3 a letalidade seletiva da política pública de segurança ... · legítima, a demanda social por...
TRANSCRIPT
3
A letalidade seletiva da política pública de segurança como
paradigma de extermínio no Rio de Janeiro
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada. Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida
Que não falam idiomas, falam dialetos. Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato. Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não têm cultura, e sim folclore. Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas
páginas policiais da imprensa local. Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.
(Eduardo Galeano – Os ninguéns)
O debate atual sobre direitos fundamentais se vê confrontado com uma
nova realidade, relacionada com o conceito de sociedade de risco1, a qual começa
a pautar as políticas públicas e legislativas. Assiste-se hoje ao confronto dos ideais
de liberdade e segurança, no qual talvez se possa falar na substituição do primeiro
pelo segundo. O ideal da liberdade é limitado pelo aumento ineficaz e
desarrazoado do poder punitivo do Estado, contribuindo inclusive para a própria
desestruturação do Estado Democrático de Direito.
O fortalecimento do aparato repressivo do Estado surge como uma espécie
de resposta ao problema da criminalidade e a busca por segurança. Ainda que
legítima, a demanda social por proteção não pode justificar a submissão dos
cidadãos ao poder cada vez maior do Estado, uma vez que a transição do desejo
de segurança em desejo de punição é fortemente manipulado pela mídia e o
aparato governamental, atuando unicamente no campo simbólico, sem
correspondência objetiva com a realidade, ou seja, a diminuição efetiva da
criminalidade.
1 Essa expressão foi trabalhada por Beck sobre a constatação do risco como um fator onipresente na sociedade, até se tornar uma normalidade. O risco se tornou não um momento de estranhamento, mas um elemento central da vida, parte da rotina na “sociedade industrial de risco”. Ver: BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma nova Modernidade. Ed. 34, 2002.
86
O caso do Rio de Janeiro é emblemático do cenário descrito no campo da
segurança pública, e será objeto de análise neste capítulo. A substituição da
liberdade por segurança representa a transformação de um Estado reativo para um
Estado com postura pró-ativa, no qual o objetivo é desviado da defesa da
sociedade contra ameaças, para o controle cada vez maior, com a finalidade de
prevenção dos riscos potenciais, indefinidos e desconhecidos, intervindo na
liberdade coletiva e individual de todos que possam representar risco. O
paradigma da segurança agora permite que a violência estatal seja exercida de
forma aleatória, pois todos passam a condição de suspeitos.
“No que tange ao sistema punitivo, o ideal de liberdade está ligado a um conceito de Estado de direito e a um sistema estrito e rígido de garantias do indivíduo frente às pretensões punitivas do Estado, enunciado a partir das construções filosóficas do liberalismo político, do iluminismo e do racionalismo e que tem como corolários a legalidade, proporcionalidade, culpabilidade e ofensividade real da conduta. De outro lado, o ideal de segurança aponta para um sistema punitivo hipertrofiado, simbólico e informalizado (flexibilização das garantias), com objetivo de aumentar o poder do Estado contra eventuais “inimigos”, conquanto esse poder aumentado se faça sentir sobre todos os cidadãos, já que a intervenção punitiva deixa de ser a ultima ratio para se tornar regra. O pensamento da segurança carrega dentro dele um risco essencial. Um Estado que tenha a segurança como sua única tarefa e fonte de legitimidade é um organismo frágil; pode sempre ser provocado pelo terrorismo para tornar-se, ele próprio, terrorista”2.
A partir disso, um direito de emergência surge como resposta para a
“crise” da violência urbana carioca. A sensação de uma criminalidade fora de
controle é transmitida para a sociedade, a qual responde com uma demanda
crescente por medidas emergenciais, legitimando dessa forma medidas
excepcionais imediatistas e com forte cunho repressor. Essa forma de política
carrega um forte apelo simbólico e por isso consegue envolver a opinião pública.
Essa é uma tendência mundial, mas no caso das políticas implementadas no Rio
de Janeiro, ela adquire detalhes dramáticos. Pois uma sociedade historicamente
excludente como a brasileira, após sair de um regime autoritário e violento que
durara décadas, deveria estar construindo sua base democrática, com princípios e
valores libertários. Ao contrário, ela ainda é profundamente marcada pela
ideologia opressora, comandada pela minoria detentora do poder. A norma não é
mais criada para proteger bens jurídicos, ela passa a ser criada para proteger a
2 AMARAL, Thiago Bottino do. A segurança como princípio fundamental e seu reflexo no sistema punitivo. Revista Discursos Sediciosos: Crime, direito e sociedade. Ano 11, nº 15/16, 1º e 2º semestres de 2007. p. 301.
87
própria norma. A lei antecipa a tipificação dos crimes para o momento
preparatório, quando ainda não há uma lesão a um bem jurídico. Passamos então
do direito a segurança para a segurança dos direitos, no qual se desenvolve uma
política extremamente repressora e, sob uma perspectiva excludente, mantém a
segurança de poucos3.
No caso brasileiro, o movimento “lei e ordem” e o Estado de polícia são
duas faces da mesma moeda. Não se pode mais negar o caráter político do sistema
penal em todas as suas ramificações. O olhar seletivo está sempre presente, seja na
escolha das condutas a serem tipificadas pela norma penal, seja pela dosimetria
das penas, sempre mais rigorosas com os chamados crimes de rua. Ou por meio
do seu braço policial, que é quem realiza o primeiro filtro sobre a clientela da
máquina punitiva, sendo justamente a polícia que irá determinar quais sujeitos se
enquadram no tipo suspeito, qual postura desperta ameaça a ordem pública,
devendo o sujeito ser reprimido, coagido e encarcerado nas masmorras brasileiras.
E, se isso não for possível, deve ser eliminado. Dessa forma, o estado de exceção
vai tomando conta, sempre alimentado pelas propagandas midiáticas. “Vende-se a
ilusão de que se obterá mais segurança urbana contra o delito comum sancionando
leis que reprimam acima de qualquer medida os raros vulneráveis e
marginalizados tomados individualmente e aumentando a arbitrariedade
policial”4. Assim, o Estado de Polícia vai progredindo cotidianamente, invadindo
os espaços conquistados após muitos anos de luta pelo Estado Democrático de
Direito.
A violência urbana articula um complexo de práticas que compõem uma
grande parcela do conflito social no Rio. Com o advento dos governos militares e
a Doutrina de Segurança Nacional, conforme tratado no primeiro capítulo do
presente trabalho, algumas mudanças foram sentidas na forma de tratamento da
sociedade pelo Estado e pelas polícias. A questão do controle social passa a ser
politizada e novos pontos considerados estratégicos começam a ser planejados.
Como o caso da militarização da polícia, deslocando o foco de repressão do crime
comum para as questões de segurança do Estado. Então assim se desenvolve a
3 SULOCKI, Victoria-Amália. Museu de novidades: discursos da ideologia da defesa social nas decisões judiciais neste início de século XXI. Op. Cit. p. 12. 4 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p. 75.
88
base do problema da segurança pública atual, na qual começa a se questionar as
formas legítimas e ilegítimas de manutenção da ordem social, qual seja, a
transferência do controle social cotidiano para as questões de segurança do Estado
e a militarização das polícias associada com a autonomia dos aparelhos policiais.
Os discursos das autoridades oficiais sobre a guerra ao tráfico de drogas é
uma forma de simplificação da questão de manutenção da ordem pública, usando
essa guerra como um pano de fundo para a justificação das intervenções rotineiras
na vida social, atribuindo a culpa a um segmento específico – os moradores das
favelas – o qual, a partir de sua criminalização, torna-se o perfil ideal do outro: o
suspeito que precisa ser eliminado5.
A análise dos excessos da atuação policial, em que se busca entender o uso
da força moderada, ignora que essa instituição é resultado de uma perspectiva
coletivamente construída sobre o limite para manutenção da ordem pública. Para
Machado da Silva, a violência policial se mostra na história brasileira como uma
condição de possibilidade do conflito institucionalizado no Estado. Explica-se. A
violência tem sido a condição intrinsecamente presente no processo de integração
política e sociocultural, responsável pela segregação por meio da força e da
desqualificação simbólica de determinado grupo. Aberta ou camuflada, a
violência sempre atuou como mediadora das relações sociais. A violência
camuflada operava por meio do “tecido social”, ou seja, uma pregação ideológica
com a função básica de recalcar a violência inerente a exploração econômico-
social. No que tange a violência aberta, o seu braço executor é incorporado na
autoridade policial.
3.1
A favela e o paradigma do campo
5 Assim afirma Machado da Silva: “(...) convergem para os aparelhos policiais demandas de recomposição de uma ordem social tida como ameaçada. Cresce o clamor por uma ação “dura” – isto é. Ilegal -, de modo que a única possibilidade de evitar a contaminação moral de todo o sistema, preservando os aspectos institucionalizados do conflito social, é deixar a “dureza” da repressão ao arbítrio da polícia. Esse é o segredo, praticado mas não tematizado, da paradoxal convivência entre dois processos que, na aparência, deveriam ser incompatíveis: a democratização e a expansão da violência criminal e policial.” MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. “Violência Urbana”, Segurança Pública e Favelas – O caso do Rio de Janeiro. Cadernos CRH, Salvador, v.23 n.59, Maio/Agosto de 2010. p. 292.
89
A política de segurança pública no Rio de Janeiro sempre foi muito
particular em relação aos outros estados do Brasil, em grande parte devido a
circunstância de sua geografia. A ocupação urbana de maneira segregacionista é
comum em diversas cidades do Brasil. Entretanto, uma característica peculiar no
caso do Rio de Janeiro é que esses espaços situam-se muito próximos uns dos
outros, o que só acentua o aspecto segregacionista da política de construção do
espaço urbano. O caso do Rio de Janeiro mostra explicitamente uma política de
cunho higienizador.
Sem entrar na questão histórica, que foge ao escopo deste trabalho, é
importante mencionar que, a partir dos anos 60, o Estado começa a intervir no
processo de ocupação, removendo as favelas da zona sul e deslocando a
população para a zona norte. Nessa época começa a se delinear o mapeamento da
cidade atual - a vida a beira-mar é privilégio dos ricos, enquanto as classes mais
baixas vão se distanciando cada vez mais do centro. Durante muitos anos e
sucessivos mandatos políticos, segmentos das classes subalternas ficaram
expostos a exclusão social e política, o que permitiu a formação de fronteiras de
uma “cidade partida”6.
De acordo com Andrelino Campos, “como a favela, ainda hoje, está
umbilicalmente ligada à questão do “risco”, as classes dominantes criam, em cada
momento, um discurso que vinha dando sustentação às suas práticas sócio-
espaciais, baseando-se quase sempre nos ideários discriminatórios e
segregacionistas”7. A questão da higiene sempre foi fundamental para justificar a
produção do espaço no Rio de Janeiro, primeiro para afastar da área central os
cortiços que abrigavam escravos, posteriormente usou o discurso do “risco
ambiental” para remover centenas de favelas, e atualmente busca soluções contra
o “risco” para segurança pública, especialmente na questão do tráfico de drogas.
Essas justificativas sempre precederam as intervenções do Estado no espaço
favelado, seja de forma “cirúrgica”, seja removendo as favelas, como uma espécie
de “doença urbana”, ou promovendo programas de pacificação com custos sociais
6 Interessante observar a descrição que o autor faz sobre a separação velada que existe na cidade do Rio de Janeiro, na qual está inserida duas realidades completamente diferentes, podendo mesmo ser considerada uma cidade dividida. VENTURA, Zuenir. Cidade Partida. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2000. 7 CAMPOS, Andrelino. Do Quilombo à Favela: a produção do “Espaço Criminalizado” no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil: 2011. p. 69.
90
muito altos. É o “medo branco de almas negras” conforme denomina Sidney
Chalhoub8, o temor de uma rebelião popular.
Durante esse processo aprofunda-se a “cidadania diferenciada”. Ou seja, as
favelas são abandonadas pelas políticas públicas na área de saúde, saneamento
básico e educação, por exemplo. Em contrapartida, esses espaços passam a ser
ocupados por relações clientelistas, por meio da fragmentação urbana e o
fortalecimento de líderes locais, seitas religiosas, contravenção ou mesmo pelo
crime organizado. Assim, se observa o fortalecimento da distinção entre direitos
humanos e cidadania, na qual o primeiro passa a ser visto ironicamente pela
sociedade como privilégio dos delinqüentes, enquanto cidadania seria restrita aos
sujeitos cumpridores da lei, para os contribuintes9.
“Esse tipo de pensamento higienista, que é recorrente na nossa sociedade, foi expresso por Marcus Jardim, Comandante do 1° Comando de Policiamento de Área (CPA) do Rio de Janeiro, ao afirmar que: “A PM é o melhor inseticida social”, no dia 15/04/08 em referência a ação da polícia militar na favela de Vila Cruzeiro, onde foram mortas nove pessoas e feridas seis, tendo como justificativa o combate ao tráfico de drogas. Agindo dessa maneira, os representantes da política de segurança do estado do Rio de Janeiro visam naturalizar suas práticas, comparando seres humanos a insetos que podem ser mortos sem que ocorra qualquer investigação sobre os fatos”10.
Ao se analisar a formação histórica do Rio de Janeiro torna-se evidente a
constância de políticas públicas desenvolvidas e pensadas de cima para baixo,
equacionadas pelas elites e voltadas para os seus interesses. Não foram
direcionadas para o desenvolvimento social, mas sim para o controle das massas;
não planejadas para a segurança de todos, mas sim para instalação da ordem.
O padrão bélico da segurança pública carioca estabelece um cenário
político que conjuga o conceito de estado de exceção analisado por Agamben,
com uma característica particular, qual seja, a política de segurança fundada no
extermínio sem qualquer tipo de decisão soberana anterior concedendo plenos
poderes, inclusive para violação de direitos fundamentais. No contexto carioca, é
a constituição material biopolítica que confere poderes para o exercício da
8 CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo, Companhia das Letras, 1990. p. 64. 9 DORNELLES, João Ricardo W. Conflito e segurança: entre pombos e falcões. Op. Cit.
p.161. 10 RIBEIRO, Camila; DIAS, Rafael; CARVALHO, Sandra. Discursos e práticas na construção de uma política de segurança: O caso do governo Sérgio Cabral Filho (2007-2008). In: Segurança, Tráfico e Milícias no Rio de Janeiro. (Org.) Justiça Global. Rio de Janeiro: 2008. p. 7.
91
violência institucional. Ou seja, é um estado de exceção sem a autorização da
constituição formal, não positivado. É um estado de exceção difuso, de fato e não
de direito. Dessa forma, a política de segurança vigente sob a exceção permanente
recai sobre a superioridade do nomos em relação a lei, do direito material sobre o
direito formal. A exceção, segundo Agamben é mais uma técnica de governo do
que uma medida excepcional propriamente dita, sendo conjuntamente, um
paradigma constitutivo da ordem jurídica.
O estado de exceção acionado pela metáfora de guerra as drogas divide a
cidade em áreas sob a jurisdição do Estado de Direito, e áreas urbanas do estado
de exceção – as favelas. A partir da polarização estigmatizante, os territórios das
favelas e seus moradores são historicamente criminalizados e abandonados pelo
Estado, o que remete ao conceito agambeniano de bando, como o excluído,
banido, “o bando é propriamente a força, simultaneamente atrativa e repulsiva,
que liga os dois polos da exceção soberana; a vida nua e o poder, o homo sacer e
o soberano”11.
A violência na instituição policial está presente de diversas formas. Nos
casos de mortes de civis em confronto com a polícia ou grupos de extermínio, os
agentes muitas vezes camuflam a natureza real dos homicídios, fato muito comum
principalmente em casos de autos de resistência; da mesma forma que os
investigadores não tomam as medidas necessárias para averiguar a verdade dos
fatos, os agentes distorcem ou não preservam as provas que seriam essenciais para
determinar a legitimidade da ação policial12. Essa situação impede a
responsabilização dos agentes e contribui para a manutenção das altas taxas de
letalidade policial, já que esses atos cometidos pelos agentes internos da polícia
ficam impunes. A questão do corporativismo na instituição policial é um legado
do regime militar que não conseguiu ser rompido, podendo ser percebido na falta
de independência na condução das investigações de um membro da corporação,
onde a imparcialidade e independência das investigações são totalmente
prejudicadas.
11 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 35. 12 Ver RAMOS Silvia; MUSUMECI Leonarda. Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Op. Cit.
92
O aumento da corrupção policial e o crescimento da criminalidade13 são
faces distintas da mesma moeda, que representa a ascensão de uma cultura menos
propensa a aceitar imposições de autoridades, se isto contrariar seus interesses.
Alguns estudiosos tentam explicar o “fracasso” no controle da criminalidade a
partir da corrupção policial e da impunidade. No entanto, essa linha não abrange o
ponto do descontrole do Estado, tanto da corrupção como da criminalidade, no
qual ambos têm a mesma raiz – a crise da autoridade. Esse fato, paradoxalmente,
provoca um aumento do encarceramento das classes ditas perigosas e um
incremento das práticas genocidas14.
As elevadas estatísticas de mortes15 do Rio de Janeiro transmitem a
situação de crise permanente que vive a segurança pública. Luiz Antonio
Machado da Silva analisa o conceito de criminalidade violenta e afirma que “a
criminalidade organizada é uma realidade social com lógica própria, até agora não
estudada, e que funciona com certa independência em relação a outros problemas
e fenômenos sociais, como a crise do Estado”16. A realidade é que vivemos sob a
metáfora da guerra já enraizada na mentalidade policial e o discurso de
emergência é empregado frequentemente para justificar ações extremas de
violência institucional. Reduzir o crime violento se tornou o objetivo maior e
legitimador de toda e qualquer prática. Paradoxalmente, ao invés de reduzir a
violência, as polícias acabam por incrementá-la com o uso ilegal da força letal. O
estado de exceção trabalhado por Agamben se mostra presente, ao serem
suspensos os direitos dos cidadãos para buscar o fetiche do controle da violência e
da criminalidade urbana.
O poder punitivo hoje só consegue atuar violando sistematicamente
direitos garantidos formalmente na carta constitucional, sob o discurso da
necessidade justificante da exceção. Aproximadamente ¾ dos presos estão
submetidos a medidas de contenção, eles estão sendo processados, mas ainda não
foram condenados, no entanto já se encontram presos como medida de controle. 13 YOUNG, Jock. A sociedade excludente. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 30. 14 ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada. Op. Cit. p. 111. 15 Nos últimos dez anos uma média aproximada de 1000 pessoas foram mortas no estado do Rio de Janeiro sob o discutível instituto dos autos de resistência. Fonte: ISP – Instituto de Segurança Pública. 16 MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. Criminalidade Violenta: por uma nova perspectiva de análise. In Dossiê Cidadania e Violência. Revista de Sociologia e Política nº 13: 115-124 Nov. 1999.
93
“Do ponto de vista formal, isso constitui uma inversão do sistema penal, porém,
segundo a realidade percebida e descrita pela criminologia, trata-se de um poder
punitivo que há muitas décadas preferiu operar mediante a prisão preventiva ou
por medida de contenção provisória transformada definitivamente em prática”17.
A presunção de periculosidade funciona como uma certeza absoluta no caso dos
indesejáveis. O sistema carcerário está falido, na medida em que não
“ressocializa” e não "reeduca"18 - seus objetivos institucionais e justificantes do
sistema. O que temos hoje são grandes depósitos humanos, onde se despejam
pessoas que cometeram pequenos delitos para conviverem lado a lado com
assassinos violentos e traficantes inescrupulosos. As condições degradantes a que
estão submetidos os presos transformam-nos em verdadeiras “feras feridas”.
Como afirma Marildo Menegat, o século XXI pode ser nomeado como a
“atualidade da barbárie”19. A democracia realmente deixa de ser efetiva, tornando-
se uma falsa aparência de governo, com a finalidade de legitimar as barbáries
cometidas nos regimes atuais. O paradigma da segurança funciona como um
instrumento discursivo para a generalização da exceção como técnica normal de
governo, a qual torna-se difusa e permanente. Nas palavras de Agamben,
“conforme uma tendência em ato em todas as democracias ocidentais, a
declaração do estado de exceção é progressivamente substituída por uma
generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica normal
de governo”20.
Um tratamento seletista direcionado ao inimigo afetará as garantias legais
de todos os cidadãos, no entanto sua suposta eficácia no combate a criminalidade
é ilusória. Mas quando se coloca que os direitos de todos os cidadãos serão
afetados, imediatamente é invocado o eficientismo penal, característico do Estado
autoritário e sua razão de estado, colocando a falsa opção entre eficácia e
garantias. Dessa forma, aumenta a discricionariedade investigadora das agencias
policiais, o que significa a tradução para o aumento das práticas de tortura e
17 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p. 70. 18 Sobre esse tema ver WACQUANT, Loic. Prisões da miséria. Tradução: André Telles. São Paulo: Jorge Zahar, 2001; Punir os Pobres – A Nova Gestão Penal da Miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003. 19 MENEGAT, Marildo. A atualidade da barbárie. Discursos sediciosos. Ano 2004. p. 145. 20 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. Cit. p. 27.
94
homicídios21. Isto por que, essa tática de contenção está destinada ao fracasso,
pois não reconhece que a exceção sempre invoca uma necessidade que não
conhece lei nem limites.
Vive-se hoje um novo tipo de autoritarismo. É uma espécie inserida nas
democracias ocidentais, o que Zaffaroni chama de autoritarismo cool: “é cool
porque não é assumido como uma convicção profunda, mas sim como uma moda,
à qual é preciso aderir para não ser estigmatizado como antiquado ou fora de lugar
e para não perder espaço publicitário”22. É um autoritarismo que se propaga com o
auxílio publicitário de apelo puramente emocional.
Segundo Massimo Pavarini, para entender o objeto da criminologia é
preciso entender a demanda por ordem. Essa ideia norteia qualquer entendimento
que se busca sobre uma política de segurança em determinado local e numa
determinada época. Nos dias atuais, o que se percebe como objetivo para
manutenção da ordem é a questão do território. Para Milton Santos, o território
seria “um conjunto de lugares e o espaço nacional como um conjunto de
localizações; temos que estar sempre mudando, não obstante o lugar fique o
mesmo, em vista do constante rearranjo de valores atribuídos a cada lugar e às
atividades presentes”23. E para falar de lugar é preciso tratar do conceito de
localização, entendido como um movimento do mundo apreendido em um ponto
geográfico. E por isso mesmo, está sempre mudando de significação devido o
movimento social.
É de se comentar o projeto do governo estadual das UPPs – Unidades de
Polícia Pacificadora – que sob o falso discurso de representar um projeto de
redução da violência, na realidade consiste na ocupação territorial sob os moldes
militares demarcando espacialmente as zonas de interesse do estado. As UPPs se
estendem hoje por 17 favelas da cidade, o que envolve cerca de 280 mil pessoas24.
A crítica que se faz é que a UPP não consiste em um projeto de segurança pública,
mas sim um projeto de cidade. Para perceber isso basta olhar para o mapa das
21 HUMAN RIGHTS WATCH. Força Letal – Violência Policial e Segurança Pública no Rio de Janeiro e em São Paulo, 2009. 22 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p. 69. 23 SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. São Paulo: Nobel, 1996, p.121. 24 Fonte: ISP – Instituto de Segurança Pública. Disponível em: www.isp.rj.gov.br.
95
UPPs instaladas e analisar suas localizações. A lógica é clara, corresponde a
região hoteleira da Zona Sul da cidade, o entorno do Maracanã, o “Porto
Maravilha” e a Cidade de Deus.
Vale destacar que polícia pacificadora é diferente de polícia comunitária.
Isto porque, a UPP não contempla a participação popular nem na formulação nem
no controle das políticas de segurança. O comando da UPP cumpre a função de
síndico ou gerente da favela. A política dessas unidades reforça as relações sociais
de segregação e estigma, de desigualdade e repressão, sacramentando a favela
como um “território a ser neutralizado pela polícia”. O discurso de implantação
das UPPs, com o maciço apoio das grandes mídias produziu um macabro
consenso político sobre a ocupação militar das favelas pela sofisticação do
discurso da guerra às drogas, uma vez que a UPP não resolve o problema do
crime, mas sim, dos conflitos armados em trechos estratégicos da metrópole, que
é a única preocupação dos interesses hegemônicos. Para tanto, basta a produção
de “cinturões de segurança” para viabilizar a gestão dos riscos produzidos pela
pobreza vizinha.
Ao mesmo tempo, a UPP funciona como bandeira eleitoral de “pacificação
da cidade”. Só que esta ocupação não tem sido tão pacífica assim, haja vista
alguns casos em destaque na grande mídia como a ocupação do Chapéu
Mangueira, Babilônia, Pavão Pavãozinho e Cantagalo onde foi necessário o
confronto com uso de violência e armas de fogo entre policiais e moradores para a
implementação da “pacificação”. Estratégia essa, pra dizer o mínimo,
contraditória. A população apavorada, induzida pelos jornalões televisivos,
embarca na onda punitiva e apóia todo e qualquer tipo de atrocidade que se
cometa em nome da volta a "normalidade". Desde que essas atrocidades não
sejam cometidas contra os "seus" e nem aconteçam em seu território.
“É claro que tudo isso nos evoca a idéia de ocupação de um território em que o capitalismo estabeleceu um espaço criminalizado, dominado pela lógica brutalizante das commodities ilícitas, mas muito rentáveis. Regular coexistências nos territórios da desigualdades não é também uma tarefa fácil, num mundo que já nem deseja transformar-se, já deixou para trás uma utopia de escola aonde os jovens possam desfrutar de suas potências, ou de uma sociabilidade prazerosa entre diferentes na construção de redes coletivas de apoio e cuidado. É porque antes da ocupação territorial já se tinham ocupado as almas”25.
25 BATISTA, Vera Malaguti. O Alemão é muito mais complexo. Op. Cit.
96
A estratégia das UPPs investiu mais uma vez na pacificação por meio da
paz armada. Ou seja, mais uma vez a estratégia do controle da criminalidade por
meio da repressão. A pacificação diminuiu o contingente de armas pesadas nas
mãos do tráfico, mas aumentou na mão da polícia. E a classe média que ingressou
na luta armada contra a administração militar no passado, hoje apoia os projetos
belicosos. Segundo Patrícia Birmam “o que o governador destaca é
essencialmente uma proposta de tratamento epidemiológico da população
favelada, que é coerente com o atributo através do qual ele a identifica: ‘uma
fábrica de marginais’”26.
Outra estratégia em curso de segregação territorial é a construção de muros
na cidade sob a justificativa de se estabelecer “ecolimites”27. Em 2009 o
governador Sergio Cabral anunciou o projeto, consistindo no levantamento de
14,6km de barreiras de concreto no entorno de 13 favelas que “estariam
avançando sobre áreas da Mata Atlântica” gerando um “problema ecológico”.
Das 13 favelas que compõem a lista do governo, 11 ficam em áreas nobres da
Zona Sul da cidade: Pavão-Pavãozinho, Ladeira dos Tabajaras, Chapéu
Mangueira, Rocinha, Babilônia, Cantagalo, Morro dos Cabritos, Vidigal, Parque
da Cidade, Benjamim Constant e Santa Marta. Assim como, em outubro de 2009,
foi noticiado oficialmente que barreiras acústicas e de proteção começariam a ser
construídas nas linhas Amarela e Vermelha28. Os módulos do muro, que impedem
a visualização das favelas do entorno, são estampados com pinturas de ícones
turísticos da cidade, como o Pão de Açúcar e o Corcovado, para o desfrute
daqueles que transitam de carro em alta velocidade. O “problema do barulho” foi
o que legitimou o anúncio oficial dos muros nas vias expressas que conectam o
aeroporto internacional aos corredores turísticos do mercado carioca, com o único
e real intuito de tornar a vista mais “limpinha” para os que saem do aeroporto em
direção à Barra e Zona Sul. 26 BIRMAM, Patrícia. Favela é comunidade? In: Machado da Silva, Luís Antônio (org.) Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FAPERJ/ Nova Fronteira, 2008. p. 99-114. 27 RELATÓRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA A ANISTIA INTERNACIONAL. Os Muros nas Favelas e o Processo de Criminalização. Rio de Janeiro, 2009, p. 06. Maio de 2009. Disponível em: http://global.org.br/programas/os-muros-nas-favelas-e-os-processos-de-criminalizacao. (Acesso em: 03/02/2013) 28 Fonte: O GLOBO, (11/10/2009). Disponível em: www.oglobo.com.br
97
O dispositivo mais simbólico do atual modelo de segurança fluminense
pode ser encontrado nas garagens das polícias do Rio de Janeiro. A militarização é
também sentida pelo enorme gasto financeiro com a compra de todo um aparato
repressivo no modelo de guerra, para as operações policiais cotidianas, como a
compra de vários tanques blindados, chamados de “caveirão” e de helicóptero
blindado, apelidado de “caveirão do ar”29. Esse aparato militar promove
verdadeiras práticas de extermínio nas favelas cariocas, pois favorecem o total
anonimato dos policiais. Fato este que tornou extremamente difícil responsabilizar
os agentes em caso de violência e morte. “A luta contra a violência e os abusos de
uma polícia historicamente conhecida por sua arbitrariedade contra as camadas
economicamente e socialmente desfavorecidas, fica ainda mais difícil quando as
vítimas e as testemunhas não conseguem reconhecer os policiais que cometem
violações de direitos humanos”30. Apesar da posição oficial ser no sentido de
emprego do “Caveirão” apenas em momentos “especiais” e “de exceção”, na
prática, o que ocorre é um uso cada vez mais incisivo, regular e cotidiano31, sendo
justificado pelo discurso do estado de exceção permanente proporcionado pela
política de guerra contra o tráfico.
Outro fator determinante na política carioca é a atuação de grupos
paramilitares – as milícias – nas periferias urbanas e na baixada Fluminense. O
fenômeno das milícias é uma questão delicada pois quando elas surgiram, existia
uma benevolência sobre o assunto por parte do poder público. Elas não eram
incentivadas, mas eram conhecidas pelas autoridades públicas e aceitas como uma
alternativa de controle ao tráfico de drogas em determinadas comunidades32. As
milícias constituem grupos armados, seus membros são agentes públicos, das
forças policiais, agentes penitenciários e bombeiros, que afirmam seu poder
alegando ser representantes da lei. Eles introjetam a figura do xerife nas
29 Ver ANISTIA INTERNACIONAL. Entre o Ônibus em Chamas e o Caveirão: em busca da segurança cidadã. Relatório Rio 2007. 30 RELATÓRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA O RELATOR ESPECIAL DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EXECUÇÕES SUMÁRIAS, ARBITRÁRIAS E EXTRAJUDICIAIS. Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: http://www.iddh.org.br. (Acesso em 06/11/2012) 31 Ver ANISTIA INTERNACIONAL. Entre o Ônibus em Chamas e o Caveirão: em busca da segurança cidadã. Relatório Rio 2007. 32 O ex-prefeito César Maia declarou que essas organizações eram “autodefesas comunitárias”. Assim como o atual prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes declarou ao RJTV em 2006 “Jacarepaguá é um bairro em que a tal da polícia mineira, formada por policiais, trouxe tranquilidade para a população. O morro do São José Operário era um dos morros mais violentos desse estado, e agora é um dos lugares mais tranquilos”.
98
comunidades, mesmo controlando e extorquindo os moradores das áreas
dominadas, nos diversos serviços prestados na comunidade como luz, gás,
transporte público alternativo, eles se apresentam como integrantes do Estado33.
As milícias também se diferenciam dos grupos de extermínio, muito comuns na
Baixada Fluminense, na medida em que esse último grupo mantém relação com a
política na questão da venda de segurança local. De acordo com o sociólogo
Ignacio Cano, as características das milícias são:
“o controle de um território e da população que nela habita por parte de um grupo armado irregular; o caráter em alguma medida coativo desse controle dos moradores do território; o ânimo de lucro individual como motivação principal dos integrantes desses grupos; um discurso de legitimação referido à proteção dos habitantes e à instauração de uma ordem que, como toda ordem, garante certos direitos e exclui outros, mas permite gerar regras e expectativas de normatização da conduta; a participação ativa e reconhecida de agentes do estado como integrantes dos grupos”34.
Em dezembro de 2008, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)
concluiu o relatório em que apurou que centenas de membros de milícias no Rio
de Janeiro controlam um número significativo de comunidades, chegando à cifra
de 171 bairros no estado do Rio de Janeiro35.
Ausente o Estado das suas funções de controle territorial e garantia dos
direitos individuais, as favelas ficam mais vulneráveis aos grupos armados com
maior poder de fogo, no caso a milícia, que se apresenta como força menos
tirânica e menos perversa que o tráfico. O discurso de legitimação da milícia
não pode se apresentar simplesmente como um grupo de crime organizado, que
lucra à custa da comunidade, ela precisa se apresentar como uma alternativa a
algo pior, por exemplo, a tirania e o crime36. Ou seja, a milícia se legitima pelo
seu oposto, pelo seu inimigo encarnado no tráfico, objeto de uma estigmatização
total até representar quase a figura do mal absoluto. Mesmo que eles possam ser
33 Os grupos de extermínio nascem como estratégia de alguns segmentos da sociedade para abolir grupos sociais ou políticos indesejados. Faz parte de uma cultura arraigada à sociedade brasileira, que tem se utilizado de grupos de extermínio para promover a chamada limpeza social. Eles atuam normalmente em zonas pobres e periféricas. 34 CANO, Ignacio. Seis por meia dúzia? In: Segurança, Tráfico e Milícias no Rio de Janeiro.(Org.) Justiça Global. Rio de Janeiro: 2008. p. 59. 35 ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito Destinada a investigar a Ação de Milícias no Âmbito do Estado do Rio de Janeiro. Aprovado em 16 de dezembro de 2008. p. 220-228. 36 ALVES, José Claudio Souza. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. Duque de Caxias-RJ: APPH, CLIO, 2003.
99
definidos como integrantes de uma rede de crime organizado, eles “são o estado”
nas favelas e, portanto, os teóricos inimigos naturais da criminalidade.
“As leis estabelecidas em lugares onde o Estado – que deveria determinar as regras cotidianas das pessoas que ali vivem – se mostra ausente não são as que estão na Constituição ou que são votadas na Assembléia Legislativa. O “tribunal” que julga os conflitos ocorridos nesses espaços urbanos nada tem a ver com o Judiciário. Na mesma lógica, a presença de grupos armados ilegais faz com que o uso da força deixe de ser exclusividade do poder público. Isso vale tanto para as áreas dominadas pelas milícias quanto para aquelas em que facções criminosas controlam o varejo das drogas ilícitas. O mais grave é que esse complexo domínio de território envolve a vida de aproximadamente um terço da população da cidade do Rio de Janeiro, que fica muitas vezes sem ter a quem recorrer”37.
Não se pode contar com a proteção do Estado se os próprios funcionários
encarregados de fazer cumprir a lei são os que a desrespeitam. Na verdade, o
abandono por parte do estado começou muito antes, mas o fato de que os agentes
públicos sejam agora os titulares do poder em certas localidades inviabiliza ainda
mais qualquer recurso formal.
O ponto chave da atuação das milícias é reconhecer que esses grupos não
são um tipo de estado paralelo, mas sim a atuação do próprio Estado por meios
anômalos. Segundo Marcelo Freixo, trata-se de um “Estado Leiloado”38, que
atende a interesses particulares. A sua dinâmica de funcionamento evidencia uma
confusão entre o público e o privado no aparato coercitivo. Ela é um indício
concreto não só do estado de exceção permanente dentro do estado democrático
de direito como também a sua expansão39. Os grupos milicianos são responsáveis
por várias execuções extrajudiciais, assim como outros crimes, como a tortura,
corrupção e extorsão.
A questão das milícias é importante para discutir a relação entre Estado,
governabilidade, território e soberania, a fim de redefinir a concepção política de
segurança pública. A polícia não disputa com as milícias os territórios controlados
37 FREIXO, Marcelo. Combater as milícias, uma questão de soberania. Fonte: www.diplomatique.uol.com.br. Versão eletrônica do jornal Le Monde Diplomatique. 38 FREIXO, Marcelo. Combater as milícias, uma questão de soberania. Op. Cit. 39 Em agosto de 2011, a juíza Patrícia Acioli foi atingida por vinte e um tiros em frente a sua casa no município de Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro. A magistrada vinha recebendo ameaças de morte devido a sua postura inflexível diante das milícias e da criminalidade policial. Dez policiais e o comandante do batalhão de São Gonçalo foram presos e acusados de envolvimento no assassinato. Ver ANISTIA INTERNACIONAL. Informe 2012: segurança pública. Fonte: www.amnesty.org.
100
por ela. Esse ponto é revelador da metáfora da guerra contra o inimigo. Com
efeito, a guerra deve ser travada contra um inimigo claramente definido,
encarnado na figura do narcotraficante. Segundo um alto oficial da Polícia Militar
do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) numa reunião privada em 2007, “não
adianta enviar os policiais para as áreas de milícia porque a milícia não vai
confrontar, vai se retirar e esperar a gente sair”40. Esse cenário leva a concluir que,
aparentemente, quando não há confronto, a polícia não encontra um papel para
fazer dentro desta política de segurança pública dramaticamente militarizada.
Uma vez sumido ou, melhor dito, descaracterizado o inimigo, a guerra não parece
ter mais objeto.
É claro que esta situação não se aplica nas áreas em que o tráfico é forte e
ameaça retomar os territórios perdidos, mas em muitos outros locais a chegada da
milícia implica uma certa pacificação decorrente do fim das incursões policiais. É
uma dinâmica tautológica. Os policiais ocupam as favelas e garantem o fim das
suas próprias incursões. Considerando que as incursões são provavelmente o
momento que gera mais insegurança nos moradores dessas áreas, não há dúvida
de existir um aspecto positivo da ocupação das milícias, mesmo que seja com uma
lógica invertida. A realidade de sua atuação traduz a ambigüidade do seu papel, a
promiscuidade extrema entre o público e o privado. O miliciano é uma autoridade
pública, mas atua à revelia da lei. Ele representa o Estado naquela localidade, mas
ao mesmo tempo o trai, pois tira proveito da sua condição pública para extrair
lucros privados.
É de se ressaltar nesse ponto do trabalho que a classificação como estado
de exceção é meramente descritiva, haja vista que a exceção não é determinada
sob critérios objetivos pelo direito. Normalmente ela é encontrada quando a
aspiração do Estado é norteada por estratégias violentas de controle, com o
objetivo de manter a estrutura social de desigualdade. Para manutenção dos
interesses hegemônicos, o poder soberano não encontra limites, nem que seja
necessário reduzir a vida de seus cidadãos a mera vida nua. Por isso, ao longo da
40 No entanto, contraditoriamente, “a informação de que existe tráfico de drogas em algumas áreas de milícias é tão relevante, pois tira a última máscara que separa a milícia do seu inimigo formal, o último álibi na sua pretensão de legitimidade. Qual será a diferença entre o tráfico e uma milícia que trafica?” CANO, Ignacio. Execuções sumárias no Brasil: o uso da força pelos agentes do Estado. Revista Justiça Global, setembro de 2003. p. 69-70.
101
história brasileira, com suas rupturas e permanências, a exceção constitui uma
presença contínua, se mostrando inclusive como um aspecto constitutivo.
3.2
A letalidade da ação policial
“Em todos os casos ecoa a tragédia fundadora de Canudos. Em todos os casos a vida nua da população pobre brasileira é exposta com crueza pornográfica. O
que mais nos estarrece é o eterno retorno da barbárie. O trauma provocado pelo genocídio não gera anticorpos, não permite ao corpo social criar defesas que
impediriam uma nova tragédia.” (Guilherme Preger)
Canudos ainda está presente. Só muda o crime, mas a estética é a mesma.
A trajetória das ideologias de controle social no Brasil evidencia nitidamente as
estratégias de dominação das classes hegemônicas, em que o estado policial e o
direito penal são utilizados como instrumentos de gestão da pobreza e manutenção
das relações de poder dominantes, forjadas por meio da naturalização da
desigualdade. A formação política brasileira aponta desde a sua formação
colonial, fenômenos políticos de humilhação social e estigmatização de
determinados segmentos, espelhados na produção da figura do inimigo e na
criação de medos coletivos. A violência endêmica se firmou no imaginário social
das classes dominantes como única forma possível, capaz de viabilizar o modelo
segregacionista. Pois como afirma Darcy Ribeiro, “todo ciclo econômico é um
moinho de gastar gente”41. Os instrumentos de submissão forçada empregados
para a população indígena, posteriormente para os negros africanos submetidos a
escravidão, incorporaram-se aos métodos de controle social formal. De acordo
com Nilo Batista, o extermínio é o grande signo de abertura do processo histórico
brasileiro, estando a violência impregnada desde o projeto colonizador, seja por
meio do assasínio direto ou não42.
41 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 106-141. 42 Sobre a formação do sistema jurídico brasileiro e sua intrínseca relação com a violência desde o início do projeto colonizador, ver BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro I. Rio de Janeiro: ICC, 2000.
102
Pesquisa feita pela UNESCO demonstrou que entre 1979 e 2003 mais de
550 mil pessoas morreram no Brasil vítimas de disparos de algum tipo de arma de
fogo. Desse total 44,1% foram jovens na faixa entre 15 a 24 anos. Nesse período
destacado, os homicídios com armas de fogo cresceram 542,7%43. Adorno já
tratava dessa barbárie institucional quando afirmou que “a civilização devora seus
filhos”44. A ideologia e as estratégias de controle penal na realidade
contemporânea assumem características dramáticas, reproduzindo o eterno retorno
dos dispositivos racistas, excludentes e letais. O fato da experiência democrática
brasileira ser recente não permitiu a formação de instituições com força política
para conter a ânsia repressora da explosão de conflitos diante da complexidade
das relações sociais. Dessa forma, essas instituições não conseguiram até hoje
romper com um longo passado de invisibilidade pública e humilhação social,
decorrentes da desigualdade naturalizada.
“As amplas demandas de justiça material, historicamente reprimidas e escamoteadas pelos sucessivos regimes ditatoriais, exacerbaram os conflitos e choques em virtude do aumento da complexidade da luta de classes na sociedade brasileira atual. Inegavelmente, o processo de reabertura política conduziu a uma explosão de litigiosidade decorrente do fenômeno da radicalização ideológica, que, permitindo os espaços para a (re)legitimação da ordem política, acabou por desaguar no déficit de legitimidade das instituições, em face da incapacidade dos governos gerirem democraticamente a estabilização econômica e a necessária e sempre adiada reforma social”45.
Nesse contexto, segmentos sociais menos abastados vivem num estado de
guerra perpétua, ficando à mercê da violência institucional e simbólica, mantendo-
os vinculados ao sistema jurídico por meio das sanções normalizadoras e alijando-
os das garantias constitucionais. Assim, um verdadeiro estado de natureza
hobbesiano se instala, suprimindo gradativamente as conquistas de um direito
penal liberal.
Por isso diz-se que o homo sacer está presente no atual contexto político,
pois vive-se um estado de exceção permanente. E a decisão da excepcionalidade
parece não inquietar as classes dominantes, pois ela é acionada exatamente para
43 Ver: UNESCO. A crise oculta: conflitos armados e educação. Relatório Conciso, 2011. Disponível em: www.unesco.org. 44 ZAMORA, José Antonio. Th. W. Adorno: pensar contra a barbárie. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2008. p. 61. 45 CARVALHO, Thiago Fabres de. O “direito penal do inimigo” e o “direito penal do homo sacer da Baixada”: exclusão e vitimação no campo penal brasileiro. Disponível em: http://www.ihj.org.br/pdfs/Artigo_Thiago_Fabres.pdf. (Acesso em 13/01/2013).
103
manter o seu status quo. A preocupação com a violência institucional das agencias
punitivas apenas afetou a classe média quando esta se viu perseguida pela ditadura
militar, sendo vitima de tortura, perseguição, mortes e desaparecimento. Após a
abertura política, muitos dos antigos militantes políticos de esquerda viraram
reprodutores do discurso “lei e ordem”, já que agora as autoridades punitivas
voltam-se para os mesmos perseguidos de sempre na história, os segmentos
marginalizados – antes escravos, hoje a juventude negra e pobre das periferias
urbanas, “porque para pobre pode”46. A vida do homo sacer aparece como o
objeto principal da violência soberana. A violência cotidiana das incursões
policiais nas favelas e o genocídio aberto promovido pela racionalidade do
sistema penal dão o tom das estratégias de segurança, caracterizadas por uma
enorme carga de racismo e estigmatização, impregnados no imaginário social e na
truculência das ações policiais de extermínio.
Quando o terrorismo de Estado torna-se a política oficial, o espectro do
homo sacer emerge de forma pungente, de tão visível que se torna a relação com a
população pobre. A vida nua aparece na sua forma mais descontrolada, uma vida
abandonada à própria sorte, na sua condição de insacrificável e escancaradamente
matável.
A cultura do extermínio vem se afirmando como o contraponto dos
direitos humanos e a tendência contemporânea47. Os movimentos de luta pela
dignidade, sintetizados na construção gradual dos direitos fundamentais,
expressam uma relação íntima entre direito e violência, diante da imposição dos
poderes violadores dessa mesma dignidade. E se a vida humana sempre consistiu
na base do poder, cabe se questionar o limite de intervenção do poder sobre a
administração dos corpos dos homens. Sobre esses questionamentos e diante da
política contemporânea de poder ilimitado sobre os corpos de forma legítima,
Agamben propõe que “a implicação da vida nua na esfera política constitui o
núcleo originário – ainda que encoberto – do poder soberano”48, no sentido de
constatar que colocando a vida biológica como fator principal nos cálculos de
46 YUKA, Marcelo. Não acredito em paz armada. Entrevista a Caros Amigos, janeiro de 2013. 47 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 230. 48 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 14.
104
poder, o Estado somente retira o véu que encobre o vínculo secreto entre o poder e
a vida nua.
O homo sacer vive continuamente o signo da ambivalência entre vida nua
e existência política, exclusão e inclusão. O vínculo oculto que une o homo sacer
ao poder soberano - a dimensão política - significa justamente ingressar na vida
politicamente qualificada por meio do direito de vida e morte sobre ele próprio.
Sendo o soberano aquele que decide a exceção, ele pode ao suspender a lei, inserir
a vida nua como o referente da decisão soberana. Isto por que, “a sacralidade da
vida, que se desejaria hoje fazer valer como um direito humano em todos os
sentidos fundamental, exprime, ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição
da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de
abandono”49. Assim, o soberano decide sobre a inclusão e exclusão de um
indivíduo na comunidade.
Acredito que em termos contemporâneos, o homo sacer é o indivíduo que
não é definido pelas leis positivas nem detentor dos direitos fundamentais. Ele não
encontra amparo nem no direito posto nem no direito pressuposto, evidenciando
sua situação de dupla exclusão, seu total abandono, exatamente proporcional a
capacidade do soberano de violar sistematicamente a vida (nua) dos indivíduos.
Ele pode a qualquer momento instalar a exceção, matar sem cometer homicídio.
O homo sacer é o arquétipo do homem contemporâneo: cada vez mais
privado da lei positiva quanto da eficácia das garantias fundamentais, o indivíduo
se vê na condição de ser matável e insacrificável. No cenário atual de emergência,
a vida digna colide com as medidas de exceção e urgência, tornando-se vidas
descartáveis.
A igualdade e a dignidade humana são as fontes simbólicas com força
balizadora da dimensão insacrificável do homo sacer, que ao mesmo tempo
encontra-se assujeitado ao poder soberano de suspender a lei e violar justamente
esses valores. Exatamente por isso, são esses valores que demarcam o ponto
limítrofe de suspensão da lei, vale dizer, de radicalização do estado de exceção,
fornecendo ao mesmo tempo uma aparência de sacralidade da vida.
49 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 85.
105
“No mundo contemporâneo, porém, a biopolítica se caracteriza essencialmente como cultura do genocídio e do extermínio. Enquanto objeto do poder soberano, os valores da igualdade e da dignidade humana parecem refugar diante do altar da cultura do individualismo possessivo, em virtude do acionamento global de estratégias perversas de poder, impulsionadas pela lógica da expansão dos mercados e por padrões de superioridade racistas, étnicos, culturais e ideológicos. Para os ditames do capitalismo globalizado, é como se a reprodução de um modo de vida, tal qual imposto pela cultura hegemônica do individualismo, da competição e da guerra, exigisse, como contrapartida necessária, o extermínio daquelas outras vidas que pervertem, sincretizam e hibridizam esse modelo puro e axiologicamente incólume de existência”50.
De acordo com Agamben, as políticas do biopoder pretendem reger a
natureza humana de acordo com suas prescrições, sua definição de realidade
social e vida digna, desenvolvendo para isso um discurso de legitimação dos
mecanismos de vitimação de contingentes populacionais. O paradigma do campo
surge como a face embrutecida da realidade contemporânea de extermínio em
massa e estagnação das saídas democráticas. O mercado excludente de reprodução
do capital expõe os indivíduos a competição desenfreada e à crise das relações
humanas, empurrando enormes fileiras populacionais para o subemprego, numa
sociedade que já os considera supérfluos. Novos tipos de delinquência surgem da
nova configuração político-econômica, o que aumenta uma forte sensação de
insegurança. Como contraponto para contenção do tecido social, a repressão se
apresenta como saída imediata. E como já exposto, são exatamente os fracassos da
democracia que justificam o uso da força como única alternativa viável para
gestão dos conflitos. As demandas por regulação e segurança dos setores
excluídos do consumo e do acesso aos bens, conduzem a reafirmação do estado de
exceção como paradigma político. Assim, a teia jurídica, buscando a manutenção
da ordem, e buscando convencê-la como permanente e necessária, sedimenta-se
na lógica da excepcionalidade e terror da ação policial.
A biopolítica se transmuta em tanatopolítica no momento em que a relação
da lei com a vida deixa de ser a regulação e se transforma num controle maior, na
captura dos corpos sob a ordem do estado de exceção, dotado da capacidade de
decidir o instante e qual a vida que deixa de ser politicamente relevante. Para a
legitimação dessa execução, se faz necessário processos de vitimação, que
50 CARVALHO, Thiago Fabres de. O “direito penal do inimigo” e o “direito penal do homo sacer da Baixada”: exclusão e vitimação no campo penal brasileiro. Disponível em: http://www.ihj.org.br/pdfs/Artigo_Thiago_Fabres.pdf. (Acesso em 13/01/2013)
106
consistem na suspensão de direitos sob uma hierarquia biopolítica discriminatória.
A ótica reaparece nesse momento, hierarquizando quais os sujeitos são morais e
portadores de direitos, e quais os outros têm a sua qualidade moral degradada e
portanto podem ter seus direitos suspensos, pois são considerados perigosos. Isto
posto, torna-se legítimo, política e juridicamente, o extermínio de enormes
contingentes populacionais.
Num mundo de incertezas e conceitos éticos imprecisos, é fácil a
instalação da barbárie civilizada51, pois conduz ao individualismo e a
invisibilidade coletiva. O sujeito se coisifica e se dilui numa ideia perene de
invisibilidade. No momento em que se legitima o caráter residual de segmentos
sociais inteiros, torna-se possível executar o extermínio em massa, devido a perda
de seu valor de uso.
A barbárie civilizada atua na pacificação das consciências e possui um
argumento ao mesmo tempo simples e cruel: quem não é sujeito moral não é
humano; eliminar quem não é humano e, portanto não possui direitos está
moralmente justificado se com isso se recompõe a ordem social. Paga-se o preço
da restituição da ordem social com inúmeras vidas humanas e o esfacelamento do
Estado de Direito. As vidas descartáveis alimentam a falsa imagem construída de
uma comunidade materialmente democrática, na qual o homo sacer paga o preço
da violência institucionalizada. Por meio da dinâmica da exceção e da ação
policial inescrupulosa, o poder soberano elimina as vidas supérfluas. Trata-se na
realidade de um aparato concreto e ideológico com objetivo preciso de legitimar a
segregação e a eliminação dos dejetos humanos.
A seletividade punitiva, que se manifesta por meio dos processos de
criminalização primária e secundária evidencia a operacionalidade real do sistema
penal. “A doutrina atual costuma passar por cima do dado da seletividade, que é
muito significativo, pois se trata da característica estrutural mais vulnerável à 51 Para Thiago Fabres de Carvalho, a barbárie civilizada seria a barbárie tipicamente moderna, e estaria associada ao caráter formal e abstrato da racionalidade jurídica moderna, na medida em que considera a vida humana somente uma variável política. A vitimação ocorre sob diversos procedimentos, como a ruptura do nexo entre ação violenta e seus efeitos com a quebra da distância física entre os sujeitos envolvidos; a exigência de higienização social; a ausência de responsabilização moral; e a invisibilidade das vítimas. CARVALHO, Thiago Fabres de. O “direito penal do inimigo” e o “direito penal do homo sacer da Baixada”: exclusão e vitimação no campo penal brasileiro. Disponível em: http://www.ihj.org.br/pdfs/Artigo_Thiago_Fabres.pdf. (Acesso em 13/01/2013).
107
crítica política e social do poder punitivo”52. Como já visto anteriormente no
primeiro capítulo, de acordo com Baratta, o discurso do direito penal é construído
em cima do princípio da igualdade. No entanto esse fundamento é uma
problemática concreta, haja vista a constatação de que a igualdade na aplicação da
lei penal só ocorre no âmbito formal, sendo a regra no direito penal,
contrariamente, a desigualdade substancial. No entanto, o poder punitivo não se
realiza somente no sistema legal, para se punir alguém é suficiente somente a
utilização de força. Por isso, fica claro que é possível a imposição de penas fora
do sistema legal, como no caso da pena ilícita, na qual muitos casos podem
assumir a feição de verdadeiros genocídios.
À margem da legalidade, o sistema penal legitima um poder que restringe
direitos e garantias individuais sob o manto do exercício do poder de polícia. O
sistema penal chancela o controle social sobre as populações pobres. Na
contemporaneidade, ser pobre é sinônimo de ser perigoso e criminoso em
potencial. Dessa forma, o sistema punitivo se concretiza por meio do poder de
polícia nas periferias urbanas53.
A exclusão de uma grande parte da população do mercado de consumo,
fez surgir o que Zygmunt Bauman chamou de “consumidores falhos”54 - que são
os excluídos como trabalhadores e estimulados como consumidores - formando a
nova clientela do sistema penal. “Dispositivos criados para a gestão daqueles que
sobram, consomem pouco e sujam muito. Numa realidade que prima pela
assepsia, controlar os inimigos internos da ditadura do mercado neoliberal de
controle globalizado se faz por biopolíticas”55. Sistema esse que “pretende
remediar com um mais Estado policial e penitenciário o menos Estado econômico
e social que é a própria causa da escalada generalizada de insegurança objetiva e
subjetiva em todos os países”56. A insegurança objetiva é sentida pelo aumento da
criminalidade que não consegue ser controlada pelo aparato policial. No que tange
52 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p. 88. 53 ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 129. 54 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.49. 55 NASCIMENTO, Maria Livia. e RODRIGUES, Rafael Coelho. A convergência social/penal na produção e gestão da insegurança social. In: BATISTA, Vera (Org.) Loic Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro, Revan: 2012. p. 201-202. 56 WACQUANT, Loïc. Prisões da miséria. Op. Cit. p.7.
108
a insegurança subjetiva, criam-se espaços que devem ser evitados, por meio da
delimitação de zonas proibidas e permitidas.
“Cada vez mais ser pobre é encarado como um crime; empobrecer, como o
produto de predisposições ou intenções criminosas – abuso de álcool, jogos de
azar, drogas, vadiagem e vagabundagem”57. O clamor pelo incremento do poder
punitivo como solução para reorganizar o caos é cada vez maior58, assim, surge o
traficante do imaginário social. Um sujeito sem nenhum limite moral, cujo único
objetivo é o lucro infinito as custas da desgraça alheia, que age de forma violenta
e bárbara. Ele é a encarnação perfeita do sujeito perigoso e sua eliminação se
justifica não só como um direito, mas muitas vezes como uma necessidade diante
da sua natureza de “fera”.
“Na prática, a guerra contra as drogas abriu caminho para a guerra contra as pessoas tidas como menos úteis e potencialmente mais perigosas da população, aquelas que Spitzer chama de lixo social, mas que na verdade são vistas como mais perigosas que o lixo. Elas mostram que nem tudo está como devia no tecido social, e ao mesmo tempo são uma fonte potencial de perturbação. Na terminologia de Spitzer, elas se tornam ao mesmo tempo lixo e dinamite”59.
Associando a imagem do traficante a um ser violento e cruel, o discurso
moral passa a exercer um papel relevante no sistema punitivo. Enquanto a imensa
maioria de traficantes desarmados e não violentos são mortos ou encarcerados, os
veículos de comunicação justificam ações violentas extremamente repressivas por
meio do chamado combate a violência. Cria-se na verdade uma presunção de
violência, sem amparo legal, para as figuras que se encaixam no estereótipo60 do
suspeito.
57 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas.Op. Cit. p.59. 58 Essa tese é confirmada em pesquisa realizada por Orlando Zaccone sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro e seus agentes, a realidade penitenciária confirma que “a miséria talvez seja a única característica que identifica os 1.467 presos na cidade do Rio de Janeiro, pelo tráfico de drogas ilícitas, em 2003. A cifra inclui 120 mulheres e 1.347 homens presos em flagrante no tráfico de drogas pelas delegacias da capital. Dos 313 adolescentes e crianças infratores e 1.154 adultos, somente duas possuíam curso superior completo e 210 tinham emprego.” ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada. Op. Cit. p. 124-25. 59 CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p.117. 60 Zaccone, ao estudar o estereótipo do traficante de drogas nas favelas do Rio de Janeiro, afirma que o termo estigma é uma relação entre atributo e estereótipo, de forma a necessitar de uma linguagem de relações, “embora o termo estigma seja usado em relação a um atributo profundamente depreciativo, ele é na realidade um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo. Assim, para definir um estigma, é preciso uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem; portanto, ele não é em si mesmo nem honroso nem desonroso. O estigmatizado, segundo Gofman, é um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social quotidiana, mas possui um
109
Como afirma Zaffaroni, “a reação que suscita a presença descarnada do
inimigo da sociedade no direito penal é de caráter político, porque a questão que
se coloca é – e sempre foi – dessa natureza”61. Isso fica claro ao se constatar que
as guerras são declaradas de forma unilateral, assim como, o poder hegemônico
sempre fabricou inimigos e emergências para justificar suas intervenções, e com o
consequente estado de exceção. A excepcionalidade justifica a coisificação dos
indivíduos perigosos, na medida em que a anulação da sua condição de pessoa é
decorrente da razão que essa privação ocorre. Isto é, quando um sujeito é privado
de seus direitos simplesmente por ser considerado perigoso. E no entanto, o grau
de periculosidade do suposto inimigo depende do juízo subjetivo do
individualizador, exercido por quem detém o poder. Consequentemente, a
priorização da segurança como certeza sobre a conduta futura de alguém e sua
absolutização provoca a despersonalização de toda a sociedade.
Sobre a forma como a mídia exerce o seu poder de influência, é
interessante destacar aquilo que Silvia Moretzsohn denominou como “recriação
do caos”:
“Jornais, já se disse, são uma forma de mapear o mundo. Um mapeamento muito particular, porém: trabalho ativo de produção de sentido, resultante da interação dos elementos verbais e não-verbais no espaço da página e nas edições de rádio e TV. Como diz Todd Gilin, “os enquadramentos dos media, que em grande parte são tácitos e não admitidos, organizam o mundo tanto para os jornalistas que o descrevem como, num grau muito importante, para nós que confiamos nas suas descrições. Os enquadramentos de media são padrões persistentes de cognição, de interpretação e de apresentação, de seleção, de ênfase e de exclusão, através dos quais os manipuladores de símbolos organizam habitualmente o discurso, seja ele visual ou verbal”62.
O papel da mídia foi apontado no primeiro capítulo, mas vale retomar esse
ponto, por ser um fator essencial na naturalização gradativa da violência. A mídia
é especialmente determinante na formação do senso comum penal, quando ela
promove a despolitização dos conflitos sociais e a politização da questão criminal.
A manifestação da violência simbólica construída pelas grandes mídias é
identificada no processo de etiquetamento e criação do estereótipo, na medida em
traço que pode impor-se à atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção a outros atributos seus”. ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada. Op. Cit. p. 57. 61 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p. 16. 62 MORETZSOHN, Sylvia. A ética jornalística no mundo ao avesso. Revista Discursos Sediciosos – crime, direito e sociedade, no. 9 e 10. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 2000. p. 318.
110
que os detentores da comunicação definem determinados grupos sociais como
melhores ou piores, confiáveis ou não, “quem tem a palavra constrói identidades
pessoais ou sociais”63. Cria-se uma (anti) estética na qual o delinquente é
construído como a antítese dos padrões adequados para a sociedade. A mídia
como construtora da violência simbólica atua como ferramenta de controle social,
sendo um substituto da violência física. Esse lugar comum alcança os operadores
jurídicos que se preocupam somente em transmitir um discurso superficial que no
mínimo aponta uma condescendência, quando não a adesão explícita ao modelo
repressor.
O papel da mídia fica muito nítido na política carioca de pacificação das
favelas e comunidades, ela faz parte da estratégia de instalação das UPPs. É a
mídia quem confere o tratamento estético vendido para a opinião pública, é ela
quem dá o suporte no imaginário social para implantação das UPPs. E esse
tratamento estético foi se modificando nos últimos tempos. Isso pode ser
observado ao comparar a “pacificação” do Complexo do Alemão em 2010 e na
Barreira do Vasco em março de 2013. Na época da ocupação do Complexo do
Alemão tanques do Exército foram acionados e mostrados na grande mídia,
mostrando o prenúncio de uma guerra que estava por vir, evento o que a Rede
Globo denominou como “Tropa de Elite 3”. Essa operação de “pacificação”
deixou um número de mortos até hoje não contabilizados oficialmente. Já na
ocupação da Barreira do vasco e o entorno do Caju em março deste ano a imagem
da ocupação vendida pela mídia foi outra. Agora não são mais tanques de guerra,
mas um menino morador da comunidade subindo no cavalo do policial após a
ocupação64. A estética vendida na grande mídia se modificou. Após passados
alguns anos desde a primeira ocupação no morro Santa Marta, a tônica das
campanhas midiáticas é a sensação de paz. A cidade do Rio de Janeiro não é mais
uma “cidade partida”, como afirmou Zuenir Ventura, ela agora é uma “cidade
cerzida”, o carioca é feliz, a sociedade não é mais passiva e o Rio de Janeiro não é
mais uma cidade de exclusão. Essa imagem vendida faz parte da estratégia
63 SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Neoliberalismo, mídia e o movimento de lei e ordem: rumo ao Estado de polícia. Revista Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. Ano 11, números 15/16. 1º e 2º semestres de 2007. 64 Fonte:O GLOBO. Disponível em: www.g1.globo.com (Acesso em 03/03/2013)
111
política. Vender o sucesso das UPPs é importante para camuflar a manutenção do
estado de exceção permanente nessas localidades.
As ações do poder em tempos de guerra e numa conjuntura política
apresentam diferenças profundas, principalmente no que tange ao inimigo. De
acordo com Zaffaroni, o inimigo de guerra é aquele que pertence ao outro lado,
enquanto “o sistema penal seleciona uns poucos inimigos políticos e os exibe
como inimigos de guerra da maioria”65. No entanto, a vinculação da guerra ao
sistema repressivo penal torna-se muito mais complexa do que a simples
categorização do sujeito como inimigo da pátria, pois o processo seletivo de
apenas alguns criminosos a serem punidos se projeta num processo de produção
de delinquência, no qual os atores serão rotulados e condicionados para serem
considerados inimigos de guerra.
A imposição de uma política intolerante de combate ao crime, que se
manifesta na guerra as drogas, de acordo com Salo de Carvalho, é estabelecida por
meio da conjunção das ideologias da Defesa Social e da Segurança Nacional, que
prepararam o terreno para a política de Tolerância Zero. “Apesar de ter como
objetivo específico a eliminação do “inimigo interno” – o alter “subversivo” que
questiona o establishment - , a ideologia da Segurança Nacional, agregada à
ideologia da Defesa Social, estabelece pauta de ação específica em relação ao
combate a criminalidade”66.
“Produz-se, então, um direito penal e processual penal de emergência, simbólico, com efeito sedativo, cuja eficácia é a tranquilização da opinião pública, diante da insegurança urbana. Em suma, faz-se uso do direito penal e processual penal de uma forma promocional, difusora de ideologia, pois, abrandando a ansiedade em torno da (in)segurança, induz a população a acreditar que inexistem riscos em torno das medidas adotadas. Trata-se de um deliberado fortalecimento do Estado de polícia em prejuízo das conquistas democráticas do Estado de direito”67.
Nas palavras de Vera Malaguti, se assiste a um filicídio68, pois estamos
exterminando os nossos jovens. O número de homicídios cometidos pela polícia
65 ZAFFARONI, Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p. 225. 66 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático. Op. Cit. p. 143. 67 SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Neoliberalismo, mídia e o movimento de lei e ordem: rumo ao Estado de polícia. Revista Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. Ano 11, números 15/16. 1º e 2º semestres de 2007. 68 BATISTA, Vera Malaguti. Filicídio: a questão criminal no Brasil contemporâneo. In: Silene de Moraes Freire. (Org.). Direitos Humanos: violência e pobreza na América Latina contemporânea.
112
leva a conclusão de que está ocorrendo o extermínio de uma parcela da população,
e grande parte dessas mortes é em decorrência da ação policial, nas mais diversas
formas. A polícia brasileira é uma das que mais mata e que mais morre, o que
fornece pistas concretas para sua medíocre eficiência e despreparo. Em 2010, a
polícia do Rio de Janeiro matou 43,73 pessoas para cada policial morto em
serviço. Ao passo que, a polícia dos Estados Unidos matou 9,05 pessoas para cada
policial morto69. Esse alto índice é considerável, sob a suspeita de que em muitos
casos a polícia falsamente relata mortes como tendo sido produto de confrontos
que não teriam ocorrido naturalmente.
A força letal da polícia só é legitimamente justificável quando for uma
situação para defender a vida ou a integridade física do policial ou algum cidadão,
sob a condição dessa força empregada ser proporcional para evitar o risco criado.
Ou seja, somente é autorizado o poder de letalidade quando absolutamente
necessário. No entanto, o modelo adotado por aqui de “lei e ordem” justifica o
emprego de toda força necessária para a neutralização do perigo. Em
contrapartida, esse modelo coloca em risco a vida e a incolumidade física dos
próprios policiais, uma vez que ao adotar a metáfora da guerra, esses agentes são
submetidos a situações de risco extremo de forma frequente, o que aumenta as
chances do resultado morte.
Execuções sumárias ou extrajudiciais são expressões utilizadas pelos
padrões internacionais de direitos humanos para referir-se a um homicídio
praticado por forças de segurança do estado, não somente policiais civis e
militares, mas também agentes penitenciários e guardas municipais, em situação
na qual a vítima tenha tido seu direito de defesa restringido em um processo legal
regular, ou então, em caso de estar respondendo a um processo, a vítima seja
eliminada antes do seu julgamento. Nesse sentido, a colocação de Ignacio Cano
mostra-se pertinente, ao afirmar que “o uso da força policial pode ser entendido
como um continuum, com dois polos opostos. No primeiro extremo, o agente faria
uso da sua arma de forma legítima e proporcionada. (...) No outro extremo,
estariam os casos de pessoas detidas que são friamente assassinadas por policiais,
69 Fonte: ISP – Instituto de Segurança Pública da secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: www.isp.rj.gov.br. (Acesso em 10/02/2013).
113
ou seja, as execuções sumárias”70. O poder de utilizar a violência para
manutenção da ordem é constantemente usado de forma abusiva pelas autoridades
policiais, gerando os excessos resultantes em violências físicas ou mesmo a morte.
Esse limiar entre a força moderada necessária e o abuso de violência é um dos
grandes desafios para o controle da violência urbana.
No modelo de segurança do Rio de Janeiro, os agentes são treinados na
Academia de Polícia com a mentalidade da guerra, ainda resquício da Doutrina de
Segurança Nacional. Sua preparação ideológica e técnica é voltada no sentido de
combater uma guerra, na qual o inimigo é perene, enquadrado na figura do
suspeito – definição extremamente importante para a atividade policial e
paradoxalmente indefinida em critérios exatos71. Nesse continuum, o policial
tende ao uso excessivo da força, como aponta Ignacio Cano. Isso pode ser
observado por meio de alguns indicadores, como “a proporção de homicídios
dolosos cometidos pela polícia atingir uma percentagem próxima a 10% de todos
os homicídios; a razão entre mortos e feridos nas vítimas das ações policiais
mostra que há vários mortos para cada ferido provocado pela polícia”72. Esta
razão é o chamado índice de letalidade. E as proporções demonstram que em
muitos casos a real intenção do policial é de matar e não prender.
Diversos fatores revelam que o uso da força pela polícia é excessivo,
inclusive quando comparado a violência geral do estado. Nesse sentido:
“- a proporção entre policiais mortos em confronto e civis mortos pelos policiais excedia a razão de 1 a 10, o que indica, de acordo com o Prof. Chevigny, um uso
70 CANO, Ignacio. Execuções sumárias no Brasil: o uso da força pelos agentes do Estado. Op. Cit. p. 15. 71 Um elemento muito utilizado nas comunicações internas das polícias é o termo “elemento suspeito de cor padrão”, sugerindo uma forte presença da seletividade racial na atuação cotidiana da polícia. Nota-se aqui nitidamente a metáfora do espelho, quando o policial reconhece que o elemento suspeito tende a coincidir com estereótipos negativos relacionados a idade, classe social, raça e local de moradia. Entretanto, essa mesma ferramenta de grande importância para a atividade policial não é definível de forma exata. Nesse sentido, conclui Silvia Ramos após trabalho sobre o elemento suspeito “Outro aspecto que chama a atenção na pesquisa junto à PM é a pobreza do discurso sobre a suspeita. Não só não conseguimos localizar um único documento que definisse parâmetros para a constituição da “fundada suspeita”, como encontramos nas falas de oficiais, antigos ou jovens, de alta ou baixa patente, uma articulação tão precária a respeito desse tema quanto a observada na “cultura policial de rua” expressa pelas praças de polícia. É surpreendente, para não dizer espantoso, que a instituição não elabore de modo explícito o que seus próprios agentes definem como uma das principais ferramentas do trabalho policial (a suspeita).” RAMOS Silvia; MUSUMECI Leonarda. Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Op. Cit. p. 54. 72 CANO, Ignacio. Letalidade da ação policial no Rio de Janeiro. Op. Cit.
114
abusivo da força;. No Rio de Janeiro, essa razão excede às vezes o patamar de 30 ou 40 a 1. No ano de 2007, dados oficiais até junho apontam a 694 civis mortos contra 16 policiais mortos em confronto.
- a proporção de homicídios dolosos devidos à intervenção policial situa-se entre 10 e 20% do total, muito superior ao que acontece em várias cidades do exterior.
- a razão entre opositores mortos e opositores feridos nas ações policiais é o indicador mais claro. Essa razão, denominada índice de letalidade, evidencia que, em muitos casos, há uma intenção de matar e não de prender o oponente, visto que os combates armados genuínos costumam produzir maior número de feridos do que de mortos. De fato, em outros estados (MG, RS) o número de civis feridos em confronto é superior ao de mortos. No Rio de Janeiro, pesquisas mostraram um número de mortos mais de 3 vezes superior ao número de feridos”73.
Como diversas organizações internas e internacionais de direitos humanos
apontam, as evidências da política de segurança do Rio de Janeiro demonstram
uma enorme diferença entre os índices de mortes em confronto com a polícia em
comparação com o número total de assassinatos “comuns”, prisões, mortes de
policiais e número de pessoas feridas pela polícia. De acordo com a Anistia
Internacional, as práticas policiais em 2012 continuaram a se caracterizar por
discriminação, corrupção, pelo caráter militar das operações policiais e as
prometidas reformas na segurança pública não ocorreram devido a cortes no
orçamento e falta de vontade política74.
A letalidade policial é um problema particularmente grave nos espaços
urbanos do país. Os estados com maiores níveis de violência letal tendem a ser os
estados com maior letalidade policial. No entanto, essa relação não é absoluta,
pois não é possível justificar os altos níveis de mortes em ações policiais apenas
devido a um contexto violento. O índice de letalidade é mensurado pela razão
entre o número de mortos e o número de feridos nas operações policiais,
constituindo um dos indicadores clássicos de uso excessivo da força, pois o
esperado é um número maior de feridos do que de mortos. Quando o número de
mortos é maior, isto evidencia uma maior intenção de matar ao invés de
simplesmente prender o opositor. No continuum do uso da força policial podem
existir diferentes casos, como o cidadão vítima do auto de resistência ou as
vítimas de balas perdidas. Os dois casos estão nos dois polos opostos do uso da
73 RELATÓRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA O RELATOR ESPECIAL DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EXECUÇÕES SUMÁRIAS, ARBITRÁRIAS E EXTRAJUDICIAIS. Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: http://www.iddh.org.br (Acesso em 06/11/2012) 74 Ver ANISTIA INTERNACIONAL. Informe 2012: segurança pública. Fonte: www.amnesty.org
115
força letal pelo policial, mas ambos entram na cifra. As vítimas de bala perdida
podem acontecer quando ocorrem incursões policiais nas favelas, os tiroteios
provocados por armas automáticas contra supostos criminosos, atingem vítimas
que poderiam ter sido poupadas com uma abordagem mais cuidadosa. Essa
predisposição ao uso excessivo da arma de fogo provoca outras vítimas que são
feridas ou mortas simplesmente por estarem no meio do fogo cruzado75.
A mobilização de um grande aparato estratégico e de policiais, com o
resultado elevado saldo de mortos, sempre apresentados como “traficantes”, tem
sido o padrão “pacificador” da política de segurança pública nas favelas do Rio de
Janeiro. E ainda assim, a polícia insiste em utilizar como critério de eficiência o
alto índice de letalidade policial. O fetiche das autoridades públicas e da grande
mídia com o combate ao crime organizado, conforme afirma Zaccone, de
organizado não tem nada, tem sido nos últimos tempos o salvo conduto
legitimador para todas as espécies de violações de direitos e a prática do
extermínio em massa. Em nome dessa justificativa, as favelas cariocas são
invadidas cotidianamente pelos policias, intimidando moradores e constrangendo
trabalhadores, para que eles jamais ousem se organizar para defender seus
direitos. Essa forma de atuação é operada para desarticular as frágeis organizações
espontâneas desenvolvidas nas favelas e periferias urbanas. O terrorismo de
Estado não atua de forma casual, mas na verdade, evidencia o desprezo das forças
hegemônicas pela população miserável, já que os policiais não atiram
aleatoriamente. Pelo contrário, as operações policiais ocorrem em lugares certos e
contra pessoas certas, evocando o ciclo do eterno retorno da barbárie. Chacinas
como as da Candelária e Vigário Geral, perpetradas por policiais na década de 90
são absolutamente impensáveis de ocorrer em Copacabana. Vigora o pensamento
de que nas favelas e periferias cariocas não há inocentes, uma vez que todos já são
culpados pelo simples fato de nascer e ousar sobreviver.
Em todas as incursões policiais, as autoridades responsáveis, como o atual
governador Sérgio Cabral e o secretário de Segurança Pública José Mariano
Beltrame, deixam evidente a política do estado: mortes são entendidas como
75 CANO, Ignacio. Execuções sumárias no Brasil: o uso da força pelos agentes do Estado. Op. Cit. p. 16.
116
meios necessários para o enfrentamento da criminalidade; o que significa dizer
que, a letalidade da ação policial é encarada como parâmetro de sucesso76.
Num período de 30 anos que atualmente disponibiliza o Sistema de
Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde, o Brasil passou de 13.910
homicídios em 1980 para 49.932 em 2010, o que significa um aumento de 259%.
Entretanto, segundo os censos nacionais, a população do país também cresceu,
embora de forma bem menos intensa. Passou de 119,0 para 190,7 milhões de
habitantes, crescimento de 60,3%. Por isso, considerando o crescimento da
população, passamos de 11,7 homicídios em 100 mil habitantes em 1980 para
26,2 em 2010. Isso é equivalente a um aumento real de 124% no período ou 2,7%
ao ano77.
No total, de 1980 a 2010, ou seja, num período de 30 anos o país já
ultrapassou a casa de um milhão de vítimas de homicídio. Esses números são de
tal magnitude que fica difícil construir uma imagem mental para entender a sua
significação. Pode ser dada uma ideia do que esses números representam, se
compararmos os mesmos com o número de vítimas em diversos conflitos armados
ao longo do mundo. Vemos que a média anual de mortes por homicídio no país
supera, e em casos de forma avassaladora, o número de vítimas em muitos e
conhecidos enfrentamentos armados no mundo.
No que tange a as estatísticas de homicídios e a questão racial no Brasil, o
índice de mortes entre a população branca é de 18.852 mortes em 2002; 15.753
mortes em 2006; 13.668 mortes em 2010. Entre a população negra, foram 26.952
mortes em 2002; 9.925 mortes em 2006; 33.264 mortes em 2010. Mesmo com
grandes diferenças entre as Unidades Federadas, a tendência geral desde 2002 é:
queda no número absoluto de homicídios na população branca e de aumento nos
números da população negra: em 2002, para cada branco temos 1.497 negros; em
2006, para cada branco temos 1.896 negros; em 2010, para cada branco temos
2.4337 negros.
76 RELATÓRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA A ANISTIA INTERNACIONAL. Os Muros nas Favelas e o Processo de Criminalização. Rio de Janeiro, 2009, p. 06. Maio de 2009. Disponível em: http://global.org.br/programas/os-muros-nas-favelas-e-os-processos-de-criminalizacao. (Acesso em: 03/02/2013) 77 Ver. Mapa da Violência 2012: os novos padrões da violência homicida no Brasil. CEBELA: Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos. Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012.php. (Acesso em: 01/02/2013).
117
De acordo com o relatório do Mapa da Violência 2012, “não é tarefa
simples periodizar o histórico dos homicídios no Rio de Janeiro. Em primeiro
lugar, pelas fortes oscilações facilmente perceptíveis nos dados a seguir, com
repentinas e marcadas quedas e/ou aumentos em curtos lapsos de tempo. Em
segundo lugar, pela peculiaridade do estado: sua região metropolitana (RM)
abrange 74% dos homicídios e 73% da população estadual, motivo pelo qual seu
interior tem limitado peso nas estatísticas”78. Mesmo assim, as pesquisas feitas no
Rio de Janeiro apontam que entre a população branca a taxa de homicídios foi de
2.863 mortes em 2002; 2.363 mortes em 2006; 1.344 mortes em 2010. Já entre a
população negra a taxa de homicídios é maior, sendo de 4.907 mortes em 2002;
4.417 mortes em 2006; 2.638 mortes em 2010. Embora os índices gerais tenham
diminuído, a relação Branco x Negro se mantém sempre a mesma: para cada
branco vítima de homicídio, temos cerca de dois negros vítimas de homicídio.
Os números revelam uma marca letal que vai além da questão racial, ela é
determinada principalmente pelo aspecto social. A força letal da policia brasileira
tem um foco maior nos jovens negros. Não somente por serem negros, mas
principalmente por serem pobres. É a eterna associação entre pobreza e crime.
Essa visão remonta ao tempo da escravidão. Para os oprimidos, o estado de
exceção vigora como regra na administração colonial, expressão da violência
soberana. Seu exercício encontra no genocídio o alicerce para dominação. Para
esse segmento social a barbárie se tornou cotidiana. Os moradores das favelas são
vistos como sujeitos perigosos, generaliza-se a condição de potenciais criminosos
a todos os trabalhadores e estudantes que ali vivem.
A letalidade policial segue também uma lógica geográfica que confirma a
seletividade de sua atuação baseada na questão social. Já que sua força letal é
empregada com maior incidência em áreas pobres das comunidades ou favelas.
Mais de 70% de todos os autos de resistência envolvendo a polícia do Rio, no ano
de 2008 ocorreram em 10 das 40 Áreas Integradas de Segurança Pública (AISPs).
São elas 3ª, 7ª, 9ª, 12ª, 14ª, 15ª, 16ª, 20ª, 22ª e 40ª. Dados estatísticos dessas zonas
demonstram que em cada um dos supostos autos de resistência nesses bairros, são
mortas entre 10 e 103 pessoas para cada policial morto. Essas áreas juntas
78 Mapa da Violência 2012: os novos padrões da violência homicida no Brasil. Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos - CEBELA. Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012.php. (Acesso em: 01/02/2013).
118
representavam cerca de 53% dos assassinatos cometidos no estado em 2008.
Também se concentra nessas áreas uma grande proporção das mortes por policiais
no estado. Juntas apresentam 825 mortes em 2008, o que significa 73% das
mortes oficialmente reconhecidas e cometidas por policiais em todo o estado79.
Em relatório elaborado por diversas organizações de defesa dos direitos
humanos, atuantes no Rio de Janeiro, a conclusão foi a seguinte:
“A partir de uma cartografia da violência institucional do Estado brasileiro, vemos que o valor da vida e da dignidade de uma determinada parcela dos cidadãos (que podem ser recortados por sua etnia, faixa etária, classe social e geografia urbana ou rural) está se tornando "descartável" pelas estratégias gerais das políticas governamentais do país. Hoje o Brasil lidera o ranking mundial nos índices de homicídio de jovens devido a armas de fogo e o Rio de Janeiro abriga a polícia que mais mata no mundo, há inúmeras denúncias de práticas regulares de tortura tanto no sistema prisional quanto no sistema sócio-educativo, e cada vez mais o regime político brasileiro desenvolve e aprimora um projeto militarizado de segurança pública”80.
As mortes em intervenções policiais são consideradas pelo Estado apenas
como uma externalidade do trabalho policial e não como uma dimensão central.
Uma prova disso é que, até 1999, os registros oficiais não realizavam uma
contagem de quantas pessoas eram mortas por policiais ou em decorrência de
intervenção policial. “A elevada letalidade policial no Rio de Janeiro não apenas
em termos de qualquer comparação internacional, mas também em relação a
outros estados do Brasil. Dados da Secretaria Nacional de Segurança Pública
mostravam que, no ano 2000, o Rio de Janeiro apresentava a maior taxa de mortes
de civis em intervenções de policiais militares para cada mil policiais, entre todos
os estados considerados”81.
Como afirma Zaccone, “em se tratando de segurança pública, não são os
índices que determinam a política, mas a política que determina os índices. Assim,
os registros estatísticos revelam com maior precisão a atividade da polícia
judiciária do que a atividade criminal”82. Isso é muito relevante para interpretar os
dados colhidos e o que eles realmente significam. Ou seja, eles não espelham uma
79 Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro. Indicadores de Criminalidade. Diário Oficial. Janeiro a dezembro de 2008. 80 RELATÓRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA O RELATOR ESPECIAL DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EXECUÇÕES SUMÁRIAS, ARBITRÁRIAS E EXTRAJUDICIAIS. Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: http://www.iddh.org.br (Acesso em 06/11/2012) 81 RELATÓRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA O RELATOR ESPECIAL DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EXECUÇÕES SUMÁRIAS, ARBITRÁRIAS E EXTRAJUDICIAIS. Op. Cit. 82 ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada. Op. Cit. p. 17.
119
sociedade na qual existem mais criminosos negros. Eles demonstram a
seletividade punitiva da atividade judiciária no seu lado mais cruel: a eliminação
da vida.
Primeiramente é importante destacar a categoria da “cifra oculta da
criminalidade”, apontada pela criminóloga Lola Aniyar de Castro, na qual ela
distingue a criminalidade legal, da aparente e real. A criminalidade legal seria
aquela divulgada nas estatísticas oficiais, enquanto a criminalidade aparente é
aquela conhecida pelos órgãos de controle penal, como a polícia e o ministério
público, por exemplo, mesmo que ela não seja demonstrada nas estatísticas. E a
criminalidade real, que é o número de delitos realmente cometidos. “Entre a
criminalidade real e a criminalidade aparente, há uma enorme quantidade de casos
que jamais serão conhecidos pela polícia. Esta diferença é o que se denomina cifra
obscura, cifra negra ou delinquência oculta. A diferença entre a criminalidade real
e a aparente seria, pois, dada pela cifra negra”83. Ou seja, Lola percebeu que as
próprias estatísticas evidenciam a seletividade operada pelas instituições de
controle social84.
Ao observar os dados demonstrados acima, não se pode concluir que a
maioria dos indivíduos envolvidos em confrontos armados com a polícia seja
negra e, por isso são alvo mais fácil de homicídios. Não necessariamente. Os
negros e pobres são a clientela majoritária das operações letais da polícia
justamente por serem o alvo certo de operações de grande perigo, em que a
preocupação com o risco de vida é menor, por se tratarem de vidas matáveis, sem
que seja cometido um homicídio condenável. As estatísticas não funcionam como
um espelho da atividade criminal, uma vez que um aumento no índice de crimes
cometidos pode representar simplesmente um incremento na atividade
persecutória da polícia, e não que a prática de crimes tenha aumentado.
A violência está tão enraizada no cotidiano do carioca, que o imaginário
social acredita viver numa situação de guerra permanente. No entanto, a
83 CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Forense, 1983. 84 Augusto Thompson apontou quatro fatores explicativos para esse fenômeno. Apesar de não ser objeto do presente estudo, vale destacar algumas possíveis razões para a cifra obscura como um dado elucidativo. São eles: a visibilidade da infração; a adequação do autor ao estereótipo do criminoso construído pela ideologia hegemônica; a incapacidade do agente em beneficiar-se da corrupção; e a vulnerabilidade à violência. Para mais informações, ver THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 1998.
120
identidade do inimigo obedece a critérios geográficos e raciais, que impõe às
camadas mais vulneráveis da população a triste generalização entre pobreza, raça
e crime. Diante do contexto apresentado nota-se o avanço de políticas de
segurança autoritárias como estratégias de controle da vida das classes mais
miseráveis, numa sociedade extremamente desigual como a brasileira. Na cidade
do Rio de Janeiro, as políticas repressivas com a grife tolerância zero chegam a
níveis dramáticos de mortes de civis e uso extremo da força policial.