de representação cênica dominantes4.

Noutra seara, ainda, pode ser encontrado instituto do aparte. Nas Casas de Leis (Câmara dos Deputados e Senado Federal), durante a atuação legislativa, por ocasião dos discursos para sustentação de normativos ou mesmo para proclamação de ideia, que o aparte pode ser utilizado para se participar da peroração.

A este respeito a Resolução 17, de 1989, que aprova o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, faz expressa menção, disciplinando a matéria no artigo 176.

Diz o Regimento Interno em testilha que o aparte é a interrupção, breve e oportuna, do orador para indagação, ou esclarecimento, relativos à matéria em debate, e que somente poderá ocorrer se aquele que estiver discursando conceder permissão, sendo que ao apartear o orador deverá permanecer de pé.

Segundo o Regimento da Câmara dos Deputados, não será admitido aparte: à palavra do Presidente; paralelo a discurso; a parecer oral; por ocasião do encaminhamento de votação; quando o orador declarar, de modo geral, que não o permite; quando o orador estiver suscitando questão de ordem, ou falando para reclamação; nas Comunicações a que se referem o inciso I e § 1º do art. 66. (Inciso com redação adaptada aos termos da Resolução n° 3, de 1991).

Ainda, cuidando do instituto, o Regimento Interno especifica que os apartes subordinam-se às disposições relativas à discussão, em tudo que lhes for aplicável, e incluem-se no tempo destinado ao orador, sendo que não serão publicados os apartes proferidos em desacordo com os dispositivos regimentais e que, os apartes só serão sujeitos a revisão do Autor se permitida pelo orador, que não poderá modificá-los.

No Senado Federal o aparte tem sua disciplina no artigo 14 da Resolução 93, de 1970, que aprova seu Regimento Interno. Dispõe o normativo em estudo que para apartear, por dois minutos, deverá ser observado que o aparte dependerá de permissão

4 http://pt.wikipedia.org/wiki/Drama, acesso em 10/09/2014.

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do orador, subordinando-se, em tudo que lhe for aplicável, às disposições referentes aos debates. Estabelece, também, que os apartes não serão permitidos ao Presidente e à parecer oral. Vedados estão, ainda, os apartes a encaminhamento de votação, salvo nos casos de requerimento de homenagem de pesar ou de voto de aplauso ou semelhante; a explicação pessoal; a questão de ordem; a contradita a questão de ordem; e, a uso da palavra por cinco minutos.

A disposição regimental sobre o aparte no Senado observa que a recusa de permissão para apartear será sempre compreendida em caráter geral, ainda que proferida em relação a um só Senador, sendo que o aparte proferido sem permissão do orador não será publicado, e ao apartear, o Senador conservar-se-á sentado e falará ao microfone.

O Supremo Tribunal Federal, por meio do seu Regimento Interno, também traz regulamentação sobre o aparte no artigo 133, especificando que cada Ministro poderá falar duas vezes sobre o assunto em discussão e mais uma vez, se for o caso, para explicar a modificação do voto, e que nenhum Ministro fará uso da palavrá sem autorização do Presidente, nem interromperá a quem estiver usando a palavra, salvo para apartes, quando solicitados e concedidos. O parágrafo único do artigo em comento estabelece que os apartes constarão do acórdão, salvo se cancelados pelo Ministro aparteante, caso em que será anotado o cancelamento.

3 Discursos, Debates e Argumentações: Locus Naturale do Aparte

Mesmo sem grafar todas as nuanças do aparte já se pode constatar que solos férteis para sua incidência são os discursos e debates. É durante a peroração, na qual o orador apresenta seus argumentos, que se dá ensejo aos apartes como contraponto ao que se sustenta.Destarte, existindo argumentação abrem-se as portas para os apartes.

Acentos doutrinários revelam que a argumentação (argumentatio) também denominada de probatio (Cícero) e confirmatio (Quintiliano) era conhecida, desde a Antiguidade, como uma das partes mais importantes da arte retórica, uma vez que tinha por fim gerar credibilidade dos pontos de vista arrolados5.

5 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 1988, p. 295.

Segundo Tercio Sampaio Ferraz Junior6,

Cícero (De inventione I, 24, 34) definia: confirmatio est per quam argumentando nostrae causae fidem et auctoritatem et firmamentum adjungit oratio (a confirmação persuade o ouvinte pelo raciocínio, estabelece a verdade da causa e acha as provas que fazem triunfar). Consistia na apresentação das provas, que desde Aristóteles (Rhet. I, 2, 2), eram classificadas em artificiais e inartificiais.

Explica o mesmo autor7 que:

O chamado genus artificiale correspondia à apresentação das provas próprias da arte (retórica), cuja especificação se dava a partir do próprio exame do discurso. Admitindo-se que todo discurso envolve orador, ouvinte, coisa discutida, distinguiam-se as chamadas provas (a) éticas, aquelas que se referiam ao caráter, digno de confiança, do orador; (b) patéticas, as capazes de motivar a sensibilidade do ouvinte; e (c) reais, aquelas cujo efeito se baseava na coerência lógica da apresentação da ‘coisa’ mesma (res), estas últimas incluindo os indícios, os argumentos e os exemplos. O chamado ‘genus inartificiale’ referia-se às provas obtidas sem o auxílio da arte (retórica), incluindo-se entre elas os testemunhos, as decisões jurisprudenciais, as opiniões doutrinárias, os documentos. No correr dos séculos, a ‘argumentação’, no plano jurídico, foi-se especializando, dando origem à teoria das provas no direito processual. No seu sentido amplo, a palavra é usada, modernamente, não como o elenco das provas judiciárias, mas como um modo típico do raciocínio jurídico.Para Tercio Sampaio Ferraz Junior os principais argumentos jurídicos são os seguintes: argumento ab absurdum, argumento ab auctoritatem, argumento a contrario sensu, argumento ad hominem, argumento ad rem, argumento a fortiori, argumento a maiori ad minus, argumento a minori ad maius, argumento a pari ou a simile, argumento a posteriori, argumento a priori, argumento silogistico ou entimema, e argumento exemplar ou exempla.Especificamente os debates no Tribunal do Júri encontram-se disciplinados no Código de Processo Penal, o qual evidencia que encerrada a instrução, será concedida a palavra ao Ministério Público, que fará a acusação, nos limites da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, sustentando, se for o caso, a existência

6 Idem, ibidem, p. 295.

7 Idem, ibidem, p. 295.

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de circunstância agravante (artigo 476, caput).Dispõe o Estatuto Processual que o assistente falará depois do Ministério Público e que, no caso de ação penal de iniciativa privada, falará em primeiro lugar o querelante e, em seguida, o Ministério Público, salvo se este houver retomado a titularidade da ação, na forma do artigo 29 deste Estatuto.Com o encerramento da peroração do Ministério Público e Assistente, se houver, passa-se a palavra para a Defesa. Após, poderá o Ministério Público replicar e a defesa treplicar, sendo admitida a reinquirição de testemunha já ouvida em plenário (§ 1º a 4º).No que se refere ao tempo para as sustentações, o Código de Processo Penal prescreve que será de uma hora e meia para acusação e defesa. Havendo réplica e tréplica gozarão os debatedores de uma hora cada para as respectivas perorações (artigo 477, caput).Preocupou-se o Código Processual em comento, também, com a possibilidade de mais de um acusador ou mais de um defensor. Neste aspecto disciplina que havendo mais de um acusador ou mais de um defensor, combinarão entre si a distribuição do tempo, que, na falta de acordo, será dividido pelo juiz presidente, de forma a não exceder o determinado neste artigo (§1º, do artigo 477). Estabelece, ainda, o Código que existindo mais de 1 (um) acusado, o tempo para a acusação e a defesa será acrescido de 1 (uma) hora e elevado ao dobro o da réplica e da tréplica, observado o disposto no §1º do artigo 477 (§2º).

Pretendeu o legislador, limitar o acesso às informações constantes do feito, dizendo que durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado (artigo 478, inciso I).

Verifica-se que o Código em apreço teceu normativo a respeito da postura do que opta em nada falar, consignando que, também não se poderá, durante os debates, fazer-se menção ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo (art. 478, inciso II).

Profícuas as palavras de César Danilo Ribeiro de Novais8 quando sustenta a inconstitucionalidade do artigo 478 e seus incisos, doutrinando que:

Como se vê, o legislador ordinário, fazendo tabula rasa do texto constitucional, limitou indevidamente a amplitude da discussão da causa entre as partes litigantes. Ora, o parlamento não pode obrigar o promotor de justiça e o defensor a se furtarem

8 NOVAIS, César Danilo Ribeiro de. A defesa da vida no Tribunal do Júri. Cuiabá: KCM Editora, 2012, p. 155-156.

de levar ao conhecimento dos jurados todos os atos e fatos concorrentes no processo criminal em julgamento, nem vedar o emprego da boa argumentação jurídica, técnicas de persuasão e lógica. Em outras palavras, invadiu seara que não lhe dizia respeito. Isso significa dizer que ao mitigar o âmbito de discussão da causa, como se algum fato ou ato processual não tivesse ocorrido, deu azo a flagrante violação ao direito de liberdade de manifestação do pensamento, aos princípios mais comezinhos que circundam o julgamento popular e, porque não dizer, ao direito de informação dos jurados. Isto é, estes, como juízes, têm o direito de ouvir as partes debatendo a lide penal, em busca de uma cognição plena da causa, para votarem de forma consciente e justa pela absolvição ou condenação do réu. Não resta dúvida que os tribunos, ao se comunicarem e debaterem a causa, estão em pé de igualdade, de modo que a norma jurídica deve atuar como guardiã objetiva de sua liberdade de expressão. Vale dizer, a verdade não há que ser maquiada, razão pela qual há que se perquirir a legitimidade da regra em testilha, uma vez que ela impede a discussão e argumentação ampla, geral e irrestrita dos fatos constantes no processo e no plenário. O silêncio imposto pelo legislador ordinário às partes litigantes no Tribunal do Júri é postura que manieta idéias, apresentando-se como regime político opressor. Claro está, assim, que essa limitação do discurso no Júri viola o Estado Democrático de Direito, porque totalmente contrária ao modelo constitucional vigente. Pode-se deduzir, então, que a exploração do processo em sua integralidade é o exercício da democracia processual, que implica em julgamento justo. É fato que quanto maior a discussão da causa pelas partes, maior será a probabilidade de acerto da decisão dos jurados. Por outro vértice, é certo também que o novel artigo 478 viola o princípio da plenitude da defesa (art. 5º, XXXVIII, “a”, da CF), uma vez que impede o defensor de manejar argumentos jurídicos e extrajurídicos, em sua plenitude, visando o convencimento dos jurados. Cuida-se, pois, de alteração írrita, que limita os debates, contrariando a própria gênese do Tribunal Popular. É dizer, Júri é democracia, é pluralismo político, é debate de idéias, é, enfim, repulsa a qualquer espécie de manipulação ou restrição do pensamento. O engate lógico já se percebe: a limitação imposta pelo artigo em exame impede a obtenção do esclarecimento necessário e a democratização das decisões do Tribunal Popular, violando-se, em corolário, os princípios da transparência e da justiça.

Pela necessária lealdade, indispensável contraditório e inafastável plenitude da defesa e da tutela a vida, o Estatuto Processual veda a surpresa especificando que durante o julgamento não será permitida a leitura de documento ou a exibição de objeto que não tiver sido juntado aos autos com a antecedência mínima de 3 (três) dias úteis, dando-se ciência à outra parte (artigo 479, caput). Fica compreendida nesta proibição a leitura de jornais ou qualquer outro escrito, bem como a exibição de vídeos,

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gravações, fotografias, laudos, quadros, croqui ou qualquer outro meio assemelhado, cujo conteúdo versar sobre a matéria de fato submetida à apreciação e julgamento dos jurados, consoante o parágrafo único do artigo ora citado.

Homenageando a verdade real, materializada na formal aglutinação de folhas autuadas com a investigação do fato e instrução perfectibilizada, prevê o Código de Processo Penal que a acusação, a defesa e os jurados poderão, a qualquer momento e por intermédio do juiz presidente, solicitar ao orador que aponte a folha dos autos onde se encontra a peça por ele lida ou citada, facultando-se, ainda, aos jurados solicitar-lhe, pelo mesmo meio, o esclarecimento de fato por ele alegado (artigo 480, caput).

Com o encerramento das perorações, o juiz que preside o ato questionará dos juízes do fato se preparados estão para exercer julgamento. Indagará, pois, o magistrado presidente: “Vossas Excelências estão habilitados a julgar ou necessitam de outros esclarecimentos” (§1º).

Nesta oportunidade, havendo dúvida sobre questão de fato, o juiz de direito que preside o Tribunal prestará esclarecimentos à vista dos autos, tendo os jurados, nesta fase do procedimento, acesso ao feito e aos instrumentos do crime se solicitarem ao juiz presidente (§ 2º e 3º, do art. 480).

Sem se afastar da cientificidade que deve acompanhar os estudos, porém objetivando propiciar maior pulsação e, por que não, emoção, visto cuidarem-se de sensações não apenas oportunas, mas necessárias na ambiência da tribuna do Júri Popular, no qual não há espaço tão só para o clamar ou reclamar, senão para o declamar e conclamar, segue-se abaixo algumas orientações sobre os debates e argumentações sob o pálio das recomendações pujantes do incansável jurista9 Roberto Lyra10, que ao falar sobre a Oratória Forense explicitou:

Devemos testar os argumentos e fundamentos que preparamos para falar ou escrever. Que resposta daria se fosse o adversário? Esse controle prévio evita o autismo da vaidade. Não são oradores os recitadores que ficam sujeitos a todos os vexames da memorização. É preciso, porém, não confundir memorização com o estudo, a ordem, o sumário. No entanto, não há memorização, ordem e sumário que sirvam para as réplicas e as tréplicas forçosamente improvisadas.

9 Permita-nos a irreverência propiciadora do afastamento da gramática, ortografia e significados do vocabulário, para aplicar a expressão grafada não apenas no sentido de conhecedor da ciência e doutrinador, mas também no sentido de ser jurista, por de fato, participar efetivamente da tribuna no Tribunal do Júri, ou seja, jurista porque faz júri.

10 LYRA, Roberto. Como julgar, como defender, como acusar. Belo Horizonte: Líder, 2003, p. 151, 152, 153, 154, 158 e 159,

Então, acodem os frutos do plantio enraizado e bem regado. (…) O primeiro dever é da brevidade, mesmo no Júri. O acusador e o defensor não são obrigados a esgotar o tempo. O orador que abusa do auditório, sobretudo o forçado ou indefeso, além de descortês e ingrato, é pretensioso e inábil. Pretensioso porque supõe que os ouvintes (ouvintes ou assistentes?) estão encantados e agradecidos com tanta eloqüência e tanta cultura..., Inábil, porque fatiga a afugenta a atenção que precisa conquistar e manter para o mais sublime ato de amor – a fecundação espiritual. Esta é insusceptível de inseminação artificial. (…) O ‘orador’ pré-fabricado recebe diploma. Seria um brevet propriamente dito pela brevidade do curseco. Seco! Há quem diga que eu abuso de ‘trocadilhos’. Não se trata de trocadilhos, mas de grito das próprias palavras ou de recursos pedagógicos de fixação e provocação culturais. Eram os antigos achados. Agora, os que não acham nada, porque não podem, criticam os que acham. Nem me refiro à medicina, especialmente à foniatria, nem à psicologia, que cuidam da saúde física e psíquica também dos oradores, de faculdades, órgãos, sentidos, funções e, portanto, das condições e disposições para as situações em geral. Uma coisa é tratar de voz, respiração, nervos e outra, fundamental e essencial, é a alma de eloqüência, o conteúdo da dialética específica e, principalmente, a intransigência na luta pelo Direito. A oratória é arte, e não artifício ou artimanha. Não é recitativo, não é memorização, não é mecanização. O orador não é aquela voz à procura de uma sátira popular. Ao contrário, é a ideia à procura de uma voz. Falo, na voz autoral, e não no eco da rapinagem visual e auditiva. Dizem-se oradores os decoradores sem decoração, frondosos, mas infrutíferos. Há ‘oradores’ que fazem mais esforço físico do que mental. Meus ex-alunos hão de recordar-se de minha referência ao poeta espanhol a quem um candidato perguntou como deveria fazer um soneto. Dois quartetos e dois tercetos, não é? ‘Não’, respondeu o poeta. Hay que poner talento. Ele se referia ao talento mesmo, e não à moeda da Antiguidade restaurada para a venda da fama. Oradores! Entre o exórdio e a peroração, hay que poner talento. (…) O orador forense não fala para os espectadores, e sim para os que vão julgar, em regra, imediatamente. Não importa o gosto ou o desgosto dos ouvintes. Ou apenas assistentes? Um golpe que produz sensação na platéia pode prejudicar a causa diante dos julgadores obrigados a interpretar cada silêncio, cada avanço, cada hesitação. Como vencer a indiferença conquistada e manter não só a atenção, mas, também, a ponderação? O orador forense não pode contar com o chamamento da atenção pelo juiz-presidente. O toque da campainha é para as partes e o público, e não para os que têm o dever funcional de audiência. Já ouvi resposta zangada de desembargador distraído e sonolento ao colega-presidente: ‘Eu estou prestando atenção!’ Pelo menos, mentiroso. A atenção fingida ou forçada não pode contentar os postulantes, sobretudo os que

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trazem argumentos ou fundamentos novos. Os ‘memoriais’ estão ao alcance de poucos. E que garantia tem o patrono, o responsável de leitura lúcida, mediata, humilde? Os ‘em suma’, ‘em síntese’, os frisos do magistério poderão ser úteis à persuasão. Não é preciso insistir nas limitações da ética e nas ilimitações das susceptibilidades dos juízes. Os melindres são, muitas vezes, imprevisíveis. Os oradores têm mandatos públicos e individuais a cumprir intransigentemente. A leitura de peças do processo ou de citações deve ser evitada ou, pelo menos, reduzida. A menção, a assimilação, a anotação serão suficientes conforme as circunstâncias. Para evitar a desatenção dos que irão decidir, aconselha a elevação e gravidade da voz, a firmeza do olhar, a direção de gesto concentrado, e até dirigido, e, nos casos extremos, a interrupção propositada do discurso até que o distraído repare. O orador judiciário, mais do que os outros juristas, precisa dos arrimos e clarões sociológicos.

Vê-se, pois, que o Ministério Público e a Defesa ocupam posição fundamental no exercício das argumentações, as quais possuem superior hierarquia nos debates. Ao Ministério Público se impõe o dever de atuar de forma efetiva para tutela plena da vida. À Defesa direciona-se a exigência de exercer o seu papel de maneira a garantir a plena defesa do réu.

Destarte, mesmo diante da obviedade, adianta-se a conclusão: na tribuna do Júri popular, sem debatedores (Ministério Público e Defesa) não há debates; sem debates não há argumentações; e, sem argumentações não há oportunidade para contra-argumentações (apartes).

Uma ressalva revela-se oportuna: a emoção, a exaltação argumentativa, que devem tomar o debatedor, eis que a monotonia e a sustentação linear, sem alteração do timbre de voz, provoca nos jurados cansaço, levando-os a exaustão, e por vezes, ao sono, não pode justificar ataques desvairados e injuriosos entre os oradores.

Não se nega que, em certos momentos, ante a postura indelicada doutro orador, deva o revés sustentar sua posição em contra-argumento, inclusive em disputa de tom e timbre de voz, com o fim de evitar que os juízes do fato, infiram, em equívoco, tenha o mendaz razão e que seu argumento tem autoridade, ainda que o juiz presidente brade a célebre frase: “Pela ordem Doutores”. Mesmo cônscio desta situação, contudo, a peroração não deve restringir-se ao ataque direto aos debatedores.

Bem por isso que, ao término deste tópico do escrito grafa-se que, para a profícua atuação no Tribunal do Júri, membro do Ministério Público e Defensor devem ser vocacionados, a ponto de, ao ocupar a tribuna, transmudar sua postura em um estado que movimente alma (espírito), que o faça surpreender-se e surpreender os que os

ouvem, que da nuvem fúnebre, sensação de tristeza e do peso do ambiente formado por pessoas que se reúnem para lidar com a cessação da vida de outrem, provoque nos jurados juízo de justiça e não de bondade, propiciando nos participantes e, em especial nos julgadores, a sensação de alegria e felicidade que afiançam a exclamação ao final do julgamento: “hoje eu fiz justiça”.

4 Aspectos conceptuais, desvio de finalidade, previsão normativa e exemplos do aparte no Tribunal do Júri

Assim como o toque da arte realça um dado o transformando em construído, conferindo-lhe formosura; assim como o amor realça o verdadeiro valor da vida; o aparte evita a insipidez dos debates. Esta a razão, inclusive, de sua existência consuetudinária, ou seja, independente da previsão normativa. A praxe forense já celebrava sua existência e o utilizava com frequência mesmo não o disciplinando a ordem jurídica.

São os apartes as manifestações que interferem na sustentação oral do ex adversu, por meio da incontinenti contra-argumentação ou contraprova, com o escopo de resistir aos argumentos do orador que detêm o tempo de oração. Destina-se, também, ao esclarecimento dos juízes do fato a respeito de ponto fundamental do processo em julgamento, bem como a evitar a permanência de mendaz peroração.

Andrey Borges de Mendonça11 evidencia que “os apartes são interferências de uma parte na fala da outra, durante os debates”.

Conforme já se registrou noutra parte deste escrito, o Regimento Interno da Câmara dos Deputados define que aparte é a interrupção, breve e oportuna, do orador para indagação, ou esclarecimento, relativos à matéria em debate.

Guilherme de Souza Nucci12, ao falar do aparte, explica constituir

este o direito que a parte possui de interromper o discurso da outra, durante sua manifestação, para, brevemente, expor algum ponto controverso ou prestar algum esclarecimento, no interesse maior do Conselho de Sentença.

11 MENDONÇA, Andrey Borges de. Nova reforma do Código de Processo Penal: comentada artigo por artigo. São Paulo: Mé-todo, 2008, p. 99.

12 NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do júri. 5. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 251.

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Em consonância com seus elementos conceituais, portanto, o aparte não se destina ao tumulto, nem pode representar a admissão de discurso paralelo ou distante da questão posta em debate, sob pena de desvio de sua finalidade, e consequente afronta aos princípios informadores do direito processual penal13, aplicáveis diretamente ao instituto do aparte.

Fernando da Costa Tourinho Filho14 explica que “nada obsta sejam eles concedidos, conquanto não se transformem em discursos paralelos ou estranhos à matéria em debate”.

Em casos tais, caberá ao juiz que preside o ato solene fiscalizar e vedar, e aos oradores incumbirá a fiscalização e suscitação de desvio de finalidade do instituto.

Até a reforma proporcionada pela Lei nº 11.689, de 09 de junho de 2008, não havia regulamentação sobre o instituto, tratando-se o aparte de conduta costumeira e presente nos debates quando os oradores o admitiam.

Hodiernamente, após a inclusão normativa em testilha, passou o Código de Processo Penal a dispor cuidar-se de atribuição do juiz presidente do Tribunal do Júri, além de outras expressamente referidas no Estatuto Processual, regulamentar, durante os debates, a intervenção de uma das partes, quando a outra estiver com a palavra, podendo conceder até 3 (três) minutos para cada aparte requerido, que serão acrescidos ao tempo desta última (artigo 497, inciso XII).

João Batista de Almeida15, antes mesmo desta premissa legal, orientou que “cabe ao juiz-presidente regular e controlar esses apartes no sentido de que não tumultuem os debates”.

A importância da utilização e regular fiscalização do uso do instituto do aparte revela-se incontestável, quando se vê que o desvio de finalidade deste instituto afeta os princípios processuais penais e a adequada prestação da tutela jurisdicional.

Cediço que o processo enquanto instrumento para regular o tramitar da ação penal proposta com o fim de propiciar o exercício da função jurisdicional, especialmente na seara dos crimes contra a vida não pode, por questões relacionadas às leis naturais e físicas, assegurar a verdadeira efetividade quanto ao resultado, sendo está apenas formal, eis que efetivo traduz-se em garantir que o interessado que sofreu com a conduta de outrem consiga obter exatamente aquilo que obteria, restaurando o status quo sem que tivesse que se socorrer do Poder Judiciário.

13 Em tópico posterior deste escrito destinar-se-á espaço específico para o estudo dos princípios que informam o instituto do aparte.

14 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 736.

15 ALMEIDA, João Batista de. Manual do tribunal do júri: judicium accusationes e judicium causae. Cuiabá: Entrelinhas, 2004, p. 92.

Nas palavras de Giuseppe Chiovenda16:

A vontade da lei tende a realizar-se no domínio dos fatos até as extremas conseqüências praticamente e juridicamente possíveis. Por conseguinte, o processo deve dar, quanto for possível praticamente, tudo aquilo e exatamente aquilo que êle tenha direito de conseguir”.

Assim, admitir-se o desvio de finalidade no uso do aparte afeta ainda mais o instrumento processual e sua efetividade, pois além da ausência de possibilidade de obter-se tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha direito de conseguir (por evidente impossibilidade natural e física), gerará o afastamento do fim mediato da jurisdição: a pacificação social.

Atente-se, também, que a faculdade disciplinada pelo Código de Processo Penal, no artigo 480, não se refere ao aparte17. A regra em baila destina-se aos jurados, aos oradores e até mesmo ao juiz que preside o Júri Popular, no sentido de que poderão, a qualquer momento, solicitar ao debatedor que indique a folha dos autos onde se encontra a peça por ele lida ou citada, facultando-se, ainda, aos jurados solicitar-lhe, pelo mesmo meio, o esclarecimento de fato por ele alegado.

Uma indagação revela-se oportuna: poderia o juiz que preside o Tribunal do Júri limitar os apartes?

Infere-se que a resposta a ser propalada depende do conteúdo das perorações. Explica-se. Ora, se por um lado é certo que a palavra do Ministério Público deve ser garantida com o fim de que bem tutele o valor vida e os interesses da sociedade; e se é correto que a sustentação da Defesa deve ser assegurada como forma de respeitar a plenitude da defesa; por outro lado também é certo concluir que não deva aquele que não está com a palavra quedar-se inerte, silente e omisso, diante de peroração mendaz ou meramente injuriosa.

Importa dizer que não há limites e limitações para os apartes quando se está diante de sustentação mendaz ou unicamente injuriosa.

Quedar-se inerte neste contexto, representará para o juiz de fato, autoridade no discurso do ex adversu, com alta probabilidade de se afetar o resultado do júri.

O autor deste escrito mesmo, em plenário do Tribunal do Júri, no exercício da missão ministerial viu-se obrigado a apartear aos brados a Defesa, que restringia

16 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. vol. II, [Trad. da 2 ed. por J. Guimarães Menegale e Enrico Tullio Liebman], São Paulo: Saraiva, 1943, p. 84.

17 Neste sentido doutrina André Estefam no livro O novo júri: lei n. 11.689/2008. São Paulo: Damásio de Jesus, 2008, p. 67.

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sua peroração à injuriar a atuação de Promotor de Justiça, fugindo da discussão dos fatos, sustentando versão mendaz. Na oportunidade, quem presidia o ato explicitou que seria caçada a palavra do Ministério Público. Contudo, não pararam os apartes, eis que a Defesa em sua sustentação fugia das evidências dos autos (provas) e apenas impingia ofensas ao Ministério Público. Foi quando a juíza que presidia o ato solene, dirigindo-se ao parquet, falou: “Doutor a palavra do Ministério Público está caçada”. De imediato replicou este: “Não Excelência! Não está caçada a palavra do Ministério Público. Não! Enquanto a Defesa restringir-se a ofender a figura do Ministério Público e não se ater aos autos ela será aparteada”.

Por certo a irresignação deste autor deveu-se não apenas pelo discurso da Defesa cingir-se à propalação de injúrias ao órgão ministerial, mas pela inobservância do princípio da lealdade processual.

Evidente que os apartes seguiram-se até o ponto em que mais interrupções representariam postura antipática, bem como até o momento em que os jurados compreenderam a verdade e descredenciou-se a sustentação da Defesa, a qual, apesar de continuar com as perorações injuriosas, já descredenciada, sequer o aparte revelava-se mister. A partir de então, este autor percebeu que chegara hora de entrar em cena o silêncio, ou seja, o silêncio eloquente.

Ao depois, foram apresentadas escusas à magistrada que presidiu o solene ato, tendo esta com fineza e sabedoria compreendido as irresignações ministeriais. Registre-se, porém, que no momento dos embates sucumbir poderia certamente comprometer o resultado do julgamento.

Destarte, qual seria o limite recomendado ao orador para que aparteie?

Ao orador cumpre observar diante do cenário formado, do clima preponderante, das manifestações explicitadas, das sensações pujantes, se sua postura em apartear não provocará antipatia no Conselho de Sentença, ou uma porta aberta para que o ex adversu se valha da oportunidade para descredenciar sua interrupção. Bem por isso que, vocacionado e sensível ao Júri deve ser o debatedor, para que tenha discernimento e não utilize do aparte com desvio de finalidade.

Carlos Maximiliano18, em sua obra clássica sobre hermenêutica, fez recomendação evidenciando que

apaixonar-se não é argumentar, disse o autor que “exaltar, enaltecer com entusiamo, ou maldizer, detratar com veemência não é argumentar; será uma ilusão de apaixonado, ou indício de inópia de verdadeiras razões. A ironia leva a palma ao vitupério. O que impressiona

18 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 277.

bem (saibam os novos, mais ardorosos e menos experientes) é a abundância e solidez dos argumentos aliados à perfeita cortesia, linguagem ponderada e modéstia habitual.

Anatole France19 recomendou:

a ironia, que eu aconselho não é cruel. É doce e benévola. O seu riso desarma a cólera, e é ela que nos ensina a zombar dos maus e dos tolos, que, se não fora esse derivativo, poderíamos ter a fraqueza de odiar.

Uma nota se faz oportuna nesta ocasião: é certo que a frieza e a tecnicidade quanto à causa sufoca o ânimo em tutelá-la, podendo até mesmo transpassar para os ouvintes noção de desvalor do bem que se protege. Daí ser indispensável um toque de afetuosidade, entusiamo e emoção, que faça com que a racionalidade esteja temperada com o sentimentalismo oriundo da dramaturgia, revelando legitimação não apenas no bem que se tutela, mas também, no discurso que se sustenta. Alcançar o equilíbrio entre a racionalidade e a paixão; realizando constante fusão e desfusão entre ambas; eis o desafio dos oradores.

Nas palavras de César Danilo Ribeiro de Novais20:

Conta-se que em certo julgamento numa cidade do Rio Grande do Sul, o aparteante disse: Eu sei o que digo, estou montado no Código Penal..., obtendo, de imediato, a resposta do adversário: O colega foi imprudente. Como bom gaúcho, não deveria montar em animal que não conhece. Sua queda era fatal...

Com Edilberto de Campos Trovão21 finda-se esta etapa do estudo com o exemplo de aparte sob a epígrafe “Meia-Vítima”:

Não atirei para matar totalmente ele’, disse o réu. O advogado repetiu a expressão usada pelo réu. No aparte que fiz, disse: - Vítima meio-morta não existe doutor. Aí é tentativa.

19 FRANCE, Anatole. Le Jardin d’Epicure. apud MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 277.

20 Ob. cit., p. 84.

21 TROVÃO, Edilberto de. Reflexões de um Aprendiz de Promotor de Justiça no Tribunal do Júri. Curitiba: JM Editora, 1995, p. 234.

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Requeiro a suspensão do julgamento para que o Ilustre Doutor conduza ao Plenário a parte viva da vítima, para depor!

5 Princípios processuais informadores do aparte

A inclusão deste tópico neste estudo não objetiva elucubrar com profundidade sobre cada princípio do Processo Penal, mas volver os olhos para sua aplicabilidade no contexto dos apartes.

Firmado, pois, nesta premissa teórica, observações de ordem conceituais serão traçadas sobre o significado do vocábulo princípio com a análise de alguns princípios que se infere possuir correlação com o instituto do aparte, quer para justificá-lo quer para disciplinar seu uso.

Aos menos avisados vai a advertência no sentido de que, apesar do significado e importância do item em epígrafe, optou-se por enfrentá-lo somente agora, acreditando na melhor compreensão e aplicação em relação aos apartes.

A palavra princípio indica o início, o começo. Na seara jurídica acrescenta-se a característica de fundamento e pilar de sustentação da ordem jurídica.

Antônio Sérgio Cordeiro Piedade22 ensina que

o vocábulo princípio, derivado do latim principium, significa, de forma geral, o início, o começo. Os princípios podem ser definidos como fundamento, a origem, a base, a razão fundamental sobre a qual se discorre a respeito de qualquer matéria.

Robert Alexy23, escrevendo sobre os princípios como mandamentos de otimização explica:

O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de

22 PIEDADE, Antônio Sérgio Cordeiro. Tribunal do Júri: um instrumento de reafirmação dos princípios da dignidade da pessoa humana, da não discriminação e da igualdade. In Sistemas de Justiça, direitos humanos e violência no âmbito familiar. Coord. por Amini Haddad Campos e Lindinalva Rodrigues Dalla Costa, Curitiba: Juruá, 2011, p. 90.

23 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Traduzido por Virgílio Afonso da Silva, 5. ed. alemã. São Paulo: Malhei-ros, 2008, p. 90.

otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.

Por sua vez Humberto Ávila24 após realizar análise sobre a evolução doutrinária a respeito da distinção entre regras e princípios evidencia:

Essa evolução doutrinária, além de indicar que há distinções fracas (Esser, Larenz, Canaris) e fortes (Dworkin, Alexy) entre princípios e regras, demonstra que os critérios usualmente empregados para a distinção são os seguintes: Em primeiro lugar, há o critério do caráter hipotético-condicional, que se fundamenta no fato de as regras possuírem uma hipótese e uma conseqüência que predeterminam a decisão, sendo aplicadas ao modo se, então, enquanto os princípios apenas indicam o fundamento a ser utilizado pelo aplicador para futuramente encontrar a regra para o caso concreto. (…) Em segundo lugar, há o critério do modo final de aplicação, que se sustenta no fato de as regras serem aplicadas de modo absoluto tudo ou nada, ao passo que os princípios são aplicados de modo gradual mais ou menos. Em terceiro lugar, o critério do relacionamento normativo, que se fundamenta na ideia de a antinomia entre as regras consubstanciar verdadeiro conflito, solucionável com a declaração de invalidade de uma das regras ou com a criação de uma exceção, ao passo que o relacionamento entre os princípios consiste num imbricamento, solucionável mediante ponderação que atribua uma dimensão de peso a cada um deles. Em quarto lugar, há o critério fundamento axiológico, que considera os princípios, ao contrário das regras, como fundamentos axiológicos para a decisão a ser tomada.

Postos os aspectos conceptuais dos princípios e levando-se em conta o objeto de estudo, são princípios processuais informadores do instituto do aparte o princípio da oralidade, o princípio da lealdade processual, o princípio da verdade real, o princípio do contraditório, o princípio da plenitude da defesa e o princípio da imparcialidade.

Evidente que não se nega a influência de todos os demais princípios processuais, entretanto, o escopo nesta quadra do escrito consiste em analisar aqueles que guardam direta relação com o instituto.

24 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição a aplicação dos princípios jurídicos. 8. ed. ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 39.

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O princípio da oralidade propõe seja dada prioridade a palavra falada e não escrita. Pressupõe referido princípio haja identidade física do juiz (imediatidade), concentração dos atos processuais e irrecorribilidade das decisões.

No sistema processual brasileiro, a segunda fase do procedimento dos crimes dolosos contra a vida (judicium causae) ostenta a maior oralidade procedimental positivada.

Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly25 explicam que:

No processo oral é imprescindível a concentração dos atos de tal forma que as impressões colhidas pelo magistrado – ou juízes leigos – não se esvaiam com o tempo. Nosso Código de Processo Penal prevê, na segunda fase do procedimento dos crimes dolosos contra a vida – judicium causae –, mais especificamente durante a sessão de julgamento, a consagração máxima da concentração. Com efeito, todos os atos são reunidos numa única audiência (interrogatório, oitiva de testemunhas, debates e julgamento) e a interrupção implicará em novo julgamento, inclusive com a formação de outro Conselho de Sentença (CPP, arts. 422 e ss.).

Por óbvio que a vedação infundada dos apartes e a sua utilização com desvio de finalidade provocam grave afronta ao princípio da oralidade. Isso porque havendo predomínio da palavra falada, especialmente durante os debates, não haverá espaço para garantir o acesso dos juízes do fato sobre questão fundamental para decisão da causa. Cediço não existir previsão na ordem jurídica de as partes, durante a sessão de julgamento, no momento em que o ex adversu discursa, realizar encaminhamentos de documentos, ou petitórios, ou manifestações por escrito para contra-argumentar, contraprovar, ou esclarecer.

Se no procedimento do júri, especialmente na fase do judicium causae, apenas oralmente sustenta-se as teses, e, por assim ser, o conhecimento dos juízes do fato decorre das perorações, grave afronta ao princípio da oralidade ocorrerá na vedação infundada dos apartes ou na permissão do seu uso em desvio de finalidade.

O Princípio da lealdade processual informa que aos participantes do processo está imposto o dever de atuar com respeito aos valores éticos e morais, evitando propalação de impropérios, perorações injuriosas e mendazes.

Sendo o processo instrumento para exercício da função jurisdicional, que tem por escopo a mantença da paz coletiva, não há como conceber possam os participantes do

25 DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Curso de processo penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 12 e 13.

ritual procedimental, agir com má-fé. Acima do interesse de qualquer um que atua no feito está o interesse coletivo de solução justa da lide.

Oportuna lição extrai-se da ponderação do processualista Humberto Theodoro Júnior26:

O Estado e a sociedade, de maneira geral, apresentam-se profundamente empenhados em que o processo seja eficaz, reto, prestigiado, útil ao seu elevado desígnio. Daí a preocupação das leis processuais em assentar procedimentos sob os princípios da boa-fé e da lealdade das partes e do juiz. A lei, pois, não tolera a má-fé e arma o juiz de poderes para atuar de ofício contra a fraude processual (art. 129). ‘A lealdade processual é conseqüência da boa-fé no processo e exclui a fraude processual, os recursos torcidos, a prova deformada, as imoralidades de toda ordem’.”

Afronta, pois, o princípio da lealdade processual aquele que usa do aparte com desvio de finalidade, ou seja, para apresentar discurso paralelo, para propalação de sustentação injuriosa, para sustentação distante da verdade.

Da mesma forma, afronta o princípio da lealdade processual, permitir que o debatedor titular da palavra discurse com argumentos injuriosos e não verdadeiros, impedindo-se que o ex adversu aparteie sob o pretexto de preservar o contraditório e a plenitude da defesa.

O princípio da verdade real informa que para propalação de juízo, especialmente, condenatório, faz-se mister a profunda cognição das provas e do fato, não se contentando com a verdade formal.

Observa Fernando da Costa Tourinho Filho27:

A função punitiva do Estado deve ser dirigida àquele que, realmente, tenha cometido uma infração; portanto o Processo Penal deve tender à averiguação e descobrimento da verdade real, da verdade material, como fundamento da sentença. No campo extrapenal, porque de regra estão em jogo interesses disponíveis, as partes podem, usando dos seus poderes dispositivos, transacionar, transigir, submeter-se à vontade da parte ex adversa, tornando impossível a restauração real dos fatos.

26 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 33.

27 Ob. cit. p. 17

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Se a função sancionadora do Estado deve direcionar-se somente àquele que tenha praticado o crime, por certo o princípio da verdade real será afetado quando proibir-se o uso do aparte para contra-argumentar, contraprovar e esclarecer. Isso porque haverá patente risco de restrição da cognição dos juízes do fato, podendo culminar em equivocada decisão, ante a carência de cognição plena e exauriente28.

O aparte não apenas propicia reflexões sobre o debate, mas também, maior aprofundamento no conhecimento da causa, sendo aliado direto da verdade real.

O princípio do contraditório informa que aos participantes do processo está assegurado o direito fundamental de serem ouvidos antes da prolação da decisão. É dizer; garantido está o direito de audiência, de debater e apartear. Há hipóteses, entretanto, que referido princípio se manifesta de forma postergada ou diferida no tempo, como nas situações envolvendo medidas de cunho acautelatório, nas quais permite-se a prolação antecipada de decisão antes da bilateralidade de audiência, com o fim de preservar o resultado útil do provimento jurisdicional e proteger o bem da vida a ser tutelado29. Possui, referido princípio, assento constitucional (artigo 5º, inciso LV, CF/88).

Explica Guilherme de Souza Nucci30:

Cuida-se de um dos princípios aplicáveis tanto ao órgão acusatório quanto à defesa, embora contenha algumas distorções, que merecem ser limitadas. O contraditório significa a oportunidade concedida a uma das partes para contestar, impugnar, contrariar ou fornecer uma versão própria acerca de alguma alegação ou atividade contrária ao seu interesse. Inexiste incentivo para contradizer um fato, com o qual se concorda, ou uma prova, com a qual se está de acordo. Logo a abertura de chance para analisar e, querendo, contrariar já é suficiente exercício do contraditório, vale dizer, não é a expressa manifestação contrária de uma parte, dirigida a outra, que faz valer o contraditório. Este emerge legítimo, quando se concede a oportunidade para manifestação em relação a algo, no processo, mesmo que não seja utilizada. (…) O contraditório possui o natural limite da dialética: um argumento gera um contra-argumento; uma prova gera uma contraprova; um pedido provoca um contrapedido ou uma contrariedade. Porém, uma

28 Da lavra de Kazuo Watanabe referida expressão pode ser melhor compreendida com a leitura, que se recomenda, da obra Da cognição no processo civil. 2. ed. atual. Campinas: Bookseller, 2000.

29 A doutrina costuma classificar o momento da manifestação do contraditório no processo em contraditório antecipado ou inicial e contraditório postergado ou diferido. A este respeito consultar: NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 5. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 140-144.

30 NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios constitucionais penais e processuais penais. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 313 e 314.

das partes finalizará o uso do contraditório. Não se pode validar o infinito método de contraposição de argumentos ou pedidos.

Vê-se, com isso, que os postulados do princípio do contraditório supedaneiam a existência e o uso do aparte. Em sendo assim, impedir o aparte ou permiti-lo em desvio de finalidade, em excesso, estar-se-á praticando deletéria afronta ao princípio.

Como assinalado por César Danilo Ribeiro de Novais31:

Como é curial, por força do princípio dialético ou dialógico, o ritual do Júri é caracterizado por um embate contraditório: para cada argumento, um contra-argumento; para cada prova, uma contraprova. Não por outra razão que, em meio aos debates, as partes poderão apartear quem estiver fazendo uso da palavra. Vale dizer, a parte ex adversu poderá participar do discurso do orador, pronunciando-se sobre o assunto em debate. É a figura do aparte. Em outras palavras, no Júri, ocorre verdadeiro embate dialético entre Ministério Público e defesa, confronto sempre enriquecido pelos apartes, que são da essência do duelo em plenário. Bem entendido: é do entrechoque de argumentos, ideias e teses que faísca um julgamento justo.O princípio da plenitude da defesa assegura ao réu, para além da ampla defesa, o direito fundamental de apresentar de forma plena e completa sua defesa em processo no qual se apura a prática de crimes dolosos contra vida e seus conexos. Assim como o contraditório, possui fundamento constitucional (artigo 5º, inciso XXXVIII, a, CF/88).Guilherme de Souza Nucci32, sustentando a distinção entre a ampla defesa e a plenitude de defesa, esclarece:Amplo é algo vasto, largo, copioso, enquanto pleno equivale ao completo, perfeito, absoluto. Somente por esse lado já se pode visualizar a intencional diferenciação dos termos. E, ainda que não tenha sido proposital, ao menos foi providencial. O que se busca aos acusados em geral é a mais aberta possibilidade de defesa, valendo-se dos instrumentos e recursos previstos em lei e evitando-se qualquer forma de cerceamento. Aos réus, no Tribunal do Júri, quer-se a defesa perfeita, dentro, obviamente, das limitações naturais dos seres humanos. (...) No processo em trâmite no plenário do Júri, a atuação apenas regular coloca em risco, seriamente, a liberdade do réu. (…) Sob outro aspecto, é preciso considerar que o magistrado, no processo comum, fundamenta suas decisões, expondo, portanto, as razões que o levaram a condenar o réu. Tal sistema não ocorre no Tribunal Popular. (…) Os jurados simplesmente votam, condenando ou absolvendo, sem qualquer

31 Ob. cit., p. 83 e 84.

32 NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do júri. 5. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 25 e 26.

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fundamentação. É parte do sigilo das votações, outro princípio constitucional da própria instituição do júri. Por tal motivo, deve-se buscar a defesa plena – a mais perfeita possível dentro das circunstâncias concretas. Deslizes não devem ser admitidos. Advogados que atuam no Tribunal do Júri devem ter tal garantia em mente: a plenitude de defesa. Com isso, desenvolver suas teses diante dos jurados exige preparo, talento e vocação. O preparo deve dar-se nos campos jurídicos e psicológico, pois se está lidando com pessoas leigas. O talento para, naturalmente, exercer o poder de convencimento ou, pelo menos, aprender a exercê-lo é essencial. A vocação, para enfrentar horas e horas de julgamento com equilíbrio, prudência e respeito aos jurados e às partes emerge como crucial.

Não se nega o fato de a plenitude da defesa garantir ao acusado muito mais do que prescreve a ampla defesa, consoante os ensinamentos apresentados por Guilherme de Souza Nucci. Entretanto, discordamos de sua33 posição no sentido de que

a adoção da diferença entre ampla defesa e plenitude da defesa provoca o desequilíbrio entre as partes (acusação e defesa), devendo pender o juiz, nas questões de direito, em favor do defensor, logo, do acusado.

Discordamos, também, de sua posição34 quanto à possibilidade de inovação da tese da defesa na tréplica como legítimo direito do réu, sem que o Ministério Público possa contra-argumentar.

Com as venias devidas, caminhamos noutras veredas ao enfrentar estas situações. Explica-se. Aqueles que sustentam tais teses esquecem que o processo é instrumento para o exercício da função jurisdicional que tem como principal escopo a pacificação social, que consiste em consectário lógico de decisões justas. Por certo, decisões justas não são necessariamente aquelas que prolatadas em favor do réu. Não está o justo vinculado à absolvição ou à decisões de desqualificações ou que reconhecem privilégios e redução de pena.

E mais, não é o processo apenas instrumento de garantia do réu. A instituição democrática do Tribunal do Júri não foi concebida com o objetivo especial de garantir ao réu a plenitude da defesa. Na realidade referida instituição foi criada com a finalidade de assegurar a plena tutela à vida, não sendo desarrazoado afirmar que com a prolação

33 Ob. cit., p. 27

34 Ob. cit., p. 27

do julgamento os pares do acusado explicitam a intolerância com condutas tendentes a retirar a vida alheia.

Destarte, o processo deve ser encarado, também, como instrumento de tutela dos interesses da vítima, e não apenas como método de assegurar a defesa do réu. Trata-se de visão por demais limitada restringir o exercício da função jurisdicional em benefício somente do réu.

Não apenas isso, pensar no processo somente como instrumento de garantia do réu, é esquecer que o Promotor de Justiça não se trata de acusador oficial, ou Promotor de Acusação. Cediço não haver qualquer imposição ou dever de o membro do Ministério Público sustentar necessariamente a condenação do réu. Não se pode esquecer que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, assegurou ao Promotor de Justiça a independência funcional (art. 127, § 1º). Não é por outra razão que Carlos Maximiliano ao se referir ao Ministério Público, em sua oração de despedida do Supremo Tribunal Federal, quando deixara a missão de Ministro da Suprema Corte, propalar ser o Ministério Público a Magistratura de pé, por colocar os interesses coletivos acima do individual35. De pé, porque, diferentemente dos magistrados, têm função ativa na propositura de medidas em favor dos interesses sociais. Estas, inclusive, as razões da denominação do Ministério Público como parte imparcial, que ao princípio parece um paradoxo, mas em essência revela a verdadeira natureza de atuação do Promotor de Justiça. A propósito o próprio doutrinador Guilherme de Souza Nucci36 diz:

Consideramos Ministério Público, em sua atuação na esfera criminal, quando no polo ativo, como parte imparcial. Tal medida se deve ao fato de poder o membro da instituição ter a possibilidade de, expondo suas razões, pleitear a absolvição do réu, ainda que em plenário, no Tribunal do Júri.

Ora, pois, sustentar a ideia de que possa o juiz pender para a defesa, ou que a defesa possa inovar a tese em sua tréplica sem conferir ao Ministério Público o direito de contra-argumentar, é reconhecer por via oblíqua, que o Ministério Público no processo penal, especialmente no plenário do Tribunal do Júri, trata-se de insano acusador.

Cabe, assim, ao juiz presidente, caso perceba deficiência na defesa, declarar o réu por indefeso e dissolver o Conselho designando nova data para julgamento com novo defensor, aplicando-se o que a norma processual penal estabelece (art. 497, V, do CPP), e não atuar com parcialidade. Até porque, deixando de ser imparcial

35 Ob. cit., p. 371.

36 NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do júri. 5. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 186.

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influenciará os juízes leigos podendo provocar decisão distante do justo. Não se pode esquecer que, Ministério Público e Defesa possuem maior conhecimento dos fatos, não porque o juiz presidente não exerce cognição, mas em razão de o Ministério Público e a Defesa terem, pela natureza do mister, maior acesso ao fato e circunstâncias, pois como se sabe, o Júri começa antes mesmo do inquérito policial, sendo evidente as maiores condições destes em saber o que representa justiça na situação posta em julgamento.

Quanto à inovação de tese, verifica-se que a postura que mais se amolda aos princípios informadores da ordem jurídica brasileira, traduz-se naquela em que, não apenas em respeito à plenitude da defesa permita a inovação de tese pela defesa na tréplica, mas que assegure a efetividade plena do princípio do contraditório, da lealdade processual e o direito fundamental de tutela à vida, permitindo a contra-argumentação pelo Ministério Público.

Especificamente em relação ao aparte, é evidente que o seu uso indevido, com desvio de finalidade, provoca afronta ao princípio da plenitude da defesa. Claro que, havendo excesso no uso do aparte de forma injustificada, impedindo que a Defesa sustente suas teses, não se alcançará sua plenitude e, por conseguinte, o princípio constitucional restará abalado.

O princípio da imparcialidade, por fim, dispõe ser inadmissível no sistema de prestação da tutela jurisdicional a atuação do juiz com parcialidade. Não há justiça e pacificação social com a presença de juízes tendenciosos e parciais. Referido princípio informa todo o processo penal e, por assim ser, o procedimento de apuração dos crimes dolosos contra vida e seus conexos.

Explica Fernando da Costa Tourinho Filho37 que

não se pode admitir Juiz parcial. Se o Estado chamou para si a tarefa de dar a cada um o que é seu, essa missão não seria cumprida se, no processo, não houvesse imparcialidade do juiz. Mas a imparcialidade exige, antes de mais nada, independência.

No uso do aparte pode-se constatar o desrespeito deste princípio quando o juiz presidente assume postura de indeferimento indiscriminado dos apartes.

Bem por isso, André Estefam38 faz a seguinte reflexão:

37 Ob. cit., p. 18.

38 ESTEFAM, André. O novo júri: lei n. 11.689/2008. São Paulo: Damásio de Jesus, 2008, p. 67.

A decisão do legislador, no sentido de conferir ao Juiz Presidente o dever de conceder os apartes, coloca-o numa situação delicada. Pensamos que, para evitar que a opinião pessoal do Juiz influencie no veredicto dos jurados, deve ele agir com parcimônia, indeferindo somente os apartes que forem manifestamente impertinentes ou exclusivamente provocativos. Não pode o Juiz, sob hipótese alguma, analisar criticamente o requerimento, seja para deferi-lo ou indeferi-lo. O risco de que sua opinião seja levada em conta pelos jurados é muito grande, motivo por que deve ser quase lacônico ao atender ou não o pedido, consignando em ata tais incidentes.

Tais ponderações dizem respeito ao aparte legal, que será analisado no tópico seguinte deste estudo, porém, desde logo se percebe que, eventual aprofundamento da matéria, pelo juiz que preside o ato solene, para deferi-lo ou indeferi-lo, pode provocar afronta reflexa na imparcialidade, conferindo aos juízes leigos a falsa impressão de que o juiz presidente posta-se favorável à determinado debatedor ou tese.

6 Espécies de aparte no Tribunal do Júri

Analisando a disposição legal e levando em conta a praxe forense, a doutrina indica que duas são as espécies de aparte no Tribunal do Júri, sendo uma decorrente da previsão normativa e, portanto, denominada de legal ou obrigatória, outra, substrato da fineza do debatedor, chamada por isso de facultativa.

Nas palavras de Edilson Mougenot Bonfim39,

dois são os tipos de apartes possíveis no Tribunal do Júri: a) o aparte livre ou facultativo, que consiste em uma concessão do orador que estiver fazendo uso da palavra; b) o aparte regulamentado, legal ou obrigatório, pelo art. 497, XII, do CPP, que decorre de um requerimento dirigido ao magistrado, pelo aparteante.

Acrescente-se a estas duas espécies uma terceira, também decorrente da prática nos plenários do Júri Popular, desenvolvida por Edilson Mougenot Bonfim40, qual seja, o aparte inverso.

39 BONFIM, Edilson Mougenot. Código de processo penal anotado.3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 887.

40 Delineado no curso “Atuação do Promotor de Justiça no Tribunal do Júri”, ministrado no auditório da Procuradoria Geral de Justiça de Mato Grosso nos dias 08 e 09 de maio de 2014.

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O aparte no Tribunal do Júri | Caio Marcio LoureiroCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 7776

Ressalte-se que referida espécie de aparte ainda não se encontra delineada em material doutrinário pelo autor em comento, entretanto, não se poderia deixar de incluí-la neste escrito, pois como outrora evidenciado destina-se a analisar o instituto do aparte no Tribunal do Júri não apenas com completude, mas sem omitir experiências da praxe jurídica capazes de bem orientar àqueles que se dedicam à tribuna.

Bem por isso que, vai consignada a ressalva de ordem metodológica no sentido de não haver indicação de fonte bibliográfica a respeito desta citação, porém preserva-se o essencial: a indicação do teor doutrinário e do autor da obra, que por certo, é prima.

Segue-se, pois, a análise de per si de cada espécie de aparte.

O aparte livre ou facultativo trata-se de substrato do costume forense e dos antecedentes históricos do Júri popular. Antes mesmo de qualquer previsão legal, já era utilizado como instituto dependente da cortesia do orador que estava com a palavra.

Escreve o doutrinador41 acima mencionado que:

(…) Trata-se de uma concessão da parte que estiver com a palavra. Assim, o ex adversu solicita-o ao orador: ‘V. Exa. me permite um aparte?’, que será ou não concedido pelo aparteado. Diz-se concessão, porquanto o tempo é destinado por lei às partes e uma vez interrompido o orador para esclarecimento, retificação, reptos etc. pela parte contrária, depende de sua exclusiva permissão a interferência que se faz. Não há, pois, proibitivo algum, nem na solicitação do aparte, tampouco em sua concessão, sobretudo quando se homenageia com os apartes o princípio da verdade real e da lealdade das partes, informadores do processo penal. Um, o aparte, por vezes é tão inevitável quanto a resposta do aparteado. Por isso se diz ‘debates do Júri’ e não meras alegações das partes, visto que estas se reduziriam a compartimentos oratórios estanques, as quais a visita oral do opositor seria sempre proibida. Há, na dinâmica do Júri, situações variadas, quando dos debates, nas quais o aparte direto, rápido, não somente contribui para aclarar pontos obscuros e devolver a atenção dos jurados ao julgamento da causa, como o próprio aparteado por vezes agradece a proveitosa interrupção. Assim, aparte é tanto uma anuência ou elogio quanto pedido de esclarecimento em ponto dúbio, contradição breve a uma afirmativa dada, uma rápida retortio argumenti, podendo ser, enfim, mesmo a presença de espírito que, fugaz, revela em poucas palavras um sofisma alheio. Nesse sentido, conquanto a lei conceda o direito de acusação e defesa às partes, destinando-lhes um tempo para as respectivas manifestações, são eles que decidem a melhor maneira de desincumbirem-se de suas funções. Por isso, há oradores que provocam os apartes, e há aqueles que os solicitam, a tudo, pois, emprestando-

41 BONFIM, Edilson Mougenot. Código de processo penal anotado.3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 887 e 888.

se o feitio de um verdadeiro debate. (…) A experiência denota que há oradores que, de tão bons, não devem ser aparteados; outros, tão sofríveis, desprezados sem distinção dos apartes; outros, ainda, mendazes, cuja busca da verdade real recomenda inúmeros apartes pelo ex adversu, denotando assim, que a regra para esses interrupções esclarecedoras, corretivas ou desafiadoras deva ser o caso concreto, jamais a ‘momentização’ ou ‘minutização’ genérica, como regulamenta a norma para aquelas situações em que se impõe a interferência do magistrado (‘aparte regulamentado’).

Por sua vez o aparte regulamentado, legal ou obrigatório cuida-se de interrupção do orador prevista no Código de Processo Penal42. Nesta espécie a atuação do juiz presidente revela-se maior, eis que, diferentemente do aparte livre, não dependerá do obséquio do ex adversu, mas será pleiteado junto ao magistrado que, deverá regulamentar seu uso, tendo em vista o que informam os princípios processuais penais.

Edílson Mougenot Bonfim43 ensina que:

Pode acontecer que aquele que estiver com a palavra aja com má-fé, desídia ou puro equívoco, distorcendo, olvidando ou se referindo erroneamente a fatos ou provas dos autos, obrigando o aparteante ou a interrompê-lo (‘aparte livre’) – que dependerá de sua autorização para cessão da palavra – ou diretamente socorre-se do juiz presidente (hipótese do art. 497, XII). É desta hipótese que trata o novo ‘aparte regulamentado’. Assim, se, por exemplo, solicitado o aparte, este não for concedido, diante da necessidade de se fazê-lo e em obediência à verdade real, o juiz presidente imporá ao aparteado a obrigação de ceder parte de seu tempo ao aparteador, repondo-o posteriormente. Destarte, se o aparteante requerê-lo diretamente ao juiz presidente, de acordo com a norma do art. 497, XII, estará o aparteado compelido à concessão e, nesse sentido, regulamenta-se o aparte. E regulamenta-se por quê? Porque não se permite que o orador faça de seu discurso um instrumento sem controle a serviço da burla ou da chicana, e, por outro lado, ao fixar-lhe tempo, não permite ao aparteante um discurso sem fim, mesmo que estribado em inicial direito.

42 Edilson Mougenot Bonfim informa que o aparte regulamentado assemelha-se a “forma de aparte do Júri Inglês e dos países da Common Law, em que uma das partes interpõe protesto contra a outra, via do juiz presidente” (BONFIM, Edilson Mou-genot. Júri: do inquérito ao plenário. 4. ed. São Paulo: Saraiva: 2012, p. 327).

43 Código de processo penal anotado.3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 888 a 889.

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O Código de Processo Penal não limitou o número de apartes legais ou regulamentados. Apenas cuidou de estabelecer o tempo destinado a cada aparte. Neste sentido, o mesmo autor44 em referência observa:

Acrescentou-se o inciso XII à lei, que prevê os ‘apartes regulamentados’, possibilitando ao magistrado limitar o tempo da intervenção (‘até três minutos’). O legislador pretendeu regulamentar essa espécie de aparte por intermédio dos magistrados e, na impossibilidade de limitar-se o número destes (um, dois, dez apartes), limitou-se o tempo de execução de cada um, donde a inevitável pergunta: e se forem cinco, dez ou quinze apartes, de ‘no máximo três minutos’ cada, restam permitidos? Parece-nos que sim, à falta de norma proibitiva e a depender da argumentação de quem esteja fazendo o uso da palavra. A lei não os quantificou em números, mas os limitou em tempo, dependendo, ao depois, do arbitrium regulatum do juiz presidente.

No que se refere à terceira espécie, o aparte inverso, explica Edilson Mougenot Bonfim que referida espécie consiste naquela em que o orador, que está com a palavra, convoca a parte ex adversa para esclarecer alguma questão.

No aparte inverso, durante a exposição, o orador que detêm a palavra, assume postura ativa e suscita o revés para que o mesmo tente sustentar conclusão diversa da proposta por ele. O orador abre a oportunidade para que a parte adversa contrarie suas argumentações.

A peculiaridade e a recomendação na utilização de referida espécie de aparte estão no fato de que aquele que provoca o aparte é o próprio orador, o qual deve possuir argumentação infalível, pois do contrário, não se indica o uso deste tipo de aparte, eis que representará postura suicida no debate da causa.

Vale dizer, só se recomenda o uso do aparte inverso ao detentor da razão lógica, probatória e, portanto, argumentativa.

Alguns exemplos ilustrativos:

O Doutor Defensor afirmou aos Senhores que o tiro atingiu apenas o abdome da vítima. Então, eu exorto Vossa Excelência, Doutor Defensor, que, neste momento, explique aos jurados a origem do orifício de entrada no dorso do cadáver, que consta do mapa topográfico de lesões, fls. x. Vamos, queremos ouvi-lo! A palavra está com Vossa Excelência!

44 BONFIM, Edilson Mougenot. Código de processo penal anotado.3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 889.

Jurados, estou terminando! Indago ao Doutor Defensor se tem alguma dúvida? Vamos, Doutor, pergunte-me! Assim, já a esclareço, podendo haver a dispensa da réplica.

Há, pois, três espécies de aparte, não sendo todos dependentes da intervenção do juiz presidente, haja vista que em se tratando de aparte livre ou facultativo e aparte inverso, não é o magistrado que os regulamenta, mas os debatedores.

Diante das observações acima alinhavas, cabível uma indagação: Poderia o juiz presidente vedar ou limitar o aparte livre ou facultativo?

Entende-se que sim. O fato desta espécie de aparte não depender, como regra, da intervenção do juiz presidente, não significa que o mesmo está alheio a qualquer fiscalização quanto à sua utilização. É dizer; a liberdade que possui este tipo de aparte não importa em afirmar não tenha o juiz presidente o ônus de fiscalizar sua utilização evitando-se os excessos.

Por certo o uso exacerbado do aparte, ainda que concedido voluntariamente pelo debatedor, pode provocar afronta tanto a plenitude da defesa, quanto ao adequado exercício ministerial para dar efetividade à tutela dos interesses sociais, dentre eles o direito fundamental à vida.

Caberá, com isso, ao juiz que preside o Júri atentar-se para situações em que possam levar o réu a ficar indefeso ou à sociedade, diante do impedimento da peroração ante aos constantes apartes, mesmo na forma facultativa, eis que, por vezes, a inexperiência do orador, pode fazer com que se deixe influenciar pela astúcia do aparteante, que provoca constante interrupção na fala ou apresenta discurso paralelo.

Quanto ao aparte inverso, por revelar verdadeira estratégia daquele que realiza a peroração, assumindo postura ativa de convocar a parte adversa para tentar contra-argumentar o que não é viável contradizer e contraprovar, não há espaço para limitações no seu uso pelo juiz-presidente.

7 Conclusões

1. Não se trata o aparte de exclusividade do ritual do Júri. No teatro e nas obras literárias o aparte encontra seu espaço e origem, sendo oportuno nos discursos dramáticos. Há previsão de seu uso nos regimentos internos da Câmara dos Deputados, Senado da República e Supremo Tribunal Federal.

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2. Solos férteis para a incidência dos apartes são os discursos e debates. É durante a peroração, na qual o orador apresenta seus argumentos, que se dá ensejo aos apartes como contraponto ao que se sustenta. Destarte, existindo argumentação abrem-se as portas para os apartes. Bem por isso que, discursos, debates e argumentações são locus naturale do aparte.

3. O Ministério Público e a Defesa ocupam posição fundamental no exercício das argumentações, as quais possuem superior hierarquia nos debates. Ao Ministério Público se impõe o dever de atuar de forma efetiva para tutela plena da vida. À Defesa direciona-se a exigência de exercer o seu papel de maneira a garantir a plena defesa do réu. Na tribuna do Júri popular, sem debatedores (Ministério Público e Defesa) não há debates; sem debates não há argumentações; e, sem argumentações, não há oportunidade para contra-argumentações (apartes).

4. Para a profícua atuação no Tribunal do Júri, membro do Ministério Público e Defensor devem ser vocacionados, a ponto de, ao ocupar a tribuna, transmudar sua postura em um estado que movimente alma e espírito, que o faça surpreender-se e surpreender os que os ouvem, que da nuvem fúnebre, sensação de tristeza e do peso do ambiente formado por pessoas que se reúnem para lidar com a cessação da vida de outrem, provoque no jurado juízo de justiça e não de bondade, propiciando nos participantes e, em especial nos julgadores, a sensação de alegria e felicidade que afiançam a exclamação: “hoje eu fiz justiça”.

5. Assim como o toque da arte realça um dado o transformando em construído, conferindo-lhe formosura; assim como o amor realça o verdadeiro valor da vida; o aparte evita a insipidez dos debates. Esta a razão, inclusive, de sua existência consuetudinária, ou seja, independente da previsão normativa. A praxe forense já celebrava sua existência e o utilizava com frequência mesmo não o disciplinando a ordem jurídica. São os apartes as manifestações que interferem na sustentação oral do ex adversu, por meio da incontinenti contra-argumentação ou contraprova, com o escopo de resistir aos argumentos do orador que detêm o tempo de oração. Destina-se, também, ao esclarecimento dos juízes do fato a respeito de ponto fundamental do processo em julgamento, bem como a evitar a permanência de mendaz peroração.

6. Em consonância com seus elementos conceptuais, o aparte não se destina ao tumulto, nem pode representar a admissão de discurso paralelo ou distante da questão posta em debate, sob pena de desvio de sua finalidade, e consequente afronta aos princípios informadores do direito processual penal, aplicáveis diretamente ao instituto do aparte.

7. A faculdade disciplinada pelo Código de Processo Penal, no artigo 480, não se refere ao aparte. A regra em baila destina-se aos jurados, aos oradores e até mesmo ao juiz que presidente o Júri Popular, no sentido de que poderão, a qualquer momento, solicitar ao debatedor que indique a folha dos autos onde se encontra a peça por ele lida ou citada, facultando-se, ainda, aos jurados solicitar-lhe, pelo mesmo meio, o esclarecimento de fato por ele alegado.

8. São princípios processuais informadores do instituto do aparte o princípio da oralidade, o princípio da lealdade processual, o princípio da verdade real, o princípio do contraditório, o princípio da plenitude da defesa e o princípio da imparcialidade.

9. Se no procedimento do júri, especialmente na fase do judicium causae, apenas oralmente sustenta-se as teses, e, por assim ser, o conhecimento dos juízes do fato decorre das perorações, grave afronta ao princípio da oralidade ocorrerá na vedação infundada dos apartes ou na permissão do seu uso em desvio de finalidade.

10. Afronta o princípio da lealdade processual aquele que usa do aparte com desvio de finalidade, ou seja, para apresentar discurso paralelo, para propalação de sustentação injuriosa, para sustentação mendaz. Da mesma forma, afronta o princípio da lealdade processual, permitir que o debatedor titular da palavra discurse com argumentos injuriosos e não verdadeiros, impedindo-se que o ex adversu aparteie sob o pretexto de preservar o contraditório e a plenitude da defesa.

11. Se a função sancionadora do Estado deve direcionar-se somente àquele que tenha praticado o crime, por certo o princípio da verdade real será afetado quando proibir-se o uso do aparte para contra-argumentar, contraprovar e esclarecer. Isso porque haverá patente risco de restrição da cognição dos juízes do fato, podendo culminar em equivocada decisão, ante a carência de cognição plena e exauriente. O aparte não apenas propicia reflexões sobre o debate, mas também, maior aprofundamento no conhecimento da causa, sendo aliado direto da verdade real.

12. Os postulados do princípio do contraditório supedaneiam a existência e o uso do aparte. Em sendo assim, impedir o aparte ou permiti-lo em desvio de finalidade, em excesso, estar-se-á praticando deletéria afronta ao princípio em referência.

13. O uso indevido do aparte, com desvio de finalidade, provoca afronta ao princípio da plenitude da defesa, pois havendo excesso na utilização do aparte de forma injustificada, impedindo que a Defesa sustente suas teses, não se alcançará sua plenitude e, por conseguinte, o princípio constitucional restará abalado.

14. No uso do aparte pode-se constatar o desrespeito ao princípio da imparcialidade quando o juiz presidente assume postura de indeferimento indiscriminado dos apartes. Da mesma forma, eventual aprofundamento da matéria, pelo juiz que preside o ato

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solene, para deferi-lo ou indeferi-lo, pode provocar afronta reflexa na imparcialidade, conferindo aos juízes leigos a falsa impressão de que o juiz presidente seja favorável a determinado debatedor ou tese.

Analisando a disposição legal e levando em conta a praxe forense, pode-se concluir que três são as espécies de aparte no Tribunal do Júri, sendo uma decorrente da previsão normativa e, portanto, denominada de legal ou obrigatória, outra, fruto da fineza do debatedor, chamada por isso de facultativa, e, o aparte inverso, na qual a parte contrária é convocada pelo orador para esclarecer alguma questão. O aparte livre ou facultativo trata-se de substrato do costume forense e dos antecedentes históricos do Júri popular. Antes mesmo de qualquer previsão legal, já era utilizado como instituto dependente da cortesia do orador que estava com a palavra. Por sua vez o aparte regulamentado, legal ou obrigatório cuida-se de interrupção do orador prevista no Código de Processo Penal. Nesta espécie a atuação do juiz presidente revela-se maior, eis que, diferentemente do aparte livre, não dependerá do obséquio do ex adversu, mas será pleiteado junto ao magistrado que, deverá regulamentar seu uso, tendo em vista o que informam os princípios processuais penais. Por fim, no aparte inverso, durante a peroração, o orador que detêm a palavra, assume postura ativa e suscita o revés para que o mesmo tente sustentar conclusão diversa da proposta por ele. O orador abre a oportunidade para que a parte adversa contrarie suas argumentações. A peculiaridade e a recomendação na utilização de referida espécie de aparte está no fato de que aquele que provoca o aparte é o próprio orador, o qual deve possuir argumentação infalível, pois do contrário, não se indica o uso deste tipo de aparte, eis que representará postura suicida no debate da causa. Vale dizer, só se recomenda o uso do aparte inverso ao detentor da razão lógica, probatória e, portanto, argumentativa.

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In Sistemas de Justiça, direitos humanos e violência no âmbito familiar. Coord. por Amini Haddad Campos e Lindinalva Rodrigues Dalla Costa, Curitiba: Juruá, 2011.

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César Danilo Ribeiro de NovaisPromotor de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso - Especialista em Direito

Penal e Processual Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso – Especialista em Direito Constitucional pela Fundação Escola Superior do Ministério

Público de Mato Grosso – Presidente da Confraria do Júri – Editor do Blogue Promotor de Justiça – Autor do livro A defesa da vida no Tribunal do Júri

Revisão Criminal contra condenação do Tribunal do Júri

1. Introdução – 2. Revisão Criminal – 3. Democracia no Poder Judiciário - 4. Soberania Constitucional

do Júri – 5. Harmonização entre a Revisão Criminal e a Soberania dos Veredictos – 6. Conclusão

1 Introdução

Uma das questões mais intrincadas da Ação de Revisão Criminal está atrelada a seu cabimento e efeito contra a sentença condenatória do Tribunal do Júri. Tal questão diz respeito à possibilidade de a Revisão Criminal alterar e substituir decreto condenatório oriundo do Colegiado Popular, cujas decisões são batizadas pelo princípio da soberania dos veredictos.

Questiona-se se a sentença condenatória, protegida pela autoridade da res iudicata, emanada do Tribunal do Júri deve ser substituída quando do acolhimento da Revisão Criminal.

A esmagadora maioria da doutrina e jurisprudência1, escorada no argumento da supremacia do direito à liberdade ao princípio da soberania dos veredictos, admite que a Revisão Criminal possa substituir a sentença condenatória popular, acobertada pela coisa julgada, com a consequente relativização desse princípio informativo do Tribunal Popular.

A propósito, vale destacar a lembrança histórica de Ary Franco2:

1 (...) 1. É possível, em sede de revisão criminal, a absolvição, por parte do Tribunal de Justiça, de réu condenado pelo Tribunal do Júri. (...) 5. Em uma análise sistemática do instituto da revisão criminal, observa-se que entre as prerrogativas oferecidas ao Juízo de Revisão está expressamente colocada a possibilidade de absolvição do réu, enquanto a determinação de novo julgamento seria consectário lógico da anulação do processo. (...) (STJ – 5ª T. - REsp 964.978/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, Rel. p/ Acórdão Min. Adilson Vieira Macabu (Desembargador Convocado do TJ/RJ), julgado em 14/08/2012, DJe 30/08/2012)

2 FRANCO, Ary de Azevedo. Código de Processo Penal. Rio de Janeiro, Forense, 1960, p. 185.

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Com o advento da Constituição de 1946, estabelecendo no §28 de seu art. 141 a soberania dos veredictos do júri, decidiram as Câmaras Criminais Reunidas do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em acórdão de 30 de julho de 1947, por maioria de votos, não mais caber a revisão criminal de julgamento do júri, por contrária à prova dos autos, mas o Supremo Tribunal Federal reformou o entendimento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal no habeas corpus n.º 30.011, publicado no Diário da Justiça, de 31 de outubro de 1949, determinando que o pedido de revisão fosse considerado para julgá-lo como de direito, o que passou a ser seguido pelos demais tribunais de Justiça.

Esse julgamento é um marco histórico, pois dele derivou a jurisprudência pacífica pela admissão da Revisão Criminal contra julgamentos do Júri.

Todavia, a relação da Revisão Criminal com a coisa julgada ligada à sentença condenatória do Tribunal Popular deve ocupar o pensamento jurídico, em virtude da soberania dos veredictos.

A questão não pode ser tão simples e pragmática como pregam a doutrina e a jurisprudência. Ou seja, esse tema não pode ser tratado à distância do real significado desse princípio constitucional afeto ao Tribunal do Júri e ao próprio Estado Democrático de Direito.

Vale dizer, a incidência da Revisão Criminal sobre a sentença condenatória oriunda da Justiça Popular assume delicadeza ímpar tendo em vista a disposição constante no artigo 5º, XXXVIII, da Constituição, que contempla o princípio da soberania dos veredictos.

Nessa senda, é importante a revisitação ao tema para fins de delimitação da Revisão Criminal contra sentença condenatória emanada do Tribunal do Júri, e já acobertada pela coisa julgada, frente ao princípio da soberania dos veredictos.

E é exatamente isso que este texto se propõe: desconstruir esse entendimento, com a apresentação de proposta de harmonização ou concordância prática de ambos os engenhos jurídicos.

2 Revisão Criminal

Coisa julgada ou caso julgado é um fenômeno jurídico revelado na decisão judicial de que já não caiba mais recurso, nem remessa necessária (§4º do art. 6º da LIDB e art. 475 do CPC), atingindo seu mais alto grau de eficácia. Encontra-se riscada em pedra

(art. 5º, XXXVI, da CF) e busca garantir a paz social e a certeza do direito. É expressão dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.

Como ensina Luiz Guilherme Marinoni3:

A coisa julgada, portanto, serve à realização do princípio da segurança jurídica, tutelando a ordem jurídica estatal e, ao mesmo tempo, a confiança dos cidadãos nas decisões judiciais. Sem coisa julgada material não há ordem jurídica e possibilidade de o cidadão confiar nas decisões do Judiciário.

Logo, por força dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, apenas em casos excepcionais, previstos pelo legislador, a coisa julgada pode ser relativizada.

Vale, neste ponto, a lição de José Augusto Delgado4:

A segurança jurídica imposta pela coisa julgada está vinculada aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade que devem seguir todo ato judicial. (...) Ao se deparar com conflito entre os princípios da coisa julgada e outros postos na Constituição, deve-se averiguar a solução pela aplicação do superprincípio da proporcionalidade e da razoabilidade, fazendo prevalecê-los no caso concreto, conduz a uma solução justa e ética e nunca àquela que acabaria por consagrar uma iniquidade, uma imoralidade.

Para tanto, na seara cível, há a Ação Rescisória (art. 485 do CPC), enquanto que, no âmbito penal, a Revisão Criminal (art. 621 do CPP). Duas ações de impugnação da coisa julgada. É o choque entre dois valores: segurança e justiça.

A Revisão Criminal consiste em uma ação de impugnação exclusiva da defesa e tem por alvo a sentença condenatória transitada em julgado, quando presente pelo menos uma das hipóteses previstas no art. 621 do CPP5 - fundamentação vinculada.

Esse instrumento jurídico busca desconstituir6, por motivo de injustiça, a coisa julgada material anteriormente formada em outro processo.

3 MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada inconstitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 68.

4 DELGADO, José Augusto. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. In: NACIMENTO, Carlos Valder do (org.). Coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, p.35.

5 Art. 621.  A revisão dos processos findos será admitida: I - quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos; II - quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documen-tos comprovadamente falsos; III - quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena.

6 Por isso é classificada como ação penal de natureza constitutiva.

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Para sua admissibilidade é necessário haver, além das condições da ação e dos pressupostos processuais, uma sentença condenatória transitada em julgado e a constatação de um dos fundamentos de rescindibilidade, residentes no mencionado artigo (erro judiciário). Cuida-se de rol taxativo, que, por consequência, não admite interpretação ampliativa ou analógica.

Ao contrário de outras Constituições brasileiras, a Revisão Criminal não está explicitada no rol de direitos e garantias fundamentais da atual Constituição, porém, figura como direito fundamental implícito. Foi regulamentada pelo Código de Processo Penal. Tem incidência nos casos de condenação injusta, em que se busca a absolvição, a melhora da situação jurídica ou a anulação do processo.

Na Revisão Criminal, busca-se a nulidade do processo ou a rescisão da sentença para proferir novo julgamento em substituição ao anterior. Fala-se em juízo rescindente ou revidente (judicium recidens) e juízo rescisório ou revisório (judicium rescindens)7. No primeiro, há a nulidade do processo, ao passo que, no segundo, a alteração do mérito. Ou seja, aquele nulifica o feito e envia o réu a novo julgamento; e este substitui a sentença, com a emissão de decisão absolutória ou condenatória mais favorável ao acusado.

No julgamento da Revisão Criminal, se o tribunal decidir desconstituir a decisão impugnada, diz-se que houve juízo rescindente. Se, além de desconstituir a decisão impugnada, o próprio tribunal proferir outra decisão em substituição àquela que foi rescindida, diz-se que houve juízo rescisório. Em síntese, após realizar o juízo rescindente, pode ocorrer (ou não) de o tribunal realizar o juízo rescisório.

Daí que, segundo o art. 626 do CPP, julgando procedente a Revisão Criminal (juízo rescindente), o tribunal poderá: a) alterar a classificação da infração (juízo rescindente + juízo rescisório); b) absolver o réu (juízo rescindente + juízo rescisório); c) modificar a pena (juízo rescindente + juízo rescisório) ou d) anular o processo (nesse caso, só haverá juízo rescindente porque o processo será devolvido ao primeiro grau onde lá será proferida nova sentença).

3 Democracia no Poder Judiciário

O parágrafo único do artigo primeiro da Constituição Federal declara que “todo poder emana do povo”. É a afirmação do princípio da soberania popular.

7 DANTAS, Francisco Wildo Lacerda. Jurisdição, ação (defesa) e processo. Recife: Nossa Livraria, 2004, v.2, p. 293.

Como ensina José Afonso da Silva8, esse dispositivo “consagra a regra de que o povo é a fonte primária do poder, que caracteriza o princípio da soberania popular, fundamento do regime democrático”.

Na democracia representativa o poder efetivo é exercido por poucos em nome de todos. Assim, é o povo que elege seus representantes nos Poderes da República. Todavia, apenas os Poderes Executivo e Legislativo contam com a participação do povo para a sua composição, não havendo tal em sede do Judiciário, uma vez que, como regra, seus membros são constituídos, pela via de concurso público (meritocracia) e não de eleição (democracia). Ou seja, o Poder Judiciário não ostenta lastro popular.

No entanto, compensando o rompimento do princípio democrático quanto à composição do Poder Judiciário, a Constituição contemplou em seu artigo 5º, inciso XXXVIII, o Tribunal do Júri, instituição eminentemente popular. É a porta de entrada da democracia nesse Poder.

Dito de outro modo, a instituição do Tribunal do Júri representa, claramente, a oxigenação democrática do Poder Judiciário. É a justiça democrática em ação.

A propósito, como é sabido, não há nada mais democrático do que o poder exercido diretamente pelo povo. E é exatamente isso que ocorre no âmbito do Tribunal Popular. É o exercício público da justiça.

Não é por outra razão que o Tribunal do Júri possui como um de seus princípios a soberania dos veredictos.

Conclusão altamente intuitiva e eloquente: o princípio da soberania dos veredictos é corolário do princípio da soberania popular no âmbito do Poder Judiciário.

Bem por isso que, com a mesma genética do sufrágio eleitoral, o jurado, livre de pressão, deposita o voto de forma sigilosa e imotivada. Ou seja, o voto é de consciência, em que não é cobrada sua revelação nem suas razões.

Diferente do que ocorre com os membros do Poder Judiciário, que devem fundamentar suas decisões, o jurado decide de forma imotivada, tal qual o cidadão ao registrar seu voto na urna eleitoral. E a razão disso é muito simples: ele é o titular do poder e exerce a democracia direta, logo sua decisão é soberana. Basta, portanto, responder sim ou não aos quesitos. Os magistrados togados, ao contrário, devem motivar e fundamentar suas decisões, já que não são ungidos pela democracia, senão pela meritocracia. Por isso, devem justificar ao povo o porquê da decisão. Só assim esta terá legitimidade jurídica, política e social.

8 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição Federal. 3ª.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 40.

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4 Soberania Constitucional do Júri

Examinando o texto constitucional, logo se vê que o Tribunal do Júri é o órgão judicial competente para julgar os crimes dolosos contra a vida. Assim, havendo prova da materialidade dos crimes de homicídio, participação em suicídio, infanticídio ou aborto e indícios suficientes de autoria ou participação, incumbirá ao Colegiado Popular o julgamento da causa penal.

Para cumprir essa importantíssima missão, o constituinte assegurou que a instituição do Júri fosse pautada pelos seguintes princípios: a plenitude da defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida.

Isso significa dizer que os parâmetros e linhas do Tribunal do Júri foram traçados propositalmente pela Constituição Federal para que a instituição ficasse livre de ingerência indevida do legislador, da doutrina e da magistratura togada.

Outro não é o sentido da lição de Mauro Viveiros9:

Assegurar à instituição do Tribunal do Júri a soberania dos veredictos foi a materialização de um desejo claro do legislador constituinte originário de conferir às decisões do Júri popular o caráter de inalterabilidade por parte do Poder Judiciário ou de qualquer outro órgão do Estado. Visou-se impedir que o conteúdo das decisões do órgão do povo pudesse ser modificada pelos juízes profissionais.

Logo se vê que a soberania dos veredictos pregada pelo texto constitucional não é uma fórmula prescritiva oca, já que, na linha do pensamento de Carlos Maximiliano10, a Constituição não pode albergar palavras vazias, inúteis, ociosas, sem significação alguma.

Por tudo isso, o principio da soberania dos veredictos merece atenção especial, pois, como afirmaram Antonio Carlos da Ponte e Pedro Henrique Demercian11, “júri sem soberania é corpo sem alma, instituição inútil”.

9 VIVEIROS, Mauro. Tribunal do Júri – Na Ordem Constitucional Brasileira: Um Órgão da Cidadania. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 23.

10 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 110.

11 PONTE, Antônio Carlos; DEMERCIAN, Pedro Henrique. Teoria e prática do júri. São Paulo: CPC Livraria e Editora, 2005, p. 13.

O vocábulo soberania significa aquilo que está acima, supremo. Vejamos a definição de De Plácido e Silva12:

SOBERANIA. De soberano, oriundo do baixo latim superanus, e este de super (sobe, em cima), ou de superanus (superior), designa a qualidade do que é soberano, ou possui a autoridade suprema. É o poderio supremo, ou poder sobre todos. No conceito jurídico, soberania entende-se poder supremo, ou o poder que se sobrepõe ou está acima de qualquer outro, não admitindo limitações.

Logo, na lição de Antonio José Feu Rosa13, “não se pode falar em soberania sujeita a um poder superior”.

Ao prever a soberania dos veredictos como um dos princípios do Tribunal do Júri, quis o constituinte assegurar que a última e definitiva palavra acerca de julgamento dos crimes dolosos contra a vida fosse do Colegiado Popular. É a reafirmação do princípio da soberania popular.

Numa palavra: a decisão do Tribunal do Júri não pode ser substituída pela decisão de outro órgão judicial. Nenhum tribunal pode substituir os jurados, condenando ou absolvendo o acusado, sob pena de aniquilamento de rara democracia participativa no Judiciário por meio do Júri. A magistratura togada (meritocracia) não pode se sobrepor à magistratura popular (democracia), já que esta, sim, é genuinamente soberana.

Significa dizer que as decisões do Conselho de Sentença, tomadas quando da votação dos quesitos, não podem ser substituídas nem pelo juiz-presidente, nem por órgão jurisdicional de superior instância. Por conseguinte, as decisões exaradas pelos jurados vinculam o juiz-presidente, quando da prolação da sentença, e os tribunais, quando da análise do mérito da causa, seja em grau recursal, seja em sede de ação impugnatória.

Vale, por oportuno, colar a lição de Márcio Schlee Gomes14:

Tratando-se de órgão composto por cidadãos, em clara situação de participação popular e, assim, de democracia, somente se pode admitir como, efetivamente, valiosa para o meio social, se tiver assegurada a forma de exercer seu poder. Caso contrário, sem

12 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007, p. 1308.

13 ROSA, Antonio José Feu. Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 431.

14 GOMES, Márcio Schlee. Júri – Limites Constitucionais da Pronúncia. Porto Alegre: Editora Sergio Antonio Fabris, 2010, p. 50.

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soberania, haveria o Júri apenas o caráter formal, uma figura jurídica “no papel”, se as suas decisões não fossem definitivas, acabando por serem passíveis de reforma pelos Tribunais togados.

Consectariamente, o Tribunal de Justiça, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal não podem alterar o mérito da sentença, mas, no máximo - repita-se, no máximo -, determinar a submissão do acusado a novo julgamento popular.

Em suma, o monopólio da última e definitiva palavra sobre a matéria – crimes dolosos contra a vida – é da sociedade, por meio do Tribunal do Júri, pois este é soberano, supremo a qualquer outro órgão judicial.

Valem, mais uma vez as palavras de Antonio José Feu Rosa15:

A justiça, e, por conseguinte, os meios próprios de obtê-la, são direito da sociedade. Quem poderia contestar-lhe o direito de julgar e de agir em consequência disso? Que ela se engane, é possível. Mas uma questão de prerrogativa soberana não é uma questão de infalibilidade. Se para ser legítima uma atribuição qualquer da soberania devesse ser exercida duma maneira infalível, não haveria soberania possível. Mas, em caso de erro, o povo, como os indivíduos, suporta muito melhor o que vem daqueles que estão investidos em seu nome, de seus interesses, do que daqueles que lhe são estranhos.

5 Harmonização entre a Revisão Criminal e a Soberania dos Veredictos

Por força do princípio da soberania dos veredictos, a sentença condenatória exarada pelo Tribunal do Júri não pode ser tratada como se fosse uma simples sentença condenatória.

Não se pode esquecer que no Tribunal do Júri há o exercício direto da democracia. Ou seja, é o próprio povo exercendo parcela de soberania do Estado, a jurisdição, sem intermediários (representantes). Nisso reside o fundamento da soberania dos veredictos.

15 ROSA, Antonio José Feu. Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 431

Por isso, a magistratura togada, despida de lastro democrático, não detém legitimidade para fazer com que suas decisões substituam aquelas oriundas do Tribunal do Júri. Nem mesmo diante de flagrante injustiça.

Dito diretamente, por outras palavras: em seu feudo pretensamente soberano, alheio e divorciado da soberania popular (democracia), a magistratura togada não pode rever o mérito das decisões exaradas pelo Tribunal do Júri.

O Poder Judiciário carece de legitimidade constitucional para atropelar o cenário desenhado na sala especial, quando da votação dos quesitos pelo Conselho de Sentença. Não pode aniquilar o poder exercido constitucionalmente pelo povo, o cidadão-jurado.

Cumpre repetir aquilo que já foi dito em linhas passadas: ao prever a soberania dos veredictos como um dos princípios do Tribunal do Júri, quis o constituinte assegurar que o julgamento de última instância dos crimes dolosos contra a vida fosse do Colegiado Popular.

Não há no ordenamento jurídico pátrio, principalmente na Constituição Federal, qualquer exceção a essa regra.

Parafraseando Boaventura de Souza Santos16, “a erosão da soberania dos veredictos acarreta consigo a erosão do protagonismo do povo no julgamento dos crimes dolosos contra a vida”.

Por aí se vê que não é jurídica e logicamente sustentável a posição majoritária da doutrina e da jurisprudência que constitui um despautério de grandes proporções.

A esta altura, levanta-se uma pergunta inescapável: isso significa dizer que as sentenças condenatórias, passadas em julgado, do Tribunal do Júri estão imunes à Revisão Criminal?

A resposta, ainda que possa parecer paradoxal, é negativa.

Primeiro, como está claro, há uma colisão de bens constitucionalmente protegidos, que deve ser resolvida pelo princípio da concordância prática ou harmonização.

Conforme ensina Marcelo Novelino17:

Na hipótese de colisão entre bens constitucionalmente protegidos, o intérprete deverá fazer a redução proporcional do âmbito de aplicação de cada um deles, de maneira que a afirmação de um não implique o sacrifício total do outro.

16 SANTOS, Boaventura de Souza. Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas. O Caso Português. Porto: Afrontamento, 1996, p. 29.

17 NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Paulo: Método, 2008, p. 78.

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Pedro Lenza18, na mesma linha, aduz que

partindo da ideia de unidade da Constituição, os bens jurídicos constitucionalizados deverão coexistir de forma harmônica na hipótese de eventual conflito ou concorrência entre eles, buscando-se, assim, evitar o sacrifício (total) de um princípio em relação a outro em choque.

Nesse sentido, ante a existência de conflito de bens protegidos constitucionalmente, deve-se buscar intepretações através das quais ambos os direitos (ou bens constitucionais), em conformidade com a possibilidade de seu equilíbrio e proporcionalidade, sejam garantidos, em autêntica concordância prática.

Assim, a Revisão Criminal, fundada no direito à liberdade, e a soberania dos veredictos podem conviver harmoniosamente, desde que o intérprete esteja montado no princípio da concordância prática.

Por conseguinte, torna-se evidente a possibilidade de questionar decreto condenatório oriundo do Colegiado Popular pela via de Revisão Criminal, porém, cum granus salis, qual seja, o tribunal poderá efetivar o juízo rescindente, sendo-lhe vedado, em regra, o exercício do juízo rescisório, na mesma linha do que ocorre em sede de apelação. Exceções: substituição de decisão do juiz-presidente, nas hipóteses das alíneas “b” e “c” do artigo 593 do CPP (juízo rescisório mitigado). O juízo rescisório alcança apenas as decisões do juiz presidente, mas jamais as decisões dos jurados. Por isso é mitigado.

É simples: na hipótese de o tribunal entender que a decisão do Júri não encontra respaldo no conjunto probatório do processo, o mesmo poderá exercer o juízo rescindente, determinando a submissão do acusado a novo julgamento popular, o Tribunal do Júri, que é órgão jurisdicional responsável pelo juízo rescisório.

Doutra banda, o tribunal poderá exercer o juízo rescisório nos casos em que a sentença do juiz presidente for contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados e quando houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou medida de segurança.

Observado isso, há perfeita harmonia entre a Revisão Criminal e a soberania dos veredictos.

18 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 73

Outra não é a lição de Guilherme de Souza Nucci19:

Longe de um instituto ferir o outro, há perfeita possibilidade de harmonização. Somente não se fará o entrelaçamento de ambos se houver deliberada vontade de arranhar a soberania popular. Que mal existe em permitir ao próprio tribunal do Júri, obviamente por meio de outros jurados, que reveja a decisão condenatória com trânsito em julgado? Assim fazendo, em última decisão continuará com o povo, assegurando a mencionada soberania dos veredictos.

Antonio Scarance Fernandes20 engrossa a fileira desse posicionamento:

(...) é possível garantir a soberania dos veredictos e a revisão criminal. Se há prova nova, ainda não apreciada pelos jurados e que pode, por meio de um juízo prévio de probabilidade, alterar o quadro condenatório, o correto seria cassar a decisão e encaminhar o réu a novo julgamento. O mesmo aconteceria se ficasse demonstrado ser falsa a provas dos autos. Estaria respeitada a soberania dos jurados e não ficaria o réu impossibilitado de reverter a situação em seu desfavor.

No mesmo sentido, e com inteira razão, manifestou-se o Superior Tribunal de Justiça:

“(...) 1. Como se sabe, as decisões proferidas pelo Tribunal do Júri não podem ser alteradas, relativamente ao mérito, pela instância ad quem, podendo, tão-somente, dentro das hipóteses previstas no art. 593, do Código de Processo Penal, ser cassadas para que novo julgamento seja efetuado pelo Conselho de Sentença, sob pena de usurpar a soberania do Júri. Na verdade, o veredicto não pode ser retificado ou reparado, mas sim, anulado. 2. O cerne da questão, no presente pedido, situa-se no fato de que a decisão do Júri foi reformada, em seu mérito, em sede revisional que, diferentemente da apelação, cuja natureza é recursal, trata-se de verdadeira ação que é ajuizada sob o manto do trânsito em julgado. 3. A meu sentir, seguindo a exegese da melhor doutrina, o reconhecimento pelo Tribunal a quo, de que a decisão do Júri foi manifestamente contrária à prova dos autos, ainda que em sede revisional, não tem o condão de transferir àquela Corte, a competência meritória constitucionalmente prevista como sendo do

19 NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. 2ª.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 446.

20 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 5ª.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, pp. 191-192.

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Tribunal do Júri. Portanto, entendo que cabe ao Tribunal, mesmo em sede de revisão criminal, somente a determinação de que o paciente seja submetido a novo julgamento. (...) (HC 19.419⁄DF, 5.ª Turma, Rel. Min. JORGE SCARTEZZINI, DJ de 18⁄11⁄2002)

“(...) 1. Ao Tribunal do Júri, conforme expressa previsão constitucional, cabe o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, sendo-lhe assegurada a soberania dos seus veredictos. 2. Por outro lado, o ordenamento jurídico assegura ao condenado, por qualquer espécie de delito, a possibilidade de ajuizar revisão criminal, nas hipóteses previstas no art. 621, do Código de Processo Penal. 3. In casu, o recorrente foi condenado pelo delito de homicídio qualificado, tendo transitado em julgado a sentença. Com base na retificação de depoimento testemunhal, foi apresentada revisão criminal, em que se pleiteava a absolvição do requerente, por ausência de provas. 4. Considerando-se que o Tribunal de Justiça julgou procedente a revisão criminal para determinar a realização de novo julgamento popular, com fundamento na soberania dos veredictos, não merece reparo o aresto objurgado por estar em consonância com julgado desta Corte Superior. 5. Recurso desprovido.” (REsp 1.172.278⁄GO, 5.ª Turma, Rel. Min. JORGE MUSSI, DJe de 13⁄09⁄2010)

Por tudo isso é que os veredictos dos jurados são intocáveis, incumbindo ao tribunal, em sede de Revisão Criminal, reconhecer nulidade, readequar a pena (artigo 59 do Código Penal) e, nos casos de falsidade documental, contrariedade ao texto de lei ou à evidência dos autos ou prova nova, reenviar o acusado para novo julgamento popular. Jamais poderá alterar o mérito consagrado pelos veredictos dos jurados.

Não se pode admitir que o Judiciário usurpe o poder democrático do sufrágio popular, consubstanciado pelo voto do cidadão-jurado, e substitua a decisão desenhada pelo Conselho de Julgamento.

Com esse proceder, estarão resguardos os princípios da soberania popular e soberania dos veredictos (Estado Democrático de Direito).

Daí que não há qualquer espaço exegético para que a soberania dos veredictos continue a ser tratada como mera figura decorativo-retórica de uma democracia consolidada e viva que flui no Tribunal do Júri.

Quae sunt Caesaris, Caesari: ao tribunal togado, o juízo rescindente e juízo rescisório mitigado (Revisão Criminal); e ao tribunal popular, o juízo rescindente e juízo rescisório pleno (soberania dos veredictos, soberania popular).

6 Conclusão

No Recurso de Apelação contra sentença do Tribunal do Júri, pode o Tribunal de Justiça efetivar o juízo rescisório amplo?

A resposta é um retumbante não.

Veja, pois, o contrassenso: apelação contra sentença do Júri - obviamente descoberta de coisa julgada - só admite o juízo rescisório mitigado (alíneas “b” e “c” do artigo 593 do CPP), mas, estranha e contraditoriamente, a doutrina e a jurisprudência admitem o juízo rescisório amplo em sede de Revisão Criminal que – detalhe – ataca a coisa julgada material.

Quer isso dizer que a sentença condenatória do Júri acobertada pela res iudicata vale menos que aquela ainda não transitada em julgado, portanto, despida de cláusula de imutabilidade.

Claramente se vê que há doutrina e jurisprudência manipulando o conceito e esvaziando o conteúdo do princípio da soberania dos veredictos. Deixam de atribuir à norma constitucional o sentido que lhe dê mais eficácia.

Isso é inadmissível.

Por força do princípio da soberania dos veredictos, o espaço para a Revisão Criminal é limitado. Não pode ser diferente.

Pelo que foi dito, resta claro que nenhum órgão jurisdicional pode reformar o mérito de uma decisão do Tribunal do Júri, para o fim de absolver (ou condenar) o acusado.

Bem por isso que, em grau recursal, revisional ou impugnatório, os tribunais estão limitados a analisarem se a decisão dos jurados encontra mínimo respaldo no conjunto de provas. No caso de ausência de lastro probatório, a decisão deve ser cassada, com a consequente submissão do acusado a novo julgamento popular.

Assim fazendo, a magistratura popular (soberania dos veredictos) estará resguardada de ingerência indevida da magistratura togada sobre a democrática decisão dos jurados.

Do contrário, a soberania popular (democracia) no âmbito do Poder Judiciário não apenas estará em perigo, como também restará amputada. Virará uma farsa.

Como disse Rui Barbosa21, “garantir o júri, não pode ser garantir-lhe o nome. Há de se garantir-lhe a substância, a realidade, o poder”. E Tribunal do Júri sem soberania é veia sem sangue, osso sem tutano, corpo sem alma...

21 BARBOSA, Rui. O júri sob todos os aspectos. Org. Roberto Lyra Filho e Mário César da Silva. Rio de Janeiro: Editora Nacio-nal de Direito, 1950, p. 50.

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A prova indiciária e o legado da copa | Dannilo Preti Vieira 99Cadernos do Júri | Nº 3 | 201598

Referências Bibliográficas

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Dannilo Preti Vieira

Promotor de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso

A prova indiciária e o legado da copa

“As grandes coisas podem ser reveladas através de pequenos indícios”. Sigmund Freud

Muito se tem comentado e questionado se vale a pena investir tanto dinheiro em estádios para a copa do mundo de futebol, tal qual ocorreu no Brasil, sede deste último campeonato.

Desde então, após o término do evento esportivo uma pergunta surgiu: qual o legado da copa?

Os defensores da ideia alegam que estes estádios, atualmente, são mais que um local para festividades futebolísticas, são, na realidade, arenas multiuso, servindo como palco para os mais diversos espetáculos.

Aqueles que questionam a fórmula, afirmam que os altos valores investidos nos estádios, onde sequer há times de futebol com tradição, geraria verdadeiros elefantes brancos após o evento esportivo.

Sem adentrar ao mérito dessa questão política/social, é certo que um fato em especial, ocorrido durante este último evento futebolístico, vai ficar para a história por vários motivos, inclusive por ter reflexos na seara processual penal, notadamente, na questão da prova indiciária.

O jogo entre Uruguai e Itália teve um lance no mínimo curioso - para não dizer antropofágico -, quando, o atacante sul americano Luis Suarez abocanhou o zagueiro Giorgio Chiellini.

Por vários dias, os telejornais praticamente esqueceram os demais jogos para analisar a conduta do jogador uruguaio. Várias gravações de diferentes focos e perspectivas surgiram tentando demonstrar a conduta do atacante-mordedor.

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A prova indiciária e o legado da copa | Dannilo Preti VieiraCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 101100

Ocorre que, mesmo sendo o evento mais visto no mundo naquele momento, não foi possível mostrar de maneira direta que o jogador uruguaio tivesse de fato mordido seu adversário.

Não foi possível sequer visualizar o atacante abrindo a boca preparando-se para abater a sua presa. Houve ainda quem dissesse que tudo não passava de teatro por parte do jogador italiano, justificando a derrota de sua seleção.

Passado o calor do jogo, surgiram as imagens do ombro da vítima, com marcas de dentes. Mas para isso já havia a desculpa de que tais cicatrizes eram antigas e, mais, não haveria como provar que essas mesmas marcas foram causadas pelo jogador uruguaio.

Em seguida, descobriu-se que o atacante já tinha cometido semelhante ato em pelo menos outras duas oportunidades, sendo que em ambas há vídeos que flagram os momentos da abocanhada (nesses antigos caso as provas eram robustas e diretas).

Ao analisar friamente os fatos ocorridos naquele jogo, verifica-se que não há sequer uma imagem que demonstre claramente que o jogador Luis Suarez tenha abocanhado o zagueiro italiano. O vídeo mostra os dois muito próximos, chegam a se encostar, mas não é possível concluir pela simples imagem que, naquele encontrão, houve uma mordida.

Da mesma forma, as marcas no ombro da vítima, qualquer um poderia ter feito aquilo para incriminar injustamente o jogador uruguaio.

Contudo, mesmo com todas essas circunstâncias, mesmo com negatória do mordedor, não houve ninguém, absolutamente ninguém, que duvidasse da autoria da conduta de contornos canibais, mesmo sem testemunhas, sem vídeo, sem perícia e sem confissão.

E essa certeza decorre da análise dos indícios como meio de prova, e esse fato, ocorrido na Copa do Mundo do Brasil, exemplifica de maneira simples e popular o que muitos juristas1 negam no ordenamento jurídico nacional, que é a relevância da prova indiciária.

Os indícios são meios de provas preestabelecidos pelo nosso ordenamento jurídico, sendo possível, portanto, uma sentença condenatória fundamentar-se em prova indiciária.

O próprio Código de Processo Penal, no Título VII que trata das provas, em seu art. 239 estabelece o conceito de indícios, vejamos:

Art. 239. Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.

1 Especialmente aqueles que pregam o garantismo monocular hiperbólico.

Do que se extrai do artigo, verifica-se que o indício é a circunstância conhecida e provada que conduza a uma conclusão, lógica e proporcional, pela existência de outra circunstância (desconhecida), com a qual possui relação.

A Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Maria Tereza Rocha de Assis Moura2 sobre o tema diz que

juridicamente, indício é todo rastro, vestígio, sinal e, em geral, todo fato conhecido, devidamente provado e suscetível de conduzir ao conhecimento de fato desconhecido, a ele relacionado, por meio de operação de raciocínio.

A prova indiciária demanda raciocínio lógico, aprofundamento sobre a matéria fática. Em outras palavras, para a análise dos indícios, torna-se imprescindível comprometimento com o processo, para chegar a uma conclusão racional.

É certo que a prova testemunhal, confissão e pericial demonstram de maneira direta a prova do fato. Contudo, o sistema de valoração das provas não adotou a sua modalidade tarifada, razão pela qual a prova indiciária tem o mesmo valor de qualquer outra prova.

Contudo, no panorama jurídico atual, notadamente face ao garantismo hiperbólico monocular3, atrelado à falta de compromisso com a devida aplicação da lei processual penal, algumas decisões judiciais, pautam-se pela saída à francesa na aplicação do princípio do in dubio pro reo, utilizando-se tal postulado como válvula de escape e escudo para justificar a falta de zelo na aferição e aprofundamento das provas.

Tal subterfúgio - a falácia de imprestabilidade da prova indiciária - também é muito recorrente no Tribunal Popular. Aliás, no Júri, verifica-se a completa e absoluta achincalhação do conceito de indícios, como se o conjunto de circunstâncias, detalhes e fatos não pudessem chegar a uma conclusão lógica pela autoria/participação do delito.

Amiúde no Júri os indícios são tratados como falta de prova, eis que o “simples” detalhe, o rastro da prova, o “mero” sinal conclusivo, chegar-se-ia à falaciosa consequência da ausência de autoria, socorrendo-se, ao final, no princípio do in dubio pro reo.

A sustentação defensiva em plenário no ataque à prova indiciária é quase que curricular, sempre no sentido de que: se ninguém viu, se não há confissão, consequentemente, não há provas, logo, absolva-se!

2 MOURA, Maria Tereza Rocha de Assis. A prova por indícios no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009, p. 36.

3 Desarrazoado e tendencioso a enxergar apenas direitos do réu, desprezando direitos da vítima e da sociedade.

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O jurado absolve o réu? Liberdade para qualquer motivação? | Fernando Martins Zaupa 103Cadernos do Júri | Nº 3 | 2015102

Ocorre que no Júri essa tese defensiva de baratear a prova indiciária, é menosprezar a maior das provas, que é a inteligência humana. Neste caso específico, está-se a desprezar o intelecto dos jurados e sua capacidade de somar os detalhes, de aprofundar nas circunstâncias e, principalmente, de concluir através do conjunto indiciário (prova documental, testemunhal, o interrogatório, laudos etc.) pela autoria/participação de um delito, que é o que se espera do juiz da causa.

Aliás, como ensina mais uma vez Maria Tereza Rocha de Assis Moura4,

o valor dos indícios repousa sobre as leis da experiência, que marcam o caminho pelo qual, do fato indiciante conhecido, se chega ao conhecimento daquele conhecido.

Em suma, a prova indiciária tem a mesma hierarquia que qualquer outra prova, sendo, portanto, possível sustentar uma condenação num processo criminal, notadamente, durante o julgamento em plenário do Júri.

Diante disso, observa-se que a Copa do Mundo de Futebol de 2014, brindou-nos com um exemplo eloquente de como a conjugação dos indícios, quais sejam, (1) a conduta do agente (encontrão), (2) seguido da reação imediata da vítima (dor e indignação), (3) com a consequente cicatriz e (4) atrelado aos antecedentes, tornam a prova indiciária válida e coerente para lastrear uma condenação.

Assim, independentemente do que se entenda de proveitoso pós-copa, é certo que a sua maior herança para fins jurídicos processuais penais é a explicação empírica de que o indício é um meio de prova extremamente válido e apto a fundamentar uma condenação, tal qual, ocorrido no incidente envolvendo os jogadores Luis Suarez e Giorgio Chiellini.

Referência Bibliográfica

MOURA, Maria Tereza Rocha de Assis. A prova por indícios no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009.

4 Idem, p. 91.

Fernando Martins ZaupaPromotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul – Foi

Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Rondônia - Especialista em Direito Constitucional pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso do Sul

O jurado absolve o réu? Liberdade para qualquer motivação?

1. Introdução – 2. O Tribunal do Júri e o dever da quesitação ser revestida de natureza jurídica

– 3. Conclusão

1 Introdução

Há alguns anos foi estabelecida pela legislação (Lei n.º 11.689/08) a obrigatoriedade, perante o Tribunal do Júri, de haver a seguinte indagação aos jurados: “o jurado absolve o acusado?” (Código de Processo Penal, art. 483, § 2º).

Como é cediço, ao final dos debates e por ocasião da votação, cada um dos sete jurados recebe duas cédulas, com as inscrições “sim” e “não”.

A cada indagação feita pelo juiz-presidente (juiz de Direito), os jurados colocam na urna ou sacola o voto, descartando em outra urna/sacola o outro voto, mantendo assim o sigilo da votação, que se dá concluída por maioria dos votos (basta haver quatro votos em determinado sentido).

Ocorre que está a haver - de forma generalizada e claramente equivocada - a interpretação, inclusive por ocasião de discursos das partes e por esclarecimentos pelos juízes de Direito, de que nessa ocasião os jurados poderiam absolver os réus por qualquer motivo.

Essa interpretação, como será exposta, pode e deve gerar nulidade do julgamento, por ser vedada pela Constituição Federal e ordenamento jurídico pátrio, além de fomentar a impunidade (tutela deficiente) e insegurança jurídica.

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O jurado absolve o réu? Liberdade para qualquer motivação? | Fernando Martins ZaupaCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 105104

2 O Tribunal do Júri e o dever da quesitação ser revestida de natureza jurídica

O Tribunal do Júri tem sua previsão e base no artigo 5º, XXXVIII, da Constituição Federal.

Assim, o Júri trata do julgamento dos crimes mais graves do ordenamento jurídico, já que está ligado a condutas intencionais voltadas à supressão da vida de alguém.

O Código de Processo Penal, em meio ao regramento das formas e conteúdo do Tribunal do Júri, postou que os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando os jurados sobre: I – a materialidade do fato; II – a autoria ou participação; III – se o acusado deve ser absolvido; IV – se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa; V – se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação.

Ainda, em seu art. 483, § 2º, estabeleceu:

§2o Respondidos afirmativamente por mais de 3 (três) jurados os quesitos relativos aos incisos I e II do caput deste artigo será formulado quesito com a seguinte redação: O jurado absolve o acusado?

Nesse ponto está o cerne do presente arrazoado, já que não apenas textos existem a sustentar a tese de que o jurado poderá, pois, absolver pelo motivo que lhe vier à mente (“livre convicção”), independentemente de ter sida a “absolvição jurídica” arguida pela defesa ou mesmo prevista pela legislação, como está a haver sua aplicação fática nos Tribunais do Júri e, em razão de recursos, nos Tribunais de Justiça e Superior Tribunal de Justiça.

Já ouvi em plenário advogados e magistrados dizerem que o jurado poderia absolver por qualquer razão, até mesmo por “ir com a cara do réu”, “não gostar do time de futebol da vítima”, “achar que a vítima merecia morrer mesmo”, “achar o réu bonito”, entre outras pérolas.

Isso é sério e grave!

A abertura excepcional de julgamento de crimes para a população, como o faz a Constituição Federal e Código de Processo Penal, não pode jamais ser aviltada dessa forma.

A chamada “livre convicção”, a qual inclusive é proferida ao início do julgamento, não é carta branca para se fazer o que quiser:

Art. 472. Formado o Conselho de Sentença, o presidente, levantando-se, e, com ele, todos os presentes, fará aos jurados a seguinte exortação: Em nome da lei, concito-vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça.

A partícula aditava “e”, colocada entre “vossa consciência” e “os ditames da justiça” já dá o norte de que o julgamento deve ser investido de algo a mais que a livre convicção.

Isso porque a Justiça pregada na lei processual não é qualquer justiça, tal como uma justiça pessoal, justiça íntima, justiça divida, etc.

Afinal, o texto está inserido em um ordenamento jurídico pré-delineado e, claramente, sob a égide da Constituição Federal.

Sob o pálio da Constituição Federal, vale lembrar que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático “de Direito” (Constituição Federal, art. 1º, caput).

As ações e atos dos órgãos públicos, principalmente da chamada Justiça, devem ser balizados sob as regras “de Direito”.

Vale estampar, assim, que qualquer decisão tomada em esfera judicial, seja por juiz de Direito, seja por juiz leigo, seja por juiz de fato (jurados), deve sempre estar entre as margens previstas pelo ordenamento jurídico, formado pela legislação e princípios normativos, sempre à luz da Constituição Federal.

Por tal via, não se pode permitir, jamais, alegação de que “se pode absolver por qualquer razão”, ainda que “fora das hipóteses previstas em lei”, sob pena de afronta à Constituição Federal e ao ordenamento jurídico.

Ademais, referida postura também conspurca o dever da tutela eficiente ao bem jurídico violado, no caso a vida suprimida ou quase extinta (tentativa), porquanto a Constituição Federal estabelece o dever de proteção à vida e a aplicação de pena para quem contrariamente assim agir.

Nula é a conduta concluída sobre esse discurso do ‘absolver por qualquer coisa’, também por atentar contra a base material do Direito Penal, insculpida no art. 59 do Código Penal, que prevê que deve haver pena para a prevenção e a repressão ao crime, a qual não será aplicada apenas sob as causas excludentes de ilicitude e culpabilidade previstas em lei ou outras circunstâncias legalmente previstas (prescrição, etc.).

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O jurado absolve o réu? Liberdade para qualquer motivação? | Fernando Martins ZaupaCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 107106

A absolvição de alguém comprovadamente autor de um crime contra a vida (“provas dos autos’), com base fora das previsões legais, viola claramente a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), trazida ao ordenamento jurídico brasileiro por intermédio do Decreto n.º 678/92.

Como é cediço, ante referida aprovação, o Pacto de São José da Costa Rica, possui eficácia da lei ordinária.

Os Estados, pois, ao ratificarem o Pacto de San José, assumiram preservar os direitos ali consignados e adequar o seu direito interno às normas internacionais.

Nessa esteira, não reprimir eficazmente o delito e o infrator, deixando a vítima ou sociedade em situação de vulnerabilidade, conspurcando o direito de proteção que é uma garantia judicial fundamental, não pode ser minimizada pelo Estado, vez que se trata de um dos pilares básicos do Estado democrático de direito.

Como base para cumprimento, há que se empreender medidas de caráter jurídico, político e administrativo, que promovam o respeito aos direitos humanos e que sancionem os eventuais violadores.

O acusado, ao não aceitar as regras sociais vigentes e que foram codificadas em legítimo processo legislativo em normas, aviltando os direitos humanos da vítima, deve, pelo Pacto de San Jose, receber a reprimenda devida e, o que é salutar, de forma efetiva (real).

Na falta desse agir razoável de prevenir ou punir o infrator, o Estado deve reparar os danos causados, podendo, é claro, cobrar regressivamente do particular que cometeu o ato ou mesmo dos agentes públicos que omissos foram com essa vítima.

Vítimas de atentados à vida estão enquadradas, de forma cristalina, como vítima de violações de direitos humanos.

Eis:

Artículo 4. Derecho a la Vida 1. Toda persona tiene derecho a que se respete su vida. Este derecho estará protegido por la ley y, en general, a partir del momento de la concepción. Nadie puede ser privado de la vida arbitrariamente.

Artículo 25. Protección Judicial 1. Toda persona tiene derecho a un recurso sencillo y rápido o a cualquier otro recurso efectivo ante los jueces o tribunales competentes, que la ampare contra actos que violen sus derechos fundamentales reconocidos por la Constitución, la ley o la presente Convención, aun cuando tal violación sea cometida por personas que actúen en ejercicio de sus funciones oficiales.

A partir do instante que os aplicadores da lei encontram ‘interpretações’ furtivas a correta aplicação protetiva e repressiva a seu violador, ou estão no mesmo patamar do criminoso, ou, no mínimo, estão a agir de forma omissiva e, como tal, figurando como violador do Pacto de San Jose.

Por fim, vale lembrar, pois, que o ato praticado com violação ao Pacto, além de agredir os ditames internacionais e nacional de Direitos Humanos, está a operar contra legem, eivando de vício seu ato, de modo a ensejar a nulidade do ato praticado.

Por fim, aceitar que pessoas com formação em Direito como assim as são advogados, defensores, promotores e juízes, passem ao cidadão leigo a ideia de que decisões de natureza e consequências jurídicas podem ser aplicadas fora de previsões legais e a esmo, sem base normativa e sob a simples vontade de quem julgar, é lançar ao limbo a credibilidade do sistema jurídico e, a toda evidência, postar ao plano da balbúrdia o Tribunal do Júri e fazer da vida humana um nefasto joguete.

3 Conclusão

Ante o exposto, conclui-se que a previsão contida no Código de Processo Penal, art. 483, §2º, que confere ao jurado o dever de se pronunciar contra ou a favor de absolver o acusado, deve ser interpretada à luz da Constituição Federal e do sistema normativo em vigor.

Desse modo, para que haja absolvição deve haver, necessariamente, a possibilidade jurídica de sua ocorrência, seja por existência de alguma causa de exclusão de ilicitude, seja por ocorrência de alguma causa de exclusão de culpabilidade ou ocorrência de circunstâncias outras que normativamente permitam a absolvição.

Não se pode aceitar, jamais, alegação de que qualquer razão ainda que não prevista na lei ou fora da ótica do Direito permita ao jurado, como juiz nomeado, absolver alguém que tenha efetivamente atentado ou concretizada a eliminação de uma vida humana.

Caso ocorra essa alegação e conclusão, eis patente caso de nulidade da decisão, por ofensa à Constituição Federal e ao ordenamento jurídico pátrio.

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A desclassificação no Júri (§§4º e 5º, do art. 483, CPP) | João Batista de Almeida 109

João Batista de AlmeidaProcurador de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso - Ex-Diretor da

Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado de Mato Grosso - Ex-Coordenador do CEAF e do CAOP do Ministério Público do Estado de Mato Grosso – Ex-Presidente da

Confraria do Júri - Coordenador da Revista Jurídica do Ministério Público de Mato Grosso, n.ºs 1 a 6 - Coordenador da Revista Cadernos do Júri n.ºs 1 e 2

A desclassificação no Júri (§§4º e 5º, do art. 483, CPP)

A Lei 11.689/2008, que reformou o procedimento do Júri, trouxe inúmeras controvérsias, notadamente quanto aos quesitos e, no tocante a estes, principalmente aos relativos à desclassificação do crime, e que têm levado renomados doutrinadores a interpretações antagônicas, algumas vezes equivocadas ou à omissão no enfrentamento da questão.

Dispõe o art. 483, do CPP, na parte que interessa a este estudo, in verbis:

Art. 483. Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre:I – a materialidade do fato;II – a autoria ou participação;III – se o acusado deve ser absolvido;(...)§4º. Sustentada a desclassificação da infração para outra de competência do juiz singular, será formulado quesito a respeito, para ser respondido após o 2º (segundo) ou 3º (terceiro) quesito, conforme o caso.§5º. Sustentada a tese de ocorrência do crime na sua forma tentada ou havendo divergência sobre a tipificação do delito, sendo este da competência do Tribunal do Júri, o juiz formulará quesito acerca destas questões, para ser respondido após o segundo quesito.

(...)

Destarte, o §4º diz respeito à desclassificação do crime para outro de competência do juiz singular, v.g., de tentativa de homicídio para lesões corporais, de homicídio consumado para lesão corporal seguida de morte, ou para homicídio culposo.

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A desclassificação no Júri (§§4º e 5º, do art. 483, CPP) | João Batista de AlmeidaCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 111110

Por sua vez, o §5º refere-se, na primeira parte, à desclassificação de um crime consumado para a forma tentada e, na segunda parte, de desclassificação de um crime doloso contra a vida para outro também doloso contra a vida. Exemplos nas hipóteses da primeira parte: a vítima é lesionada por disparo de arma de fogo e, ao ser levada ao hospital, a ambulância colide e causa-lhe a morte; ou, a vítima é lesionada por golpe de faca, levada ao hospital submete-se com êxito à cirurgia, enquanto se restabelece, a enfermeira, por negligência, aplica-lhe vaselina imaginando tratar-se de soro, causando-lhe a morte e, ainda, em situações de autoria colateral, nas quais não se elucida qual dos coautores teria efetuado o disparo que causou a morte da vítima. Quanto à segunda parte, a desclassificação poderá ocorrer de homicídio para infanticídio, de homicídio para auxílio à vítima ao suicídio.

As hipóteses atinentes ao §5º são de difícil ocorrência na prática, já as concernentes ao §4º são mais frequentes em sustentações nos julgamentos do Júri.

No que diz respeito à parte final do §4º, verbis: ...ou 3º (terceiro) quesito, conforme o caso, que, aliás, é um primor em obscuridade, é a que tem gerado maiores controvérsias.

Os colegas do Ministério Público paulista, Eloísa de Souza Arruda e César Dario Mariano da Silva1, buscam dar solução à questão com o seguinte argumento:

Quando sustentada no Plenário como única tese defensiva a da desclassificação para crime de competência do juiz singular, a pergunta correspondente deverá ser formulada após o segundo quesito. Se a principal tese for a da absolvição, figurando como tese secundária a da desclassificação para outro crime não doloso contra a vida, o quesito correspondente deverá ser incluído após o terceiro.

Entendimento que é compartilhado por Andrey Borges de Mendonça2.

Por sua vez, Gustavo Henrique Righi Ivahy Bodaró3, adota idêntico posicionamento, por entender que,

1 MARIANO, César Dario; ARRUDA, Eloisa de Sousa. Reforma processual penal tornou quesitos do júri mais simples. Site Consultor Júridico http://www.conjur.com.br/2008-jun-28/reforma_penal_tornou_quesitos_juri_simples, acesso em no-vembro de 2014.

2 MENDONÇA, Andrey Borges. Nova Reforma do Código de Processo Penal, 2. ed., São Paulo: Método, 2009, p. 118/9.

3 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. As Reformas no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 207/8.

o critério a ser seguido para o (sic) ordem dos quesitos deverá ser o da amplitude da tese defensiva e, por questão de lógica e de plenitude de defesa, a tese principal e mais benéfica ao acusado (por exemplo, legítima defesa) deve ser formulada antes da tese subsidiária e, portanto, menos ampla (por exemplo, desistência voluntária). Em suma, a ordem deverá ser: materialidade, autoria, absolvição e, se for o caso, tentativa.

A interpretação é interessante, e parece-nos que resolve o enigma “conforme o caso”.

Da leitura do caput do art. 483 e dos seus §§4º e 5º, em conjunto, constata-se que, em se tratando de desclassificação prevista no §5º, o quesito correspondente será sempre formulado após o 2º quesito, o da autoria. Entretanto, a desclassificação prevista no §4º, apresenta peculiaridades. Assim, tratando-se de tese única, a desclassificação prevista no §4º será questionada após o 2º quesito, o da autoria. Se, porém, essa desclassificação for sustentada como tese subsidiária, deverá o quesito correspondente ser formulado após o que indaga: “os jurados absolvem o acusado?”.

Este posicionamento, contudo, tem encontrado resistência por parte da doutrina, ante o argumento que, em se tratando, v.g., de desclassificação da tentativa para infração de competência do juiz singular, em formulando-se o quesito correspondente após o da autoria, estaria sendo violado o preceito constitucional que determina o Tribunal do Júri como o competente para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, pois, segundo essa corrente doutrinária, ainda não estaria firmada a competência do Júri, o que viria a ocorrer com a negativa da desclassificação da tentativa.

Todavia, tal argumento não convence, permissa venia, haja vista que, a competência para o julgamento pelo Tribunal do Júri é delimitada pela pronúncia.

Com efeito, sendo o acusado denunciado e processado pela prática de um crime doloso contra a vida, consumado ou tentado e, ao término da fase do judicium accusationis, o juiz processante decide pela admissibilidade da acusação, pronunciando o acusado, e após a preclusão da decisão de pronúncia, remetendo o acusado a julgamento pelo Júri, estabelecida estará a competência deste para apreciar a causa.

Caso contrário, caberia a indagação: em se tratando de tese única, v.g., da legítima defesa, o quesito consistente da indagação “os jurados absolvem o acusado?”, que será formulado após o 2º quesito, da autoria ou participação, não estaria violando a competência do Júri, face não estar firmada essa competência?

Destarte, feitas estas considerações, cabe analisar outro ponto de controvérsias e equívocos, qual seja, o entendimento de que o quesito “os jurados absolvem o acusado?” deverá ser sempre considerado como o 3º quesito.

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A desclassificação no Júri (§§4º e 5º, do art. 483, CPP) | João Batista de AlmeidaCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 113112

Referido quesito será formulado como o 3º quando sustentada tese única e, “conforme o caso”, poderá ser o 4º ou 5º quesito, quando se tratar de desclassificar, v.g., o crime de homicídio consumado para o de homicídio culposo ou de lesão corporal seguida de morte, situação em que os quesitos deverão ser desdobrados da seguinte forma:

1º quesito: materialidade do fato;2º quesito: autoria ou participação;3º quesito: o acusado quis a morte da vítima?;4º quesito: o acusado assumiu o risco de produzir a morte da vítima?

E, se respondido afirmativamente o 3º ou o 4º quesito, formula-se o 5º quesito: Os jurados absolvem o acusado?. Caso contrário, se negados o 3° e o 4° quesitos, estará operada a desclassificação para homicídio culposo ou lesão corporal seguida de morte, conforme a tese sustentada pela defesa.

Evitamos, no exemplo dado, relativo à desclassificação para homicídio culposo, o emprego de qualquer expressão referente à culpa, tais como: somente por culpa; por culpa; de forma culposa, etc., em razão do que estaremos expondo quando da abordagem do excesso culposo.

Tratando-se de desclassificação da tentativa para crime de competência do juiz singular e, em se tratando de tese única, formula-se a indagação no 3º quesito: “Assim agindo, o acusado tentou matar a vítima?”. Se, ao revés, a tese desclassificatória da tentativa for subsidiária à outra tese principal, mais abrangente, formula-se o quesito após o que indaga sobre a absolvição do acusado, que, no caso, será o 3°.

Com relação às hipóteses contidas no §5º, trago à colação os exemplos dados por Nereu José Giacomolli44, verbis:

Há de ser observado que (...), após o segundo quesito, poderá haver necessidade de ser questionada a tese defensiva desclassificatória para outro delito de competência do Tribunal do Júri (art. 483, §5º, do CPP), ou seja, de homicídio para infanticídio (O fato foi praticado sob influência do estado puerperal, durante ou logo após o parto?), ou de crime consumado para tentado (Assim agindo, o réu somente tentou matar a vítima?), de homicídio para auxílio à vítima ao suicídio (O réu apenas prestou auxílio à vítima para que esta se suicidasse?), por exemplo.

4 GIACOMOLLI, Nereu José Reformas (?) do Processo Penal – Considerações Críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 102/3.

Outro ponto polêmico advindo com a Lei 11.689/2008, diz respeito à formulação ou não de quesito atinente ao excesso culposo, quando sustentada tese de alguma excludente de ilicitude (art. 23, CP). No mais das vezes, a da legítima defesa.

Continuo entendendo, como manifestei em obra55 de minha autoria, que:

Em se tratando de tese de defesa pleiteando a desclassificação do crime de homicídio doloso para homicídio culposo, a quesitação pertinente deverá ser procedida da mesma forma da utilizada para a desclassificação para lesão corporal seguida de morte. Este é o entendimento predominante da 1ª Turma do STF: “Quando a defesa requerer a desclassificação do crime doloso para o culposo, os jurados devem ser questionados exclusivamente sobre o dolo (direto ou eventual), porque o júri tem poder jurisdicional restrito aos crimes dolosos contra a vida.” (STF, 1ª T., RT 733/479). Esse mesmo entendimento foi adotado pelo STF nas decisões de HC 76.800-1/RS e 69.598-1/DF . É o qual entendemos correto. [grifei]

É o que preceitua o art. 5º, inc. XXXVIII, alínea d, da Carta Magna.

No âmbito infraconstitucional, a Lei 11.689/2008, no que diz respeito aos quesitos, foi editada com o fito de facilitar a compreensão dos jurados, de modo a proferirem o veredicto consciente e que não seja eivado pela dúvida.

É o que se depreende do parágrafo único, primeira parte, do art. 482, do CPP, in verbis:

Art. 482 (...)Parágrafo único: Os quesitos serão redigidos em proposições afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um deles possa ser respondido com suficiente clareza e necessária precisão (...)” [grifei]

E, mais, o caput do art. 482, dispõe que, “O Conselho de Sentença será questionado sobre matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido” [grifei].

Logo, não há que se entender que a expressão “matéria de fato”, como inserida no dispositivo legal, esteja a aludir apenas à materialidade do fato e à autoria ou participação.

5 ALMEIDA, João Batista. Manual do Tribunal do Júri – judicium accusationis e judicium causae. Cuiabá: Entrelinhas, 2004, p. 117.

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A desclassificação no Júri (§§4º e 5º, do art. 483, CPP) | João Batista de AlmeidaCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 115114

O que se extrai é que, em se tratando de juízes leigos, deve-se evitar ao máximo ser trazido à baila, durante o julgamento, questões complexas e de alta indagação, como é a análise da culpa stricto sensu, mormente na sua aplicação prática. Análise esta que, até mesmo aos operadores do Direito apresenta dificuldade.

Ademais, o conceito que o leigo faz de culpa, é no sentido lato da expressão, como sendo a culpa advinda da vontade, da intenção.

Como escreveu, recentemente, Contardo Calligaris66: “Conceito”, aliás, vem do latim “cum capio”, que sugere a idéia de conseguir pegar várias coisas ao mesmo tempo, num punho.

Assim se assemelha o conceito de culpa para o leigo.

Além disso, é de se levar em conta que o excesso culposo e o doloso, dizem respeito às excludentes de ilicitude, sendo partes integrantes destas, eis que previstos no parágrafo único do art. 23, do Código Penal.

Desse modo, tendo em vista que a Lei 11.689/2008 aboliu os questionamentos complexos, aglutinando em um só quesito todas as teses defensivas sustentadas em plenário, exceto as desclassificatórias previstas nos §§4º e 5º, em comento, e a relativa à inimputabilidade77.

E, ainda, pela legislação revogada pela Lei 11.689/2008, no desdobramento do quesito da legítima defesa em várias indagações, o reconhecimento do excesso culposo não implicava em desclassificar o crime para a modalidade culposa, v.g., homicídio culposo, mas, em aplicar-se ao fato a pena correspondente ao crime culposo, se previsto em lei. Contudo, consoante o art. 18, inc. II, do CP, ocorre um crime culposo, quando o agente dá causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. Indaga-se, portanto, seriam estas circunstâncias amoldáveis ao reconhecimento do excesso culposo pelo Júri?

Como afirma Aramis Nassif8,

Não se consagra o excesso pelo comportamento tecnicamente culposo, pois a culpa no sistema penal brasileiro, diz com comportamento imprudente, negligente ou imperito. Como identificar na ação de alguém que, sofrendo agressão injusta atual ou iminente, para defender-se adote conduta meramente imprudente, negligente ou imperita?

6 CALLIGARIS, Contardo. Síndrome de Fukushima, in Folha de S. Paulo, edição de 9.6.2011, p. E12

7 Sobre questionamento da inimputabilidade remetemos à leitura do nosso artigo: ALMEIDA, João Batista. A inimputabili-dade, decorrente de insanidade mental, face à Lei 11.689/2008. Cadernos do Júri – Textos sobre a reforma do rito do júri, nº 1. Cuiabá: Entrelinhas, 2008, p. 79/82.

8 NASSIF, Aramis. O Novo Júri Brasileiro, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 151.

Ao que nos parece, o mais ajustável ao Júri, nessas circunstâncias, seria o excesso exculpante.

O excesso exculpante não se confunde com o excesso doloso ou culposo, por ter como causas a alteração no ânimo, o medo, a surpresa. Ocorre quando é oposta à agressão injusta, atual ou iminente, reação intensiva, que ultrapassa os limites adequados a fazer cessar a agressão. (STF, HC 72341/RS, Rel. Min. Maurício Correa, 2ª T., DJ 20.03.1998, p.5).

Desse modo, será mais prudente e conveniente que a defesa exponha durante os debates essas circunstâncias, a fim de convencer os jurados para o acolhimento da tese sustentada, com a votação afirmativa do quesito “os jurados absolvem o acusado?”, haja vista que, neste quesito passam a ser envolvidas todas as teses defensivas expostas, em sintonia com o preceito constitucional da plenitude de defesa, podendo os jurados acolher uma delas, até mesmo por comiseração.

Afinal, como já argumentamos, o advento da Lei 11.689/2008, no que concerne aos quesitos, visou simplificar a sua formulação, facilitando a votação pelos jurados, buscando evitar que a formulação dos quesitos e suas respostas continuem a ser “usina de nulidades”.

Destarte, cabe a nós, operadores do Direito, buscarmos alcançar esse desiderato. Caso contrário, só nos restará dizer, como o personagem da obra O Leopardo, de Tomasi de Lampedusa9: para mudar, é preciso que tudo continue como está.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, João Batista. Manual do Tribunal do Júri – judicium accusationis e judicium causae. Cuiabá: Entrelinhas, 2004.

________. A inimputabilidade, decorrente de insanidade mental, face à Lei 11.689/2008. Cadernos do Júri – Textos sobre a reforma do rito do júri, nº 1. Cuiabá: Entrelinhas, 2008.

9 LAMPEDUSA, Tomasi di. O Leopardo. Escrito entre os fins de 1954 e 1957.

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Exibição da prova no Tribunal do Júri | Márcio Florestan Berestinas 117Cadernos do Júri | Nº 3 | 2015116

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. As Reformas no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009

CALLIGARIS, Contardo. Síndrome de Fukushima, in Folha de S. Paulo, edição de 9.6.2011.

GIACOMOLLI, Nereu José Reformas (?) do Processo Penal – Considerações Críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

LAMPEDUSA, Tomasi di. O Leopardo. Escrito entre os fins de 1954 e 1957.

MARIANO, César Dario; ARRUDA, Eloisa de Sousa. Reforma processual penal tornou quesitos do júri mais simples. Site Consultor Júridico http://www.conjur.com.br/2008-jun-28/reforma_penal_tornou_quesitos_juri_simples, acesso em novembro de 2014.

MENDONÇA, Andrey Borges. Nova Reforma do Código de Processo Penal, 2. ed., São Paulo: Método, 2009.

NASSIF, Aramis. O Novo Júri Brasileiro, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.

Márcio Florestan Berestinas

Promotor de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso

Exibição da prova no Tribunal do Júri

A antiga redação do artigo 466 do Código de Processo Penal previa:

Feito e assinado o interrogatório, o presidente, sem manifestar sua opinião sobre o mérito da acusação ou da defesa, fará do processo e exporá o fato, as provas e as conclusões das partes.

O disposto no mencionado artigo possibilitava, antes do início dos debates, que os jurados tivessem acesso às provas anteriormente produzidas, previsão essa de grande utilidade para que, na condição de julgadores, pudessem começar a formar a sua convicção a respeito do fato delituoso.

Além disso, a referida previsão legal era de notória valia a fim de que os jurados pudessem, em seguida, formular adequadamente perguntas para as testemunhas em plenário, pois é inegável que o conhecimento do teor dos depoimentos colhidos anteriormente na primeira fase do procedimento escalonado do júri (sumário de culpa - judicium accusationis) auxiliava-os a elaborar perguntas úteis à formação de sua convicção.

A antiga dicção do artigo 466 do Código de Processo Penal evitava que as partes utilizassem o exíguo tempo disponível para os debates para realizar a exibição das provas para os jurados.

Infelizmente, alguns operadores do direito utilizavam de forma abusiva o referido comando normativo, pleiteando a leitura da integralidade dos autos, providência enfadonha e completamente desapegada da busca da verdade, divorciada do escopo de obter um julgamento justo.

Todavia, com o nobre objetivo de evitar a leitura de peças sem relevância aos integrantes do conselho de sentença, a Lei Federal n.º 11.689/08 suprimiu a expressa

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Exibição da prova no Tribunal do Júri | Márcio Florestan BerestinasCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 119118

previsão legal de exibição, antes dos debates, das provas produzidas durante o sumário de culpa (1º fase do rito escalonado do júri) aos jurados, com exceção das provas colhidas por carta precatória e das provas cautelares, antecipadas ou não repetíveis, nos termos do disposto na novel redação do artigo 473, § 3º, do Código de Processo Penal.

Com essa modificação, as partes passaram a ter de utilizar o escasso tempo dos debates para exibir em plenário os interrogatórios e os depoimentos testemunhais da fase do judicium accusationis1, os quais possuem a mesma força probatória dos elementos probantes produzidos em plenário.

A mencionada mudança procedimental dificulta a exibição das provas aos integrantes do conselho de sentença, vulnerando a busca da verdade e os princípios do contraditório e da ampla defesa. Possui ainda o demérito de dificultar o contato dos juízes populares com as provas realizadas. Enfim, uma mudança no mínimo discutível, cujos efeitos nefastos aparentemente passaram despercebidos ao filtro crítico da doutrina pátria, como se pode depreender, data venia, da leitura dos comentários expendidos pelo consagrado jurista Guilherme de Souza Nucci2:

Elimina-se, com o atual dispositivo, a leitura desgastante de peças inúteis ou de interesse reduzido para a apuração da verdade real. Portanto, ilustrando, se qualquer das partes juntar um livro ou um artigo nos autos e pretender que ele seja lido, deve o juiz indeferir o pleito. Não se trata de prova de natureza cautelar, antecipada ou não repetível. Se tiver interesse a parte, durante o seu tempo de manifestação, promoverá a leitura do que bem quiser. Porém, não se poderá obrigar os jurados a ouvir horas e horas de peças desnecessárias ao deslinde da causa. A leitura de textos não pode representar um mecanismo para ganhar tempo, cansar as partes ou servir a outros interesses escusos. Inexiste cabimento, pois, para a parte solicitar a leitura do processo ‘de capa a capa’, como se fosse o magistrado obrigado a determinar a leitura de cada ‘termo de juntada’ ou ‘guia de recolhimento de custas’ existente nos autos, como se fazia anteriormente à reforma trazida pela Lei 11.689/2008.

Ocorre que, se, de um lado, a alteração sob discussão teve o mérito de impedir a cansativa e desnecessária leitura dos autos, “de capa a capa”; de outro, inviabilizou a exibição aos jurados, antes do início dos debates, de interrogatórios e depoimentos gravados em áudio e vídeo colhidos na primeira fase do procedimento do júri, os quais podem, inegavelmente, se revestir de grande importância para a formação da convicção dos julgadores populares.

1 Primeira fase do rito escalonado do Júri.

2 NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 179.

É oportuno argumentar que soa demasiadamente simplória a afirmação de que as partes podem exibir tais provas durante os debates, a menos que façamos ouvidos moucos à complexidade da matéria criminal, à pluralidade de teses de acusação e de defesa e ao exíguo tempo de que as partes dispõem para os debates (duas horas e meia para cada parte3. A esse respeito, convém transcrever trechos de artigo publicado por Marcelo Rocha Monteiro4, Procurador de Justiça do MP/RJ:

É claro que não existe qualquer óbice legal à exibição de tais gravações aos jurados durante o tempo reservado a cada uma das partes para os debates. A dificuldade, porém, pode ser outra: é que, dependendo da hipótese, a extensão de tais gravações pode ser tal que sacrifique parcela importante, senão a totalidade, dos (em regra) exíguos noventa minutos destinados, a princípio, à crucial atividade de argumentação e convencimento dos jurados.

A questão não se adstringe à quantidade de tempo despendido, como os versos de Fernando Pessoa nos oportunizam refletir: “Mestre, são plácidas todas as horas/ Que nós perdemos/ Se no perdê-las, / Qual numa jarra, / Nós pomos flores”.

Se a leitura de peças sem relevância deve ser evitada, a exibição dos vídeos dos interrogatórios e dos depoimentos obtidos em juízo na primeira fase do júri deve ser viabilizada, a não ser que o contraditório e a ampla defesa sejam mitigados e desprestigiados no tribunal popular...

As partes podem até, como sói acontecer, conseguir resumir o teor dos interrogatórios e dos depoimentos da primeira fase do júri para apresentá-los aos jurados, mas, sem dúvida, essa providência não terá o mesmo efeito da visualização pelos jurados do vídeo e do áudio dos interrogatórios e dos depoimentos, pois a valoração desses meios de prova pelos membros do conselho de sentença passa, sem nenhuma dúvida, pela análise da linguagem corporal das pessoas inquiridas.

Poderiam objetar que esse novo regramento prestigia a produção da prova produzida em plenário, na presença dos integrantes do Conselho de Sentença. Contudo, não existe nenhum dispositivo legal em nosso ordenamento a recomendar ao jurado que confira maior relevância probatória às provas realizadas em plenário, em detrimento das produzidas em juízo na primeira fase do procedimento do

3 Art. 477 do CPP: “O tempo destinado à acusação e à defesa será de uma hora e meia para cada, e de uma hora para a réplica e de outro tanto para a tréplica”.

4 Trechos extraídos do artigo denominado “Exibição aos jurados de depoimentos gravados no iudicium accusationis: como proceder”, publicado no seguinte endereço eletrônico: http://jus.com.br/artigos/26151/exxibicao-aos-jurados-de-depoi-mentos-gravados-no-iudicium-accusationis-como-proceder.

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Exibição da prova no Tribunal do Júri | Márcio Florestan BerestinasCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 121120

júri. Deveras, é cediço que, nas decisões proferidas pelo júri popular, vigora o denominado sistema da íntima convicção, pelo qual cada jurado profere seu voto sem necessidade de fundamentação, o que lhe confere liberdade para efetuar a valoração da prova, segundo os ditames de sua consciência. Aliás, a prática forense revela que os depoimentos e interrogatórios colhidos em juízo na primeira fase do procedimento do júri nas mais das vezes revestem-se de maior riqueza de detalhes do que a prova produzida em plenário, dado que são realizados em data mais próxima à da ocorrência do fato delituoso. Poder-se-ia dizer: momento ainda majestoso da memória sobre os fatos, certamente superior ao subsequente5.

Em voto exarado no julgamento da Correição Parcial nº 0246643-78.2010.8.19.0001, apreciada pela 5º Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o Desembargador Geraldo Prado, que figurou como relator no aludido feito, enumera outros relevantes motivos que justificam a necessidade de se oportunizar o acesso dos jurados à gravação em áudio e vídeo dos depoimentos realizados na primeira fase do procedimento do júri, merecendo destaque a parte em que o citado jurista aponta a utilidade da referida medida para esclarecer eventuais versões conflitantes dadas pela mesma testemunha, em ocasiões diferentes; uma na primeira fase do procedimento do júri, e outra em plenário, consoante é possível depreender dos trechos a seguir reproduzidos:

A evolução tecnológica permite hoje uma nova forma de confronto. Não somente entre o acusado e testemunha, mas o confronto entre versões apresentadas em um depoimento. A possibilidade de gravação de depoimentos prestados judicialmente permite também que se confrontem versões apresentadas por testemunhas e réus, respeitada a busca pela verdade processual. Assim, se determinada versão da testemunha, apresentada ao juiz ou aos jurados – uma das possibilidades deste processo – discrepa daquela fornecida pela mesma testemunha ao juiz, em outra etapa procedimental, a parte poderá obter do juiz a exibição da mídia com o depoimento e desse modo confrontar a testemunha, exigindo-lhe esclarecimentos sobre os pontos divergentes. Não custa recordar que as testemunhas têm o dever de dizer a verdade. Observe-se que não se trata de criticar a prova, prática cujo leito adequado é o das alegações finais orais, mas da introdução desta prova, colhida sob o crivo do contraditório, na sessão plenária do júri, de modo a viabilizar o exame pelos jurados da credibilidade da própria testemunha. A limitação da exibição dos depoimentos produzidos em audiência ao tempo de manifestação das partes fere e interfere no direito de produção de provas. Condicionar a exibição de depoimentos anteriores ao tempo de manifestação das partes implica confundir atividades processuais inconfundíveis

5 Quando existe maior chance de a memória dos fatos estar mais viva na mente das pessoas inquiridas...

e prejudicar a pretensão legítima de demonstrar aos jurados os fatos que sustentam as respectivas pretensões. A matéria, todavia, não foi alvitrada pelo Ministério Público na Reclamação. Este se limitou a pleitear a transcrição das declarações registradas em mídia audiovisual e isso está vedado. Cabe, porém, indicar ao juiz, no contexto de novidade que domina o processo penal brasileiro na atualidade, que reveja sua decisão limitadora, preclusa a deliberação sobre a exibição das referidas mídias, separando o seu tempo de exibição do de argumentação em plenário.

Assim, o disposto na novel redação do artigo 473, §3º, do Código de Processo Penal, que revogou a antiga redação do mencionado artigo 466 e inviabilizou a exibição da prova aos jurados antes do início dos debates, submetendo ao declínio os princípios do contraditório, da ampla defesa e da busca da verdade, torna o referido texto legal materialmente inconstitucional, a desafiar o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, a fim de expurgar essa censurável inovação do nosso sistema jurídico.

Malgrado o cenário desalentador relatado, no Município de Chapada dos Guimarães, de recomendável geografia, a vestir incansavelmente a natureza com as suas formas exuberantes, o talentoso colega César Danilo Ribeiro de Novais, titular da Promotoria de Justiça Criminal da referida Comarca, encontrou outra solução para o apontado problema. Logo após a formação do Conselho de Sentença, o Ministério Público formula pedido, com fundamento no inciso VII do artigo 497 do C.P.P., para que seja suspensa a sessão pelo período necessário para que os jurados possam ter ciência do conteúdo dos autos, mediante a exibição dos depoimentos das testemunhas e do interrogatório do réu colhidos na primeira fase do procedimento do júri, pelo meio audiovisual, sem que exista a necessidade de utilizar, para esse fim, o irremediável tempo disponível para os debates.

Referência Bibliográfica

NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

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Tribunal do Júri: uma análise pelo Direito Constitucional | Márcio Schlee Gomes 123

Márcio Schlee GomesPromotor de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul - Especialista em Direito

Constitucional pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul - Professor de Direito Penal

Tribunal do Júri: uma análise pelo Direito Constitucional

1. Introdução. 2. Direito fundamental à vida e Júri. 3. Constituição e sua superioridade hierárquica. 4.

Tribunal do Júri: natureza jurídica e posição constitucional. 5. O Júri como uma garantia fundamental

institucional. 6. Reformas do Júri: a vinculação do legislador aos direitos fundamentais. 7. Conclusões.

1 Introdução

O Tribunal do Júri sempre foi motivo de polêmica no meio jurídico, em razão de uma profunda discussão acerca da necessidade e, até mesmo, eficiência de um julgamento realizado por leigos, pessoas da comunidade sem formação jurídica.

Possui defensores ferrenhos, assim como inimigos manifestos, havendo intensos debates sobre suas vantagens e desvantagens.

O julgamento popular, na realidade, sempre esteve ligado às formas de prestação de justiça, nas mais antigas sociedades até os tempos atuais.

Na Grécia antiga, Roma, tempos remotos, sempre houve um modelo de julgamento em que havia a direta participação popular, principalmente, em delitos contra a vida ou casos de maior repercussão no seio comunitário.

Seguiu-se a isso, o modelo inglês que veio a influenciar as mais diversas nações do mundo ocidental, com a presença do júri como algo marcante na Europa e nas Américas.

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Tribunal do Júri: uma análise pelo Direito Constitucional | Márcio Schlee GomesCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 125124

No Brasil, desde a primeira Constituição Federal, em 1824, houve a previsão do Tribunal do Júri, que foi mantida em todas as demais constituições, até a mais recente e em vigor, de 1988. Nesta, o júri foi inserido no artigo 5º, dentre as garantias e direitos individuais, está no rol dos direitos fundamentais, o que o torna cláusula pétrea e demonstra a preocupação do constituinte em manter a instituição popular no cenário jurídico brasileiro.

Tanto que, para isso, reservou ao júri o julgamento exclusivo dos crimes dolosos contra a vida e conferiu-lhe efetivo poder pela garantia da soberania de seus veredictos.

Nesse passo, gozando, em sentido lato, do status de direito fundamental, o Tribunal do Júri não deve ser estudado apenas pela ótica do Direito Processual Penal, mas, sim, sobretudo no que se refere a sua estrutura e princípios, impõe-se sua análise pela visão do Direito Constitucional.

Diante de recentes reformas inseridas na legislação processual penal brasileira e, inclusive, com a tramitação de projeto de novo Código de Processo Penal no Congresso Nacional, muitas alterações estão sendo propostas em relação ao procedimento do júri, o que torna necessária a análise da legitimidade ou não do legislador ordinário para modificar questões que estão sedimentadas na Constituição Federal.

O presente estudo visa abordar, então, a importância do respeito às normas constitucionais pelo legislador, em sendo o Tribunal do Júri uma instituição reconhecida como um garantia fundamental prevista na Constituição, com missão de tutelar o direito à vida, à liberdade, à segurança.

2 Direito fundamental à vida e Júri

O homem é um ser social, vivendo desde os primórdios em comunidades. Esse convívio é da essência da natureza humana, com o que se pode conjugar a busca da felicidade e vida digna, sempre partindo da ideia de compartilhamento.

Aristóteles sustentava que “aquele que não pode viver em sociedade ou não necessita de nada por se bastar a si mesmo, é um bruto ou é um Deus”1. A história dos povos, civilizações, sempre testemunhou que o homem viveu em sociedade e que a solidão total é algo inviável em termos existenciais.

1 ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 32.

Nesse mesmo compasso, reza a história que o homicídio é o crime que sempre acompanhou as civilizações, desde os tempos mais remotos, antes da sedimentação da noção de patrimônio, direitos de propriedade. O delito contra a vida sempre esteve presente, seja na luta e prevalência do mais forte em relação ao mais fraco, em uma sociedade sem regras, ou em mundo civilizado e permeado de leis. Dos conflitos naturais inerentes ao convívio, sempre esteve presente o crime de homicídio.

Da mesma forma, a noção de que a vida é o bem jurídico mais relevante, essencial, sempre fomentou a necessidade de sua efetiva tutela.

Nas palavras de Cordeiro Guerra, citadas por Araújo Lima2 e proferidas durante os debates em julgamento pelo júri:

A vida, o primeiro dos direitos do homem, “Tutti i diritti muovono dal diritto a vivere”, assina Impalomeni – o direito de amar, o direito de ser digno, o direito de prosperar, constituir família, o direito de viver bem ou mal, este direito a lei assegura a todos e este direito fundamental, este direito que vem dos cânones da moral, da religião, ele, réu, que é um homem religioso, sabia, se não é artifício da defesa apontá-lo como crente, que não matarás é mandamento da Lei de Deus. Que nada justifica que se mate em circunstâncias objetivamente documentadas, desnecessariamente, com requintes de vontade.

Tudo, realmente, gira em torno da vida, qualquer direito tem como pressuposto o viver, o que impõe a tutela estatal como forma de preservação e proteção desse direito supremo.

Não por acaso que o artigo 4º, n.º 1, do Pacto de São José da Costa Rica, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, prevê que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.

Em nossa Constituição, partindo-se dessa mesma premissa, consta no artigo 5º, caput, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direitos à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade”, o que demonstra a efetiva preocupação do constituinte em expressar a ideia de tutela do bem jurídico vida no cenário jurídico brasileiro, via Direito Constitucional.

2 LIMA, Carlos de Araújo. Os Grandes Processos do Júri. vol. I. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1996, p. 63.

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Tribunal do Júri: uma análise pelo Direito Constitucional | Márcio Schlee GomesCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 127126

No supramencionado artigo, no inciso XXXVIII, houve a previsão do Tribunal do Júri, com competência exclusiva, única, para julgar os crimes dolosos contra vida. Desse modo, há uma evidente correlação entre Direito Constitucional e Direito Penal, na qual o primeiro trata de reconhecer e determinar a proteção do direito à vida, enquanto o segundo vem a desempenhar, efetivamente, a tutela desse bem jurídico, com a previsão de sanções penais para aquele que o violar.

O homicídio, nas lições de Nelson Hungria3, é

o tipo central dos crimes contra a vida e é o ponto culminante na orografia dos crimes. É o crime por excelência. É o padrão de delinqüência violenta ou sanguinária, que representa como uma aversão atávica às eras primevas, em que a luta pela vida, presumivelmente, se operava como uso normal dos meios brutais e animalescos. É a mais chocante violação do senso moral médio da humanidade civilizada.

É o crime que ataca o bem jurídico elementar e causa maior comoção social, diante dos efeitos irreparáveis gerados pela morte de uma pessoa.

Para quem comete essa espécie delito, o Estado, para demonstrar que protege a vida e que esse bem jurídico é de extrema importância para a sociedade, tem o dever de punir, de forma proporcional e adequada, inclusive para que, dentro daquilo que se estabeleceu como fins preventivos da pena, haja a necessária pacificação dos conflitos.

Em inúmeros países, o grau de civilidade e, por outro lado, de violência, para verificação e estudo das questões de segurança pública, é indicado pelos números de homicídios que ocorrem naquela comunidade. Hungria ressaltava que “o problema da criminalidade é, antes de tudo, e acima de tudo, o problema da previsão e repressão do homicídio”. E tal questão é de enorme relevância na busca de um Estado democrático comprometido com a realização e concretização de direitos fundamentais.

Nilo Batista, na esteira da posição maciça da doutrina brasileira, e defendida por Roxin, aduz que “a missão do Direito Penal é a proteção dos bens jurídicos, através da cominação, aplicação e execução da pena”4. No Estado brasileiro, então, entendeu o constituinte, para a garantia de efetivação dessa tutela do bem jurídico vida, nos casos dos crimes dolosos que afetem esse específico bem jurídico, que o julgamento fosse realizado pela própria comunidade, representada pelos jurados, pessoas leigas que são chamadas pelo Poder Judiciário para decidirem a causa.

3 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. vol. V. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955, p. 25.

4 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 1996, p. 116.

Não resta dúvida, assim, que a proteção do direito à vida é um mandamento constitucional e que isso ocorre com a incriminação dos delitos que ataquem esse precioso bem jurídico. Além disso, que o Tribunal do Júri foi reconhecido e incumbido pelo constituinte para, exclusivamente, dar a última palavra e decidir esses casos, como testemunho de fé e crença na justiça popular, na sua efetividade.

Por isso, verifica-se que a matéria é de cunho constitucional, fator que deve ser observado pelo legislador infraconstitucional, quando tratar do assunto na esfera do processo penal, no momento em que pretender realizar quaisquer modificações ou editar novas leis que versem sobre o júri, sobretudo, no que diz respeito ao modelo adotado no Brasil e seus princípios basilares.

3 Constituição e sua superioridade hierárquica

Um Estado está sedimentado em uma Constituição, normas e princípios básicos que sustentam e afirmam uma sociedade. Indiscutível que a Constituição é considerada a Lei Maior, estando hierarquicamente num patamar superior em relação as demais normas do ordenamento jurídico.

Nesse caminho, lembra Jorge Miranda5:

Em qualquer Estado, em qualquer época e lugar, encontra-se sempre um conjunto de normas fundamentais, respeitantes à estrutura, à sua organização e à sua actividade – escritas ou não escritas, em maior ou menor número, mais ou menos simples ou complexas. Encontra-se sempre presente uma Constituição como expressão jurídica do enlace entre poder e comunidade política ou entre governantes e governados. Todo o Estado carece de uma Constituição como enquadramento de sua existência, base e sinal também da sua presença diante dos demais Estados. Ela torna patente o Estado como instituição, como algo permanente para lá das circunstâncias e detentores concretos de poder; revela a prevalência dos elementos objectivos ou objectivados das relações políticas; é esteio, senão de legitimidade, pelo menos de legalidade. A Constituição constitui o Estado, tal como em qualquer outra sociedade algum corpo de normas desempenha análoga função estruturante. A diferença está em somente a Constituição é originária.

5 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 161.

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Tribunal do Júri: uma análise pelo Direito Constitucional | Márcio Schlee GomesCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 129128

Tratando-se da norma originária que constitui e estrutura o Estado e sinaliza regras básicas para a existência e funcionamento deste, não pode ser contrariada por legislação ordinária posterior, nem podem ser admitidas leis anteriores que não estejam no mesmo compasso das normas hierarquicamente superiores, quais sejam, a normas constitucionais (trata-se da questão da recepção das normas infraconstitucionais, todo o sistema jurídico anterior à Constituição).

Uma Constituição não pode ficar no campo da abstração, ser apenas uma carta de intenções. A doutrina de Direito Constitucional é pacífica ao entender que é necessário que a Constituição irradie efeitos sobre todo o sistema jurídico, seja posta em prática, seja respeitada. É a discussão que ocorre sobre a “concretização” da Constituição.

Isso, sem dúvida, só ocorrerá a partir do efetivo respeito ao “princípio da supremacia da Constituição”, ponto de partida para que as normas constitucionais surtam efeitos no meio social.

Luís Roberto Barroso6, acerca do tema, refere:

Do ponto de vista jurídico, o principal traço distintivo da Constituição é sua supremacia, sua posição hierárquica superior à das demais normas do sistema. As leis, atos normativos e atos jurídicos em geral não poderão existir validamente se incompatíveis com alguma norma constitucional. A Constituição regula tanto o modo de produção das demais normas jurídicas como também delimita o conteúdo que possam ter. Como consequência, a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo poderá ter caráter formal ou material. A supremacia da Constituição é assegurada pelos diferentes mecanismos de controle de constitucionalidade. O princípio não tem conteúdo próprio: ele apenas impõe a prevalência da norma constitucional, qualquer que ela seja. É por força da supremacia da Constituição que o intérprete pode deixar de aplicar uma norma inconstitucional a um caso concreto que lhe caiba apreciar – controle incidental de constitucionalidade – ou o Supremo Tribunal Federal pode paralisar a eficácia, com caráter erga omnes, de uma norma incompatível com o sistema constitucional.

A legislação ordinária, portanto, e assim toda a legislação infraconstitucional, deve observar os mandamentos constitucionais, sempre respeitando a situação de estar em patamar inferior quando comparada ou interpretada a estes.

O Tribunal do Júri, ao ser reconhecido na Constituição, inclusive, com a previsão de seus princípios básicos, expressos, como a plenitude de defesa, o sigilo das

6 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 7. ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2009, p. 372.

votações, a soberania dos veredictos e a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida (artigo 5º, XXXVIII, a, b, c, d, da Constituição), é norma a ser efetivada, concretizada, não podendo sofrer alterações nessa estrutura básica afirmada e mantida pelo constituinte, já pelo próprio argumento da supremacia da constituição.

Em 1988, durante a Assembleia Nacional Constituinte, houve a possibilidade de abolição do julgamento popular do cenário jurídico brasileiro ou que fosse adotado um modelo diferente daquele que vinha sendo aplicado desde 1941, vigente no Código de Processo Penal.

Entretanto, isso não foi feito, pelo contrário, o júri foi mantido e com a previsão de princípios básicos, vindo a ser registrado entre os direitos e garantias individuais, o que impede a sua extinção ou mutação via legislador ordinário.

De acordo com o princípio da supremacia da constituição, no caso específico do júri, qualquer norma que vier a tolher sua competência mínima e exclusiva, modificar sua estrutura, o modelo adotado no Brasil, estará eivada de inconstitucionalidade, por descumprir, claramente, o que está disposto na Lei Maior.

Em jogo estão bens jurídicos fundamentais, a tutela penal efetuada pelo Estado, incluindo, o Tribunal do Júri, tudo relativo a normas constitucionais, o que vem a delimitar ação do legislador ordinário.

4 Tribunal do Júri: natureza jurídica e posição constitucional

Discute-se na doutrina processual penal se o Tribunal do Júri é um simples órgão do Poder Judiciário ou se constitui algo além disso, diante de seus contornos especiais, em face de sua composição, formado por pessoas leigas, do povo, e sua sustentação constitucional.

Hermínio Marques Porto, Tourinho Filho, Espínola Filho, doutrinadores importantes no cenário do júri, conceituam a instituição como um órgão do Poder Judiciário. Já outros, como Aramis Nassif, Mauro Viveiros, enxergam o júri como um órgão especial, constitucional, de cidadania, indo além de um simples órgão judiciário. É também a posição de Ângelo Ansanelli Júnior7 e Guilherme Nucci.

7 De acordo com Ansanelli Jr., “O Tribunal do Júri, além de se consubstanciar em verdadeiro direito fundamental, possui na-tureza de princípio constitucional” (ANSANELLI JÚNIOR, Ângelo. O Tribunal do Júri e a Soberania dos Veredictos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 44).

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Aramis Nassif8 defende o júri como um órgão de cidadania, espelho de democracia, na realidade, uma efetiva garantia constitucional do cidadão:

Manteve-se, contudo, o Tribunal do Júri na relação dos direitos e garantias fundamentais, exposta, sem possibilidade de dúvidas, a intenção do legislador, espancando por fim, a interpretação dos que sustentam o Tribunal do Júri como órgão do Poder Judiciário. É sempre atual a lição de Ataliba Nogueira, destacada pelo eminente Ary Azevedo Franco (1956, p. 24), testemunhando que, ao longo da história, como agora, a instituição ‘é, ao mesmo tempo, não só uma garantia individual, como um direito do cidadão. Garantia individual, porque ninguém nega, ainda nos dias de hoje, e apesar das transformações das concepções democráticas, o direito de ser o acusado julgado pelos seus semelhantes, direito individual, porque todos reconhecem ao acusado o direito de ser julgado acima das normas inflexíveis e rígidas da lei, a que um juiz togado está obrigado, julgando de acordo com as condições locais, as normas dos padrões morais da sociedade ou coletividade em que vive e onde cometeu o crime...Alinhá-lo entre as garantias individuais, ou na parte do Poder Judiciário, não é mera questão semântica, como pode parecer à primeira vista, pois a democracia participativa implica, entre outras coisas, atuação popular, diretamente em relação aos três poderes, o que consubstancia, sem dúvida, um direito a ser garantido na Carta Magna. Essa é a essência constitucional do Tribunal do Júri, que lhe empresta, assim, seu próprio conceito. Entendo, pois, possível conceituar o Tribunal do Júri como sendo a garantia constitucional do cidadão a ser julgado pelo povo, quando o acusado da prática de fatos criminosos definidos na própria Constituição ou em lei infraconstitucional, com a participação do Poder Judiciário para a execução de atos jurisdicionais privativos.

Nesse mesmo caminho, Mauro Viveiros9 considera o júri “um órgão de natureza constitucional”, que conta com princípios e regras específicas e peculiares, que está sujeito a “um regime constitucional e infraconstitucional que o faz distinto dos órgãos do Poder Judiciário”.

Certo que o júri, no contexto jurídico brasileiro, pela posição constitucional que lhe foi contemplada, é um órgão político-jurídico10, constituindo, realmente, uma garantia constitucional do cidadão e da sociedade, a qual é efetivada com a utilização

8 NASSIF, Aramis. Júri: Instrumento da Soberania Popular. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 31.

9 VIVEIROS, Mauro. Tribunal do Júri – Na Ordem Constitucional Brasileira: Um Órgão de Cidadania. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2003, p. 17.

10 Ruy Barbosa, um dos maiores defensores e uma das maiores autoridades em matéria de júri, no início do século XX, afirmava que “não é o Júri unicamente uma instituição jurídica: é uma criação política de suprema importância no governo constitucional. O Júri, antes de tudo, instituição política” (BARBOSA, Ruy. O Júri sob todos os aspectos. Rio de Janeiro: Ed. Nacional de Direito, 1950, p. 09).

da máquina judiciária, porém, com a composição e poder decisório do próprio povo, representado pelos jurados.

Em razão da norma constitucional, o júri é obrigatório em matéria de crimes dolosos contra a vida, havendo a reserva de poder para a sociedade, ao julgar logo os crimes que são considerados mais graves, por atentarem contra o principal e mais importante bem jurídico, a vida humana.

Dessa forma, o Estado brasileiro ao tutelar o direito à liberdade do cidadão e, ao mesmo passo, os direitos à vida e segurança, o faz pelo Tribunal Popular, em dois aspectos: em matéria de Processo Penal como garantia efetiva do réu ao direito de liberdade, bem como, no campo do Direito Penal a afirmação do direito à vida e segurança, ao punir, se for o caso e comprovado no processo, o autor do delito doloso contra a vida.

A escolha do constituinte foi manter a instituição do júri intacta, nos mesmos moldes anteriores, com a crença na justiça popular para os casos mais rumorosos e em que as circunstâncias e mínimos detalhes podem fazer uma enorme diferença e resultar em uma absolvição ou condenação, tudo de acordo com o entendimento daquela comunidade onde o crime foi cometido.

Como lembra Kátia Duarte de Castro11:

O Tribunal do Júri igualmente possibilita uma atenuação da dimensão ideológica impressa pelo grupo dominante, permitindo uma justiça com base no próprio sentimento de justiça dos jurados, e não em um critério imposto ao corpo social. Tal mitigação ocorre porque, em primeiro lugar, no Júri o réu será julgado em conformidade com os padrões morais da comunidade à qual pertence ou onde cometeu o delito. Em segundo lugar, o Tribunal Popular é capaz de imprimir ao seu julgamento uma individualização maior que porventura manifestada pelo Juiz singular.

Tourinho Filho12 também ressalta esse aspecto democrático e humano, que são os maiores fundamentos da instituição popular. Ressalta que os juízes togados são

11 CASTRO, Kátia Duarte de. O Júri como Instrumento de Controle Social. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999, p. 147.

12 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. vol. IV. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, pág. 98. Nesse mesmo caminho, para registro, merecem ser lembradas as palavras de Romeiro Neto, um dos maiores nomes do júri brasileiro: “O Júri erra, sem dúvida alguma. Erram também os juízes togados. Aí estão os tribunais de recursos a reformar, todos os dias, as decisões dos juízes togados, doutores em direito, que não são, como os jurados, chamados a julgar de acordo com o seu sentimento de justiça, com o seu conhecimento da vida, com sua psicologia comum dos fatos. O Júri erra sem dúvida alguma, mas muito mais que o Júri erram os juízes togados e o próprio Supremo Tribunal Federal quantas e quantas vezes, julgando embargos de suas próprias decisões, recebe-os para reconsiderá-las. O Júri é o Tribunal humano, é o tribunal que atende às desgraças, às fraquezas humanas e às deficiências da lei, que não as pode considerar, compreender. O jurado supre essas defi-ciências, considerando e compreendendo a criatura humana...O Júri faz, sem dúvida, obra perfeita de justiça social” (NETO, Romeiro. Fora do Júri, em outras tribunas. Niterói/RJ: Impetus, 2006, p. 30).

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também tutores das liberdades individuais, porém, os jurados estão muito mais afetos à realidade social e em compasso com aquilo que efetivamente toca no sentimento do povo. Cabe ponderar sua visão acerca da amplitude democrática que o júri possui para a decisão sobre uma causa em que se deparam os mais importantes e latentes bens jurídicos de uma sociedade:

Muitas vezes o legislador se divorcia da vontade popular e o Tribunal leigo corrige as distorções. O juiz togado confiscaria o punhal de Otelo, mas o Tribunal do Júri lho devolveria. A pobre mulher do operário, com três ou quatro filhos, que viesse a provocar um aborto, não encontraria, talvez, a clemência desejada nas mãos do juiz togado. Este, à semelhança do Magistrado que se mumifica na tessitura do texto, anatematizado por Anatole France diria: nós somos Juízes e não legisladores ou filósofos...Mas o Tribunal Popular a absolveria, respondendo: nós somos homens. A mulher que abortasse para esconder a própria desonra, fatalmente seria condenada pelo Juiz singular, se tivesse competência para julgá-la. O Tribunal popular dificilmente o faria...Nem sempre o legislador transfunde, na lei, o sentimento popular, mas o seu ponto de vista, suas convicções. Aos poucos, contudo, as reiteradas decisões do júri convencem o legislador de seu desacerto. Razão assiste a Donnedieu de Vabres, ao afirmar: les jurés échappent à la routine: ils sont em contact permanent avec l’opinion publique. C’est sous influence des veredicts du jury, des vouex qu’ils ont exprimés, qu’ont été réalisées d’utiles em matiére pénale (cf. Traité, cit, p. 707, n.1229).

Esse foi o posicionamento do constituinte no momento histórico de 1988, após um período nefasto de ditadura militar que perdurou por mais de 20 anos, com a abertura democrática e posição favorável em manter a instituição popular para o julgamento de determinados tipos de causas.

No Brasil, assim, foi prestigiada a instituição do júri, encarregando-a do julgamento, por exemplo, dos crimes de homicídio doloso, em que a análise de inúmeros fatores, a vida pregressa dos envolvidos (réu e vítima), o local, as circunstâncias, e não o mero ato em si, serão de suma importância para um julgamento justo. Em face disso, o constituinte reservou à comunidade o julgamento da causa, representada por sete jurados, que decidirão o processo e o destino do acusado. É a participação popular direta em um Poder de Estado, um exemplo claro de inspiração democrática para garantia da liberdade e da vida.

Então, para que isso ficasse definido como um modelo certo para a tutela do direito à liberdade e à vida, o júri foi mantido e lançado no extenso rol dos direitos

e garantias fundamentais, previsto no artigo 5º da Carta Magna. Ao estar entre os diretos fundamentais assegurados no Estado Brasileiro, de acordo com o artigo 60, § 4º, não é passível de reforma ou modificação. Somente por uma nova constituinte o júri poderia ser abolido ou, até mesmo, ser alterado no que diz respeito aos seus princípios elencados no artigo 5º, XXXVIII, da Constituição. De resto, qualquer passo nesse sentido é inviável, pelo status constitucional e sua localização.

O júri, como garantia fundamental, deve ser reconhecido como uma escolha do constituinte e, portanto, como norma constitucional, ser respeitado e devidamente valorizado no cenário jurídico como forma de concretização da própria Constituição.

5 O Júri como uma garantia fundamental institucional

Por estar inserido dentre os direitos e garantias individuais, expressamente, o júri, em sendo uma instituição, ao menos formalmente é classificado como um direito fundamental.

E, nesse diapasão, a doutrina de Direito Constitucional, ao fazer o estudo dos direitos e garantias fundamentais, afirma a existência de garantias fundamentais “institucionais”, que, na realidade, expressam uma forma de proteção dos direitos fundamentais propriamente ditos, em caráter material, que servem para a efetiva tutela destes. Como estão interligados, certos direitos fundamentais somente poderão ser realmente garantidos se afirmados por instituições.

O Tribunal do Júri, como instituição, tem por escopo a tutela aos direitos à liberdade, à vida, à segurança, todos direitos fundamentais.

O cidadão, ao ser julgado pelo júri, tem a garantia de que seu direito à liberdade vai ser analisado e decidido por pessoas da sua própria comunidade que farão um julgamento humano e a partir do mesmo plano existencial que o seu. Essa proximidade, acusado e julgadores, num mesmo patamar, é a essência democrática da instituição do júri, como veículo de defesa das liberdades.

Por sinal, isso foi o motivo da própria criação do júri, como instituição política na luta contra o arbítrio e poder absoluto do Estado, onde o indivíduo teria, então, a oportunidade de ser julgado por seus pares e não pelo soberano ou seus representantes.

Em contrapartida, o júri é a forma de efetivação do Direito Penal e a afirmação da tutela ao direito à vida e direito à segurança das pessoas. Tramitando um processo

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criminal com todas as garantias ao acusado, respeitando-se o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, princípios básicos de um processo justo e democrático, caberá à própria sociedade prolatar um veredicto condenatório e, então, fazer surtir os efeitos desta decisão, que nada mais fazem do que reprovar aquela conduta criminosa e, assim, afirmar o direito à vida, principal bem jurídico, para ensejar a necessária pacificação social e apaziguar conflitos.

Ingo Wolfgang Sarlet13, partindo da análise dos direitos fundamentais, entende o júri como uma “garantia fundamental institucional”:

Como exemplo de autênticas garantias institucionais no catálogo da nossa Constituição, podem ser referidas a garantia da propriedade (art. 5º, XXII), do direito de herança (art. 5º, XXX), da instituição do Tribunal do Júri (art. 5º, XXXVIII). Importa salientar, outrossim, que os direitos fundamentais – na condição de garantias institucionais – em que pese não exercerem a função de uma garantia absoluta do status quo, protegem o núcleo essencial de determinados institutos jurídicos-privados (garantias de instituto) e jurídico-públicos (garantias institucionais), no sentido de que seu objeto constitui um complexo de normas jurídicas...Não é, portanto, sem razão que J. Miranda apontou para o fato de que, inobstante os direitos fundamentais se reportarem sempre à pessoa humana, certos bens jurídicos desta somente podem ter sua existência assegurada no âmbito ou por intermédio de instituições dotadas de maior ou menor autonomia frente aos indivíduos que as constituem...Na verdade, a função precípua das garantias institucionais (desconsiderada aqui sua eventual função como direito subjetivo, que, como visto, pode coexistir) é a de reforçar a proteção de determinadas instituições contra a ação erosiva do legislador, o que ressalta sua dimensão, ao menos preponderantemente defensiva, isto é, destinada a bloquear ingerências nos poderes públicos. Assim, desde que se atente para as devidas distinções entre estas e as demais garantias fundamentais (direitos-garantia propriamente ditos), de modo especial para a circunstância de as garantias institucionais por vezes não outorgarem aos particulares posições jurídico-subjetivas autônomas, é possível situar ambas as espécies de garantias lado a lado, juntamente com os direitos de liberdade e igualdade, bem como as demais posições fundamentais do status negativus e libertatis já referidas.14

13 SARLET, Ingo Wolfang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007, p. 215-216.

14 SARLET, Ingo Wolfang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007, p. 215-216.

Como bem ressalta Sarlet, o Tribunal Popular muito bem se enquadra nesse conceito, pois, como defende, protege núcleo essencial de direitos fundamentais e estes, em muitos casos, poderão ser assegurados por intermédio de determinadas instituições.

E, sem dúvida, inserindo a instituição como uma garantia constitucional, esta fica bloqueada, o que vem a impedir ataques, modificações, qualquer ação que vise desprestigiar ou atingir direitos fundamentais.

José Joaquim Gomes Canotilho15, analisando as garantias institucionais e direitos fundamentais, afirma:

As chamadas garantias institucionais (Einrichtungsgarantien) compreendiam as garantias jurídico-públicas (institutionnelle Garantien) e as garantias jurídico-privadas (Institutsgarantie). Embora muitas vezes estejam consagradas e protegidas pelas leis constitucionais, elas não seria verdadeiros direitos atribuídos directamente a uma pessoa; as instituições, como tais, têm um sujeito e um objecto diferente dos direitos dos cidadãos. Assim, a maternidade, a família, a administração autonoma, a imprensa livre, o funcionalismo público, a autonomia academica, são instituições protegidas directamente como realidades sociais objectivas e só, indirectamente, se expandem para a proteção dos direitos individuais. Contudo, como atrás já foi salientado, o duplo caráter atribuído aos direitos fundamentais – individual e institucional – faz com que hoje, por exemplo, o direito de constituir família (art. 36º/1) se deva considerar indissociável da protecção da instituição família como tal (art. 67º)...A protecção das garantias institucionais aproxima-se da protecção dos direitos fundamentais quando se exige, em face das intervenções limitativas do legislador, a salvaguarda do “mínimo essencial” (núcleo essencial) das instituições.

Nesse caminho, Paulo Bonavides, ao distinguir direitos de garantias, assevera, citando Carlos Sànchez Viamonte, que “garantia é a instituição criada a favor do indivíduo, para que, armado com ela, possa ter ao seu alcance imediato meio de fazer efetivo qualquer dos direitos individuais que constituem em conjunto a liberdade civil e política”16, o que se aplica, claramente, ao caso da instituição do júri e diante de sua posição no ordenamento jurídico brasileiro, ou seja, na Constituição, dentre os direitos e garantias individuais.

Como forma de assegurar direitos fundamentais, o júri é reconhecido pelo constituinte como uma efetiva garantia desses direitos (liberdade, vida, segurança)

15 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 397.

16 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 483.

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e, para que possa cumprir com seu papel sem ficar à mercê de reformas legislativas, é destacado como uma cláusula pétrea.

Ao explicar o surgimento de uma teoria constitucional das garantias institucionais, Bonavides17 refere:

Teve por idéia comum e fundamental, segundo Klaus Stern, o reconhecimento de que determinadas instituições jurídicas devem ser resguardadas de uma supressão ou ofensa ao seu conteúdo essencial ou esfera medular, por parte do Estado, sobretudo do legislador...A garantia institucional visa, em primeiro lugar, assegurar a permanência da instituição, embargando-lhe a eventual supressão ou mutilação e preservando invariavelmente o mínimo de substantividade ou essencialidade, a saber, aquele cerne que não deve ser atingido nem violado, porquanto se tal acontecesse, implicaria o perecimento do ente protegido.

Como forma de preservar um direito fundamental tutelado pelo Estado, este traz para o cerne constitucional uma instituição que tem por finalidade a própria proteção desse direito fundamental. Por esse caminho, preservando a instituição, garante o direito e, por tratar de matéria constitucional e inserida como uma garantia, fica imune a reformas ou alterações lançadas pelo legislador infraconstitucional.

Porém, não se pode perder de vista a ponderação de Guilherme Nucci18 que observa, ainda, que além de uma garantia do direito de liberdade, o júri pode ser entendido, também, como um direito do cidadão de participar na administração da justiça. Seria um direito da sociedade, representada pelos jurados, de participarem efetivamente de um poder decisório, no resguardo de bens jurídicos como a vida e a liberdade. Inclusive, citando Edgar Moura Bittencourt, observa que o mérito do júri também é

corresponder a um interesse educacional do povo e difundir, no seio deste, a nítida noção e o apurado sentimento de responsabilidade que lhe cabe como participante da vida do Estado.

Não é por acaso que Ingo Wolfgang Sarlet, apesar de classificar o júri como uma garantia fundamental institucional, conforme visto acima, não deixa de ponderar

17 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 497.

18 NUCCI, Guilherme de Souza. Júri – Princípios Constitucionais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p. 55.

que, caso fosse considerado um direito fundamental na qualidade de direito subjetivo típico, poderia ser uma faculdade a ser exercida pelo réu, como ocorre em alguns países. Entretanto, o autor não se filia a esse entendimento, vendo no júri uma garantia do direito de liberdade, que se dá pela afirmação da instituição composta por pessoas leigas da comunidade e que estarão incumbidas de julgar um semelhante em situação de igualdade (isso, claramente, no campo ideal).

Sarlet19 refere que

o simples fato de que o cidadão não possui o direito de optar em ser, ou não, julgado pelos seus pares, revela que é à instituição do Tribunal do Júri que o Constituinte outorgou maior relevância. Ora, como vimos, além da tutela da liberdade, pela instituição popular tutela-se a vida, a segurança, direitos também fundamentais. Não há, por isso, uma faculdade, estando expresso na Constituição que os delitos dolosos contra a vida serão julgados pelo júri, como direito do cidadão (réu) de não ser julgado pelo juiz togado. Essa é a única diferença. Conclui, então, Sarlet: “a garantia da instituição do Júri representa, portanto, para o cidadão, mais propriamente um dever fundamental de ser julgado pelo Júri, ou, pelo menos, a exemplo do direito de voto, um direito-dever.

Pode-se, então, vislumbrar o júri como um direito do cidadão de ser julgado pelos seus pares, mas, efetivamente, como uma garantia de, em assim o fazendo, de tutelar o direito fundamental à liberdade e, indo mais longe, também tutelar o direito à vida, de interesse de toda a sociedade.

No caso do Tribunal do Júri é o que ocorre. Uma instituição democrática e popular, que o constituinte, para mantê-la firme e com parcela de poder, reservou-lhe uma competência definitiva (julgar os crimes dolosos contra a vida) e concedeu-lhe a soberania de seus veredictos, impedindo que a magistratura togada reveja suas decisões no mérito. Além disso, para assegurar a independência dos jurados e da própria instituição, previu o sigilo das votações, o que dá segurança a cada jurado votar e decidir sem ter que, posteriormente, prestar contas a quem quer que seja, fator que afirma a pureza do voto e a verdade da decisão.

Esses são os princípios constitucionais do júri (contando, também, com a plenitude de defesa – essencial na tutela da liberdade e julgamento justo), que formam a viga-mestra da instituição. A Constituição manteve o júri e indicou, expressamente, o modelo a ser seguido, ao contemplar seus princípios estruturais. Nada disso foi por acaso.

19 SARLET, Ingo Wolfang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007, p. 214.

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Diante de muitas controvérsias, como já se referiu, sobre a necessidade ou não do júri, a existência de defensores e detratores, de discussões e debates que se renovam ao longo dos tempos, optou o constituinte em manter o júri e elencar, na Constituição, seus princípios fundamentais, fato que serviu como uma verdadeira blindagem da instituição frente ao legislador ordinário, principalmente, e, inclusive, em relação ao juízes, quando da aplicação e interpretação das normas infraconstitucionais.

A instituição do júri, portanto, é uma garantia fundamental institucional, servindo para a proteção dos direitos à liberdade, vida, segurança, direitos fundamentais que merecem a efetiva tutela por parte do Estado.

6 Reformas do Júri: a vinculação do legislador aos direitos fundamentais

De nada serviria a contemplação de uma instituição como garantia constitucional ou afirmação de determinado direito como fundamental, com a previsão na Constituição, se o legislador estivesse livre para alterar, modificar, conforme bem entendesse.

A supremacia da Constituição é um princípio fundamental e a hierarquia entre as normas deve ser devidamente respeitada. Por outro lado, de nada adiantaria um perfeito texto constitucional, mas que não fosse concretizado, que não tivesse vida, podendo, até mesmo, ser modificado e esquecido pelo legislador infraconstitucional.

Além da questão hierárquica, certas Constituições, como é o caso da brasileira, são classificadas como rígidas, ou seja, possuem mecanismos que impedem a reforma irrestrita de suas normas. Mais: possibilitam a reforma de algumas de suas normas, porém, com a previsão de quorum qualificado, fator que dificulta a ocorrência de modificações, bem como prevê que determinadas normas não são passíveis de reforma. É uma questão de segurança e de ser assegurada a essência da Constituição.

O artigo 60, §4º, da Constituição prevê as chamadas cláusulas pétreas, dentre as quais estão englobadas as normas relativas ao Tribunal do Júri, por estar previsto dentre as garantias individuais do artigo 5º e, além disso, por estar intrinsecamente ligado aos direitos fundamentais da liberdade e vida.

O legislador ordinário, além de estar proibido de dispor contra esses direitos fundamentais e garantias constitucionais (sentido negativo), tem obrigação de, em muitos outros aspectos, fazer valer a Constituição e tornar esses direitos efetivos, mediante as leis que elaborar (sentido positivo).

Em matéria penal, além de ser um dever a incriminação de certas condutas delituosas que atacam bens jurídicos importantes e que, inclusive, constituem direitos fundamentais, não há campo para o legislador simplesmente desproteger tais bens jurídicos, repita-se, muitos inseridos dentre os direitos fundamentais, o que estaria em total descompasso com a Constituição.

Claus Roxin20 afirma que a função do Direito Penal é a proteção dos bens jurídicos e a descrição de condutas típicas passa pela análise de um contexto global, em que o Direito Penal funcione como ultima ratio. No caso de bens jurídicos que são da alçada do Tribunal do Júri no ordenamento jurídico brasileiro, não há margem para divagações, pois liberdade e vida são bens jurídicos mais preciosos para o ser humano.

No júri, tanto a “liberdade do réu” como a proteção ao direito “vida” pela efetiva condenação do homicida, devem estar na balança e devem receber a devida guarida pelo Estado. Como o constituinte, na tutela de tais direitos, previu o júri como forma de garanti-los, inserindo-o como uma garantia constitucional, não pode legislador abolir ou mutilar princípios estruturais da instituição, sob pena de incorrer em flagrante inconstitucionalidade.

Há, portanto, uma vinculação do legislador.

Luciano Feldens21, tratando da questão dos direitos fundamentais e restrições que se seguem ao legislador, na esteira da posição de Robert Alexy, sustenta:

O legislador penal se encontra materialmente vinculado à Constituição, essencialmente naquilo que diz respeito ao epicentro dessa anunciada relação entre a ordem constitucional e o Direito Penal: a tutela de direitos fundamentais. Nessa perspectiva, a Constituição estabelece mandados e proibições, ambos funcionando como marcos da ação legislativa, no interior dos quais o legislador é livre para atuar com discricionariedade. Os conceitos de mandados, proibições e discricionariedade

20 Abordando o conceito de bem jurídico, Roxin ressalta que “em um Estado democrático de Direito, modelo teórico que eu tomo por base, as normas jurídicos penais devem perseguir somente o objetivo de assegurar aos cidadãos uma coexistência pacífica e livre, sob a garantia de todos os direitos humanos. Por isso, o Estado deve garantir, com os instrumentos jurídicos penais, não somente as condições individuais necessárias para uma coexistência semelhante (isto é, a proteção da vida e do corpo, da liberdade da atuação voluntária, da propriedade, etc.), mas também as instituições estatais adequadas para este fim (uma administração de justiça eficiente, um sistema monetário e de impostos saudáveis, uma administração livre de corrupção etc.), sempre e quando isto não se possa alcançar de outra forma melhor” (ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, págs. 17-18).

21 Defende ainda Feldens: Em razão do locus constitucional que ocupam, os direitos fundamentais se notabilizam pela resistência que oferecem ao legislador, o que garante a seus titulares, notadamente naquilo que constitua seu conteúdo essencial, uma zona de atuação imune a intervenções dos poderes públicos. Nesse âmbito, os direitos de liberdade formam parte de um núcleo indisponível à decisão majoritária, razão pela qual são identificados como direitos contramajoritários, no sentido de que sua configuração não está à livre disposição das maiorias parlamentares (FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e Direito Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, págs. 34 e 57).

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podem ser substituídos pelos conceitos de necessidade, impossibilidade e possibilidade. Aquilo que está ordenado pela Constituição é constitucionalmente necessário; o que está proibido pela Constituição é constitucionalmente impossível; e o que a Constituição confia à discricionariedade do legislador é tão somente possível, porque para a Constituição não é necessário nem impossível.

Esse entendimento vem na esteira de toda doutrina de Direito Constitucional, colhendo-se os ensinamentos de José Joaquim Gomes Canotilho, Jorge Miranda, Ingo Wolfgang Sarlet.

Canotilho22 expressa que a

cláusula de vinculação tem uma dimensão proibitiva: veda às entidades legiferantes a possibilidade de criarem actos legislativos contrários às normas e princípios constitucionais, isto é, proíbe a emanação de leis inconstitucionais lesivas de direitos, liberdades e garantias”, o que caracteriza o chamado sentido “negativo” de vinculação, e, por outro lado, há o sentido “positivo”, em que a “vinculação dos órgãos legislativos significa também o dever de conformarem as relações da vida, as relações entre o Estado e os cidadãos e as relações entre os indivíduos, segundo as medidas diretivas materiais consubstanciadas nas normas garantidoras de direitos, liberdades e garantias.

Em sendo direitos fundamentais, não cabe ao legislador ordinário dispor acerca daquilo que está proibido e impedido de regular, bem como tem, por outra face, a obrigação de “realizar”, por sua atividade legislativa, tais direitos fundamentais.

Como se observa, em matéria de júri, por haver a disposição expressa da Constituição e inclusão entre as garantias individuais, o legislador ordinário não está “livre” para qualquer espécie de modificação sobre essa secular instituição.

Certamente, com a finalidade de impedir essa espécie de ação, o constituinte inseriu o Tribunal Popular no artigo 5º da Constituição e afirmou seus princípios basilares, determinando a adoção de um modelo específico de julgamento popular.

Em face disso, as reformas previstas pela recente Lei n.º 11.689/08, legislação que entrou em vigor em agosto de 2008, e as propostas contidas no projeto de novo Código de Processo Penal, o qual já está no Senado Federal, não podem avançar sobre questões constitucionais.

22 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 440.

Nos pontos que se referem ao processo penal em si, o rito e algumas fórmulas, o legislador possui ampla liberdade para definir novas regras, visando um processo mais célere e efetivo. Claro, há um campo vasto que vai até os princípios básicos do processo penal, reconhecidos na própria Constituição, como o devido processo legal, contraditório, ampla defesa, presunção de inocência.

Segundo a percepção de Guilherme Costa Câmara, o processo penal, em um Estado de Direito democrático, vem afirmado em uma “Constituição Processual Penal”, servindo como instrumento para a concretização do jus puniendi estatal, mas, também, com uma relevante missão de garantia da liberdade individual23. Essa posição encontra arrimo, pacificamente, em toda a doutrina do Direito Processual Penal, fazendo a devida leitura a partir do texto constitucional.

Entretanto, em que pese a indiscutível relevância da garantia da liberdade individual, não se pode perder de vista a vinculação Direito Penal – Direito Processual Penal, em que este último funciona em caráter instrumental. E, por trás disso, há bens jurídicos importantíssimos, direitos fundamentais, que merecem a tutela estatal via Direito Penal, para pacificação social.

Jorge Figueiredo Dias ressalta a existência de um relacionamento material entre o Direito Penal e o Direito Constitucional, traçando um elo entre os bens jurídicos tutelados na Constituição e que, por sua importância, receberão a devida atenção do Estado com a previsão de sanções penais para aqueles que violarem e atacarem tais bens jurídicos24. Nem se discute a questão de uma teoria de imposições jurídico-constitucionais implícitas de criminalização, mas, sim, no que diz respeito ao júri, os bens jurídicos são a vida, a liberdade, a segurança, os quais recebem essa tutela como direitos fundamentais dos indivíduos.

A tutela da vida, que, em última análise, vai caber ao Tribunal Popular, no julgamento, por exemplo, de um réu que cometeu o crime de homicídio, consistindo, em última análise, matéria vinculada ao Direito Constitucional. E, nesse diapasão, o legislador não tem a chancela para tecer as modificações que entender necessárias no rito do júri, sem estar atento aos mandamentos e previsões constitucionais.

23 CÂMARA, Guilherme Costa. Programa de Política Criminal – Orientado para a vítima de crime. São Paulo: Coimbra Edito-ra e RT, 2008, pág. 271. O autor faz importantes considerações sobre a atual dimensão existente entre o Direito Constitucio-nal e o processo penal, asseverando: Não se desconhece que as garantias desempenham uma função instrumental e derivada, na dimensão que visam assegurar a fruição de direitos. As garantias, de um modo geral, consoante assertoa avisada doutrina constitucionalista, traduzem-se, quer no direito dos cidadãos em exigir dos poderes públicos a proteção dos seus direitos, quer no reconhecimento de meios processuais adequados a essa finalidade (...) O processo penal encontra-se hoje vinculado ao catá-logo de direitos fundamentais elencados na Constituição, que não são poucos aqueles que enunciam e proclamam a existência de um verdadeiro direito constitucional aplicado. Afirmação esta que necessita ser, no entanto, perspectivada em uma dupla dimensão: a primeira deriva ‘de os fundamentos do direito processual penal serem, simultaneamente, os alicerces constitucio-nais do Estado; a outra, ‘resultante de a concreta regulamentação de singulares problemas processuais’ ser conformada jurídica-constitucionalmente”.

24 FIGUEIREDO DIAS, Jorge. Temas Básicos da Doutrina Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 59.

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Na reforma de 2008, lançada pela Lei n.º 11.689/08, houve uma profunda alteração no sistema de deliberação do júri, no que diz respeito ao questionário.

Em um primeiro momento, parece que a reforma estaria tratando de uma questão apenas processual, relacionada ao rito. Entretanto, alterando pontos que são da essência do júri brasileiro, que é baseado, por exemplo, no sistema francês de deliberação do júri, em que os jurados são submetidos a um questionário que indaga as diversas teses defensivas debatidas ao longo do julgamento, foi definido apenas o quesito genérico: “o jurado absolve o acusado?”.

Essa modificação, conforme entendimento de muitos doutrinadores especialistas em matéria de júri, fere diversos princípios constitucionais. Como não há possibilidade de comunicação entre os jurados, por vigorar o princípio constitucional (expresso) do sigilo das votações, decidir a causa em único quesito que englobaria todas as teses de defesa é, além de uma temeridade, por ter o jurado que decidir em apenas um relance sobre tudo o que foi debatido, uma verdadeira afronta ao princípio da soberania do júri, pois limita o jurado de poder chegar a decisões intermediárias (reconhecer o excesso culposo na ação do réu, por exemplo), bem como em caso de absolvição, discutidas várias teses defensivas, não se saberá nunca qual delas foi acolhida, o que retira a possibilidade de eventual recurso da acusação em relação ao mérito, algo que é inadmissível em um processo democrático e justo. Com isso, resta violado o princípio do contraditório, ao custo do interesse social.

Para tentar remendar essa situação, o projeto de novo Código de Processo Penal que tramita no Congresso Nacional, PLS 156/2009, prevê a comunicabilidade entre os jurados após o término dos debates, com possibilidade de deliberação conjunta por até uma hora. Porém, verifica-se o atropelo, novamente, de mandamento constitucional.

Ora, a Constituição é expressa ao prever o sigilo das votações. A deliberação conjunta permite o conhecimento do voto e, a partir disso, com um jurado pressionado ou com interesse velado na causa, poderia estar sendo contaminada a vontade de todo o conselho de sentença. Fere-se de morte a independência do júri, a honestidade e imparcialidade do voto. Veja-se que isso sempre foi vetado no sistema brasileiro (diferentemente do sistema inglês e norte-americano), com a ideia de preservar o voto de consciência, puro, de cada membro do corpo de jurados, chegando-se a decisão da causa por maioria de votos, porém, sem a contaminação da vontade de nenhum deles pela dos outros.

Como se pode notar, essas questões dizem respeito ao modelo de júri adotado no Brasil e foram previstas na Constituição, a qual além de reconhecer e manter o júri, deixou clara a estrutura básica da instituição, seus pilares de sustentação.

O sigilo das votações e a soberania dos veredictos são princípios fundamentais do júri, adotados pelo constituinte.

Nesse aspecto, cabe observar que o legislador ordinário não está livre para dispor da matéria, sem qualquer parâmetro. Com efeito, os limites estão expressos na Constituição e devem ser respeitados. Caindo qualquer um dos pilares do júri, há sério risco de uma queda total da instituição.

Para que isso fosse evitado, houve a preocupação do constituinte em delimitar os princípios estruturais do júri, o que evidencia como deve funcionar a instituição popular em nosso país. Nesses pontos, o legislador não possui liberdade plena para modificar a instituição do júri.

A modificação de prazos, a previsão dos números de testemunhas, debates orais ou alegações escritas, concentração de atos em audiência, são questões referentes ao procedimento, ao processo penal em si, que podem ser alteradas de acordo com o entendimento do legislador infraconstitucional.

Todavia, no que tange aos princípios constitucionais e modifica a estrutura do júri brasileiro, deve-se observar que a questão é bem mais profunda, e o júri, por estar inserido como uma garantia fundamental dos cidadãos, deve ser preservado nos moldes previstos na Constituição.

O legislador, portanto, está vinculado à realização dos direitos fundamentais, e, em matéria de júri, deve abster-se de modificar a instituição em seus princípios basilares, sob pena de constituir flagrante inconstitucionalidade, pois o júri, conforme visto acima, tem como escopo a tutela de direitos fundamentais, tratando-se de expressa garantia constitucional.

7 Conclusões

O Tribunal do Júri ocupa uma posição de destaque na seara do Processo Penal. E essa leitura não pode ser feita no campo estrito do processo, mas, na realidade, com os olhos voltados para o Direito Constitucional.

Esse destaque ocorre em razão de ser o júri uma instituição totalmente diferenciada.

É composto por pessoas da comunidade, sem formação jurídica, leigos que vão decidir, exclusivamente, sobre aqueles processos que mais chamam à atenção e, por muitas das vezes, chocam a sociedade: os crimes dolosos contra a vida.

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Nesse contexto, o júri é uma instituição muito delicada, em que circunstâncias mínimas podem ganhar grandes proporções e representarem um ponto fundamental para uma decisão justa ou injusta, tudo num mero piscar de olhos.

Ora, o povo está representado e fazendo parte de um Poder de Estado. Sete jurados sorteados, de modo independente e livre, darão seu voto pela absolvição ou condenação, de acordo com o entendimento formado ao longo do julgamento, baseados em suas experiências de vida, na realidade, muito menos nos aspectos meramente jurídico-legais.

A opção do constituinte foi clara ao privilegiar essa forma de justiça nos casos de homicídios dolosos, crimes contra a vida humana, verdadeira tradição na cena jurídica brasileira. A crença na justiça feita pelo júri é a única conclusão possível frente ao disposto, expressamente, na Constituição, entre os direitos e garantias fundamentais.

E, sem dúvida, isso não foi obra do acaso, mas, com plena certeza, fruto de amplo debate, gerador dessa diretriz que manteve o júri e, inclusive, prevendo seu formato, com a previsão de seus princípios fundamentais.

O Tribunal do Júri, então, por seus fundamentos e por sua formação, é uma instituição política, constituída pelo povo, que ditará a justiça no caso concreto. É democrática e pluralista, o que faz compreender sua posição constitucional, muito além de uma mera regra processual.

É uma instituição a serviço dos direitos fundamentais. O júri serve de guardião das liberdades e da vida, bens jurídicos supremos em uma sociedade civilizada. Essa perspectiva é que não pode ser rechaçada pelo legislador ordinário.

A posição constitucional do júri serviu para, como defendemos, efetivamente blindar a instituição contra reformas que venham a atingir em sua estrutura básica, a qual está muito clara na Constituição.

Se o júri é uma garantia fundamental (e de certo modo também um direito fundamental), e tutela bens jurídicos fundamentais como a liberdade, a vida, a segurança, não pode o legislador infraconstitucional livremente dispor sobre a instituição, sobretudo naquilo que está expresso na Constituição.

Qualquer arranhão, qualquer afronta, mesmo que de forma tangencial ou oblíqua, deve receber a pecha de inconstitucional. Pensar em sentido oposto, é permitir o desmando e a desnaturação de normas constitucionais, algo antidemocrático e nefasto.25

25 Cabe observar, nesse mesmo sentido, as palavras de Guilherme Nucci, ao analisar os princípios constitucionais do júri: Desrespeitar os princípios-garantias do Tribunal do Júri, previstos no art. 5º, XXXVIII, da Constituição Federal, significa desacreditar a própria instituição e, por consequência, afastar uma garantia fundamental, eleita pelo poder constituinte origi-

O júri foi afirmado no Brasil seguindo um modelo em vigor há mais de 60 anos. Passaram-se as Constituições de 1946 (democrática) e 1967 (ditatorial), bem como vigora a Constituição “Cidadã” de 1988, funcionado o júri, principalmente, em seus aspectos fundamentais, em formato fechado pela própria Lei Maior. Isso tudo, com uma visão clara de que, assim, se está efetivando e realizando direitos fundamentais.

O legislador, nesse diapasão, está limitado em seu poder de legislar, não podendo adentrar em certas questões que estão previstas e garantidas na Constituição.

Por isso, a reforma instituída pela Lei n.º 11.689/08 trouxe vários aspectos questionáveis frente às normas constitucionais referentes ao júri, bem como o projeto de novo Código de Processo Penal que tramita no Congresso Nacional também segue nesse caminho, sem observar que o Tribunal do Júri não pode ser lido exclusivamente pela a ótica do processo penal, mas, sim, juntamente com olhos voltados ao Direito Constitucional.

Por essa visão, em sendo o júri uma garantia fundamental institucional, inserida expressamente no artigo 5º da Constituição, verifica-se que deputados e senadores devem conter sua determinação de legislar sobre qualquer assunto e matéria de forma indiscriminada, sob pena de afronta à instituição e, por óbvio, à Constituição.

Essas reformas propostas pelo legislador, em matéria de júri, portanto, devem estar de acordo com a Constituição. Deve existir a preocupação de que o júri não pode ter sua estrutura fundamental alterada. Há a vinculação do legislador aos direitos fundamentais, matéria esta que está inserida em todos os aspectos na instituição do júri.

Vida e liberdade, direitos fundamentais que são a essência do debate no Tribunal do Júri. Intrinsecamente ligados, não há como dissociá-los, motivo pelo qual o júri foi prestigiado em um modelo tradicional, brasileiro, que está garantido na Constituição.

Portanto, o júri deve ser lido, em primeiro plano, por uma análise do Direito Constitucional, para sua própria preservação, pois como uma garantia fundamental, é missão de todos, inclusive do legislador infraconstitucional, de respeitá-lo e, ainda, concretizá-lo perante a sociedade.

nário, ao elaborar o Texto Fundamental, que passaria a reger todas as estruturas do Estado, inclusive e especialmente o Poder Judiciário. Desprestigiar uma garantia fundamental é ato grave, pois infirma o caráter de Estado Democrático de Direito que se atribui à nação brasileira, no art. 1º da Constituição” (NUCCI, Guilherme de Souza. Júri – Princípios Constitucionais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p. 205).

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Mauro ViveirosProcurador de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso – Foi Corregedor-Geral do Ministério Público de Mato Grosso - Mestre e Doutor em Direito Constitucional,

Professor na Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso – Foi Promotor de Justiça do Tribunal do Júri por mais de uma década – Idealizador da Confraria do Júri e

seu Primeiro Presidente - Autor do livro Tribunal do Júri na Ordem Constitucional Brasileira: um órgão da cidadania.

O Júri e os sábios

Quando perguntado sobre algo, Heráclito costumava dizer: espera um pouco, vou perguntar a mim mesmo e depois lhe respondo.

É uma boa frase para observar os discursos no Júri, onde os debatedores expõem argumentos, fazem valorações de fatos e circunstâncias, discorrem sobre aspectos pessoais dos protagonistas, suas relações, antecedentes, e falam – até - algo sobre direito.

Os julgadores interessam-se e necessitam conhecer as circunstâncias e motivações do crime; as questões técnicas, embora possam encantar alguns, ocupam um segundo posto1.

Porque os discursos respondem a essa necessidade, tem-se a impressão de que falar sobre fatos a leigos é algo simples e até banal. Ocorre que a tarefa não é tão simples.

Em verdade, oculta-se: 1) que fatos são analisados tecnicamente; 2) que as questões técnicas envolvem muitas vezes fatos; 3) que não há separação absoluta entre fato e direito2, e 4) que a formação da convicção dos jurados depende essencialmente do modo como se expõe fatos e se faz a valoração sobre eles.

Neste artigo desejo chamar a atenção para duas coisas: 1) que os jurados têm uma tendência natural a emprestar adesão a significações que a vida nos ensina ha milênios

1 O juiz é sempre o de alguém que não testemunhou fatos e que se vincula ao conjunto de elementos probatórios produzidos pelas partes diretamente interessadas. Sua missão é, pois, traduzir o real para a linguagem do direito sem deformar ou transformar o objeto, manter-se fiel ao que foi provado nos autos, interpretar os fatos que ele, juiz, não viu acontecer..., e, depois, examinar cuidadosamente os sentidos que podem se desprender de cada fato, detalhes, circunstâncias..., observar as conexões entre tudo isso segundo as regras da experiência e refletir sobre o significado particular e social da decisão que está obrigado a adotar. O desafio dos jurados é semelhante.

2 Seria uma manifestação do que se conhece como circulo hermenêutico. Através dos fatos compreendemos a norma, e através da norma compreendemos os fatos, desentranhamos e determinamos seu possível significado jurídico.

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O Júri e os sábios | Mauro ViveirosCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 151150

de anos3 e 2) que o modo de apresentar os fatos da causa pode ser determinante para o sucesso ou o insucesso do orador.

Pode-se dizer que os seres humanos seguem um padrão de reações a estímulos externos, fatores sociais, crenças e sentimentos. E, embora cada ser humano reaja conforme a singularidade de sua personalidade, é possível identificar um modelo de reação a estímulos específicos, o que os psicólogos chamam “regularidade”.

O orador que conhece esse processo psicológico, empregando técnicas de estímulos específicos, pode alcançar resultados desejados na tarefa de persuasão4. E, mais importante: esse conhecimento é muito útil no enfrentamento do adversário que utilize essas técnicas, especialmente os manipuladores, contra os quais devemos estar sempre alertas.

Mas além desse conhecimento básico, os desafios que se põem ao tribuno requerem um adestramento no campo específico da linguagem e argumentação judicial, central ao seu oficio e, não obstante, ainda pouco estudado e praticado.

Intimamente vinculado a objetivos determinados, falando para conquistar a adesão dos jurados, o tribuno, paradoxalmente, ainda se deixa guiar pelo improviso no relato do caso, mesmo que os casos sejam diferentes uns dos outros e variem em complexidade e importância5.

De início devemos lembrar que a abundância de informações e desafios da vida atual, na chamada “sociedade das urgências” não permite uma análise cuidadosa de todos os aspectos necessários no processo de tomada de decisão. Por isso criamos atalhos, recorrendo a generalizações baseadas em um ou outro dado considerado mais relevante.

Essa redução da complexidade é uma poderosa ferramenta que, bem utilizada, pode simplificar as coisas, tornando decisões mais céleres e efetivas. A capacidade de identificar, entre os múltiplos aspectos envolvidos na questão, o aspecto decisivo guiará a “melhor” decisão, o que logicamente requer conhecimento e treinamento6.

3 O ser humano apreendeu lógica nas ruas. Significações lógicas, por exemplo: A lei das contraditórias: duas proposições contraditórias não podem ser verdadeiras nem falsas ao mesmo tempo. Assim, se uma é verdadeira, a outra é falsa, e se uma é falsa, a outra é verdadeira. A lei das contrárias: duas proposições contrárias não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo; se A for verdadeira, E é falsa, e se E for verdadeira, A é falsa; entretanto, ambas as proposições podem ser falsas.

4 Mas, desde logo, para evitar mal entendidos, advirta-se: o que se enfatiza aqui não é o conteúdo ou qualidade ética da ação ou resultados, mas o método; não está em discussão se o que o orador pretende persuadir é honesto ou desonesto.

5 Os fatos são irrepetíveis: se distinguem em extensão e significado jurídico: há fatos maiores e fatos menores; há, por con-sequência, questões de fato mais relevantes que outras, umas merecendo maior atenção que outras. Daí a necessidade de ordená-las por relevância e precedência, ou seja, lançar o pensamento principal em primeiro plano e os secundários ou derivados, ou os detalhes (explicação) em segundo plano.

6 Na praxis é notável o fenômeno dos argumentos circulares, repetitivos, tautológicos, petição de princípio. A causa, certa-mente de múltiplos fatores, em geral é a falta dessa capacidade de percepção e concentração no essencial, levando à disper-são, à vagueza e à abstração de pensamentos.

Sermos objetivos e diretos na nossa comunicação nos dias de hoje é essencial, especialmente para pessoas que não têm tempo a perder. Ir direto ao ponto com o argumento decisivo é melhor, mas não é fácil7.

Na comunicação com os jurados, o orador deve se lembrar que o diálogo é assimétrico, isto é, há um emissor sem a correspondência vocal do outro, que ouve e manifesta-se apenas no momento decisivo. A sensibilidade do orador acerca do que deve ser levado aos jurados e o momento e o modo de fazê-lo é, de fato, o ponto chave. Os estudos em psicologia mostram que o modo como se diz as coisas é decisivo para a obtenção do consentimento do interlocutor.

E é claro que os jurados, como qualquer ouvinte, estão sempre receptivos a um discurso simplificador, que os faça compreender bem os pontos principais da controvérsia que devem julgar. E se percebem essas qualidades no orador, inconscientemente abrem os seus receptores.

Dois discursos se desenvolvem concomitantemente: aquele que o orador verbaliza, dirigido aos jurados, e o que ele emite, representado pela forma - o tom da voz, gestos, expressão facial e outros sinais -, enfim pelo modo como se comunica. Os jurados julgam, com frequência, não apenas o réu, mas também os oradores.

O objetivo de levar os argumentos certos, na hora certa e pelo modo adequado aos jurados, depende de vários fatores e das teses do adversário. A maior necessidade do jurado é a confiança nos oradores; mas estes, em geral, não confiam na honestidade do discurso do adversário e não se concentram no que é essencial, levando os julgadores a mais dúvidas e equívocos do que clareza.

A confiança depende da fidelidade do orador aos fatos. Logo, ser confiável significa ser fiel à verdade processual – não ontológica -, ou seja, aquilo que ressai da prova produzida, ainda sem valorações subjetivas. Mas confiança e verdade estão associadas à empatia, no caso como o orador se identifica com o sentimento de insegurança, o “drama” dos jurados, revelando-se como um guia, alguém que ilumina o seu caminho para a decisão justa8.

Mas a empatia não é algo que se adquire sem mais, não é algo dado, mas construído; como todas as habilidades necessárias ao tribuno, ela tem condicionantes elementares; num momento em que o egoísmo, a violência e a mesquinhez de espírito parecem

7 A clareza é a principal virtude essencial ao jurista, pode ser entendida como a capacidade de analisar, sistematizar informa-ções dispersas ou confusas, selecioná-las e ordená-las por critério de relevância e precedência e, depois, apresentá-las em discurso formalizado e inteligível. Objetividade. A clareza do pensamento no encadear fatos e ideias com ordem e coerência interna depende essencialmente da objetividade. E ser objetivo quer dizer: não ser prolixo, não adjetivar em excesso, evitar valorações e depreciações desnecessárias etc. Numa palavra: ir direto ao ponto.

8 A empatia é a capacidade de saber como o outro se sente. O jurado, deve-se supor, sente necessidade de não errar, de fazer um julgamento justo. O orador deve saber isso e comportar-se em conformidade.

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O Júri e os sábios | Mauro ViveirosCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 153152

presidir a maioria das relações humanas, levanta-se como um imperativo moral cobrando vigência a ética no discurso jurídico.

A questão então é: como ser confiável se tudo parece inconfiável? Eis o grande desafio para os que lidam profissionalmente com o direito, principalmente para os que com ele querem fazer justiça.

A confiança depende da segurança que a verdade promove. E promover a verdade é também uma questão de método e de conhecimento sobre algumas habilidades essenciais de quem expõe a sua verdade, v. g., a memória, a capacidade analítica, o rigor lógico, a invenção, a prudência e o senso de justiça9.

Entre essas habilidades, o tato ou capacidade de juízo ou prudência, em sentido jurídico é, talvez, a principal de todas as qualidades requeridas ao jurista, porque é ela que permite captar o sentido profundo de justiça nas relações humanas, mesmo quando não se consegue explicar por que. É uma intuição, entendida como um conhecimento direto sem a mediação do raciocínio.

Assim, costumamos dizer que intuímos algo, ainda que não saibamos por que, nem possamos oferecer razões ou provas disso. As decisões jurídicas, notadamente nas decisões do Júri, muitas vezes não se toma como resultado de um raciocínio, mas por intuição. Isso não quer dizer que a intuição não deva ser criticada e submetida à verificação, sob as rédeas da razão.

A intuição característica nos julgamentos populares é o elemento que exige maior atenção, dada a volatividade desse sentimento, às vezes formado sob os vícios da aparência, de pré-juízos e preconceitos, representando um risco especialmente grave em virtude do princípio da íntima convicção dos jurados.

Ao tribuno competente impõe-se a compreensão da necessidade de ponderação entre a intuição e a lógica jurídica, controlada pela razão objetivada na prova. O jurista é um mediador entre a norma geral e abstrata e o caso concreto, e nesta tarefa de mediação é

9 A memoria não é apenas o poder de guardar informações; pressupõe a atenção e a concentração para correta compreensão do problema sob todos os aspectos relevantes; a capacidade analítica pode ser descrita como o poder intelectual de de-compor em partes um caso concreto narrado nos autos, selecionando os elementos que possam ter relevância jurídica, ou seja, os elementos fáticos dotados de significado jurídico; a lógica formal quase nunca nos dará a solução jurídica, mas esta solução deve respeitar as exigências da lógica. As imprecisões semânticas e conceituais, ou seja, o emprego de determinados termos jurídicos sem uma apreensão clara de seu significado demonstra deficiência de estudo das matérias; a invenção é aquela tarefa consistente em achar os argumentos atinentes ao caso, os argumentos que serão empregados no discurso. É uma operação intelectual diferente da analítica ou lógico dedutiva. Consiste na capacidade de ir além do simplesmente dado, de relacionar o que se apresenta separado e disperso, de descobrir os nexos de semelhanças ou analogia entre o apa-rentemente distinto ou distante. A inventiva, o engenho e agudeza do jurista – a chispa que salta-, especialmente do juiz, apresenta-se como um diferencial, na medida em que lhe possibilita ver coisas, semelhanças e ligações que muitas vezes se ocultam nos litígios, seja porque as partes não quiseram ou não puderam revelar. Este fenômeno não é incomum no foro criminal, onde a prova oral quase nunca é esclarecedora, exigindo do juiz uma especial sensibilidade para detectar certas circunstâncias e motivações não declaradas e que podem influir na decisão.

necessária certa flexibilidade e ductilidade, para que a aplicação do critério geral ao caso concreto com todas suas múltiplas circunstâncias seja fiel ao sentido da norma em questão.

Quando o filósofo diz para seu interlocutor esperar porque vai consultar a si mesmo para só depois responder, está dizendo claramente que ainda não sabe a resposta e precisa de tempo. Heráclito, para quem a mudança é o único permanente, valoriza a experiência, não a razão, como sede principal do conhecimento.

E se aparentemente há arrogância em sua fala, nela há também um gesto de humildade ante o conhecimento, dando-nos uma séria advertência, pois não é raro que os iniciados em direito sintam-se sábios antes de saber que nada sabem, comportando-se como os únicos portadores da verdade.

Essa consciência da relatividade do conhecimento, fundamental para a compreensão das relações humanas, entendidas como comunicação, que constitui o primeiro plano da realidade, permite perceber a importância dos métodos que têm por objetivo influir e possibilitar sucesso ao falante.

Trata-se de uma prática que pode ser ensinada e apreendida, a partir de experiências, observações e reflexões. Desse nível de retórica provêm a tópica, a teoria da argumentação, as figuras de linguagem e de estilo. Os discursos práticos são estratégias para modificar fatos (relatos da retórica material) e erigi-los em objetos, isto é, fatos relativamente fixados, aos quais alguns relatos selecionados aderem, em detrimento de outros; os utentes os determinam, constituem esses objetos transformando relatos de opiniões em objetos, que supostamente constituem as definições da linguagem de controle instituída, os relatos corretos, a verdade10.

O conhecimento sobre retórica estratégica permite ao tribuno identificar e selecionar topoi – lugares comuns – mais frequentes e eficazes no discurso, os métodos empregados para este ou aquele efeito, o Kairos, o momento mais adequado de dizer e fazer acontecer, enfim, permite conhecer a influência da linguagem, da gesticulação, das táticas empregadas e de seus efeitos sobre a retorica material, ou seja, sobre a conduta dos sujeitos, lançando mão de exercícios e reflexões sobre seus resultados11.

Mas é claro que o fato de a argumentação retórica visar a persuasão nada diz em relação ao conteúdo ou ao resultado concreto que se pretenda alcançar. Trata-se apenas de uma metodologia; ao falante, e apenas a ele, cabe a responsabilidade ética pelos fins da comunicação.

10 ADEODATO, João Maurício L. A Retorica Constitucional, sobre tolerância, direitos humanos, e outros fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 73.

11 Ob. cit. pp. 73-74

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Homicídio mercenário e causas especiais de diminuição de pena. Um paradoxo dogmático | Paulo César Busato 155Cadernos do Júri | Nº 3 | 2015154

No fim das contas, nesse breve ensaio podemos ver que no Júri, como na vida, a experiência conta muito mais que a racionalidade estritamente técnica. Conhecer mais sobre a natureza e as imperfeições humanas, dominar conhecimentos sociológicos, psicológicos e emocionais pode fazer melhores tribunos com modestos conhecimentos jurídicos do que exímios juristas jejunos nas coisas básicas da vida.

Penetrar os segredos da simplicidade que leva à eficácia na argumentação no Júri, conhecer melhor a natureza humana, as funções e uso da linguagem pode representar não apenas mais chance de sucesso; pode ser uma bela contribuição do tribuno para o aperfeiçoamento da Instituição e da Justiça.

Contribuir para esse aperfeiçoamento com o seu discurso, despertar a emoção racional salvadora da Justiça no coração do ser humano, deve ser, para o jovem tribuno, a senha de identidade, o ingresso no seleto clube dos grandes tribunos do Júri, que contagiaram legiões e fizeram amantes não porque tivessem sido oradores imbatíveis, mas porque souberam fazer com a simplicidade dos sábios tudo o que fizeram!

Sigamos, confrades!

Referência Bibliográfica

ADEODATO, João Maurício L. A Retorica Constitucional, sobre tolerância, direitos humanos, e outros fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva, 2010.

Paulo César BusatoProcurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná - Doutor em

Problemas atuais do Direito Penal pela Universidad Pablo de Olavide, de Sevilha - Professor de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná

Homicídio mercenário e causas especiais de diminuição de pena. Um paradoxo dogmático

1. Introdução – 2. O que são emoções e paixões e sua tratativa na sistemática da teoria do delito – 3. Uma

análise de aspectos motivacionais do homicídio no Código atual - 3.1. As causas especiais de diminuição

de pena associadas à motivação - 3.1.1. O relevante valor social ou moral - 3.1.2. O domínio de violenta

emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima - 3.2. As qualificadoras associadas à motivação,

especialmente o caso do motivo torpe e a paga ou promessa de recompensa - 4. A questão do homicídio

qualificado-privilegiado - 5. O caso do homicídio mediante paga. Natureza jurídica, comunicabilidade

entre os concursantes, comunhão entre qualificadora e privilégio. O problema - 6. Uma proposta de

solução de lege lata - 7. Uma proposta de solução de lege ferenda. A questão do homicídio mercenário e

os privilégios no projeto de reforma do Código penal. Análise crítica - 8. Considerações finais

1 Introdução

O legislador do Código penal de 1940 utilizou as clássicas motivações sociais e anti-sociais para estabelecer privilégios qualificadoras para o homicídio.

A técnica legislativa empregada, no entanto, produz problemas dogmáticos de difícil solução, em especial na questão do homicídio realizado mediante paga ou promessa de recompensa e sua relação técnico-jurídica com as hipóteses previstas como privilégios.

O presente artigo pretende explorar os problemas dogmáticos derivados de tal questão, expondo os paradoxos derivados da fórmula escolhida pelo legislador e propor soluções de lege lata e lege ferenda para as dificuldades encontradas.

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Para tanto, iniciar-se-á pela abordagem da questão da evolução dogmático-jurídica das tratativas legislativas a respeito das motivações sociais e anti-sociais para as práticas delitivas, até chegar na fórmula adotada pela legislação atual.

Em seguida, descrever-se-á as vinculações entre o homicídio e as motivações sociais e anti-sociais no Código penal atual.

A partir de uma análise crítica das fórmulas de técnica legislativa empregadas para a conjunção do homicídio e as motivações no Código penal atual, serão expostas debilidades e problemas concretos especialmente relacionados ao homicídio realizado mediante paga ou promessa de recompensa e as hipóteses de homicídio privilegiado.

Finalmente, como contribuição para a discussão dogmática do tema, serão propostas soluções para os conflitos detectados, tanto através de fórmulas hermenêuticas de aplicabilidade imediata, quanto para fins de reforma legislativa, à vista da proximidade de uma revisão completa do Código penal.

2 O que são emoções e paixões e sua tratativa na sistemática da teoria do delito

Um aspecto essencial que desde há muito é levado em consideração na tratativa do controle social penal é o motivo que impulsiona a prática delitiva.

Daí que cedo se despertasse o interesse por emoções ou paixões que constituíram móveis para a prática delitiva. A emoção, considerada “um estado de explosão afetiva”1 e a paixão, tratada como “um estado prolongado de emoção”2.

Por influência do positivismo criminológico, as paixões eram classificadas entre sociais (amor, piedade, patriotismo) e anti-sociais (ódio, inveja, ambição)3. As sociais, de modo geral, chegavam a afastar responsabilidade, as anti-sociais a agravavam. Hoje, porém, a relevância de tais temas para a imputação resta afastada.

Assim, no Código penal atual, os motivos constituem elemento essencial para a individualização da pena, quer seja como circunstâncias judiciais, agravantes ou atenuantes genéricas ou causas gerais e especiais de aumento ou diminuição de pena.

1 BRANDÃO, Cláudio. Curso de Direito penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: GEN-Forense, 2008, p. 226.

2 BRANDÃO, Cláudio. Curso de Direito penal...cit., p. 226.

3 Esta classificação aparece referida ainda em alguns autores clássicos como HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código penal. Vol. V. 4a Ed., Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 124.

Eventualmente, ainda, compondo acessoriamente um tipo, figuram como qualificadoras ou essencialmente, como especiais fins de agir.

É justa a preservação somente de atenuantes e agravantes, causas de aumento e diminuição, porque as motivações humanas não podem ser desprezadas. Porém, é certo também que o crime é em si uma situação que, na imensa maioria das vezes, estará associada a alguma classe de emoção singular, todas elas, também em regra, incapazes de afastar a correta compreensão do desvalor social do fato4.

Não obstante tal constatação, ainda existe parte da doutrina que entende que estes aspectos não podem ser desprezados como determinantes da avaliação de presença ou não de imputabilidade, como formas de “redução da capacidade de culpabilidade”5.

Seja como for, há uma opção clara político-criminal pela irrelevância, para fins de afastamento da imputação, de qualquer justificativa penal relacionada à emoção ou paixão. Ao menos é isso que se expressa na parte geral, o Código penal de 1984, ao referir, em seu art. 28, inciso I, que: Emoção e paixão não excluem responsabilidade penal.

3 Uma análise de aspectos motivacionais do homicídio no Código atual

Especialmente no que tange ao homicídio, a opção feita pelo legislador de 1940, foi no sentido de que a motivação no homicídio é expressão de emoções e paixões que, conquanto não possam afastar a carga de imputação, são relevantes para a configuração da pena desde seu início.

O Código penal reserva privilégios e qualificadoras associadas aos motivos.

3.1 As causas especiais de diminuição de pena associadas à motivação.

O art. 121, em seu §1º prevê especificamente que se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

4 De modo parecido, BRANDÃO, Cláudio. Curso de Direito penal...cit., p. 227.

5 Neste sentido MESTIÉRI, João. Manual de Direito penal. Parte Geral. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1999, pp. 178-179.

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Como se nota, há duas situações diferentes, ambas relevantes a ponto de comportarem fração de redução de pena específica, caso estejam presentes no caso concreto. Fração esta incidente sobre o resultado da segunda fase de individualização da pena.

A primeira delas é ter o autor do homicídio sido movido por motivo de relevante valor social ou moral. A segunda, ter agido sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima.

3.1.1. O relevante valor social ou moral

Com o uso da expressão relevante valor social ou moral, o legislador pretendeu especificar um qualificativo que não admite transigir com o valor social ou moral de menor monta.

É bastante óbvia a relatividade histórico-social deste conceito, porquanto valores sociais e morais não são unívocos. Aquilo que é relevante em um determinado contexto histórico-social não é em outro e os padrões morais, porque variáveis individualmente, são menos padronizáveis ainda.

A moral é, na base, heterônoma e prática, recebida por aprendizado e coerção, mecanismos que dão ensejo à sua formação autônoma. Como estes mecanismos e experiências que geram a formação da moral autônoma são os mais díspares possíveis, não é razoável esperar pela constituição de uma “moral uniforme”.

A doutrina clássica em geral6 sustenta ser necessário cogitar, tanto para o relevante valor social quanto para o relevante valor moral, a consciência ético-social em geral ou o senso comum.

A idéia é criticada por Fernando Galvão7, para quem, se a padronização em foco resolve a questão do valor social, não pode resolver, ao mesmo tempo, do padrão moral, sob pena de que se confunda ambos os conceitos. Se o legislador utilizou os dois, supõe-se sejam coisas diferentes.

Os autores mais modernos8 mencionam, com freqüência, dada a individualização

6 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito penal. Parte Especial. 11a Ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 35; NORO-NHA, Edgard Magalhães. Direito penal. Parte Especial. Vol. 1. 23a Ed., São Paulo: Saraiva, 1988, p. 19 e HUNGRIA, Nélson. Comentários...cit., p. 124.

7 GALVÃO, Fernando. Direito penal. Crimes contra a pessoa. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 40-41.

8 Assim, por exemplo, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial. Vol. 2. 7ª ed., São Paulo: Sa-raiva, 2007, p. 47; GRECO, Rogério. Direito penal. Parte Especial. Vol. II. 7a Ed., Niterói: Ímpetus, 2010, p. 146; ESTEFAM,

do padrão moral, que o relevante valor moral difere do relevante valor social, por ser uma questão egoística ou um interesse meramente individual, mas os exemplos dados pretendem, de qualquer modo, compreender uma situação em que qualquer pessoa, posta no lugar do agente, teria ímpetos de atuar de modo similar, como o assassinato do estuprador da própria filha ou a eutanásia.

Uma das mostras mais evidentes das dificuldades da padronização de uma idéia de relevante valor moral é efetivamente o caso da eutanásia, exemplo que figurou na exposição de motivos do Código de 1940, no item 39.

A doutrina da época, recém enfrentada com as polêmicas questões avivadas pelos programas de eugenia nazistas, especialmente a tese de Binding e Hoche9 que defendia a distensão da permissão da eutanásia identificando discriminatoriamente indivíduos como ‘desprovidos de valor vital’, firmou pé em uma interpretação o mais restritiva possível do reconhecimento da benesse10.

Isto sem contar que a própria opção por uma restrição da eutanásia a uma hipótese de decisão consciente segue sendo polêmica. Isto em função da química do próprio cérebro. Note-se que a depressão que pode ser desencadeada a partir de fortes emoções negativas como a notícia de portar uma doença grave e incurável. Essa circunstância pode levar uma pessoa que esteja gozando de suas plenas faculdades mentais, a decidir de uma forma que, revista em uma situação química diferente, não seria igual.

Isto é mais intenso ainda em pessoas com certos graus de transtorno bipolar, que se equilibram em períodos cíclicos de depressão e euforia. Quando esta decisão seria válida em uma pessoa portadora de transtorno bipolar: quando ela está em euforia ou quando ela está em depressão, e que dizer do quadro intermediário? Como afirmar que a decisão consciente, eventualmente firmada em um documento, não foi mero produto de um distúrbio químico?

É mais grave quando se sabe, clinicamente, que boa parte das pessoas são portadoras de certos graus de bipolaridade, considerados ciclos de alegria e tristeza

André. Direito penal. Parte Especial. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 101.

9 Confira-se em BINDING, Karl e HOCHE, Alfred. La ciencia para la aniquilación de la vida sin valor de vida. Trad. de Bautista Serigós, Buenos Aires: Ediar, 2009.

10 Para Hungria, por exemplo, quem refere a respeito do relevante valor moral, que nas hipóteses de eutanásia, “tal motivo só pode ser reconhecido em casos especialíssimos, depois de afastada a hipótese, por mais leve que seja, de uma dissimulação”. In HUNGRIA, Nélson. Comentários...cit., p. 128. Bento de Faria, qualificava o exemplo de ‘infeliz’, negando inclusive a sua condição de relevante valor moral, afirmando sobre a eutanásia, que semelhante prática “semelhante prática sobre não revelar valor algum moral, ou social, repugna a razão e a consciência humana”. In FARIA, Bento de. Código penal brasileiro comentado. Rio de Janeiro: Record, 1961, p. 13 e Aníbal Bruno ressaltou a necessidade de distinguir o que ele chamou de “verdadeira eutanásia” daquilo que foi praticado ao amparo do Estado nacional-socialista, cuja “prática deve receber a mais viva repulsa”. In FIRMO, Aníbal Bruno de Oliveira. Direito penal. Parte Especial I. Tomo IV. Rio de Janeiro: Forense, 1966, pp. 120-121. Em sentido também crítico veja-se também NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal...cit., pp. 19-20.

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que, conquanto constituam enfermidade, nem por isso podem ser reconhecidas como situações de irresponsabilidade no plano jurídico em geral.

A despeito das diferenças que pode haver sobre o polêmico tema da eutanásia11, é certo que o guia decisório sempre deve ser a solidariedade humana12.

Assim, a conclusão é que todos os temas que são submetidos à análise de relevância quanto a um valor social ou moral compõem uma situação aberta a polêmica no que tange à distinção de tais critérios.

Não obstante, é possível inclinar-se pela conformação de uma interpretação juridicamente aplicável para o reconhecimento da hipótese: aquele valor social ou moral que possa ser reconhecido como tal acima das diferenças individuais ou de grupos. Isto é o que deve ser considerado um relevante valor social ou moral. Relevante porque supõe relevo, porque se destaca a ponto de ser reconhecido em um plano geral.

Portanto, ainda que a moral seja um dado individual, sendo a análise jurídica uma estrutura relacionada à vida social, necessariamente o interesse individual sofrerá uma avaliação inter-subjetiva.

A questão, como quase todas as polêmicas em Direito penal, se resolve a partir de uma interpretação baseada na filosofia da linguagem, afinal, é o caráter interpessoal, ou seja, a possibilidade de ser partilhado como quadro de mundo13, que faz com que se reconheça o conceito de relevante valor social ou moral. A rigor, este é o modo como comumente se atua no foro, ainda que a existência de uma estrutura teórica de base não seja perceptível por todos.

De modo prevalente, se utiliza a idéia de interesse, ou seja, quando o caso é de algo admissível socialmente como relevante, mas possui interesse coletivo, fala-se em relevante valor social, enquanto que quando se trata de algo admissível como socialmente relevante, mas guarda interesse meramente individual, é tratado como relevante valor moral.

Por exemplo, o ato de matar um traficante e seqüestrador que aterroriza o bairro é um homicídio por relevante valor social, enquanto que matar o estuprador da própria

11 Sobre o tema já me pronunciei em breve estudo apresentado no Senado Argentino no ano de 2012, sobre os limites legais à interrupção dos cuidados paliativos, cujo excerto em breve será publicado como artigo.

12 Esta referencia foi bem ressaltada por Hungria, ao lembrar-se da lição de García Pintos: “Se algum dia no coração humano chegasse a extinguir-se totalmente toda chama do amor e solidariedade social, e na mente do homem já não pudesse flo-rescer o mais minguado penacho de idealismo, para pensar em tais matanças, maldigamos, desde já, este dia, porque então sim que a sociedade, não obstante a exuberância de valores vitais e sociais, não estaria composta por mais do que mortos espirituais”. HUNGRIA, Nélson. Comentários...cit., pp. 131-132.

13 Para Wittgenstein, especialmente no Investigações Filosóficas, o mundo e a linguagem não se relacionam como dados de-terminados, mas como uma derivação dos jogos de linguagem, ou seja, do modo como os termos significam. Veja-se em WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigaciones Filosóficas. 2a Ed., Barcelona: Editorial Crítica, 2002, pp. 71 e ss. Especificamente sobre os jogos de linguagem como fórmula de significação veja-se AUSTIN, John Langshaw. Cómo hacer cosas con palabras. Trad. De Genaro Carrió e Eduardo Rabossi, Buenos Aires: Paidós, 2006.

filha14 ou o traficante que viciou o próprio filho, são casos de homicídios por relevante valor moral.

Em resumo, a relevância é sempre um critério interssubjetivo, enquanto que o dado moral (individual) ou social (coletivo) se vincula ao interesse que inspira o motivo.

Note-se que os exemplos são sempre aqueles cuja obviedade de padrão social ou moral permite aglutinar o transmissor e o receptor da mensagem e, mais do que isso, certamente a vítima, o réu e o próprio julgador.

3.1.2. O domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima

A outra circunstância que conduz à redução especial de pena, não é foco da questão central aqui abordada, mas merece, ao menos, ser delineada.

É reduzida a pena do homicídio quando cometida sob domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vitima.

O primeiro requisito para que isto se configure é que o autor seja dominado por violenta emoção, o que não pode ser uma mera influência. Portanto, é uma situação emocional que se apossa do agente, que deve ser intensíssima e incontrolável. Um jorro que impulsiona para ser violento.

Caso não haja propriamente um domínio da emoção, ou seja, se a emoção não foi tão intensa, mas ainda assim, tenha influenciado o sujeito, o tipo penal é de homicídio simples, que poderá sofrer a incidência da atenuante genérica do art. 65, III, c, última parte do Código penal15.

Este fato tem momento próprio: deve ocorrer logo em seguida à provocação. Ou seja, há um aspecto temporal que torna incompatível, desde logo, esta causa especial de diminuição com a premeditação16.

14 Este exemplo aparece em vários autores como GRECO, Rogério. Direito penal...cit., p.146 e GALVÃO, Fernando. Direito penal...cit., p. 41.

15 Cf. FARIA, Bento de. Código penal brasileiro comentado...cit., pp. 14-15 e FIRMO, Aníbal Bruno de Oliveira. Direito penal. Parte Especial...cit., p. 124. Atualmente, veja-se também GRECO, Rogério. Direito penal...cit., p. 147; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial...CIT., p. 50.

16 NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal...cit., p. 21; HUNGRIA, Nélson. Comentários...cit., p. 152; FARIA, Bento de. Código penal brasileiro comentado...cit., p. 16 e FIRMO, Aníbal Bruno de Oliveira. Direito penal. Parte Especial...cit., p. 124. Atualmente, veja-se também BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial...cit., pp. 51-53.

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A previsão do Código teve por objeto mais freqüente de exploração doutrinária as situações de explosão de ciúme ocasionada por flagrantes de adultério17.

De modo geral, se assenta que é possível entender-se por logo após, aquelas situações de imediação determinada pelo contexto fático, que traduzem uma situação onde não se rompe o ciclo emocional.

Isto porque, evidentemente, a explosão emotiva que caracteriza o privilégio tem seu ápice no momento em que o agressor é atingido pela provocação, com o que, o passar do tempo só pode determinar o seu abrandamento. Em geral, não é possível pretender a aplicação do privilégio em uma situação em que se reage várias horas após o cessar da provocação, salvo se, neste interregno, a reação ainda não se deu por impedimentos objetivos, e remanesce o domínio emocional negativo. Há situações, ainda, em que a provocação é o que perdura no tempo, levando, inclusive, a um progressivo desencadear de emoções no agente, que em um dado momento explode em agressão.

Caso não haja uma concreta imediação entre a provocação e a atuação, ainda poderá estar o sujeito sob a influência da emoção, situação que poderá clamar pela incidência da atenuante genérica do art. 65, III, c, última parte do Código penal.

O último requisito para configurar a hipótese de especial diminuição de pena, é ser a provocação da vítima injusta.

Com acerto, Fernando Galvão18 lembra que injusto é um conceito jurídico. A expressão injusta aqui não pode ser entendida como uma expressão coloquial, pois se está tratando de matéria eminentemente jurídica.

De modo distinto, a doutrina clássica distendia o conceito, entendendo por injusto não o termo jurídico, mas o coloquial19.

Hungria20, em certa medida, buscava uma solução conciliatória, pois afirmava a impossibilidade de reconhecer como injusta uma provocação que acionou uma reação

17 Por exemplo NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal...cit., p. 21. Hungria, porém, em passagem célebre já alertava para o equívoco de confundir-se o passionalismo possessivo com uma explosão emocional derivada do amor: “[...] será que o amor, esse nobre sentimento humano [...] que nos purifica do nosso próprio egoísmo e maldade [... Pode] deturpar-se num assomo de cólera vingadora e tomar de empréstimo o punhal do assassino? Não. O verdadeiro amor [...] não se alia jamais ao crime. O amor que mata, o amor-Nêmesis, o amor-açougueiro é uma contrafação monstruosa do amor: é o animalesco egoísmo da posse carnal, é o despeito do macho preterido, é a vaidade malferida da fêmea abandonada. É o furor do instinto sexual da Besta. O passionalismo que vai até o assassínio muito pouco tem a ver com o amor”. HUNGRIA, Nélson. Comentários...cit., pp. 152-153.

18 GALVÃO, Fernando. Direito penal...cit., p. 43. De modo parecido com Galvão, referindo a provocação como “ilícita” NO-RONHA, Edgard Magalhães. Direito penal...cit., p. 21.

19 Assim, por exemplo, a opinião de Aníbal Bruno em FIRMO, Aníbal Bruno de Oliveira. Direito penal. Parte Especial I...cit., p. 124.

20 HUNGRIA, Nélson. Comentários...cit., pp. 150-151.

derivada da “hiperestesia sentimental dos alfemins e mimosos”, por outro lado, sustentou que contra a provocação, a reação não precisa ser “necessária”, pois, neste caso, estaria presente a legítima defesa.

Ora, é certo que não se trata da provocação que admita a necessidade de uma reação homicida em legítima defesa. Por outro lado, nem toda a ofensa injusta no sentido jurídico, exige repulsa desta monta. O homicídio, neste caso, será sempre um excesso na reação, mas, a nosso sentir, não há como negar que a expressão injusta deve assumir o cariz do termo jurídico21.

Não se descura da observação que uma interpretação restritiva da expressão injusta seria contrária aos interesses do réu, reduzindo a aplicabilidade da causa especial de diminuição. Por outra, há que se asseverar que a interpretação não tem porque ser considerada restritiva quando se leva em conta que o injusto é uma categoria que não se restringe à matéria penal, pois existe o injusto civil, administrativo, trabalhista, etc. e todas as suas formas podem ser consideradas provocação.

Caso não haja propriamente uma provocação injusta de parte da vítima, mas um ato injusto, o tipo penal é de homicídio simples, que poderá reclamar a incidência, também, da atenuante genérica do art. 65, III, c, última parte do Código penal.

3.2. As qualificadoras associadas à motivação, especialmente o caso do motivo torpe e a paga ou promessa de recompensa

De outro lado, em direta contraposição à situação de diminuição de pena, os motivos figuram também como qualificadoras do homicídio, nas hipóteses específicas do § 2o, incisos I e II do art. 121 do Código penal, especificamente se o homicídio é cometido: I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe; ou II - por motivo fútil.

No inciso II, o legislador opta por um conceito. Fala em motivo fútil. A futilidade é a desproporcionalidade, ou seja, a fonte da reação homicida é a prática de alguma

21 Cezar Bitencourt, refere textualmente que o fato de a agressão ser injusta “não significa, necessariamente, antijurídica, mas quer dizer não justificada, não permitida, não autorizada por lei, ou, em outros termos, ilícita”. BITENCOURT, Cezar Ro-berto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial...cit., p. 51. A expressão ilícita, no jargão jurídico, é sinônimo de antijurídica, conforme refere o próprio autor na parte geral do mesmo tratado BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. Vol. 1. 16ª ed., São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 346-348. Ora, no caso, ou a exigência é de uma injusta provocação que consista em atitude ilícita ou antijurídica, em sentido jurídico-penal, ou seja, uma provocação que, por si só configure fato típico e antijurídico, ou a provocação será injusta em sentido leigo.

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conduta cuja eventual característica ofensiva contra o homicida resulta absolutamente desproporcional em relação àquela.

Como um dado, no mínimo curioso aparece o assentamento pelos precedentes judiciais de que a ausência de motivo não qualifica o homicídio22.

É mais do que evidente que o motivo nulo, o homicídio realizado aleatoriamente, não pode ser menos desvalorado socialmente que aquele realizado por algum motivo, ainda que fútil! O simples fato de constituir uma escolha pela morte a despeito de uma razão precisa representa um nível de desprezo pela vida humana que é certamente desproporcional e, portanto, fútil.

Por outro lado, o princípio da legalidade obriga a uma interpretação restritiva e em favor do réu, não admitindo que se inclua a ausência de motivos como um item a mais na qualificação do homicídio, quando nada diz a respeito o Código.

Por outro lado, ainda importa destacar que é certo inexistir ação humana destituída de propósito. Se este é um conceito jurídico de ação superado23, ontologicamente corresponde à verdade, ou seja, não existe ação humana fisicamente considerada que não se oriente segundo propósitos determinados. Outra coisa, bem diferente, é que estes propósitos estejam demonstrados na investigação procedida.

Em resumo: uma investigação que conclua pela realização desmotivada de um homicídio será, necessariamente, uma investigação incompleta24.

No inciso I, porém, o legislador optou por outra coisa diversa da simples enunciação de um conceito. Prescreveu uma fórmula consistente na exemplificação seguida de uma cláusula generalizante, remetendo à realização de interpretação analógica.

Assim o legislador assinala como qualificado o homicídio quando praticado mediante paga ou promessa de recompensa ou outro motivo torpe.

22 Como exemplos veja-se o REsp 769651 SP 2005/0124029-6 5a Turma do STJ, Relatora Ministra Laurita Vaz, j. em 03/04/2006, DJ 15.05.2006 p. 281; RSE 16479 MS 2009.016479-6 do 2a Turma Criminal do TJMS, Relator Desembargador Rome-ro Osme Dias Lopes, j. em 20/07/2009, publicado em 04/08/2009 e o RSE 100240951860370011 MG 1.0024.09.518603-7/001(1), do TJMG, Relatora Beatriz Pinheiro Caires, j. em 25/03/2010, publicado em 13/04/2010.

23 Sobre o equívoco no desenvolvimento da tese central de Welzel veja-se FLETCHER, George Patrick. Basic Concepts of Criminal Law. New York: Oxford University Press, 1998, pp. 52-53. Para um repasse geral a respeito da superação da idéia ontológica de ação como supedâneo para um conceito jurídico, veja-se MARINUCCI, Giorgio. El delito como acción. Crítica de un dogma. Trad. De José Eduardo Sáinz-Cantero Caparrós, Madrid: Marcial Pons, 1998, pp. 135 e ss. No Brasil, já abordei o assunto detalhadamente em BUSATO, Paulo César. Direito penal & Ação significativa. 2a Ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, especialmente pp. 67 e ss.

24 Fragoso já alertava para as razões pelas quais não se pode tornar qualificado pela futilidade um homicídio sem motivo. É que na verdade, ele “desconhecem-se os motivos do fato”. Cf. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições...cit., p. 39.

Vale dizer, é o homicídio mercenário considerado um homicídio praticado por motivo torpe e que admite incluir-se no epíteto em questão outras classes de homicídio tão torpes quanto o mercenário.

O motivo torpe é o abjeto, ignóbil, amoral, repugnante, o que ofende gravemente a moralidade média ou os princípios éticos dominantes25.

Discute-se se a paga ou promessa de recompensa restringe-se ao plano econômico26.

Seja como for, parece que se trata de uma aporia, pois, outras motivações como a recompensa sexual, por exemplo, podem claramente constituir motivo torpe, tão torpe quanto a paga financeira, ou a promessa de recompensa econômica. A discussão é, portanto, vazia.

4. A questão do homicídio qualificado-privilegiado

Já é bastante assentado na doutrina e nos precedentes judiciais brasileiros que é perfeitamente possível a coexistência entre o homicídio em sua forma qualificada e o privilégio que representa a causa especial de diminuição de pena do art. 121, § 1o do Código penal27.

A razão desta aceitação geral é a limitação destas possibilidades às hipóteses de homicídio qualificado por razões objetivas. Sustenta-se basicamente que como o privilégio é sempre subjetivo, associado à motivação do sujeito, seja ele praticado sob violenta emoção logo após injusta provocação da vítima, seja ele cometido por relevante valor social ou moral, não há nenhuma incompatibilidade para com as qualificadoras consistentes na prática do homicídio mediante fogo, meio cruel, dissimulação ou outra qualquer qualificadora, desde que esta seja de ordem

25 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições...cit., p. 40; NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal...cit., p. 22; HUNGRIA, Nél-son. Comentários...cit., pp. 163-164; FARIA, Bento de. Código penal brasileiro comentado...cit., p. 18; FIRMO, Aníbal Bruno de Oliveira. Direito penal. Parte Especial...cit., p. 77. Atualmente, veja-se também GALVÃO, Fernando. Direito penal...cit., p. 45; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial...cit., p. 55.

26 Entendendo que a questão deve restringir-se a aspectos econômicos FIRMO, Aníbal Bruno de Oliveira. Direito penal. Parte Especial...cit., p. 77; HUNGRIA, Nélson. Comentários...cit., p. 164; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições...cit., p. 40 (quem es-pecialmente menciona como fonte de sua conclusão a análise histórica das motivações da qualificadora) e BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial...cit., p. 54. Em sentido contrário, com o entendimento de que a paga ou recompensa pode ser de outra ordem que não meramente pecuniária ou econômica, NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal...cit., p. 22 e GRECO, Rogério. Direito penal...cit., p. 153.

27 No sentido do texto FRANCO, Alberto Silva e STOCO, Rui (Coord.). Código Penal e sua interpretação. 8ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 630.

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objetiva. Ou seja, o homicídio qualificado-privilegiado se restringiria às hipóteses de qualificadoras objetivas28.

A incompatibilidade restaria restringida às hipóteses de qualificadoras subjetivas, já que estas estão igualmente fundadas nos motivos que são guias das condutas dos sujeitos. Portanto, não seria possível que o homicídio fosse praticado por motivo torpe e de relevante valor moral, por exemplo. Isto seria uma contradição.

Nada do que se tenha falado até aqui resulta complexo, polêmico ou discutível, mas aqui cessam as obviedades.

A questão intrincada surge a partir do cotejo entre a natureza jurídica da qualificadora da paga ou promessa de recompensa, sua comunicabilidade e a distribuição equânime ou justa da carga penal.

5 O caso do homicídio mediante paga. Natureza jurídica, comunicabilidade entre os concursantes, comunhão entre qualificadora e privilégio. O problema

No caso do homicídio mediante paga ou promessa de recompensa surgem graves problemas para com a distribuição de responsabilidade penal entre os concursantes29.

Ocorre que se a paga ou promessa de recompensa é considerada motivo torpe, este motivo é uma elementar subjetiva do tipo. Como tal, deveria comunicar-se entre os concursantes, a teor da regra do art. 30 do Código penal.

É bem verdade que há uma intensa polêmica a respeito do que se pode considerar elementar do crime30.

É que a redação do art. 30 do Código penal é a seguinte: Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.

28 Nesse sentido o posicionamento de NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal...cit., pp. 26-27. Atualmente, veja-se também GRECO, Rogério. Direito penal...cit., p. 181; GALVÃO, Fernando. Direito penal...cit., p. 56; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial...cit., p. 53; ESTEFAM, André. Direito penal...cit., pp. 113-114; BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Crimes contra a pessoa. São Paulo: Saraiva, 1997, pp. 23-24 e TELES, Nei Moura. Direito penal. Parte Especial. Vol. II. São Paulo: Atlas, 2004, pp. 79-80. O posicionamento neste sentido é também firmemente agasalhado pelo Supremo Tribunal Federal, consoante exemplificado no HC 98265 MS, Relator Ministro Carlos Brito, j. em 24/03/2010, publicado no DJe-086 em 14/05/2010.

29 O uso da expressão concursantes é deliberada, para evitar a discussão entre autoria e participação, que não é objeto deste estudo e que, no caso do homicídio mercenário, o qual, à luz da teoria do domínio do fato resulta, por si só, bastante com-plexa e polêmica.

30 Sobre esta polêmica, veja-se, por todos, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito penal. Parte Geral...cit., pp. 503-504.

Note-se que não são apenas as circunstâncias (a palavra deriva de circum stare, ou seja, estar ao redor de) mas também as condições de caráter pessoal que se comunicam.

Parece induvidoso, data venia, que constitui um elemento e não meramente uma circunstância do crime, tudo aquilo que o define como tipo, vale dizer, aquilo que pertence à imputação, claramente deve ser considerado elementar, enquanto que circunstância deve restringir-se àquelas que podem ser reconhecidas ou não sem desnaturar a imputação, ou seja, sem gerar as hipóteses de mutatio libelli ou ementatio libelli.

Neste contexto, é possível dizer que a qualificadora da paga ou promessa de recompensa integra o tipo, como sua elementar31.

Enquanto tal, em sendo de caráter subjetivo, comunica-se entre os concursantes. Vale dizer: embora seja o motivo que inspira o sicário, mas não quem o contrata, deve comunicar-se à pessoa deste.

Eis o problema.

A questão diz respeito a se as qualificadoras se comunicam ou não aos partícipes, porquanto, se estas são elementares do delito, como parece ser correto, haverá comunicabilidade. Se, por outro lado, não constituírem elementares, mas forem meras circunstâncias, a solução da comunicabilidade fica à mercê da interpretação que se dê a esta última palavra na redação do art. 30 do Código penal.

Isto é particularmente grave na questão posta em debate, porquanto se a qualificadora da paga ou promessa de recompensa é motivação do sujeito se comunicará ao mandante, por força de ser elementar do tipo.

As opiniões a respeito são as mais díspares possíveis.

Para Fernando Galvão32, os tipos derivados ou qualificados são autônomos em relação aos tipos principais, pelo que, o autor considera que a circunstância de ter sido o crime cometido mediante paga ou promessa de recompensa, como elementar do tipo, se comunica ao mandante, de modo que ambos responderão por homicídio qualificado. Ademais, refere o autor que a regra de comunicabilidade serve tanto para as qualificadoras objetivas como para as subjetivas.

A comunicabilidade das circunstâncias é a fórmula preferida pelos nossos Tribunais33 e, nesta esteira, por boa parte da doutrina34.

31 A rigor, diante de uma interpretação rigorosamente significativa, até mesmo os privilégios descritos no § 1o do art. 121 do Código penal deveriam ser considerados elementares do tipo. Este aspecto, porém, uma vez que implicaria digressão mais ampla, não foi tomado como ponto de discussão neste artigo.

32 GALVÃO, Fernando. Direito penal...cit., p. 44.

33 Nesse sentido, veja-se, TJSP RT 807/558, TJSC, RTJE 49/253 e TJSP, RT 538/348.

34 Por exemplo, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial...cit., p. 54.

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Para outra corrente doutrinária que arranca do pensamento de Fragoso35, o mandante não deve responder pelo crime qualificado, mas sim por homicídio simples. Segundo o seu raciocínio, as qualificadoras devem ser interpretadas como circunstâncias e não elementares do tipo.

Desta forma, se entenderia possível que o mandante do homicídio mercenário possa ter praticado o crime por relevante valor social ou moral, sem infringir a regra geral de comunicabilidade das circunstâncias subjetivas nem tampouco incorrer no problema de coincidência de aspectos subjetivos orientadores de qualificadora e privilégio que, segundo a doutrina majoritária, seriam incompossíveis.

Em reforço a este pensamento sobre a incomunicabilidade, há quem aduza36 que o que inspira o agir do executor é a cobiça, coisa que, em realidade, nunca é a inspiração do mandante, que tanto pode agir torpemente, por exemplo, por vingança, quanto por relevante valor social.

Existindo esta comunicabilidade, por exemplo, o homicida que contrata outro para que em seu nome mate o estuprador de sua filha, ou para que desligue a máquina que mantém vivo o parente enfermo realiza um delito que pode ser, em determinadas circunstâncias, considerado como motivado por relevante valor social ou moral. Não obstante, o privilégio não seria aplicável por força da comunicabilidade das circunstâncias de caráter subjetivo consistentes justamente no motivo do sicário, que não é o motivo do mandante37.

Observe-se que a solução do problema não pode ser simplista.

Em uma primeira observação, poderia advir a proposta de considerar as qualificadoras como circunstâncias e não elementares do crime.

Neste caso, seria preciso reconhecer tal característica como uma regra geral e não apenas aplicável ao homicídio mercenário. Ou seja, seria preciso admitir, por exemplo, que um homicídio praticado por motivo fútil, poderia ser, ao mesmo tempo, praticado por relevante valor social, o que é completamente contraditório.

A outra solução, já referida, aventada por Fragoso38, seria correta do ponto de vista anímico relacionado ao caso concreto, mas negaria aplicabilidade à regra geral do art. 30, com resultados práticos também duvidosos no plano da justiça. Vejamos.

Adotar tal solução significaria afirmar que quem contrata o sicário pratica homicídio simples enquanto que o sicário pratica homicídio qualificado, aplicando-se, ainda, o privilégio somente ao primeiro. O contratante responderia por homicídio

35 Com esta orientação FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições...cit., p. 40. Atualmente, BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Crimes contra a pessoa...cit., p. 28 e GRECO, Rogério. Direito penal...cit., p. 155.

36 Nesse sentido, por exemplo, ESTEFAM, André. Direito penal...cit., p. 108.

37 A meu ver, ao contrario da doutrina dominante, a incompatibilidade entre qualificadoras subjetivas do homicídio e as figuras privilegiadas hão de estar demonstradas caso a caso.

38 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições...cit., p. 40.

simples (pena de 6 a 20 anos de privação de liberdade), com a redução própria da aplicação do privilégio. O matador de aluguel responderia pelo crime qualificado, sem possibilidade de aplicação do privilégio.

Não obstante, a vontade que se realiza no resultado é do mandante, ainda que a ela adira o executor. O tema é relevante sob o enfoque da teoria do domínio do fato, porque a interferência na fase de atos preparatórios, como definido no caso, geraria, para Roxin, a condição de instigador39, enquanto que, a doutrina majoritária também admite a figura da coautoria40.

Se admitida a figura da participação, seria esta uma hipótese de participação dolosamente distinta (art. 29, § 2o)?

Neste caso, surgiria um outro problema, pois o resultado mais grave – homicídio qualificado – não é apenas previsível, mas sim previsto, portanto, não ensejaria um plus de reprovabilidade derivado de imprudência inconsciente, mas sim de dolo e, no caso, dada a especificidade, dolo direto. Como aplicar, então, a diferenciação?

Por outro lado, admitida a condição de autor para o mandante, há a questão da justiça na distribuição das penas faria com que o mandante tivesse uma pena incrivelmente menor que a de um coautor executor relativamente fungível.

6 Uma proposta de solução de lege lata

Moura Teles41 levanta uma fundamentação que, do ponto de vista da justiça na distribuição da pena parece insuperável: a covardia e baixeza de caráter daquele que contrata alguém para matar terceiro, é tão vil quanto a daquele que executa tal morte por pecúnia. Ambos trazem em comum a reprovabilidade extra consistente em converterem a vida alheia em um objeto mensurável economicamente, objeto de barganha e contrato. Cada qual, estando em lados diferentes do contrato, tem idêntico desprezo pelo bem jurídico vida pertencente a outrem.

Não obstante, esta solução revela um aspecto inusitado, ainda que correto: o que o

39 ROXIN, Claus. Autoría y domínio del hecho en Derecho penal. Trad. de Juaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gon-zález de Murillo, Madrid: Marcial Pons, 2000, pp. 325-326.

40 Sobre as posições contrapostas veja esclarecedora nota em GRECO, Luís e LEITE, Alaor. “O que é e o que não é a teoria do domínio do fato sobre a distinção entre autor e partícipe no direito penal”, in Revista dos Tribunais, no 933. São Paulo: Revista dos Tribunais, julho de 2013, p. 75, nota 56.

41 TELES, Nei Moura. Direito penal...cit., pp. 62-66.

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contratante e o sicário tem em comum é o contrato sobre a vida alheia, o que constitui um fato da vida, um dado objetivo, que nada tem de subjetivo.

Constituindo uma qualificadora objetiva, esta seria perfeitamente compatível com o privilégio subjetivo, o qual, ademais, não se comunicaria por não constituir elementar do tipo42.

Nesta fórmula, a distribuição da carga penal resultaria justa na medida em que ambos responderiam pelo crime de homicídio qualificado e aquele que eventualmente estivesse movido por relevante valor social ou moral seria o único privilegiado por uma redução de pena. Assim, cada qual teria sua análise de privilégio, seja a morte do traficante que viciou o filho do contratante, seja a penúria e miséria famélica dos filhos do sicário.

O único inconveniente desta solução resulta ser o texto do artigo 121 § 2o, inciso II, que fala em mediante paga, promessa de recompensa ou outro motivo torpe.

Ao estabelecer a cláusula de equiparação o legislador deixou claro, como faz inclusive em outros incisos do mesmo dispositivo legal, que a fórmula visava a abertura de interpretação analógica.

O equívoco do legislador foi colocar como um exemplo de motivo uma situação objetiva e não uma orientação subjetiva.

Esta solução destrói a unicidade do texto da lei, pois difere entre os outros motivos torpes (subjetivos) e a paga ou promessa de recompensa (objetiva).

Assim mesmo, de lege lata, parece, de longe, a melhor solução técnica. Ou seja, que a paga ou a promessa de recompensa quando aconteça concretamente seja considerada no plano objetivo, como elementar do tipo, comunicando-se entre os concursantes. De outro lado, que a motivação do sicário siga sendo exemplo ao qual equiparar, em interpretação analógica, os motivos torpes capazes de representarem a qualificadora.

7 Uma proposta de solução de lege ferenda. A questão do homicídio mercenário e os privilégios no projeto de reforma do Código penal. Análise crítica

Diante do fato inarredável de que uma reforma no Código penal é necessária e se avizinha, ainda que a primeira mostra tenha sido nada alvissareira, é preciso deixar sentada uma proposta para a correção do problema apresentado, que possa resultar em

42 Não é demais lembrar que a posição dominante doutrinariamente, que não reconhece o privilégio do homicídio como elemento do tipo é bastante questionável.

uma solução técnica e político criminalmente mais adequada do que aquela que pode brotar do esforço hermenêutico em face do direito posto.

Verifica-se no anteprojeto enviado que a comissão é sensível ao problema da conjugação entre privilégio e qualificadoras do homicídio, tanto que antecipou, na distribuição dos parágrafos que detalham o tipo do homicídio, as qualificadoras ao privilégio, para deixar claro que este se aplica àquelas.

Outrossim, da mesma redação observa-se que piorou consideravelmente o texto do inciso I, do § 1o do art. 121, do Projeto, não só preservando o dado objetivo da paga ou promessa de recompensa, como ainda adicionando outras circunstâncias objetivas, o contexto de violência doméstica ou familiar ou em situação de especial reprovabilidade ou perversidade do agente.

Ambos são dados completamente objetivos. Ou seja, o ideal, que seria a separação entre as qualificadoras objetivas e as subjetivas em incisos diferentes, com vistas a dar adequada conjugação com eventuais privilégios e regras de comunicabilidade acaso preservadas na parte geral – aliás, mantida no projeto, em seu art. 39 - , não se realizou. Por outro lado, a mescla entre qualificadoras objetivas e subjetivas se ampliou consideravelmente, em detrimento da solução mais técnica.

A maior evidência do equívoco foi a clara associação, no inciso referido, entre os motivos e a culpabilidade, ao tratar de reprovabilidade conjuntamente aos motivos.

Ora, desde que a culpabilidade é normativa e os motivos, como guias da ação, nela já não estão contidos, esta associação é completamente superada. Não só porque isso ocorre no âmbito da imputação, pelo menos, desde o finalismo, mas também porque as próprias circunstâncias judiciais da culpabilidade e dos motivos são aferidas em separado.

De lege ferenda a proposta adequada exigiria separar os incisos da paga e dos motivos torpes. Paga não é motivo, é fato.

8 Considerações finais

No âmbito das considerações finais gostaria de deixar sentado que o trabalho hermenêutico em situações complexas de conjugação normativa são aqueles que mais exigem do juiz, mas que também o justificam.

É inatacável a tese central da predominância do legislativo, como fonte da dimensão política do princípio de legalidade.

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Mas é igualmente certo que o juiz exerce, em sua atividade cotidiana, labor criativo. O juiz cria a norma aplicável ao caso concreto, através de um processo hermenêutico em que busca a melhor interpretação das normas aplicáveis, dentro dos limites políticos que lhe são dados.

Nesta tarefa, há um guia essencial que não pode ser descurado: a idéia central sempre lembrada por Vives Antón43, de que é chegada a hora de que os juristas se proponham a substituir uma pretensão de verdade por uma pretensão de justiça, pois a verdade como correspondência, não será jamais encontrada pelo Direito, menos ainda o Direito penal.

A única coisa que se pode almejar é a busca por um resultado o mais justo possível, dentro das limitações humanas. Se a pretensão de justiça exige um empenho redobrado na costura de soluções interpretativas, hão todos os personagens do foro de debruçar-se sobre esta busca.

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A intimação da decisão de pronúncia: editalícia ou pessoal? | Rômulo de Andrade Moreira 175

Rômulo de Andrade MoreiraProcurador de Justiça do Ministério Público da Bahia - Professor de Direito

Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público) - Pós-graduado, lato

sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal) - Especialista em Processo pela Universidade Salvador – UNIFACS

A intimação da decisão de pronúncia: editalícia ou pessoal?

No ano de 2008 foi promulgada e publicada a Lei nº. 11.689/2008, alterando os arts. 413 e 415 do Código de Processo Penal, determinando-se que a intimação da decisão de pronúncia, doravante, fosse feita por edital, ainda que se tratasse de acusado solto e não encontrado.

Como se sabe, o nosso Código de Processo Penal é do ano de 1941 e ao longo desse período poucas alterações sofreu em que pese serem evidentes as mudanças sociais ocorridas no País e tendo em vista a nova ordem constitucional vigente.

À época tínhamos em cada Estado da Federação um Código de Processo Penal, pois desde a Constituição Republicana a unidade do sistema processual penal brasileiro fora cindida, cabendo a cada Estado da Federação a competência para legislar sobre processo, civil e penal, além da sua organização judiciária.

Segundo Jacinto Nelson de Miranda Coutinho1,

a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. (...) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime (...).

1 O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, nº. 175, jun. 2007, p. 11.

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Como notara o mestre Frederico Marques2,

o golpe dado na unidade processual não trouxe vantagem alguma para nossas instituições jurídicas; ao contrário, essa fragmentação contribuiu para que se estabelecesse acentuada diversidade de sistemas, o que, sem dúvida alguma, prejudicou a aplicação da lei penal.

Este Código, elaborado, portanto, sob a égide e “os influxos autoritários do Estado Novo”, decididamente não é, como já não era “um estatuto moderno, à altura das reais necessidades de nossa Justiça Criminal”, como dizia Frederico Marques. Segundo o mestre paulista3,

continuamos presos, na esfera do processo penal, aos arcaicos princípios procedimentalistas do sistema escrito (...) O resultado de trabalho legislativo tão defeituoso e arcaico está na crise tremenda por que atravessa hoje a Justiça Criminal, em todos os Estados Brasileiros. (...) A exemplo do que se fizera na Itália fascista, esqueceram os nossos legisladores do papel relevante das formas procedimentais no processo penal e, sob o pretexto de por cobro a formalismos prejudiciais, estruturou as nulidades sob princípios não condizentes com as garantias necessárias ao acusado, além de o ter feito com um lamentável confusionismo e absoluta falta de técnica.

Assim, se o velho Código de Processo Penal teve a vantagem de proporcionar a homogeneidade do processo penal brasileiro, trouxe consigo, até por questões históricas, o ranço de um regime totalitário e contaminado pelo fascismo, ao contrário do que escreveu na exposição de motivos o Dr. Francisco Campos, in verbis:

Se ele (o Código) não transige com as sistemáticas restrições ao poder público, não o inspira, entretanto, o espírito de um incondicional autoritarismo do Estado ou de uma sistemática prevenção contra os direitos e garantias individuais.

É bem verdade que ao longo dos seus 60 anos de existência, algumas mudanças pontuais foram marcantes e alvissareiras como, por exemplo, o fim da prisão preventiva

2 José Frederico Marques, Elementos de Direito Processual Penal. Campinas: Bookseller, 1998. v. I, p. 104.

3 José Frederico Marques, op. cit., p. 108.

obrigatória com a edição das Leis de nºs. 5.349/67, 8.884/94, 6.416/77 e 5.349/67; a impossibilidade de julgamento do réu revel citado por edital que não constituiu advogado (Lei nº. 9.271/96); a revogação do seu art. 35, segundo o qual a mulher casada não poderia exercer o direito de queixa sem o consentimento do marido, salvo quando estivesse separada dele ou quando a queixa contra ele se dirigisse (Lei nº. 9.520/97); modificações no que concerne à prova pericial (Lei nº. 8.862/94); a possibilidade de apelar sem a necessidade de recolhimento prévio à prisão (Lei nº. 5.941/73); a revogação dos artigos atinentes ao recurso extraordinário (Lei nº. 3.396/58), além das alterações acima referidas.

Por outro lado, leis extravagantes procuraram aperfeiçoar o nosso sistema processual penal, podendo citar as que instituíram os Juizados Especiais Criminais (Leis nºs. 9.099/95 e 10.259/01), e que constituem, indiscutivelmente, o maior avanço já produzido em nosso sistema jurídico processual, desde a edição do Código de 1941. Há, ainda, a que disciplinou a identificação criminal (Lei nº. 12.037/09); a proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas (Lei nº. 9.807/99); a que possibilitou a utilização de sistema de transmissão de dados para a prática de atos processuais (Lei nº. 9.800/99); a lei de interceptações telefônicas (Lei nº. 9.296/96); a Lei nº 8.038/90, que disciplina os procedimentos nos Tribunais, e tantas outras, algumas das quais, é bem verdade, de duvidosa constitucionalidade.

Pois bem.

Este é o quadro atual. Além de algumas alterações pontuais, seja no próprio texto consolidado, seja por intermédio de leis esparsas, nada mais foi feito para modernizar o nosso diploma processual penal, mesmo após a nova ordem constitucional consagrada pela promulgação da Carta Política de 1988.

E, assim, o “atual” código continua com os vícios de 60 anos atrás, maculando em muitos dos seus dispositivos o sistema acusatório, não tutelando satisfatoriamente direitos e garantias fundamentais do acusado, refém de um excessivo formalismo (que chega a lembrar o velho procedimentalismo), assistemático e confuso em alguns dos seus títulos e capítulos, bastando citar a disciplina das nulidades.4

Atualmente tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei do Senado nº. 156/09, que pretende uma reforma total do Código de Processo Penal. A Comissão instituída para propor este novo Código de Processo Penal, presidida pelo Ministro do Superior

4 Comentando a respeito do Título que trata das nulidades no processo penal, Frederico Marques adverte que “não primou pela clareza o legislador pátrio, ao disciplinar o problema das nulidades processuais penais, pois os respectivos artigos estão prenhes de incongruências, repetições e regras obscuras, que tornam difícil a sistematização coerente de tão importante instituto. (...) Ainda aqui, dá-nos mostra o CPP dos grandes defeitos de técnica e falta de sistematização que pululam em todos os seus diversos preceitos e normas, tornando bem patente a sua tremenda mediocridade como diploma legislativo” (MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Campinas: Bookseller, 1998. v. II, p. 366-367).

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Tribunal de Justiça Hamilton Carvalhido, teve como um dos principais objetivos dar maior celeridade à Justiça. Um das medidas seria o fim da participação dos juízes na tramitação do inquérito policial, o qual ficaria a cargo da autoridade policial e do Ministério Público. A diligência policial não exigiria mais autorização judicial, apenas do Ministério Público. O Ministro Carvalhido defendeu a criação da figura do juiz de garantia, a quem caberia exercer o controle sobre a legalidade da investigação, inclusive quanto à autorização para interceptações telefônicas, solicitadas pela autoridade policial. Tal juiz sairia da causa a partir do oferecimento da denúncia, dando lugar a outro magistrado, que teria maior independência para avaliar a validade das provas colhidas no inquérito. Um dos pontos do projeto, que deve despertar maior polêmica, é o fim da prisão especial para pessoas com diploma de nível superior, que ficaria restrita apenas a algumas autoridades. As prisões preventivas devem ter prazo máximo delimitado. “É preciso continuar essa mudança de mentalidade de ver na [prisão] preventiva uma antecipação da sanção penal, embora não haja ainda julgamento definitivo, que possa criar a certeza da aplicação da pena”, afirmou Carvalhido. O Ministro considera positiva a decisão do Supremo Tribunal Federal, que garante a liberdade do acusado até que não haja condenação em última instância, com sentença transitada em julgado. Tal entendimento, segundo ele, reforça o princípio de que a prisão cautelar é de natureza excepcional. “É necessário que os direitos das pessoas sob investigação sejam respeitados, o que não significa dizer que não se pode prender cautelarmente”, ressalvou Carvalhido. Além do Ministro Carvalhido, integram a comissão, o Juiz Federal Antônio Corrêa; o advogado e professor da Universidade de São Paulo (USP) Antônio Magalhães Gomes Filho; o Procurador Regional da República Eugenio Pacelli; o consultor legislativo do Senado Fabiano Augusto Martins Silveira; o advogado e ex-secretário de Justiça do estado do Amazonas Félix Valois Coelho Júnior; o advogado e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Jacinto Nelson de Miranda Coutinho; o delegado federal e presidente da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal Sandro Torres Avelar; e o Promotor de Justiça Tito de Souza Amaral (Fonte: Agência Brasil). O texto do relator, o Procurador da República Eugênio Pacelli de Oliveira, deve propor a extinção da prisão especial para pessoas com diploma de nível superior, a limitação do prazo máximo para as prisões preventivas, bem como as circunstâncias em que ela pode ser utilizada. Como um texto que visa substituir integralmente o atual CPP, o projeto também propõe a instituição do juiz de garantias, que participaria apenas da fase de investigação, não sendo responsável pela sentença. Segundo o consultor legislativo do Senado para as áreas de Direito e Processo Penal Fabiano Silveira, foram muitas as fontes consultadas, do Brasil e do exterior, até a comissão chegar a um anteprojeto final. Ele revelou que as recentes alterações no CPP, como as três leis sancionadas em 2008,

foram preservadas naquilo que não se chocassem com a concepção de processo penal adotado pela comissão. Pela abordagem adotada, a comissão buscou delimitar o papel de cada uma das autoridades envolvidas no processo penal: o juiz, o representante do Ministério Público e o da polícia judiciária. – “Estivemos sempre muito atentos para esses papéis e sua preservação, sem interferências de parte a parte. Buscamos moderar o protagonismo judicial na fase de investigação e também na iniciativa probatória na fase processual. Com essa compreensão se encaixam as propostas desenvolvidas”, explicou Fabiano Silveira, adiantando ainda que o anteprojeto estimula uma aproximação entre a polícia e o Ministério Público, desburocratizando a fase do inquérito. Outra necessidade identificada pela comissão, afirma o consultor, é a de retirar resquícios autoritários do processo penal brasileiro, adequando-o ao caráter democrático e liberal da Constituição de 1988, ao mesmo tempo limitando o instituto da prisão provisória e ampliando o poder e as alternativas cautelares do magistrado. Para Fabiano Silveira, as medidas podem diminuir no país o número de prisões antes da sentença final, trazendo-o para “níveis mais aceitáveis” (Fonte: Agência Senado).

Destarte, podemos apontar como finalidades precípuas desta reforma a modernização do velho código e a sua adaptação ao sistema acusatório (objetivo, aliás, ainda não inteiramente alcançado), com os seus consectários lógicos, tais como a distinção nítida entre o julgador, o acusador e o acusado, a publicidade, a oralidade, a ampla defesa, o contraditório, etc.

Sobre o sistema acusatório, assim escreveu Vitu5:

Ce système procédural se retrouve à l’origine des diverses civilisations méditerranéennes et occidentales: en Grèce, à Rome vers la fin de la Republique, dans le droit germanique, à l’époque franque et dans la procédure féodale. “Ce système, qui ne distingue pás la procédure criminelle de la procédure, se caractérise par des traits qu’on retrouve dans les différents pays qui l’ont consacré. “Dans l’organisation de la justice, la procédure accusatoire suppose une complète égalité entre l’accusation et la défense.

Ademais, a reforma está mais ou menos consentânea com os princípios estabelecidos pelo Projeto de Código Processual Penal-Tipo para Ibero América. Neste Código-Modelo há alguns princípios básicos, a saber:

1) “O julgamento e decisão das causas penais será feito por juízes imparciais e independentes dos poderes do Estado, apenas sujeitos à lei.” (art. 2º.).

5 André Vitu, Procédure Pénale. Paris: Presses Universitaires de France, 1957, p. 13-14.

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2) “O imputado ou acusado deve ser tratado como inocente durante o procedimento, até que uma sentença irrecorrível lhe imponha uma pena ou uma medida de segurança.” (art. 3º.).

3) “A dúvida favorece o imputado”. (idem).

4) “É inviolável a defesa no procedimento.” (art. 5º.).

Tais idéias serviram também de base para outras reformas feitas (ou por serem realizadas) em outros países, como a Argentina, Guatemala, Costa Rica, El Salvador, Chile, Venezuela, Bolívia, Paraguai, Honduras, Equador, Itália e Portugal.6

Aliás7,

el Derecho procesal penal de los países latinoamericanos, observado como conjunto, ingresó, a partir de la década del’80, en un período de reformas totales, que, para el lector europeo, puede compararse con la transformación que sufrió el Derecho procesal penal de Europa continental durante el siglo XIX. No se trata, así, de modificaciones parciales a un sistema ya adquirido y vigente, sino, por lo contrario, de una modificación del sistema según otra concepción del proceso penal. Descrito sintéticamente, se puede decir que este proceso de reformas consiste en derogar los códigos antiguos, todavía tributarios de los últimos ejemplos de la Inquisición – recibida con la conquista y la colonización del continente -, para sancionar, en más o en menos, leyes procesales penales conformes al Estado de Derecho, con la aspiración de recibir en ellas la elaboración cumplida en la materia durante el siglo XX.

Pode-se, portanto, inferir que as reformas processuais penais já levadas a cabo em vários países da América Latina e por virem em tantos outros, são frutos, na verdade, de modificações no sistema político destes países que foram, paulatinamente, saindo de períodos autoritários para regimes democráticos. É como se a redemocratização impulsionasse o sistema processual do tipo inquisitivo para o sistema acusatório. Aliás, é inquestionável a estreita ligação entre o sistema processual penal de um país e o seu sistema político. Um país democrático8 evidentemente deve possuir, até porque a sua Constituição assim o obriga, um Código de Processo Penal que adote o sistema

6 Ada Pallegrini Grinover, “A reforma do Processo Penal”. Disponível em: www.direitocriminal.com.br. Acesso em: 15 jan. 2001.

7 Julio B. J. Maier; Struensee, Eberhard. Las Reformas Procesales Penales en América Latina. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2000, p. 17.

8 Norberto Bobbio assinala, muito a propósito, que “Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais” (A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 1).

acusatório, eminentemente garantidor. Ao contrário, em um sistema autoritário, o processo penal, a serviço do Poder, olvida os direitos e garantias individuais básicos, privilegiando o sistema inquisitivo, caracterizado, como genialmente escreveu Ferrajoli, por “una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad”. O sistema inquisitivo, portanto, “confía no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga”.9

Assim, a

uniformidade legislativa latino-americana – na verdade compreendendo agora a comunidade cultural de fala luso-espanhola – apoiada em bases comuns e sem prejuízo das características próprias de cada região, é uma velha aspiração de muitos juristas do nosso continente. Além disso, ela foi o sonho de alguns grandes homens, fundadores de nossos países ou de nossas sociedades políticas. (...)Em nossos países, geralmente, a justiça penal tem funcionado como uma ‘caixa-preta’, afastada do controle popular e da transparência democrática. O apego aos rituais antigos; As fórmulas inquisitivas, que na cultura universal já constituem curiosidades históricas; a falta de respeito à dignidade humana; a delegação das funções judiciais; o segredo; a falta de imediação; enfim, um atraso político e cultural já insuportável, tornam imperioso começar um profundo movimento de reforma em todo o continente10.

Este movimento reformista não se limita à América Latina. Na Europa também se encontram em franco desenvolvimento reformas no sistema processual penal. A título de exemplo, podemos referir a Alemanha, onde “también el Derecho procesal penal há sido modificado en varias ocasiones entre 1997-2000”11, a Itália12 e a Polônia, país que “desde hace 12 años se realizan reformas en la legislación, relacionadas con el cambio de régimen político, económico y social, que tuvo lugar en 1989 y también con la necesidad de adaptar las soluciones jurídicas polacas a las soluciones aceptadas en la Unión Europea. (...) Las reformas de la legislación penal e procesal penal constituyen una parte esencial del ‘movimiento legislativo reformador’, segundo

9 Luigi FERRAJOLI, Derecho y Razón. 3. ed. Madrid: Trotta, 1998, p. 604.

10 Exposição de Motivos do Projeto de Código Processual Penal-Tipo para Ibero-América, com a colaboração dos Professores Ada Pellegrini Grinover e José Carlos Barbosa Moreira. Revista de Processo, São Paulo, n 61, 1991, p. 111.

11 Tonio Walter, Professor da Universidade de Friburgo. Revista Penal - “Sistemas Penales Comparados”, Salamanca, 1997, p. 133.

12 Segundo Daniele Negri, da Universidade de Ferrara, “quizá nunca como en estos últimos cinco años había sufrido el pro-cedimiento penal italiano transformaciones tan amplias, numerosas y frecuentes. (...) La finalidad de dotar de eficiencia a la Justicia se ha presentado como la auténtica meta de las innovaciones normativas que se han llevado a cabo en los últimos años (1997-2001).” Revista Penal- “Sistemas Penales Comparados”, Salamanca, 1997, p. 157.

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nos informa a Drª. Barbara Kunicka-Michalska, do Instituto de Ciências Jurídicas da Academia de Ciências da Polônia, em Varsóvia.13

Feitos tais prolegômenos e adentrando o assunto do artigo, observamos que a questão da decisão de pronúncia e a sua intimação sofreu importante modificação.

Com efeito, na referida reforma de 2008, uma das grandes novidades foi a exigência de que o acusado, no procedimento do Júri, caso não seja encontrado para ser intimado pessoalmente da decisão de pronúncia, pode sê-lo por edital (art. 420, parágrafo único).

A questão reside em saber se em relação aos autores de crimes praticados (ação ou omissão) anteriormente à vigência do art. 420, parágrafo único, deve o Juiz de Direito determinar a intimação da pronúncia pessoalmente, conforme fixado no anterior art. 415 do Código de Processo Penal, ou não...

Para que se manifeste um entendimento correto, urge que procuremos definir a natureza jurídica da norma ora modificada: seria ela de natureza puramente processual ou, tão-somente, penal; ou híbrida (penal e processual)? Admitindo-se a natureza puramente processual, obviamente não há falar-se em irretroatividade ou ultra-atividade; porém, se aceitarmos que são normas processuais penais materiais (ou híbridas), a ultra-atividade do artigo alterado e a irretroatividade da nova lei impõem-se, pois, indiscutivelmente, sendo disposição mais gravosa deve excepcionar o princípio da aplicação imediata da lei processual penal.

Ora, o direito à informação e as regras do contraditório e da ampla defesa são indiscutivelmente corolários do princípio do devido processo legal (Constituição Federal, art. 5º., LIV). Aliás, esta matéria também é tratada no art. 370 do Código de Processo Penal.

Nada obstante o caráter eminentemente processual de um dispositivo legal que estabeleça o modo como devem ser cientificadas as partes no Processo Penal, entendemos que o fato da lei ter modificado (para pior) a intimação da decisão de pronúncia, torna-o uma norma processual penal material. É norma jurídica de Direito Processual, pois trata de uma forma de ciência de uma decisão judicial (a pronúncia), sem, no entanto, deixar de ser uma norma de Direito Material, visto que também trata de matéria atinente ao Devido Processo Legal e, portanto, ao próprio Direito Constitucional. Nestas condições, ditas normas não são puramente processuais (ou formais, técnicas), mas processuais penais materiais.

O jurista lusitano e Professor da Faculdade de Direito do Porto, Taipa de Carvalho14, após afirmar que

13 Revista Penal - “Sistemas Penales Comparados”, Salamanca, 1997, p. 164.

14 Sucessão de Leis Penais. Coimbra: Coimbra, 1997, p. 219-220.

está em crescendo uma corrente que acolhe uma criteriosa perspectiva material - que distingue, dentro do direito processual penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais formais”, adverte que dentro de uma visão de “hermenêutica teleológico-material determine-se que à sucessão de leis processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável.

Taipa de Carvalho explica que tais normas de natureza mista (designação também usada por ele), “embora processuais, são também plenamente materiais ou substantivas.” Para ele, constituem exemplos de normas processuais penais materiais, dentre outras, as que estabelecem “graus de recurso”, sendo a lei aplicável aquela vigente “no tempus delicti, isto é, no momento da prática da conduta, independentemente do momento em que o resultado se produza.”15

Informa, ainda, o mestre português que o alemão Klaus Tiedemann “destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das normas processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e normas processuais substancialmente materiais”, o mesmo ocorrendo com o francês Georges Levasseur.16

Feitas tais considerações, lembra-se que “la individualización de la ley penal más benigna deba hacerse en cada caso concreto, tal como ensina Eugenio Raul Zaffaroni.17

A propósito, veja-se a lição de Carlos Maximiliano18:

Quanto aos institutos jurídicos de caráter misto, observam-se as regras atinentes ao critério indicado em espécie determinada. Sirva de exemplo a querela: direito de queixa é substantivo; processo da queixa é adjetivo; segundo uma e outra hipótese orienta-se a aplicação do Direito Intertemporal. O preceito sobre observância imediata refere-se a normas processuais no sentido próprio; não abrange casos de diplomas que, embora tenham feição formal, apresentam, entretanto, prevalentes os caracteres do Direito Penal Substantivo; nesta hipótese, predominam os postulados do Direito Transitório Material.

15 CARVALHO, Taipa de, op. cit., p. 220 e 240.

16 Idem.

17 Tratado de Derecho Penal. Parte General. Buenos Aires: Ediar, 1987. v I, p. 463- 464.

18 Direito Intertemporal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, p. 314.

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Comentando a respeito das normas de caráter misto, assim já se pronunciou Rogério Lauria Tucci19:

Daí porque deverão ser aplicadas, a propósito, consoante várias vezes também frisamos, e em face da conotação prevalecente de direito penal material das respectivas normas, as disposições legais mais favoráveis ao réu, ressalvando-se sempre, como em todos os sucessos ventilados, a possibilidade de temperança pelas regras de direito transitório, - estas excepcionais por natureza.

Outra não é a opinião de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho20:

Se a norma processual contém dispositivo que, de alguma forma, limita direitos fundamentais do cidadão, materialmente assegurados, já não se pode defini-la como norma puramente processual, mas como norma processual com conteúdo material ou norma mista. Sendo assim, a ela se aplica a regra de direito intertemporal penal e não processual.

No sentido do texto, vejamos dois julgados do Tribunal Federal de Recursos da 1ª. Região21:

Em observância ao princípio da irretroatividade da lei penal mais severa (art. 5º, XL, da CF/88), inviável a incidência do regramento do art. 387, IV, do CPP (que possui nítido caráter material), ao caso concreto, pois que os fatos delitivos ocorreram no período compreendido entre julho/2004 à set/2004 e a Lei 11.719/2008, que deu nova redação ao mencionado artigo, conferindo a possibilidade de o julgador, na esfera criminal, fixar valor mínimo para reparação de danos, passou a vigorar no ano de 2008, de modo que dito preceito não pode alcançar os processos em andamento, como na hipótese. 6. Apelação parcialmente provida, apenas para reduzir a pena imposta à acusada e afastar a fixação do valor mínimo de indenização em favor do INSS. (ACR 200638000115549, Juiz Tourinho Neto - 14/05/2010).

19 Direito Intertemporal e a Nova Codificação Processual Penal. São Paulo: José Bushatsky, 1975, p. 124.

20 O Processo Penal em Face da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 137.

21 Este artigo foi escrito graças a Vitor Soliano, meu ex-aluno, que me enviou, via-e-mail, as duas decisões do Tribunal Regio-nal Federal da 1ª. Região, a partir das quais passei a refletir sobre o assunto. A ele, o meu sincero agradecimento e a minha admiração.

Exclusão da condenação por reparação do dano, com base no art. 387, IV, do CPP, introduzido pela Lei 11.719, de 20/06/2008, eis que, na data do fato - 29/07/2008 - ainda não tinha eficácia a Lei 11.719, de 20/06/2008, publicada no DOU de 23/06/2008, que só entrou em vigor 60 dias após sua publicação, consoante o seu art. 2º, não podendo tal disposição retroagir, para prejudicar o réu-apelante. (ACR 200841000075895, Juíza Federal Assusete Magalhães, 14/01/2011).

Com efeito, entendemos que o artigo 420, parágrafo único, do Código de Processo Penal, modificado pela Lei nº 11.689/2008, só é aplicável em relação aos crimes praticados (artigo 4º, do Código Penal – data do fato) posteriormente à vigência da aludida lei.

Considerando que o ato processual de intimação da pronúncia toca diretamente o devido processo legal (seja em relação à ampla defesa, seja em relação ao contraditório, ou seja, em relação à garantia ao duplo grau de jurisdição), evidentemente, que toda norma processual penal que trate de atos de cientificação processual do acusado insere-se, induvidosamente, no conceito de norma processual penal material, mista ou híbrida, nos termos acima expostos.

Destarte, a norma já revogada (artigo 415 do Código de Processo Penal) terá, neste caso, ultra-atividade (repita-se em relação aos crimes praticados ainda quando de sua vigência) e a nova norma (artigo 420, parágrafo único, do Código de Processo Penal) não pode retroagir para reger fatos praticados anteriormente à sua vigência, tendo em vista a proibição contida no artigo 2º. do Código Penal e no art. 5º, XL, da Constituição Federal.

Enfrentando esta questão, o Supremo Tribunal Federal22 decidiu que, tratando-se

de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2º. do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade. Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL da Constituição federal.

Não é apenas o fato de uma norma está contida em um Código de Processo Penal que a sua natureza será estritamente processual (e dever ser aplicada a regra do tempus regit actum). Como afirmava Vicenzo Manzini23,

22 STF – ADI 1.719-9 – rel. Joaquim Barbosa – j. 18.06.2007 – DJU 28.08.2007, p. 01.

23 Tratado de Derecho Procesal Penal, Tomo I, Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1951, p. 108 (tradução do italiano para o espanhol de Santiago Sentís Melendo e Marino Ayerra Redín).

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A intimação da decisão de pronúncia: editalícia ou pessoal? | Rômulo de Andrade MoreiraCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 187186

estar uma norma comprendida en el Código de procedimiento penal o en el Código penal no basta para calificarla, respectivamente, como norma de derecho procesal o de derecho material.

Concluindo, considerando “que a natureza processual de uma lei não depende do corpo de disposições em que esteja inserida, mas sim de seu conteúdo próprio”24, entendemos que o art. 420, parágrafo único do Código de Processo Penal terá incidência apenas em relação àqueles agentes que praticaram a infração penal posteriormente à entrada em vigor da nova lei, atentando-se para o disposto nos arts. 2º. e 4º., ambos do Código Penal.25

Referências Bibliográficas

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24 Eduardo J. Couture, Interpretação das Leis Processuais, Rio de Janeiro: Forense, 4ª, ed., 2001, p. 36 (tradução de Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano).

25 “Art. 2º. - Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a exe-cução e os efeitos penais da sentença condenatória. Parágrafo único - A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”“Art. 4º - Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado.”

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Condenação criminal com base em indícios | Sandro Carvalho Lobato de Carvalho 189

Sandro Carvalho Lobato de CarvalhoPromotor de Justiça do Ministério Público do Maranhão - Especialista em Direitos

Difusos, Coletivos e Gestão Fiscal pela Escola Superior do Ministério Público do Maranhão

Condenação criminal com base em indícios: possibilidade

“Indícios são testemunhas mudas do fato”. Borges da Rosa

“A rainha das provas é a lógica humana”. Ferri

1. Introdução – 2. Qual o significado da palavra indício? – 3. Indício como meio de prova - 4. Indício

como prova suficiente para a condenação – 5. O Ministério Público e os indícios – 6. Conclusão

1 Introdução

Apesar de todos os meios de provas no processo penal terem valor relativo, não existindo hierarquia entre eles, a prova indiciária é sempre vista por parte da doutrina com muita ressalva quando aplicada para a condenação de um acusado.

O objetivo deste breve estudo é, sem a pretensão de esgotar o vasto tema, demonstrar que a prova indiciária é perfeitamente válida para sustentar a condenação daquele que é acusado de um crime, mostrando que a jurisprudência pátria, afastando o preconceito, admite plenamente uma condenação criminal com base nos indícios.

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Condenação criminal com base em indícios | Sandro Carvalho Lobato de CarvalhoCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 191190

2 Qual o significado da palavra indício?

Segundo Adalberto José Q. T. de Carmago Aranha1:

A palavra indício tem sua origem etimológica no termo latino indicium, que significava o que é apontado, o que é indicado, isto é, aquele que, pelos elementos colhidos, pelas circunstâncias fáticas assinaladas, é o provável autor do fato. É sempre um fato ligado ao crime que aponta e indica o possível autor. O indício é o sinal demonstrativo do crime: signum demonstrativum delicti. É a conjetura provável de uma coisa incerta.

Popularmente indício tem significado de suspeita. Quando se fala que há indícios contra alguém, quer-se dizer que há suspeitas contra a referida pessoa. Isso ocorre muito em reportagens jornalísticas onde, por vezes, advogados declaram que “só há indícios contra o meu cliente”, “não há provas”, levando o termo indício a indicar mera suspeita, o que é consentâneo com a opinião pública.

Por outro lado, indício, em sentido comum, corresponde a sinal, argumento, vestígio, indicação, aspecto, aparência, mostra, rastro, marca, pegada, descoberta, revelação.

Em sentido jurídico, Maria Thereza Rocha de Assis Moura2 conceitua indício como:

todo rastro, vestígio, sinal e, em geral, todo fato conhecido, devidamente provado, suscetível de conduzir ao conhecimento de fato desconhecido, a ele relacionado, por meio de operação de raciocínio indutivo-dedutivo.

O Código de Processo Penal brasileiro usa a expressão indício ora como sinônimo de suspeita, ora como indicação e ora como meio de prova.

O juiz federal André Lenart elenca esses significados no CPP. Diz o magistrado3:

1 ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 208.

2 MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. A prova por indícios no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 36.

3 LENART, André. Indícios e sua suficiência para condenação. Disponível em: http://reservadejustica.wordpress.com

Na acepção de suspeita ou de elementos que propiciam uma suspeita, a palavra indício (no singular ou no plural) é utilizada, com diferentes adjetivações, por vários artigos do CPP:Art. 126. Para a decretação do seqüestro, bastará a existência de indícios veementes da proveniência ilícita dos bens.Art. 134. A hipoteca legal sobre os imóveis do indiciado poderá ser requerida pelo ofendido em qualquer fase do processo, desde que haja certeza da infração e indícios suficientes da autoria.Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.Art. 413. O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação.§ 1o A fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena.Art. 414. Não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado.Art. 417. Se houver indícios de autoria ou de participação de outras pessoas não incluídas na acusação, o juiz, ao pronunciar ou impronunciar o acusado, determinará o retorno dos autos ao Ministério Público, por 15 (quinze) dias, aplicável, no que couber, o art. 80 deste Código.No sentido de indicações, aparece no art. 290:Art. 290. Se o réu, sendo perseguido, passar ao território de outro município ou comarca, o executor poderá efetuar-lhe a prisão no lugar onde o alcançar, apresentando-o imediatamente à autoridade local, que, depois de lavrado, se for o caso, o auto de flagrante, providenciará para a remoção do preso.§ 1o - Entender-se-á que o executor vai em perseguição do réu, quando:b) sabendo, por indícios ou informações fidedignas, que o réu tenha passado, há pouco tempo, em tal ou qual direção, pelo lugar em que o procure, for no seu encalço.De indício (no singular) como meio de prova trata o CPP no art. 239:Art. 239. Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias4.

Nosso foco aqui consiste neste último sentido, qual seja, o indício tomado em sua dimensão probatória - também chamado de prova indireta ou indiciária.

4 Os artigos referidos são anteriores às Leis 11.689/08, 11.690/08 e 11.719/09, que reformaram parte do CPP.

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Condenação criminal com base em indícios | Sandro Carvalho Lobato de CarvalhoCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 193192

3 Indício como meio de prova

Como bem leciona Fernando da Costa Tourinho Filho5:

o indício é, também, um meio de prova, e tanto o é, que o legislador o encartou no capítulo pertinente às provas, e, por isso mesmo, seu valor probatório é semelhante às chamadas provas diretas.

Na mesma esteira, leciona Fernando Capez6:

toda a circunstância conhecida e provada, a partir da qual, mediante raciocínio lógico, pelo método indutivo, obtém-se a conclusão sobre um outro fato. A indução parte do particular e chega ao geral.

Assim, nos indícios, a partir de um fato conhecido, deflui-se a existência do que se pretende provar.

Indício é o sinal demonstrativo do crime: signum demonstrativum delicti. [...]

A prova indiciária é tão válida como qualquer outra – tem tanto valor quanto as provas diretas -, como se vê na Exposição de Motivos, que afirma inexistir hierarquia de provas, isto porque, como referido, o Código de Processo Penal adotou o sistema da livre convicção do juiz, desde que tais indícios sejam sérios e fundados.

Assim, como todo e qualquer meio de prova lícito aceito pelo ordenamento constitucional-criminal pátrio, os indícios podem resultar eficazes, ou não, para outorgar ao juiz a certeza processual de que necessita sobre o fato que investiga.

Não há, como dito, hierarquia entre as provas no processo penal brasileiro. Todas têm valor. E todas são relativas.

E se assim é, os indícios servem para embasar uma condenação criminal, tal como o depoimento de uma testemunha ou a prova pericial do fato.

5 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 3, p. 348.

6 CAPEZ, Fernando. Processo penal. 13. ed. São Paulo: EDJ, 2004, p. 168.

Nesse sentido, lecionam Nestor Távora e Rosmar Alencar7:

Estamos diante de prova indireta, que exige uma ilação para que se chegue à determinada conclusão, mas nem por isso de menor importância do que as demais provas, indiretas ou não. Tem valor relativo como todas as demais, podendo lastrear validamente sentença condenatória ou absolutória.

Apesar da conclusão acima, não há como se negar, como dito alhures, que a prova indiciária é vista por muitos com muita ressalva quando aplicada para a condenação de um acusado.

Sérgio Demoro Hamilton8 aponta com precisão o equívoco dessa visão preconceituosa, cuja lição vale transcrever:

Não há negar o preconceito que existe em relação ao valor da prova indiciária no campo do processo penal. Mais que preconceito; verdadeira superstição.Qualquer pessoa que exerça militância no foro criminal, certamente, já ouviu, mais de uma vez, a afirmação de que determinado réu logrou absolvição, visto que, em relação a ele, havia, apenas, indícios comprometedores, não se justificando, em razão disso, a expedição de um decreto condenatório. A alegação, dita, por vezes, com ares de verdade científica, exsurge, sob o aspecto processual, como rematado disparate. Com efeito, constituindo os indícios um dos meios de prova contemplados na nossa lei instrumental penal (art. 239), essa tomada de posição ressabe a heresia processual. O fato de, no processo, existir, somente, prova indiciária, amparando a acusação, por si só, não impede o juiz de condenar o imputado. Quando em jogo o indício, como, de resto, quando em exame qualquer outra prova, cabe ao julgador, após acurada análise da instrução probatória, indagar, apenas, se a prova recolhida é suficiente para a condenação, pois, muitas vezes, prova pode haver, mas frágil, pouco convincente, contraditória e, pois, impeditiva de uma condenação. Outra não pode ser a conclusão a que nos leve a leitura do art. 386,VI, do Código de Processo Penal. Esta, segundo entendo, a exata colocação do tema em face do nosso direito positivo. A ‘exposição de Motivos’, que acompanha o código em vigor, deixa evidente o valor relativo de todas as provas, pondo em relevo que, nenhuma delas, ex vi legis, se revestirá de maior prestígio que outra. Assim pensando, o indício vem colocado em pé de igualdade com qualquer outro meio de prova, não se justificando, dessarte, qualquer preconceito, no que respeita à sua aplicação. Ao juiz cumpre, somente, indagar se os indícios apurados compõem

7 TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 3. ed. Bahia: Juspodivm, 2009, p. 390.

8 HAMILTON, Sérgio Demoro. Temas de processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 41-42.

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Condenação criminal com base em indícios | Sandro Carvalho Lobato de CarvalhoCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 195194

um quadro harmonioso que possa motivar a condenação do réu. Vencida aquela etapa (nem sempre fácil, assinale-se), e convencido o julgador da existência de uma instrução probatória suficiente para a condenação, pode e deve o magistrado expedir sentença condenatória, fundada, somente, nos dados colhidos através da prova indiciária.

4 Indício como prova suficiente para a condenação

Vigorando no Brasil o sistema do livre convencimento motivado onde o juiz é livre para decidir e apreciar as provas que lhe são apresentadas, desde que o faça de forma motivada e fundamentada (art. 155 do CPP c/c art. 93, IX, da CF) e não existindo hierarquia entre as provas, o magistrado – que é o destinatário da prova criminal – tem liberdade para avaliar o conjunto probatório e extrair da prova a sua essência, imprimindo em sua decisão o grau de importância das provas produzidas.

Ora, tendo o legislador admitido os indícios como meios de prova, não se pode negar possa o Juiz, mormente no sistema do livre convencimento, proferir um decreto condenatório, apoiando-se na prova indiciária.

Como conclui Mari Thereza Rocha de Assis Moura9:

17ª) Os indícios têm a mesma eficácia probante que qualquer outra prova, face ao princípio do livre convencimento.O julgador deve sopesar todas as provas produzidas, sem prevalência de uma sobre outra, expondo, exaustivamente, na sentença, os motivos que o levaram ao convencimento.18ª) Se, após criteriosa análise, os indícios não deixarem qualquer margem de dúvida, no espírito do julgador, quanto à certeza da imputação, poder-se-á dizer que a conclusão, do exame dos diversos indícios reunidos, é suficiente para a prolação de uma decisão condenatória.

Nucci (2007, p. 490) deixa consignado que:

Como já afirmamos em nota anterior, os indícios são perfeitos tanto para sustentar a condenação, quanto para a absolvição. Há autorização legal para sua utilização e não se pode

9 Idem, p. 111.

descurar que há muito preconceito contra essa espécie de prova, embora seja absolutamente imprescindível ao juiz utilizá-la. Nem tudo se prova diretamente, pois há crimes camuflados – a grande maioria – que exigem a captação de indícios para a busca da verdade real.

E também Guilherme Madeira Dezem10 (2008, p. 272) leciona de forma semelhante:

Natureza jurídica do indício – O indício é reconhecido pela doutrina como meio de prova (Denilson Feitoza Pacheco e Guilherme de Souza Nucci, entre outros).Valor probatório dos indícios. Tem-se admitido a utilização dos indícios como fundamento suficiente para a condenação. Tal ocorre de sua colocação como meio de prova e, também, dado o livre convencimento motivado que vigora no sistema (entre outros, defendem esta posição Mirabete e Nucci).

Seguindo a doutrina, a jurisprudência atual tem, reiteradas vezes, admitido a condenação criminal com base em indícios. Vejamos:

Supremo Tribunal Federal:

I. Sentença condenatória: justa causa conforme fundamentação idônea, baseada não apenas na confissão depois retratada do paciente, mas também na prova indiciária colhida em juízo, julgada bastante para elidir a verossimilhança de sua versão dos fatos: juízo de mérito a cuja revisão não se presta o habeas corpus. (…)” (HC 75.809/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, T1, 17.03.1998, DJ 17.04.1998, p.4)

Habeas-Corpus. Trafico de entorpecente. Indícios. Inexistência de causa para condenação. Arts. 157 e 239 do CPP. Os indícios, dado ao livre convencimento do Juiz, são equivalentes a qualquer outro meio de prova, pois a certeza pode provir deles. Entretanto, seu uso requer cautela e exige que o nexo com o fato a ser provado seja lógico e próximo. (…) ‘Habeas-corpus’ conhecido, mas indeferido”. (HC 70344/RJ, Rel. Min. Paulo Brossard, T2, DJ 22.10.1993)(…) Se a sentença, bem articulando os fatos postos no processo e atendendo aos requisitos do art. 381, do CPP, conclui pela condenação do réu, não há falar em falta de fundamentação e, muito menos, violação ao art. 93, IX, da CF/88. 2. Vigora no processo penal brasileiro o princípio do livre convencimento, segundo o qual o magistrado, desde que, fundamentadamente, pode decidir pela condenação, ainda que calcada em indícios veementes de prática delituosa (…)” (HC 15736/MG, T6,

10 DEZEM, Guilherme Madeira. Da prova penal. Campinas: Millennium, 2008, p. 272.

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Condenação criminal com base em indícios | Sandro Carvalho Lobato de CarvalhoCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 197196

03/04/2001, DJ 23.04.2001 p. 189)

Superior Tribunal de Justiça:

Processual penal. Recurso especial. Lei de Tóxicos (art. 12, §2º, II, c/c o art. 18, I). Art. 386, VI, do CPP. Dissídio pretoriano. (…) II. Uma sucessão de indícios e circunstâncias, coerentes e concatenadas, podem ensejar a certeza fundada que é exigida para a condenação (...) (REsp. 130570/SP, 5ª T, Rel. Min. Félix Fisher, DJ 06.10.1997).

Penal. Corrupção passiva. Magistrado. Condenação. Co-autoria. Advogado. 1. O crime de corrupção passiva, consoante antiga, mas ainda atual jurisprudência, “somente se perfaz, quando fica demonstrado, mesmo através de indícios, que o funcionário procurou alienar ato de ofício”. 2. O exame dos indícios resultantes do contexto probatório levam à conclusão de que houve entre os co-partícipes (magistrado e advogado) uma concorrência efetiva para a prática do delito de corrupção passiva. 3. Denúncia procedente, com imposição das penalidades previstas lei. (Ap. nº 224/SP, Rel. Min. Fernando Gonçalves, Corte Especial, julgado em 01/10/2008, DJ 23/10/2008)

Processual penal. Sentença. Falta de fundamentação. Inocorrência. Prova indiciária. Suficiência. Condenação. Habeas Corpus. Revolvimento de material probatório. Via imprópria. 1. Se a sentença, bem articulando os fatos postos no processo e atendendo ao requisito do art. 381, do CPP, conclui pela condenação do réu, não há que falar em falta de fundamentação e, muito menos, violação ao art. 93, IX, da CF/88. 2 Vigora no processo penal brasileiro o princípio do livre convencimento, segundo o qual o magistrado, desde que, fundamentadamente, pode decidir pela condenação, ainda que calcada em indícios veementes de prática delituosa. 3. Nos moldes em que delineada a controvérsia, está-se, na verdade, pretendendo revolver material fático-probatório, intento não condizente com a via angustiado Habeas Corpus. 4. Ordem denegada. (HC 15736, 6ª T, Rel.Min. Fernando Gonçalves, j. 03/04/2001).

Tribunais Regionais Federais

Penal. Processual penal. Roubo qualificado. Art. 157, §2º, I e II, do CP. Conjunto probatório. Prova indiciária. Art. 239 do CPP. Condenação. Possibilidade. Pena-base. Fixação acima do mínimo legal. Circunstâncias judiciais desfavoráveis. Art. 59 do CP. Possibilidade. Precedentes citados. 1. Comprovados de forma efetiva e inconteste a materialidade e a autoria, face ao robusto conjunto probatório, coerente em sua unidade pelo cotejo magistrado dos depoimentos e reconhecimentos firmes das testemunhas,

bem como dos fortes e claros indícios existentes, imponível se mostra a manutenção do decreto condenatório. 2. O ordenamento jurídico pátrio acolhe a prova indiciária como lastro para que se possa prolatar um decreto condenatório – art. 239 do CPP. 3. A prova fundada em indícios é bastante para a expedição de decreto condenatório, desde que esteja a demonstrar, de forma clara e precisa, a participação do réu na trama criminosa. 4 (...). 5. Recurso conhecido e não provido. (TRF 2ª Região, ACR 2603, rel. Juiz Rogério Carvalho, DJU 12.03.2001)

Penal. Tráfico de entorpecentes. Art. 12 c/c art.18, III, da Lei 6.368. Receptação. Art. 180 do CP. Prova indiciária. Condenação. Possibilidade. Crimes conexos. Competência da Justiça Federal. Súmula 122/STJ. Dosimetria da pena. Art. 59 do CP c/c art.8º da Lei 8.072/90. Maus antecedentes. Concurso aparente de tipos. Crime de receptação e crime de quadrilha ou bando (art. 288, CP). Absolvição. Impossibilidade. Precedentes. 1. Podem os indícios amparar uma condenação criminal; contudo, exige-se que sejam os mesmos concludentes, veementes, convergentes, concatenados, não excluídos por quaisquer contra-indícios e exclusivos de qualquer hipóteses favorável ao acusado. 2. ‘A prova fundada em indícios é bastante para a expedição de decreto condenatório, desde que esteja a demonstrar, de forma clara e precisa, a participação do réu na trama criminosa’ (TRF 2ª Região, 3ª T, ACR 97.0226661-0, Rel. Des. Fed. Paulo Barata, un., DJ 17.02.1998). 3. Tem a jurisprudência pátria adotado a linha da segurança jurídica mitigada com a prevalência da Justiça Federal em casos conexos com crimes de sua competência. (TRF 2ª Região, 4ª T, ACR 2160, rel.Juiz Rogério Carvalho, DJU 16.05.2000).

Penal. Facilitação de contrabando. Policial rodoviário federal. Indícios. Condenação. Prescrição. Extinção de punibilidade. 1. Já decidiram o STJ que ‘uma sucessão de indícios e circunstâncias, coerentes e concatenados, podem ensejar a certeza fundada que é exigida para a condenação’ (Resp 130570/SP, re.Min. Féliz Fisher, DJ 02.09.1997, p.50030); e o STF que ‘os indícios, dado ao livre convencimento do juiz, são equivalentes a qualquer outro meio de prova, pois a certeza pode provir deles’ (HC 70344/RJ, rel.Min. Paulo Brossard, DJ 22.10.1993, p.22253). 2. Contendo os autos sucessão de indícios lógicos a apontarem com clareza a autoria, permite-se a condenação. 3. Caracterizada a prescrição retroativa, pela pena in concreto, extingue-se a punibilidade. (TRF 4ª Região, 7ª T, ACR 199804010849145, Rel. Juiz José Luiz B. Germano Silva, DJU 16.01.2002).

Tribunais de Justiça

Penal. Processual. Apelação. Roubo. Militar. Elementos probatórios suficientes a arrimar o edito condenatório. Princípios da livra apreciação da prova e da verdade real. Condenação. Imposição. I – Ainda que, em fase judicial, nenhuma das provas a indicar

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Condenação criminal com base em indícios | Sandro Carvalho Lobato de CarvalhoCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 199198

de forma absoluta, a participação delitiva do réu, se suficientes e robustos os indícios a conduzirem como certa, essa participação, sobretudo corroborados por outros meios apurados no inquisitório, irrecomendável se lhe absolver. II – A esse pertine, é que, face o Princípio da Livre Apreciação das Provas e da Verdade Real, bem ainda, segundo critério crítico e racional, não vedado ao Magistrado, valer-se dos elementos coligidos no Inquérito, notadamente quando, a seu ver, seguros e concretos no firmar do edito condenatório. III – Recurso provido. Unanimidade. (TJMA, 1ª Câm.Crim., Ap. Crim. nº 25244/2003, rel. Des. Antonio Fernando Bayma Araújo, j.14.12.2004)

Apelação. Crime contra a Administração Pública. Fraude no processo licitatório. Art.90 da Lei nº 8.666/93. Indícios. Prova suficiente. Condenação mantida. Suspensão dos direitos políticos. Medidas restritivas de direito. Tendo-se em conta que nosso diploma processual penal erigiu os indícios à categoria de prova direta, é possível a ocorrência de um decreto condenatório com suporte nessa modalidade probatória, sobretudo se corroborados por outros elementos de convicção. Ademais, é impossível a absolvição por inexistência de provas quando o conjunto probatório aponta de forma inequívoca a materialidade do delito e sua autoria. Compete à Justiça Eleitoral suspender direitos políticos, que é uma consequência da condenação criminal. Também, por ter sido o condenado beneficiado com medidas restritivas de direito, encontrando-se no gozo de seu ‘status libertatis’, inexistindo limitações que impliquem horários de recolhimento ao cárcere, à primeira vista, não poderá ter seus direitos políticos suspensos. (TJMG, 3ª Câm. Crim., Ap. Crim. nº 1.0054.01.001253-9/001, rel. Des. Paulo Cezar Dias, DJ 02.06.2007)

Apelação. Arts.180 e 311 do CP. Autoria comprovada. Forte conjunto de indícios. Condenação mantida. Um conjunto de fortes indícios, todos apontando para a autoria por parte do réu, tanto da receptação quanto da adulteração, é suficiente para embasar um decreto condenatório. Quase impossível que o órgão acusador reúna prova direta, em tais casos. Recurso da defesa improvido. (TJRS, 4ª Câm. Crim., Ap. Crim. nº 70031638315, rel. Des. Gaspar Marques Batista, j. 22.10.2009)

Pela análise dos julgados acima mencionados resta clara a possibilidade dos indícios serem usados como fundamento de uma sentença penal condenatória, sendo que a cautela recomendada em analisar-se os indícios para a condenação, em nosso sentir, é a mesma cautela utilizada na hora de valora-se o depoimento de uma testemunha, as palavras da vítima e mesmo a confissão do acusado, não se interpretando os indícios com maior severidade que as outras provas, exatamente pelo fato de não haver hierarquia entre as provas e devido ao livre convencimento motivado do magistrado.

5 O Ministério Público e os indícios

Cabendo ao Ministério Público a função constitucional de promover a ação penal pública (art. 129, I, da CF) e fiscalizar a execução da Lei (art. 257 do CPP com redação da Lei 11.719/08), deve o Órgão Ministerial não descuidar de analisar e demonstrar ao magistrado a existência de indícios suficientes para a condenação do acusado, não relegando a prova indiciária como prova secundária, mas tratando-a em igualdade de importância com as demais provas trazidas aos autos.

Os menores indícios que sejam, devem ser bem analisados e avaliados, pois a existência de múltiplos indícios, desde que concatenados e impregnados de elementos positivos de credibilidade são meios fortes de se convencer o magistrado de carreira e também os juízes leigos do Tribunal do Júri da existência do crime e da autoria delitiva, sendo suficientes para uma decisão condenatória.

Nesse ponto, interessante passagem conta Roberto Lyra11, o príncipe dos Promotores:

Ao organizar a cadeia de indícios contra um réu, hesitei em incluir esta circunstância assinalada na pronúncia: o crime ocorrera no sítio em que morava a vítima e o cachorro desta não latiu. Limitei-me a acentuar: ‘Ora, o animal conhecia o acusado; logo, quem entrou no sítio para matar a vítima foi o acusado’. E pensei, cá comigo: os vizinhos não ficaram todo o tempo registrando os latidos. E a falta poderia provir de outra causa. O cão poderia ter saído... Desdenhei daquele procurador Cassignol de Anatole France, que, em idênticas circunstâncias, explicara: ‘o cão não latiu contra o assassino porque o conhecia!’. O réu foi condenado, e o jurado mais influente explicou-me, ao despedir-se: ‘Nós todos podemos nos enganar. O cachorro não se engana. Foi o homem mesmo’. E aprendi. O indício que eu considerava mais foi decisivo.

O registro de Lyra serve para alertar que nenhum indício deve ser de plano descartado, pois o somatório dos indícios pode levar a uma justa condenação criminal e o Ministério Público, na condição de defensor do ordenamento jurídico, deve ficar atento e analisar todos os indícios dando-lhes a importância devida.

11 LYRA, Roberto. Como julgar, como defender, como acusar. Belo Horizonte: Líder, 2010, p. 146.

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Condenação criminal com base em indícios | Sandro Carvalho Lobato de CarvalhoCadernos do Júri | Nº 3 | 2015 201200

6 Conclusão

Doutrina e Jurisprudência atual, inclusive dos Tribunais Superiores, são amplamente favoráveis à possibilidade de condenação com base em indícios.

Não se admitir os indícios como base para condenar um réu no processo penal é fruto de preconceito e de discursos defensivos falaciosos que ignoram o livre convencimento motivado do juiz e que o sistema brasileiro de avaliação das provas não é hierarquizado, tendo toda prova valor relativo.

O Ministério Público como defensor do ordenamento jurídico, fiscal da execução da lei e promotor da ação penal pública deve ficar atento a todo e qualquer indício para que a somatória dessas provas leve o réu penal a uma condenação.

Pouco importa quais são os tipos de provas juntadas aos autos contra um acusado (testemunhal, indícios, confissão etc.). Sendo elas lícitas e suficientes para a condenação, deve o Ministério Público pugnar pela aplicação de pena ao acusado e o magistrado, motivadamente, prolatar sentença condenatória.

Finalizamos com a lição de Américo Bedê Freire Júnior e Gustavo Senna Miranda12:

Não existindo qualquer dúvida razoável que impeça a condenação, se o fato foi provado por testemunhas, indícios, confissão, reconhecimento de pessoa, acareação ou prova inominada, pouco importa, é possível a condenação do réu. Não admitir isso é relegar o indício à noção de prova de segunda linha ou hierarquicamente inferior às demais provas.

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FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê; SENNA MIRANDA, Gustavo. Princípios do

12 FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê; SENNA MIRANDA, Gustavo. Princípios do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, 2009, p. 115.

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Argumentação jusfundamental - jurisprudência e configurações infundadas | Wesley Sanches Lacerda 203

Wesley Sanches LacerdaPromotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso - Especialista

em Ciências Penais pela Universidade de Cuiabá - Especialista em Direito Ambiental - Desenvolvimento Sustentável pela Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público - Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da

Fundação Escola Superior do Ministério Público

Argumentação jusfundamental - jurisprudência e configurações infundadas

“E eu, que já era um espectro de promotor, que julgava o júri verdadeira página virada em

minha vida, tive as cinzas assopradas... e as brasas afloraram!

Atentai, para que não se cometa nenhum atentado à fundamentalidade da estrutura normativa

básica do Estado e da Sociedade...

...atentai, para que não sejamos tentados a usurpar da própria Sociedade aquilo que dela mais

exigimos quando o homicídio bate à porta dos nossos...

...atentai, sim... mas antes... vigiai”.

Niklas Luhmann1 quando do desenvolvimento da teoria do Sistema Autopoiético do Direito sofreu uma célebre crítica, veiculada através da seguinte afirmação: “O que o senhor está fazendo, está tudo errado, mas tem qualidade”.

O autor da crítica?

Um jusfilósofo alemão, que temia uma insuficiência dos direitos fundamentais, dado o seu caráter principiológico, ameaçados de desaparecerem no turbilhão de sopesamentos irracionais: Jürgen Häbermas2.

Os parâmetros jurisprudenciais na atualidade do Judiciário brasileiro vêm sendo fixados de modo a conferir às normas atinentes ao Tribunal do Júri o caráter exclusivo de regras jurídicas, limitando-as ao plano da validade formal, sendo as aparentes antinomias solvidas segundo o âmbito daquela “validade” e de acordo com os critérios tradicionais (cronológico, hierárquico e especial).

1 Niklas Luhmann, Schluss, em Rechtssoziologie, cit., pp. 355 s.

2 Jürgen Häbermas, Faktizität und Geltung, pp. 315-316

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E as normas subsequentes, ao invés de lhes outorgarem a configuração exigida por Häberle3, atuam, manietando e restringindo, no plano de suas maiores eficácias, um dos pilares fundamentais de nossa sociedade: o Tribunal do Júri.

Inicialmente é preciso evidenciar e chancelar, de uma vez por todas, a fundamentalidade das normas relativas ao julgamento de um do povo, pelo próprio povo, em razão do extermínio (ou tentativa) de outrem... ao que parece, também do povo.

Fundamentalidade coletiva (outorgada à sociedade), fundamentalidade individual (ao jurado).

Realmente, o temor de Häbermas não era infundado, como infundada não era a antítese de Böckenförde4 (um excesso dos Direitos Fundamentais) o que conduziria ao fenômeno da constituição como “genoma jurídico” em Forsthoff5.

Lorenzetti6 preleciona:

...o critério material se aplica para preenchimento dos espaços de indeterminação e para a inconstitucionalidade das leis. Para o critério material, o intérprete deve encontrar as “normas fundantes” em todo o Sistema, interpretando o pluralismo das fontes de modo integrado e coerente. Tal precisão é importante, porque não se trata da possibilidade de uma regra ser desautorizada ou deixada de lado com base em um tipo qualquer de pensamento material, político ou valorativo, pois isto afetaria seriamente a segurança jurídica.As únicas normas que podem ser utilizadas para a determinação da aceitabilidade com base nos princípios e valores (validade material) são aquelas que são “fundantes” e que chamaremos de “normas fundamentais”.Para solucionar o problema da excessiva caracterização de todas as normas como adstritas às fundamentais, propõe-se que sejam “suscetíveis de uma argumentação jusfundamental”.As normas fundamentais determinam o conteúdo mínimo ou necessário e possível para a decisão de questões sobre a estrutura normativa básica do Estado e da Sociedade. Com este critério, o espaço de interpretação fica reduzido, uma vez que, se um intérprete pode achar que qualquer norma do sistema jurídico se vincula formalmente à Constituição, as possibilidades se reduzem se a norma particular for submetida a um critério de “fundamentação jusfundamental correta.” Daí porque uma norma

3 Peter Häberle, Die Wesensgehaltgarantie, pp. 180 e ss.; Konrad Hesse, Grundzüge des Verfassungsrechts, §§ 303 e ss.

4 Ernst-Wolfgang Böckenförde, “Grundrechte als Grundsatznormen: Zur gegenwärtigen Lage der Grundrechtsdogmatik”, in Ernst-Wolfgang Böckenförde, Staat, Verfassung, Demokratie, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991, p. 185.

5 Ernst Forsthoff, Der Staat der Industriegesellschaft, 2ª ed., München: Beck, 1971, p. 144

6 Lorenzetti, Ricardo Luís, Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. 2ª ed., São Paulo, 2010, p. 75

será de Direito Fundamental quando houver a possibilidade de uma fundamentação jusfundamental correta.

Afinal de contas, o jurado é ou não um juiz diferente?

Porque o que se tem visto é que o jurado vem sendo posto ou não em equiparação ao juiz togado conforme as conveniências.

Não é que o jurado não fundamente suas decisões! O que acontece é que o juiz leigo tão somente não verte a fundamentação sob sua singela pena do sim ou não.

A fundamentação existe, sim, e o jurado a extrai, ou deverá extraí-la daquilo que lhe foi apresentado em plenário e, tal vinculação, não tem nada de etéreo, mas, absoluta concretude.

Para se ter uma ideia basta analisarmos o tão invocado art. 155 do CPP que vem sendo aplicado por nossas Cortes (às vezes nada corteses), aos juízes leigos.

Neste caso, o jurado é igual ao juiz de Direito e não deve condenar com base em provas, digamos, policiais, sem a chancela da instrução sumária.

Possivelmente então até mesmo as provas periciais, exame de necropsia, certidões de óbito, levantamentos de local de delito etc., deverão, em um futuro próximo, passar pelo martelo judicial, sob pena de, já no primeiro quesito (o da materialidade), obrigatoriamente ser a resposta negativa sempre.

Não há, e nunca haverá, crime, sem o, digamos, aval do juiz de Direito.

Aí, neste caso, o jurado é como o juiz de Direito... tem que obedecer ao comando do art. 155 do CPP - que ele talvez nunca leu, e nem lerá!

Mas, já no caso das clemências, piedades, hiperpoder absolutório puro e simples, a obrigatoriedade da quesitação quanto à absolvição (inobstante reconhecimento da autoria e inexistência de qualquer tese absolutória) e tantas outras, não teses, mas, antíteses, o jurado é diferente do juiz de Direito: o que o juiz não pode, Vossas Excelências podem!

O mesmo se diga da vedação imposta pelo art. 478, do CPP, agora para que não sejam induzidos a pensar como os juízes de Direito (afinal é um juiz diferente) que decidiram tecnicamente pela pronúncia, ou a confirmação desta em instâncias superiores e tutti quantti.

Novamente, tratados como diferentes.

Sob a órbita de um Direito Penal do Fato é sustentada como escorreita a exclusão da quesitação das circunstâncias (agravantes e atenuantes) e então pretendem o veto, nos debates, quanto à “dialética e retórica com o jurado” acerca de certas obras

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criminógenas e criminosas dos artistas em julgamento, porque, lógico, isso é “coisa para o juiz analisar”: Vossas Excelências julgam o fato... não são juízes de Direito.

Como se o jurado não tivesse o dever/direito de conhecer/saber/configurar/classificar qual escola ou corrente representa aquele artista. Se cubista, arcadista, simbolista, romancista, barroco ou parnasiano (aqui com uma dose de necrofilia a despeito de Olavo Bilac).

Isto sem querer adentrar quanto ao trâmite do projeto que veda a leitura das peças de inquérito para os jurados em plenário, além das fortes “correntes” que vedam e anulam decisões de pronúncia que se aprofundam muito, pois não pode haver influência e formatação do juiz togado sobre o juiz democrático.

Com a palavra Tácito7, orador romano do século I: “Ut olim flagitiis, sic nunc legibus laboramus. Sofremos hoje das leis como outrora dos crimes”.

Ausência nítida do segundo elemento de um ordenamento jurídico: a coerência sistêmica!

Como a jurisprudência ousa querer formatar uma juris dictio que é exclusiva, democrática e constitucionalmente popular?

É o Doutor do Direito quem sabe o quê é torpe, fútil, cruel, sem chance de defesa, violenta emoção, ciúmes, vingança, passionalidade, ou, o cidadão, cujas concepções são forjadas em verdadeiros batismos de fogo ao longo de suas existências?

Expressão aqui usada (forjadas) na mais pura acepção greco-romana, moldadas mesmo, como que por Hefaístos ou Vulcano.

Sendo as normas referentes ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida tidas como fundamentais em nosso ordenamento, o caráter principiológico destas é irrefutável e ínsito à própria natureza da norma.

O pilar estrutural, segundo Robert Alexy8, do edifício dos direitos fundamentais, é a distinção entre princípios e regras. Aliás é tese central de sua obra a de que os direitos fundamentais possuiriam natureza preponderantemente principiológica.

Os princípios seriam razões prima facie, ou mandamentos de otimização, com alto grau de generalidade, sendo eventuais conflitos solvidos no âmbito da dimensão de peso.

Já as regras seriam razões definitivas ou determinações, com baixo grau de generalidade, sendo eventuais antinomias resolvidas através ou da inserção de uma cláusula de exceção ou da declaração de invalidade de uma ou de ambas as normas.

7 Tácito, Annales 3.25

8 Alexi, Robert, Teoria do Direitos Fundamentais, 2ª ed., tradução de Virgílio Afonso da Silva da 5ª ed. Alemã, ed. Malhei-ros, pp. 575 e s.

Apesar da alusão ao conceito de direito fundamental completo (conjunto ou feixe de posições normativas prima facie e definitivas) Alexy prepondera a principiologia dos direitos fundamentais.

Antecedendo a tal afirmação, o jusfilósofo alemão estrutura ou esquematiza o que ele chama de posições jurídicas de direitos fundamentais: direitos a algo, sendo-os direitos de defesa (não embaraço de atividades, não alteração de características ou situações e não eliminação de posições jurídicas) ou direito à prestações fáticas ou normativas. Liberdades, estas vistas como a inexistência de exigências ou proibições e, por último, competências (do Estado e do cidadão).

Tais normas (princípios) possuem dupla eficácia ou perspectiva, não se resumindo apenas em direitos subjetivos. São verdadeiras válvulas ideológicas, irradiando seus efeitos à legislação, à administração e, especialmente, à jurisprudência.

Há então diferença entre o jurado e o juiz de Direito?

Na seara constitucional não há como sustentar-se mais o método dedutivo de identificar uma situação de fato e subsumi-la em uma norma como única solução.

A saída foi o método argumentativo.

Se de um lado tem-se as normas coletivas fundamentais do Júri e as normas individuais fundamentais do jurado que irá julgar e de outro as normas fundamentais individuais daqueles que ali serão julgados, a coerência, em nosso ordenamento, será a posteriori.

Assim é em todos os sistemas modernos, o que obsta uma ideia de hierarquização prévia.

Portanto, caso evidenciado um campo de tensão, a solução dar-se-á pelo método argumentativo, cujos pilares estão na Tópica de Viehweg9 e na Teoria da Argumentação de Perelman10.

Quanto a Viehweg, basicamente esteia-se na utilização de tópicos, que seriam argumentos extraídos dos princípios gerais e decisões jurisprudenciais que expressariam certo consenso na solução de problemas.

Mas, cirurgicamente, Lorenzetti explicita acerca da Argumentação de Perelman:

...baseada na retórica aristotélica, busca a adesão do auditório em dois sentidos: a) persuadir o auditório particular é uma técnica instrumental que é utilizada e que pode

9 Viehweg, Theodor. Tópica y filosofia de derecho cit.; Amado, Juan Antonio García. Teorias de la tópica jur´dicia. Madrid: Civitas, 1998.

10 Perelman, Chaim. La lógica jurídica y la nueva retórica cit., p.10; Perelman, Chaim; Olbrechts-Tyteca, L. Tratado de la argumnentación. La nueva retórica. Trad. Julia Sevilla Muñoz. Madrid: Gredos, 1989.

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atender a razões específicas vinculadas aos interesses do setor de que se trate; b) convencer o “auditório universal”, entendido como aquele argumento que convence todos os seres capazes de raciocinar, portanto, “utiliza argumentos generalizáveis ou universais”.

Esta última é a argumentação baseada em argumentos generalizáveis e não baseados em um interesse específico, é eficaz e constitui o controle final de toda a decisão. O jurista é, então, quem elabora argumentos levando em conta a sua capacidade para convencer a sociedade acerca da sua razoabilidade.

Esta, portanto, a diferença básica entre o juiz de Direito e o jurado.

O primeiro deve argumentar (para isso necessita explicitar fundamentação) com fins de convencer o “auditório”, destinatário do decisum, que é a Sociedade.

O jurado, sábio leigo, é a própria Sociedade, que, ao decidir, restou convencida.

A diferença é quase que física, no plano das polaridades inversas e do referencial.

Um é ator, o outro, o auditório.

Qualquer tentativa de subtração, de limitação ou formatação (como vem sendo feito diuturnamente) da parcela soberana de conhecimento e julgamento dos crimes dolosos contra a vida, em detrimento do júri, deve ser tida como inconstitucional, pela hierarquia, já que só trafegam na via estreita do âmbito da validade formal.

Caso migrem para a égide da validade material, a insconstitucionalidade é confirmada pelo “não retrocesso”, posto que as normas jurídicas “posteriores” têm desconfigurado a matriz essencial de fundamentalidade.

Eventuais campos de tensão somente poderão ser averiguados no caso concreto eis que não há que se falar em antinomias entre princípios.

Os sopesamentos são a posteriori, e através dos encargos da argumentação. É necessário dar um argumento razoável e racional para limitar-se um Direito Fundamental.

O que se espera do “hermeneuta da concretização” é que sopese e pondere, in concretum, para então argumentar e convencer de que, naquele casus, esta ou aquela prova, no Júri, não possa ser levada em conta, por razões da maior especificidade possível.

Daí, porém, a criar-se uma verdadeira enxurrada de decisões estereotipadas, pré-concebidas e com hierarquização prévia, de modo a moldar toda a concepção e convencimento do julgador leigo quanto a conceitos clássicos da vida, vai uma distância abissal, pelágica, na exata proporção à Fossa das Marianas, no Oceano Pacífico.

O “júri” é norma fundamental, como o Ministério Público, e, tal e qual, sofre a mesma saraivada de ataques ideológicos conforme as conveniências.

O parquet não pode investigar... deve ser isento e imparcial como o juiz...dentro dos autos é parte, somos iguais (isonomia), porém com ampla defesa... há ampla acusação?

Agora, sob a nova realidade, com a inclusão de um único inciso em um artigo da Lei de Ação Civil Pública, pretende-se (e com total apoio jurisprudencial) transmutar toda a natureza jurídica de um órgão com foro constitucional de representante de parte (a Defensoria Pública), passando-o, num toque da “varinha de Medéia”, a substituto processual. Como que a querer fazer crer que existiria, hoje, um Ministério Público de Acusação e um outro, de Defesa!

Seria como a fábula do Lobo e do Cordeiro: contra a “força”, não há argumentos.

Seria o porquê do vaticínio do Chanceler de Ferro da Prússia ao ter erigido as leis à categoria de “embutidos suínos”.

É claro que não acreditamos, e nem pregamos, que da constituição derive tudo (do Código Penal até à lei de fabricação de termômetros – genoma de Forsthoff) mas que algumas salsichas dos planos hierárquicos imediatamente inferiores mereçam Descartes (pensamento quanto à existência) e descarte, ah isso sim!

Dúvidas acerca da fundamentalidade das normas ínsitas ao Júri?

Já se argumentou até que a fundamentalidade do Júri em nosso ordenamento seria muito recente o que revelaria uma certa precariedade.

Ora, se foi recentemente incluída no rol, frise-se que certos direitos fundamentais sequer constam do catálogo. O princípio da dignidade, na constituição brasileira não consta do rol das cláusulas pétreas, inobstante constituir-se verdadeiro limite material implícito e autônomo ao poder reformador constitucional.

Na Lei Fundamental da Alemanha referido princípio é inserto como pétreo, porém, referida Lei, não faz sequer alusão ao salário mínimo, à assistência e nem à previdência social.

Como em nosso ordenamento, a fundamentalidade do duplo grau de jurisdição não tem sede constitucional e sim o art. 8º, item I, letra “h” da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José) tendo sido introduzido através do Decreto nº 678 de 06/11/92.

Uma das origens do Júri, apontadas por grande parte da Doutrina, assenta-o no Concílio de Latrão (1215) e que coincide exatamente com a abolição das Ordálias ou Juízos de Deus.

Marco inicial melhor para a construção da dignidade humana não há.

Basta só lembrar outra formatação essencial à remodelação do conceito de dignidade na 2ª metade do século XX, contextualizando o pós guerra, onde o Júri, através de grandes e históricos julgamentos, participou e contribuiu, de forma decisiva, na revisão e amplitude do conceito de dignidade humana (o superprincípio).

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Superprincípio, posto que Günter Dürig11, ao elaborar um autêntico sistema de Direitos Fundamentais, acima dos direitos gerais e específicos de liberdade e igualdade, cláusulas pétreas e plena justiciabilidade, o colocou no vértice, como reductio ad unum.

Não é preciso gastar mais tinta quanto à conceituação da dignidade. Já se consumiu a volumetria do Amazonas e a extensão do Nilo.

Alguém negaria a fundamentalidade do Júri na reconstrução da dignidade humana? Especialmente quanto à absolvição da alma daqueles que, do direito à vida, foram extirpados? Para se ter dignidade, como antecedente lógico-orgânico, é preciso existir... e continuar existindo.

Lembre-se que Dürig estendeu a dignidade até aos cadáveres - já que falamos em Júri. Os acadêmicos de Medicina bem o sabem, pela tábua de advertência na cátedra de anatomia... os da faculdade de Direito... pela tipificação no Código Penal.

O Júri participa efetivamente da construção diuturna da dignidade humana, nunca o retrocedendo, bem como constrói (configura) a cada voto, os conceitos ali ventilados, seja nas fórmulas casuísticas (torpe, fútil, cruel etc) seja nas interpretações analógicas (ou qualquer outro...).

Paolo Ridola12, acerca da mesologia do 2º pós guerra, assim escreve:

...a ênfase dada ao tema da dignidade humana pelas constituições europeias, a partir da segunda metade do século XX, foi a mais expressiva manifestação de repulsa às experiências mortificantes dos totalitarismos do século XX, bem como de genocídios e extermínios coletivos que as acompanharam. Contudo, os fundamentos do liberalismo do século XIX revelavam aporias também em relação a esse tema. Isso o pensamento filosófico do século XX se empenhou em demonstrar e esclarecer. Interrogando-se sobre as origens e fundamentos do ‘mal radical’ dos totalitarismos do século XX, Hanna Arendt enfatizou o caráter de uma ‘absoluta e lógica coerência’ que o distinguiria de outras experiências históricas já conhecidas – ou seja, de maldades já praticadas por soberanos – e que consistiria em tornar supérfluo o ser humano, isto é, manter o gênero humano mas, a qualquer momento, ter a possibilidade de eliminar as suas partes’. Nisso residiria a ‘radicalidade’ dos totalitarismos.

11 Cf. G. Dürig, in: AÖR nº 81 (1956), pp. 119 e ss.

12 Ridola, Paolo. “A dignidade humana e o ‘princípio liberdade’ na cultura constitucional europeia/ Paolo Ridola; coorde-nação e revisão técinica Ingo Wolfgang Sarlet; tradução Carlos Luiz Strapazzon, Tula Wesendonck. Porto Alegre; Livraria do Advogado Editora, 2014, pp. 50 e ss.

Prossegue, mais adiante, o mestre da Universidade de Camerino:

A inviolabilidade da dignidade humana, enquanto princípio supremo que informa todo o ordenamento jurídico não configuraria, em vista disso, nem um direito fundamental, destinado a conviver e a coordenar-se com outros reconhecidos pela Constituição, nem uma cláusula de fechamento do catálogo dos direitos fundamentais (Grundrechte) chamada a operar naqueles casos em que o âmbito de proteção (Schutzbereich) dos demais direitos correria o risco de não receber proteção adequada.Dessa concepção objetiva e absoluta da inviolabilidade da dignidade humana extrai-se, em primeiro lugar, que ela constitui o fundamento, não apenas do sistema de direitos constitucionais fundamentais (Grundrechte), mas também de todo o ordenamento de valores que embasam a Lei Fundamental; e, em segundo lugar, que a proteção absoluta que tal princípio reivindica tem como objeto não o indivíduo concreto e singular, mas o ser humano na sua dimensão antropológica. O princípio constitucional portanto, aludiria não a uma proteção individualizada e concreta, mas a uma complexa imagem do ser humano que a norma constitucional pretenderia preservar de modo absoluto: aquela em razão da qual – observa Dürig – cada ser humano, por causa dos atributos próprios de sua espiritualidade, destaca-se em relação às demais criaturas, e que o fazem capaz de decidir autonomamente, de se autodeterminar, de ser consciente de suas próprias ações e de conformar o ambiente que o circunda.

Hannah Arendt, proativa nesta reescritura do conceito de dignidade humana pós guerra, em carta para Martin Heidegger datada de setembro de 1969:

Estamos tão habituados à antiga contraposição entre razão e paixão, espírito e vida, que nos espantamos em certa medida com a representação de um pensamento apaixonado, no qual pensar e viver se unificam. Este pensamento que se alça enquanto paixão a partir do simples fato de ter-nascido-em-um-mundo e então ‘procura seguir com o pensamento o sentido que vige em tudo o que é’ comporta tão pouco uma meta derradeira - o conhecimento ou o saber – quanto a própria vida......O fim da vida é a morte, mas o homem não vive por causa da morte. Ele vive porque é uma essência vital; e ele não pensa por causa de um resultado qualquer, mas porque é uma essência ‘pensante, isto é, meditativa.

No filme sobre a vida da filósofa alemã, na parte final, encerra a protagonista:

De todas as críticas que recebi, ninguém foi capaz de me fazer aquela única que eu respeitaria. O mal não pode ser banal e radical ao mesmo tempo. Esta é a “qualidade

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cáustica” do pensamento: “ele deve se comportar em relação aos seus próprios resultados de maneira caracteristicamente destrutiva ou crítica.

Já que se falou em Luhmann, como cada subsistema possui seus códigos binários (inputs e outputs) é necessário que se observe, no subsistema do Direito, o codex próprio. O que é lícito e o que é ilícito.

Se querem ser constitucionalistas, ao julgarem os casos em que existe uma certa indeterminação, que sejam, pelo menos, hermeneutas da concretização, pois a sentença, como norma jurídica concreta que é, deve alcançar em todos nós a argumentação jurídica, o convencimento da razoabilidade.

E que o façam assim também em face dos embutidos, com alta carga de sódio e adredemente encomendados.

Seja no controle difuso (e não confuso) seja no concentrado (longe dos campos de concentração).

Embutidos causticantes mesmo!

O que os senhores estão fazendo, está tudo errado... e não tem qualidade.

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