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História e Perspectivas, Uberlândia (50): 197-226, jan./jun. 2014 197 HISTÓRIA ORAL E MEMÓRIAS ENTREVISTA COM ALESSANDRO PORTELLI Paulo Roberto de Almeida 1 Yara Aun Koury 2 Em abril de 2002, a Universidade Federal de Uberlândia teve a oportunidade de sediar a Missão de Trabalho sobre Memória e História Oral, sob coordenação da Professora Dra. Yara Aun Khoury. Essa missão foi uma das atividades previstas no Projeto Cultura, Trabalho e Cidade: muitas memórias, outras histórias do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica, financiado pela Capes. Como atividade desse encontro, contamos com a presença do Professor Alessandro Portelli, da Universidade La Sapienza, de Roma/Itália. Com ele estabelecemos um diálogo em que foram enfocadas questões relacionadas a preocupações dos pesquisadores que lidam com história oral: a representatividade das narrativas, a relação entre memória oficial e periodização, a relação dialógica entre entrevistado e entrevistador e o uso das entrevistas pelo historiador, entre outras. Participaram desse diálogo os professores Dra. Yara Aun Khoury (PUC/SP) e Dr. Paulo Roberto de Almeida (UFU/MG). Ao final, outros pesquisadores presentes no encontro também tiveram a oportunidade de apresentar, para reflexão, suas indagações. Profª Yara - Falando dos objetivos que motivaram esse encontro entre historiadores da PUC/SP e da UFU em torno do trabalho com história oral, reporto-me a uma das mesas- redondas do X Congresso Internacional de História Oral, no 1 Paulo Roberto de Almeida é doutor em História Social pela PUC-SP e professor do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia 2 Yara Aun Koury – Doutora em História Social pela USP e professora no Programa de Estudos Pós Graduados em História da PUC-SP

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  • Histria e Perspectivas, Uberlndia (50): 197-226, jan./jun. 2014

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    HISTRIA ORAL E MEMRIASENTREVISTA COM ALESSANDRO PORTELLI

    Paulo Roberto de Almeida1Yara Aun Koury2

    Em abril de 2002, a Universidade Federal de Uberlndia teve a oportunidade de sediar a Misso de Trabalho sobre Memria e Histria Oral, sob coordenao da Professora Dra. Yara Aun Khoury. Essa misso foi uma das atividades previstas no Projeto Cultura, Trabalho e Cidade: muitas memrias, outras histrias do Programa Nacional de Cooperao Acadmica, financiado pela Capes. Como atividade desse encontro, contamos com a presena do Professor Alessandro Portelli, da Universidade La Sapienza, de Roma/Itlia. Com ele estabelecemos um dilogo em que foram enfocadas questes relacionadas a preocupaes dos pesquisadores que lidam com histria oral: a representatividade das narrativas, a relao entre memria oficial e periodizao, a relao dialgica entre entrevistado e entrevistador e o uso das entrevistas pelo historiador, entre outras. Participaram desse dilogo os professores Dra. Yara Aun Khoury (PUC/SP) e Dr. Paulo Roberto de Almeida (UFU/MG). Ao final, outros pesquisadores presentes no encontro tambm tiveram a oportunidade de apresentar, para reflexo, suas indagaes.

    Prof Yara - Falando dos objetivos que motivaram esse encontro entre historiadores da PUC/SP e da UFU em torno do trabalho com histria oral, reporto-me a uma das mesas-redondas do X Congresso Internacional de Histria Oral, no

    1 Paulo Roberto de Almeida doutor em Histria Social pela PUC-SP e professor do Instituto de Histria da Universidade Federal de Uberlndia

    2 Yara Aun Koury Doutora em Histria Social pela USP e professora no Programa de Estudos Ps Graduados em Histria da PUC-SP

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    Rio de Janeiro, em que o Prof. Portelli fazia ponderaes sobre os desafios para a Histria Oral no sculo XXI. Referindo-se a um pensamento dominante neoliberal na Itlia, comumente considerado o nico legtimo, a viso de mundo autorizada, que foi sendo assumida como o modo oficial de se pensar o sculo XXI em seu pas, cogitava sobre modos como a reflexo histrica poderia trabalhar criticamente essa viso e como a histria oral abre ricas possibilidades nesse sentido. Ampliando essa reflexo para alm das fronteiras de seu prprio pas, dizia acreditar na histria oral precisamente por lidar com a memria de milhes de indivduos. O desafio estaria no fato de encararmos a memria no s como um depositrio de informaes um lugar onde se recorda a histria mas de a encararmos como um fato da histria, de a encararmos como histria, como sinal de luta, como processo em andamento, para usarmos suas prprias palavras. Via nessa perspectiva a possibilidade de se alargarem os horizontes da memria e da histria concentradas em mos restritas e profissionais.

    Grupos de professores e de pesquisadores da rea de Histria, na PUC/SP e na Universidade Federal de Uberlndia, construindo um caminho de reflexo nessa direo, foram abrindo espao para um terreno comum de dilogo sobre memria, histria, cultura e histria oral. Essa colaborao entre as duas Universidades tornou-se mais efetiva e sistemtica por meio do Programa Nacional de Cooperao Acadmica Procad, implantado pela Capes, por meio do qual professores de linhas e ncleos de pesquisa na rea de Histria, de quatro universidades, se reuniram em torno de um Projeto comum: Cultura, trabalho e cidade: muitas memrias, outras histrias. Para alm da PUC/SP, como equipe lder, e da UFU, constituem a equipe membros da Universidade Catlica de Salvador e a Unesp Campus de Assis.

    Entre as Misses de Trabalho programadas dentro do Projeto, assumi a responsabilidade daquelas referentes Metodologia e Histria Oral, tendo j realizado uma na Unesp de Assis e, agora, outra est sendo concluda na UFU.

    As reflexes e debates realizados por professores, pesquisadores e alunos sobre essa metodologia de trabalho foram

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    ricos e proveitosos. Contaram com a colaborao mais direta dos professores Heloisa Helena P. Cardoso e Paulo Roberto Almeida, respectivamente membro e coordenador do Procad na UFU. Este momento se fecha com a presena de Alessandro Portelli, que representa para ns uma referncia e um interlocutor significativo nos trabalhos com histria oral.

    Sua vinda ao Brasil tornou-se possvel graas ao empenho das equipes da PUC/SP e da UFU, envolvidas no Projeto Procad, contando com o apoio das Coordenaes do Programa de Ps-Graduao em Histria da PUC/SP e do Mestrado em Histria e da reitoria da UFU.

    Prof. Paulo R. de Almeida - Eu queria dizer da nossa satisfao, da nossa alegria de t-lo aqui nesta oportunidade que, esperamos, se repita muitas vezes. A Prof Yara e eu preparamos algumas questes, que gostaramos de colocar pontualmente, para aprofundarmos o dilogo a que se prope esta entrevista. Antes, porm, gostaria de dizer como chegamos ao dilogo com o Prof. Portelli atravs de seus textos, da sua produo.

    Desde 1991, temos, na Universidade Federal de Uberlndia, um curso de Histria que exige o Bacharelado com produo de uma monografia. Nessa produo historiogrfica, fomos encontrando as dificuldades habituais, representadas pela presena hegemnica de registros oficiais e de uma memria mais amplamente reconhecida e autorizada, que caracterizam fortemente nossa regio.

    Na busca de trabalhar a histria de maneira mais aberta, incorporando sujeitos que apareciam pouco, ou indiretamente, nesses registros, e cuja presena na histria se faz muito pela oralidade, fomos nos aproximando da histria oral, no curso de graduao e, posteriormente, no de mestrado, a partir de sua criao. Nessa tentativa, em um primeiro momento, experimental, ns cometemos alguns pecados: incorporamos aquela viso hegemnica de mundo e buscamos nas fontes orais uma alternativa, ou seja, uma outra histria e outras cidades.

    Ao mesmo tempo em que fazamos reflexes sobre a prpria histria, fomos iniciando um dilogo com seus textos, Prof. Portelli, para melhor entender o trabalho com a histria oral.

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    Esse caminho, construdo principalmente junto aos professores da PUC/SP em especial com a Prof Yara foi colocando para ns outras possibilidades. Creio que comeamos a caminhar, de um tempo para c, no curso de mestrado, com esta perspectiva, sendo que essa Misso de Trabalho veio refor-la. A questo era trabalhar no com uma outra histria, que se opunha quela oficial, mas buscar modos de apreender a dinmica social em sua complexidade, estudando experincias e memrias compartilhadas, divididas e contraditrias, em convvio e em confronto. Trabalhando mais diretamente com as narrativas individuais, com os enredos construdos na interlocuo com os entrevistados, fomos nos deparando com a questo da memria, da histria, vista por outro ngulo. Fomos percebendo a ideia de que a histria oral nos abria novas possibilidades de trabalhar com memrias de uma maneira diferente. Passamos a investir mais na memria como histria e como um campo de disputas.

    Nesse sentido, o Projeto Procad, sobre o qual a Prof Yara se referiu, Cultura, trabalho e cidade: muitas memrias, outras histrias, tem como terreno comum de sua construo uma preocupao central com modos de constituio dos processos sociais e com o lugar que diferentes sujeitos ocupam neles. O que nos tem congregado de fato a percepo de um presente vivido como tenso. Temos procurado, com isso, lanar um olhar poltico sobre o passado, procurando especificar e relacionar sujeitos, fatos, significados, passado, presente e perspectivas futuras, o que talvez seja, hoje, o grande drama por ns vivido em todos os cantos do planeta.

    nessa direo que queremos estabelecer este dilogo com o Prof. Portelli, acrescentando ainda nossa expectativa sobre o trabalho da fala, da conscincia e da memria, no sentido abordado no artigo A filosofia e os fatos.3

    No referido artigo h uma passagem que reputamos de grande profundidade e que tem nos incomodado muito e, talvez, por isso, estejamos aqui perguntando diretamente sobre ela. Diz

    3 PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os Fatos. Revista Tempo. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, v.1, n. 2, p. 59-72, 1996.

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    o seguinte: a Histria Oral e as memrias no nos oferecem um esquema de experincias comuns, mas sim um campo de possibilidades compartilhadas, reais ou imaginrias. Buscando compreender e compartilhar sua experincia no trabalho com literatura, no tratamento das narrativas como textos e enredos, como explorar narrativas pessoais ou aquelas que nascem da interlocuo entre o entrevistador e o entrevistado? O que significa dizer que as narrativas so qualitativas, representativas de uma realidade social?

    Prof. Alessandro Portelli - Inicialmente peo que me desculpem se falo castelhano e se o pronuncio muito mal , porque um castelhano um pouco imaginrio, mas o nico que temos para comunicar-nos um pouco melhor e, quando se fala um idioma que no se conhece muito bem, tudo sai mais simples, mais esquemtico do que a complexidade das coisas, mas farei o melhor que posso.

    Bem, a questo que no creio muito em algo que se coloque como uma memria coletiva, porque no vejo onde est situada uma memria coletiva, a no ser nas atividades intelectuais de cada um dos indivduos. Uma memria coletiva institucionalizada pode transformar-se nessas memrias hegemnicas muito fortes que esto consolidadas em arquivos oficiais e em monumentos, que me parece importante que existam. No entanto, o que vemos na Histria Oral mais a memria que cada ser humano tem individualmente.

    Essa memria um produto social, porque todos ns falamos um idioma, que um produto social. Nossa experincia uma experincia social, mas no se pode submeter completamente a memria de nenhum indivduo sob um marco de memria coletiva. Cada pessoa tem uma memria, de alguma forma, diferente de todas as demais. Ento, o que vemos, mais que uma memria coletiva, que h um horizonte de memrias possveis.

    Neste momento, em Roma, estamos comeando um projeto sobre a memria do que se chama um movimento no global que me parece a coisa mais global que h no mundo agora, como se viu em Porto Alegre, no Frum Social mas o que buscamos, de fato, so pessoas que tenham ido a Gnova, em julho do ano

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    passado, ocasio em que, devido ao ataque da polcia, um jovem morreu e se passaram coisas espantosas.

    Confrontando histrias de vida de pessoas que ali estavam como uma metodologia o que tm em comum que foram ao mesmo lugar, ao mesmo tempo. No entanto, o que se v que todas vieram de localidades distintas, tinham diferentes intenes que as levaram para l e levam distintas memrias desse acontecimento e diversas interpretaes. Contudo, h algo que bastante concreto, que o fato de que todas estavam ali.

    Assim sendo, o marco das memrias possveis , ao mesmo tempo, infinito, pois no h um limite para o que as pessoas possam pensar ou recordar e, tambm, finito, pois h um limite que est fundado sobre um acontecimento muito especfico. Desta forma, quando falamos dessas memrias individuais, h uma parte disso que se pode tratar como uma ferramenta comparativa e estatstica, porque h coisas que so compartilhadas e que se pode relatar, mas h outras coisas que so qualitativas, no sentido em que h o encontro entre um acontecimento, um lugar e uma subjetividade individual, uma histria pessoal, individual, um passado e um futuro individuais.

    Ento, quais so as narrativas representativas nesse sentido? No mais as narrativas mais comuns, porm os relatos de fatos mais excepcionais, talvez porque nos revelam o que foi possvel. O exemplo que dava nesse artigo que h acidentes nas fbricas, onde as pessoas morrem, porm no uma experincia normal morrer em um acidente de trabalho, mas a possibilidade de que isso possa acontecer uma possibilidade com que todos os indivduos vivem, mesmo que isso no acontea com cada um.

    Deste modo, estando em Gnova, pode-se deparar com a possibilidade da morte, com a possibilidade da violncia, mesmo que no cheguem a sofrer nada disso ou no lhes tenham ocorrido nada disso. Assim, o relato mais representativo o que abre mais possibilidades, e sempre o relato individual, o relato que combina mais motivos narrativos, mais elementos bsicos de narrao. Como a narrativa de Frederick Douglas, analisada no artigo A filosofia e os fatos, que uma autobiografia de um escravo norte-americano, que por certo no era average, no

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    era normal, era muito excepcional, mas o sentido da escravido est mais nessa narrativa que nas anlises quantitativas que se fizeram depois.

    Prof Yara - Tem-se observado, em vrios pases, um trabalho bastante voltado para a memria de questes traumticas, como guerras, o holocausto, o 11 de setembro. Em nossas perspectivas especficas de estudo, voltadas para a dinmica social pensada como processo histrico e cultural em constante transformao, forjado por relaes complexas, ambguas e contraditrias, temos procurado focalizar meandros sutis e nuanados da mudana, que se fazem ao longo do tempo, afetando poderosamente modos de viver e de trabalhar de pessoas comuns, de trabalhadores, tanto no meio rural quanto no urbano. Fazendo uso da histria oral, nesse caminho, vamos indagando sobre os trabalhos da memria nas narrativas pessoais, sobre as relaes entre memria e histria e sobre os modos de explorar essas questes nos estudos da experincia cotidiana narrada. Se, por um lado, situaes traumticas podem facilitar a explorao da representatividade de cada relato, qual sua opinio sobre o potencial das narrativas sobre experincias cotidianas mais comuns? As pessoas tambm vivem alguma forma de trauma, de frustrao, de restrio, de represso, nas rotinas dirias, e algumas delas expressam situaes limite mais do que outras. Ns, historiadores, procurando pensar e analisar as narrativas como textos, retirando deles fatos significativos, mas pouco reconhecidos como tais, ou seja, buscando nas formas como cada narrador organiza os fatos, modos como interpreta a realidade e se situa nela, gostaramos de ouvi-lo falar um pouco mais sobre essa questo.

    Prof. Portelli - Uma coisa que a Histria Oral pode ver, que todos os arquivos e a Histria convencional no veem, precisamente a vida cotidiana. Por exemplo, sobre a histria das mulheres, a histria da famlia, a histria da casa, do espao domstico, ou seja, so coisas que s podem ser tocadas por meio das fontes orais, ou que se tocam melhor com as fontes orais.

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    A tnica sobre as narrativas traumticas me parece uma coisa importante e a palestra que vou fazer ser sobre um caso a esse respeito.4 No entanto, tem o problema de concentrar tudo sobre grupos restritos e sobre acontecimentos pontuais. Deste modo, quando se pe toda a tnica sobre a histria traumtica, v-se menos a longa durao da histria. Parece-me que o que se poderia fazer questionar como o elemento traumtico afeta a vida cotidiana e como relatado. Que vida cotidiana tiveram e tm as pessoas que passaram por um evento traumtico?

    Por exemplo, o caso das Fossas Ardeatinas, que vou abordar hoje, interessou-me no tanto pelo fato de que houve um acontecimento chocante, quanto pela pergunta que fiz a mim mesmo: como essas pessoas viveram, depois, sua vida cotidiana? Como trabalharam? Como criaram seus filhos?

    Os traumas de 11 de setembro, em decorrncia dos ataques terroristas nos Estados Unidos, que esto sendo estudados na Oral history office of Columbia University, assim como as guerras e os acontecimentos em Gnova, dizem respeito a pessoas que tambm tm uma vida cotidiana. Que mudanas ocorrem, com o trauma, na vida cotidiana? Essa me parece uma maneira de ter as duas dimenses relacionadas.

    H tambm grupos que no vivem um trauma. Felizmente, nem todos tiveram uma shoah, ou seja, nem todos estiveram em uma ocupao nazista, mas tm uma histria de mudanas muito graduais, muito lentas, e isso mais visvel em narrativas de histrias de vida pessoal.

    O que sempre me interessou nesses relatos de vida como organizam o tempo, onde pem o antes e o depois. Recordo-me da histria de um acontecimento em Terni, cidade industrial do centro da Itlia, quando mataram um trabalhador. As pessoas em Terni no se lembram exatamente quando ocorreu. Lembro-me que meu pai dizia que foi um pouco depois que compramos nosso

    4 Refere-se conferncia realizada na Universidade Federal de Uberlndia, em abril de 2002, em que se abordou o tema As fronteiras da memria: O massacre das fossas ardeatinas. Mito, rituais e smbolos. O texto desta conferncia est publicado nesta edio de Histria e Perspectiva.

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    primeiro carro e havia uma senhora que dizia foi um pouco antes que minha primeira filha tivesse seu primeiro perodo.

    Onde est o antes? Onde comea o relato? Em uma entrevista que est no livro Battle of Valle Giulia, entrevistei um mineiro afro-americano e sua esposa. Ele comeou a narrativa do primeiro dia de trabalho: meu primeiro dia nas minas foi..., e ela comeou a histria no primeiro dia de vida! A organizao narrativa da vida cotidiana nos diz algo sobre onde est o sentido desta vida. Ento, creio que temos que fazer histrias de vida atravs da continuidade de experincias onde h micro traumas cotidianos. H tambm traumas coletivos muito dramticos, como o shoah, ou 11 de setembro. Assim, deve-se relat-los e relacion-los com a continuidade que se interrompe e se resume, antes e depois.

    Prof. Paulo R. de Almeida - A questo da organizao do tempo muito interessante e, ao mesmo tempo, instigante. Isto se deve, talvez, nossa tradio, porque leva a pensar o seguinte: quando as pessoas organizam o tempo de uma maneira diferente, ou seja, o antes e o depois, elas reorganizam a histria e reorganizam os fatos histricos. Poderamos dizer que neste ponto que reside uma disputa pelo tipo de sociedade, pela viso de mundo que se quer construir?

    Prof. Portelli - Diramos que sim. A memria e o relato oral sempre so uma questo de busca de sentido, por isso no utilizo este termo testemunha porque, do meu ponto de vista, implica uma relao de apenas recepo e no o que ocorre, porque a memria no um depsito de dados e de fatos. A recepo em si uma interpretao, ento, sempre h interpretao, que est sempre se processando, em movimento constante.

    Assim sendo, todos so historiadores de alguma maneira, todos tm uma viso de histria, uma interpretao. Todos do um sentido ao passado, todos tm uma relao entre o presente em que narram ou relatam e o passado de que falam. H esses paradigmas de foras, o presente e o passado, o entrevistado e o entrevistador, o eu enunciador e o eu enunciado e todas essas relaes esto sempre em movimento, o tempo todo.

    Um aspecto disso a periodizao. Por exemplo, em Terni, uma cidade industrial da Itlia, onde eu estudei e me formei, os

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    livros de histria local dividem o tempo em perodos eleitorais enquanto na histria relatada pelas pessoas ele dividido em antes da greve de 1953 e depois. No h um livro de histria que faa essa diviso do tempo. No entanto, a maioria das pessoas da gerao que viveu este acontecimento tem uma periodizao distinta. Da mesma forma, na histria dos mineiros de Harlan, em Kentucky, nos Estados Unidos, se v uma distino muito evidente entre histria e memria, de como funciona a histria e como funciona a memria. Assim, nos livros de histria houve duas batalhas como se diz em Harlan entre mineiros e policiais: a primeira foi em 1931 e outra em 1941. Mas a histria no se faz por dcadas, por isso, o que os mineiros recordam mais a ltima, que foi a mais dramtica, como se as duas batalhas se unificassem em uma nica recordao, como se no houvesse dois acontecimentos distintos e sim uma guerra que durou 10 anos. o que no se v quando os historiadores mais tradicionais e h historiadores melhores que estes seguem os acontecimentos, um a um. Porm, a memria tem uma sntese de sentido: foi um tempo de guerra.

    A outra razo porque a memria oficial se concentra sobre a primeira batalha e a memria local se concentra sobre a segunda, devido a que a primeira um smbolo dos anos 30 que, na histria global dos Estados Unidos, se considera um tempo de conflito social. A segunda ocorre nos anos 40, e os anos 40, para a histria, no so um perodo de conflito social. Assim, no h um significado global, no h um sentido para a histria nacional, mas h, sim, um sentido para as pessoas que esto envolvidas. Deste modo, a periodizao histrica no coincide exatamente com os acontecimentos e com a vida especfica das pessoas.

    Prof. Paulo R. de Almeida - Explorando um pouco mais nessa direo, constatamos que, na construo de um texto do historiador, o respeito ao sentido das falas um drama que enfrentamos quase cotidianamente, porque acabamos recortando, inserindo e interpretando no nosso texto. Como voc pensa esta questo? Que implicaes esto presentes na construo de um texto final, que do historiador que nosso, portanto mas no qual procuramos incorporar o ponto de vista de outras pessoas?

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    O que vem a ser, neste contexto, o exerccio democrtico na construo da histria?

    Prof. Portelli - Bem, falo sempre da Histria Oral mais que da tcnica, pois me parece ser uma questo de instinto, de intuio, mais que de tcnicas estabelecidas. Porm, no tenho medo de manejar o testemunho, porque o que importante realizar um texto que aproxime o leitor, o mais possvel, experincia do dilogo que encontramos no trabalho de campo. Ou seja, que este texto renda, a quem o l, algo da experincia do encontro entre historiador e testemunho. Ento, a reproduo exata e passiva da transcrio da fita, frequentemente, no a mais fiel, porque vai interferir com a qualidade do relato. Um discurso oral muito envolvente, se transcrito exatamente, palavra por palavra sobre uma pgina, torna-se algo que no se pode ler. Assim, no fiel, porque no se pode ler a experincia que est contida nesse relato extraordinrio. H que se preservar a qualidade da experincia e basicamente a qualidade de performance: o fato que os entrevistados, todos ns, quando falamos oralmente (eu mesmo, agora), estamos buscando as palavras e estamos construindo o que queremos dizer ao mesmo tempo em que o dizemos, ou seja, tateamos, e algo disso deve permanecer no texto escrito, mas no na mesma dimenso nem na mesma quantidade do que possvel e aceitvel oralmente.

    Na Itlia, h pessoas que dizem cio (isto ), a cada cinco palavras. Se no texto escrito isto se aplica a cada cinquenta, tem-se o mesmo efeito de redundncia. H que se preservar esse efeito de performance, de discurso que se vai construindo na conversa, pelo fato de ser um dilogo.

    A tentao, de origem positivista, a de transformar o dilogo oral em um texto escrito, que funcione como se fosse um texto escrito. O texto escrito o resultado do trabalho de escrev-lo, mais que o trabalho em si. Eu digo sempre que um texto de histria oral uma edio crtica que tambm inclui as verses provisrias e todas as correes.

    E o dilogo? Ningum fala da mesma maneira, independente de quem seja o ouvinte e das perguntas feitas. Mesmo assim, h blocos narrativos e de memria que so os mesmos sempre,

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    apesar do estilo, da maneira de construo e da ordem do dia. A entrevista depende das duas pessoas que esto envolvidas, pois uma criao biunvoca: h dois autores em uma entrevista. H pequenos mtodos: no necessrio sempre incluir as perguntas o que eu fao incluir as perguntas somente quando so necessrias para entender as respostas, todavia suficiente para que o leitor saiba que houve perguntas, que era um dilogo.

    Quanto a cortar, referindo-me montagem, parece-me completamente legtimo, uma vez que o historiador assume a responsabilidade do que faz, e que seja possvel verificar isso em um arquivo. O nico limite objetivo que deve, normalmente, ser observado que no os faam dizer coisas que no foram de fato ditas.

    Mas, este o nico limite objetivo. Tudo isso um encontro interpretativo, como fazer um filme que se corta, se monta. Enfim, a responsabilidade nossa, somos ns que colocamos a assinatura no livro. H toda uma dimenso esttica talvez porque lido com literatura pois parece-me que a dimenso esttica um nvel cognitivo, isto , um nvel de conhecimento muito importante. Tambm porque nos relatos orais a distino de gneros que fazemos, ou seja, nos gneros da escrita o ensaio, o romance, a epopia se mesclam, uma mistura de todos e o nvel esttico muito importante para os entrevistados.

    Deste modo, h que se preservar essa importncia esttica na construo do texto. Uma coisa que acho que nunca me atrevi a escrever que um dos modelos que utilizo o modelo das cantatas de Bach: quando o coral pe todas as vozes juntas (que falam juntas) e depois vm as rias ( uma voz que fala), recitao quando falamos ns. uma das formas que utilizo como modelo para criar o texto.

    Prof Yara - Sabe-se que o percurso da histria oral sempre foi muito polmico, dentro e fora da Academia, nos mais variados pases. Contudo, pensamos que este percurso tem sido tambm muito proveitoso, muito rico, haja vista alguns trabalhos provenientes da antiga Unio Sovitica, do Oriente Mdio, e da frica, por exemplo, que tm contribudo muito na ampliao dos horizontes da histria e da memria e nas reflexes sobre

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    as relaes entre histria e memria. Com relao experincia que tem sido vivida pela histria oral na Itlia, como voc a v? Quais tm sido as reflexes em torno da histria oral? Em seu prprio trabalho, quais so suas pesquisas mais recentes e suas indagaes pessoais atualmente e suas?

    Prof. Portelli - Na Itlia, um encontro como este no teria sido possvel at aproximadamente dois anos, porque no h cursos de Histria Oral na universidade. Os pioneiros na Histria Oral so pessoas como Csare Bermani, que h quarenta anos faz histria oral e est completamente desempregado, ou Lusa Passerini, que teve de abandonar a Histria Oral para conseguir uma ctedra na universidade, ou eu mesmo, que tenho uma ctedra, mas em outra disciplina, ou Giovanni Contini, que trabalha com Arquivos Regionais da Toscana, no na universidade, ou Alfredo Martini, que faz relaes pblicas para o Grmio dos Construtores em Roma.

    A mudana se fez no sentido de os historiadores se conscientizarem de que a memria uma questo poltica de primeira importncia. Isso se passou nos anos 1990, quando o revisionismo histrico da direita se tornou uma maneira de atacar os fundamentos prprios da democracia constitucional na Itlia.

    Basicamente, o relato mtico oficial d conta de que a Itlia uma Repblica que nasceu da resistncia antifascista. Assim, a Itlia oficialmente uma Repblica antifascista. No entanto, a resistncia no foi um feito de todo o povo, mas de minorias que tinham razo. Contudo, houve uma parte das pessoas que aderiram ao fascismo e muitos que no tomaram uma posio. Assim, nos anos 1990, quando a direita subiu ao poder e a est at hoje , a reviso da memria histrica sobre a resistncia, especialmente e, sobretudo, toda a histria da Repblica, se tornou a ferramenta ideolgica da direita para mudar a Constituio, mudana que ainda no se atreveram a fazer, mas lhe outorgaram toda autoridade.

    Por exemplo, em sua campanha eleitoral, Berlusconi disse na televiso que a Itlia havia estado sob uma hegemonia marxista por cinquenta anos. Bem, nunca tivemos um comunista no governo, a escola sempre esteve nas mos da democracia crist

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    e da igreja catlica. Se a cultura tinha muita influncia marxista, no era a nica, pois havia outras. Contudo, o drama foi que ningum contestou isso, porque os historiadores, os intelectuais, os polticos de esquerda acreditavam que era uma coisa to absurda que ningum lhes daria crdito. Todos, no entanto, creram naquilo que se afirmava. E aqui est uma questo da memria: todos nos lembramos de que, na escola, no se podia sequer falar da resistncia at os anos sessenta.

    Assim, a questo da memria se transformou em uma arena de luta poltica muito importante e os historiadores se deram conta disso, tornando a Histria Oral algo um pouco mais respeitvel. Meu ltimo trabalho teve, deste modo, um reconhecimento que no teria sido possvel h dez ou cinco anos.

    A dificuldade de estabelecer a Histria Oral como algo respeitvel nos anos 1970 e 1980, de alguma maneira, foi uma vantagem, porque nos imps a necessidade de afinar nossas ferramentas tericas. Todos os pecados que cometemos no passado com relao Histria Oral colocam-se no sentido de crer que, atravs dela, tivemos acesso experincia e que o testemunho era a verdade e, ainda, que era bastante fcil para os crticos da Histria Oral mostrar que no era assim.

    Tivemos, ento, que fazer duas coisas: uma, afinar a certificao, a verificao das narrativas, isto , fazer com as fontes orais o que se faz com todas as fontes. No consider-las boas automaticamente, como fazemos com documentos de arquivos ou textos que supomos verdadeiros. Ocorreu que a crtica Histria Oral no s se imps ao fazer o trabalho de verificao, como tambm ao dizer que o mesmo trabalho de anlise textual deveria ser feito com toda documentao.

    A outra direo que tomamos, mais especificamente Lusa Passerini e eu em um procedimento bem italiano foi exatamente demonstrar que, quando os relatos no coincidem com os acontecimentos materiais, h um trabalho da memria, h um trabalho da subjetividade, da imaginao, do desejo. Diante disso, h que se considerar tudo o que os crticos diziam ser os limites ou os defeitos da Histria Oral: a subjetividade, a memria e a linguagem como seu cerne e trabalhar sobre a Histria Oral

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    precisamente como o lugar onde se coloca a histria da memria e a memria como fato histrico em si mesma. No caso das Fossas Ardeatinas, a questo no tanto o que ocorreu, mas como foi recordado o que ocorreu, que o fato histrico mais importante, seguramente.

    A respeito de nosso projeto, estamos construindo esse arquivo oral de Giani Bosio, que uma organizao basicamente de movimento, autnoma, que trabalha sobre msica popular, histria oral e cultura das classes no hegemnicas. Nossa idia constituir um arquivo central das fontes orais, onde o pesquisador possa tambm realizar sua consulta. So that any historian who is doing a project will may consult both the documentary archives such as the state archive or the municipal archive but also the oral sources gathered in one place. (Assim, tambm o historiador que estiver fazendo um projeto poder realizar consultas documentais tanto nos arquivos do Estado quanto nos arquivos municipais, reunindo num mesmo local as fontes de pesquisa oral.)

    O problema criar situaes para a utilizao dos arquivos e, tambm, produzir algo a partir do arquivo: estamos pensando em multimdia, CD-ROM, discos de msica, que j estamos produzindo.

    Sobre projetos de pesquisa, h dois projetos paralelos que nasceram de um investimento pela primeira vez foi investido algum recurso financeiro para este tipo de pesquisa por parte dos padres salesianos e da comunidade judia. Os padres salesianos financiaram a pesquisa de histria oral de uma casa de crianas de rua em Roma, criada em 1946 e que existe at hoje. Foi uma experincia muito interessante, pois sempre fizemos projetos com pessoas que tinham, de alguma forma, algo em comum, como trabalhadores, estudantes, esquerdistas e agora estamos entrevistando sacerdotes e catlicos praticantes, o que foi extremamente interessante porque o encontro com uma alteridade uma experincia que proporciona muito crescimento. Foi, tambm, uma oportunidade para formar jovens pesquisadores que fizeram a maior parte do trabalho. O mesmo estamos fazendo com a Casa de rfos Judeus em Roma. De alguma maneira, os dois projetos integram uma imagem da criana marginal em Roma no ps-guerra.

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    Falei do projeto sobre Gnova e da questo no global. Tambm continuamos entrevistando partigiani5 e pessoas da resistncia. H um projeto sobre a histria da gua em Roma, de como chegou a gua aos bairros da periferia.

    Estamos tambm prestando consultoria e ajudando em uma pesquisa em Puglia, no sul, sobre a memria das trabalhadoras na industria do tabaco. uma histria de um trauma, pois houve uma greve que resultou em um massacre nos anos 30. O que muito interessante a memria desse acontecimento, pois a memria local muito mais complexa que a memria histrica.

    Da mesma forma, estamos terminando uma pesquisa sobre a memria dos bombardeios em Roma, que uma memria muito complexa, muito difcil, porque os que nos bombardearam eram os bons, aqueles que nos libertavam dos inimigos. Como recordar que os bons destruram sua casa e mataram sua filha ou seu pai? Como se organiza esta memria? sobre isto que estamos trabalhando.

    Prof. Paulo R. de Almeida - A respeito do desafio-dilema dos historiadores italianos sobre a ascenso da direita e sobre essa reviso da memria, coloca-se a seguinte questo: por onde que os historiadores esto disputando essa memria? Isto porque aqui no Brasil tivemos um grupo de intelectuais ligados ao presidente Fernando Henrique Cardoso, que reescreveu a histria do Brasil luz da proposta do partido do grupo hegemnico, idia que circula, inclusive, nas escolas. Qual o objeto, isto , a pesquisa privilegiada, hoje, e por onde que se imagina que se possa disputar essa memria?

    Prof. Portelli - Publicou-se recentemente um livro que se coloca como a histria da cidade de Roma, de Vittorio Vidotto Roma contempornea. um livro bastante revisionista porque

    5 Partigiano(a) a denominao dada aos homens e mulheres que lutaram no movimento de resistncia italiana ao nazi-fascismo, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Esse movimento agrupava diversas organizaes polticas, sobressaindo-se o Partido Comunista Italiano e os socialistas.

    Utilizamos o termo em italiano: partigiano (singular masculino), partigiani (plural masculino), partigiana (feminino) e partigiane (plural feminino).

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    se inspira na ideologia oficial do presente, que a ideologia do anti-antifascismo. Este autor escreve cinquenta pginas sobre Roma no perodo fascista e diz que foi uma poca de ouro para a arquitetura. A impresso que tenho quando chego ao campus da Universidade de Roma de horror, mas esse livro e outros dizem que a obra maior do racionalismo arquitetnico em Roma. No entanto, no diz nada sobre a depresso, sequer sobre as pessoas que foram reduzidas misria, expulsas ou confinadas. Toda a histria da cidade parece ser a histria de grupos dirigentes, de planejadores urbanos e de arquitetos. A cidade no tem habitantes, no h ningum na cidade.

    Fui ao lanamento do livro e nesta situao h uma dificuldade evidente, pois no se pode contestar um livro na ocasio de seu lanamento. Mas, um lado positivo do livro que ele traz algum recheio de dados. Em algum momento, descreve todos os edifcios que foram feitos durante o fascismo, falando tambm do edifcio onde se abrigaram os sem casa, os que foram expulsos dos bairros centrais, os quais foram destrudos para se edificar as avenidas monumentais do fascismo. Essas pessoas foram expulsas e muitas delas acabaram vivendo em alguns edifcios na Garbatella. Diz que, mesmo nesses edifcios destinados a essa gente sem casa, no faltava um certo garbo, uma elegncia arquitetnica.

    Felizmente, eu tinha cinco ou seis entrevistas com pessoas que viveram nesses edifcios e as li. Os depoimentos diziam que esses edifcios eram como cadeias, pois no tinham espao, no tinham cozinhas nem banheiros, tudo era feito de ferro fixado no cho, uma verdadeira priso.

    A distino que, na Histria Oral, nunca nos esquecemos que h pessoas, h gente, h vidas individuais nas cidades. O risco perdermos de vista o marco geral, a viso total, global, nacional, e isso algo sobre o qual temos de dedicar mais ateno.

    Outro ponto: a administrao regional do Lcio, que de direita muito radical, questionou os livros de histria utilizados nas escolas como sendo no objetivos porque so antifascistas. Propuseram, assim, estabelecer uma comisso para revisar os

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    livros de histria e fazer uma histria, ainda assim, oficial. A questo que ambas, a direita e a esquerda, consideram

    que ter uma memria dividida, um conflito de memrias no pas, algo que no deve existir: deve-se ter uma memria unificada. Do meu ponto de vista, esta uma posio inconcebvel, pois as memrias tm que estar divididas: um conflito de memrias. Uma coisa acertar os acontecimentos na medida em que isso seja possvel, mas decidir qual o sentido dos acontecimentos, quais so os valores que esto implicados nisso algo bem diferente.

    A nova ideologia que os herois so os observadores, os que esperavam para ver o que teria acontecido. H livros de Renzo De Felice, que falam que os fascistas e os partigiani no se enquadravam no carter nacional italiano porque eram ideolgicos e, basicamente, porque se envolviam no destino do pas. A Constituio que temos na Itlia pressupe uma cidadania comprometida, uma cidadania participante e a mudana, ao que chamamos Segunda Repblica, a que pressupe uma cidadania que vota, se vota e vai votar uma vez a quatro anos e depois os deixa a seu bel-prazer. Deste modo, a ideologia dominante supor que o carter nacional italiano o carter de no envolver-se, ou seja, o carter da indiferena. O anti-antifascismo isso, porque ns, os italianos, no nos envolvemos, nem nos comprometemos.

    Assim, a Histria Oral precisamente um mtodo para contestar, para dizer no a essa ideologia hegemnica, pois sempre houve uma inteno popular, uma participao popular nos acontecimentos histricos.

    Prof. Paulo R. de Almeida - H algo que ainda nos incomoda sempre que revisitamos seus textos, que diz respeito ao seu pensamento sobre a memria como algo fragmentrio, mas, em contrapartida, voc afirma que o enredo completo. Como poderamos entender este paradoxo?

    Prof. Portelli - Uma das imagens simblicas que sempre tenho em mente o quilt, (uma colcha de retalhos) feita de pedaos, maneira de um trabalho de bricolagem, ou seja, criar algo novo e com sentido a partir de fragmentos de segunda mo. Ao que me parece isso o que, frequentemente, a memria faz:

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    fixa-se em fragmentos, ou melhor, em unidades de memria que no esto necessariamente conectadas em uma narrao, em um relato cronolgico ou em uma sequncia lgica, contudo se associam, cada vez de uma maneira distinta, buscando uma relao entre eles na criao de um sentido que todos estes fragmentos constroem juntos.

    No tanto uma questo lgica quanto uma questo de associaes, s vezes puramente estticas ou simplesmente verbais. H uma palavra, ou um objeto, que aparece em duas experincias distintas e ento se associam. Tem-se aqui outro mtodo de construo do texto: seguir as conexes das palavras. Assim, a memria apresenta-se ao mesmo tempo fragmentria, pois no um construto perfeitamente arquitetnico, mas tem um sentido, ou seja, cada vez constri um sentido com associaes diferentes. O sentido global, pois qual o sentido da minha vida?

    Questes apresentadas pelo pblico presente entrevista:

    Jorgetnea (Doutoranda PUC/SP): Buscando trabalhar na perspectiva de como as trabalhadoras domsticas sentem as inovaes tecnolgicas no trabalho, procuro investigar, em minha pesquisa, a forma como preservam ou alteram seu modo de vida, como encaram a questo do consumismo, os novos padres de alimentao, as comidas rpidas e como elas procuram manter algumas prticas anteriores. Uma dificuldade sentida o fato de no trabalhar com o acontecimento em si, mas com a vida cotidiana. Assim, elas se lembram do antes e do depois de formas variadas.

    Um fato que incomoda diz respeito s memrias proibidas: em relao ao trabalho domstico no Brasil, h uma ideia muito presente do preconceito, pois se trata de um trabalho discriminado socialmente. Deste modo, h assuntos dos quais estas trabalhadoras no gostam de falar, como por exemplo: pelo fato de a maioria delas ser negra, o tema do racismo no mencionado, nem o tema do abuso sexual, da explorao no trabalho, ou seja, so os temas proibidos. Neste sentido, como

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    chegar a abordar esses temas? Como se colocam as dificuldades e as possibilidades de tratar esses temas proibidos durante as entrevistas?

    Prof. Portelli - Este um exemplo perfeito de pesquisa da vida cotidiana, pois o espao o espao da casa e tambm porque um grupo de trabalhadores e trabalhadoras que praticamente no aparece nos livros de histria, mas aparece mais frequentemente nas novelas. H um filme muito bonito de Altman, lanado recentemente, Gosford Park, que aborda a relao entre patres e empregados domsticos em uma casa aristocrtica na Inglaterra nos anos 30.

    um tipo de trabalho to discriminado que at mesmo as pesquisadoras feministas italianas no conseguiram fazer quase nada, porque houve uma gerao em que no havia trabalho domstico. Depois dos anos 60, a classe mdia no tinha empregadas domsticas nas casas, devido aos avanos tecnolgicos e a nica trabalhadora domstica que havia era a baby sitter. Por outro lado, agora, quase todo trabalho domstico feito por imigrantes. A maioria das trabalhadoras so filipinas e, entre todas, as questes de racismo e de abuso sexual permanecem como questes proibidas.

    O que se faz com as memrias proibidas? Creio que no h muito o que fazer. Para citar Fidel Castro: transformar a derrota em xito. O que se pode fazer descrever os contornos daquilo que est proibido, daquilo de que no se pode falar, lembrando que a entrevista sempre, para esses trabalhadores e trabalhadoras, uma apresentao de si mesmos e que h sempre uma busca de imitar. Assim, como querem aparecer? Sempre nos dizem algo sobre como so os problemas, mas h sempre a inteno de aparentar algo como: sempre me respeitaram!. Nunca ouvi um advogado dizer sempre me respeitaram, mas sempre ouvi isso da parte de trabalhadores, de operrios ou domsticos. Com isso quero dizer que h a um problema implcito de respeito.

    No fazer uma entrevista invasiva uma indicao de respeito em si mesma e pode abrir espao para que se tenha confiana o bastante, para que se possa tocar em coisas que no teriam sido ditas se algum no tivesse perguntado. Deve-se criar o espao.

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    Uma tcnica se que se pode chamar de tcnica no cortar a entrevista quando se esgotam as perguntas, ou seja, quando parece que j tenha terminado.

    Todos temos uma ordem do dia, que est preestabelecida, e os entrevistados tambm tm uma ordem do dia que creem seja o que se pode e o que se deve falar em um contexto histrico, porque sabem que o que tm a dizer, ainda no est reconhecido como histrico e, por esta razo, no falam.

    Um exemplo: sobre as Fossas Ardeatinas, o que me interessava era o que ocorreu depois. Entrevistei uma mulher que era uma das narradoras entrevistadas com mais frequncia. Ela fez um relato dramtico e fantstico porm, quando seu relato acabou terminava justamente no dia da morte de seu marido , interessava-me tambm sua vida depois desse acontecimento. Eu no tinha perguntas especficas e simplesmente j considervamos a entrevista por terminada, porm a fita corria e ela no sabia. Falvamos superficialmente sobre o assunto e ela comeou a queixar-se da penso que recebia, que no era a mesma de outras vivas queixas prprias de idosos e depois disse: o que me custou receber esta penso!. Eu lhe perguntei em que sentido?, e ela explicou: a qualquer lugar que se fosse, nos escritrios, e mesmo no meu trabalho quando comeou a trabalhar as pessoas supunham que estava sua disposio. E perguntei mas em que sentido?, e ela disse: no sentido em que est pensando. Ela mesma no tinha as palavras para dizer abuso sexual. Ela nunca havia pensado que isso seria uma matria de histria e o mencionou quando no se falava mais de histria, mas quando se falava de sua vida.

    E ento se imps o problema: como vou verificar se este um caso excepcional, ou algo que aconteceu com outras mulheres? Como perguntar a uma senhora idosa se houve algum abuso sexual? No convm fazer este tipo de questionamento. Como entrevistador, deve-se abrir um espao discursivo onde se colocariam oportunidades de mencionar coisas deste tipo. H coisas que estavam proibidas h vinte anos que se colocam abertamente agora. O que est, ou estava, proibido tambm um fato histrico.

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    Outro exemplo uma entrevista com um mineiro em Harlan, que havia estado na guerra no Vietn. Entrevistvamos este mineiro e sua me e disseram-nos que no lhes perguntssemos nada sobre o Vietn, porque sua me estava nervosa e no queria ouvir nada a esse respeito. Assim, no indaguei diretamente sobre o Vietn, mas perguntei se havia estado nas foras armadas e ele respondeu que nunca esteve. Ao final, havia me esquecido de tirar umas fotos, ento voltei e perguntei se poderia tirar algumas. Ele ento permitiu e, quando entrei, disse-me, parte, que estivera, sim, nas foras armadas e no Vietn, e contou-me tudo. Isso porque eu no havia perguntado, porque ele sabia que eu tinha cincia desse fato e que, apesar disso, no perguntara, o que significou um sinal de respeito.

    Larissa (Mestranda em Histria/UFU) - Ao conversar com as pessoas mais velhas da comunidade negra catlica, h um mito religioso de N. Sra. do Rosrio e So Benedito que traz a histria de como foi encontrada N. Sra. do Rosrio. Essas pessoas se colocam no relato em primeira pessoa, contando a histria do mito, como se elas tivessem visto a N. Sra. do Rosrio, como se elas prprias tivessem ido atrs e no tivessem conseguido. Todo o relato , portanto, colocado em primeira pessoa. Como se deve olhar para esse fato, ou seja, para esse tipo de relato colocado em primeira pessoa? Deve-se crer e respeitar a ponto de ir com esta pessoa at o lugar onde afirma ter visto a santa?

    H outro caso que se passa com os mais antigos. Eu creio que pode ter havido alguma mudana no ritual do Congado aps a abolio da escravatura no Brasil. Creio, porque venho pesquisando e indagando, contudo ainda no posso afirmar nada. Sinto que h alguma relao com a abolio, porque eles dizem que a festa do Congado comemora o dia 13 de maio, que tambm a data da abolio. De qualquer forma, algumas pessoas mais velhas, quando vo relatar o passado, se colocam como se tivessem vivido no passado. Um exemplo o de um senhor, nascido em 1901, que afirma ter vivido a lei do Ventre Livre, que uma lei anterior abolio. Tendo nascido em 1901, este senhor diz tambm ter vivido a abolio, que de 1888. Como ficam essas distores no tempo, nesse caso?

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    Prof. Portelli - Realizei uma entrevista sobre um acontecimento histrico de quando estava na escola secundria. O acontecimento histrico de minha escola foi um escndalo, porque alguns alunos jogavam objetos no crucifixo e o sacerdote, um professor de religio, se recusou a entrar nesta escola por meses. Descobri que este professor era um dos fundadores da Casa de Crianas de Rua salesiana, a qual eu estava pesquisando. Ao entrevistar outro padre salesiano, o padre entrevistado disse que meu professor sempre falava desse fato. Ento, instintivamente, eu disse que o fato ocorrido foi em minha classe apesar de ter sido na classe ao lado mas meu instinto foi de colocar-me no centro do relato histrico. Este um exemplo de como ns sempre tendemos a colocar-nos no centro dos acontecimentos histricos.

    Tenho uma srie de entrevistas de pessoas que afirmam ter estado no Congresso de fundao do Partido Comunista e de haver conhecido Gramsci. Os mitos a que se referem so exatamente como os mitos dos velhos militantes comunistas e sobre Gramsci: eu o conheci e me escondi com ele nas montanhas.... Gramsci nunca se escondeu nas montanhas! Sobre os acontecimentos nas Fossas Ardeatinas, todos dizem que estavam ali, ou que seus pais estavam ali, e tudo mais.

    Certa ocasio, quando comprava um computador para o arquivo da pesquisa, chamaram-me pelo celular para pedir informaes sobre um evento da ocupao alem e, quando terminei de falar, o vendedor que me atendia disse que sua tia tambm havia sido levada depois dos ataques partigiani e que havia sido na Via Merulana. No houve esse fato na Via Merulana naquele dia.

    Parece-me que isso que a pesquisa sobre o referido relato dos antigos negros do Congado descobre: que h uma relao to forte da identidade pessoal com esse mito, que as pessoas se colocam no centro do mito.

    H tambm os cantores populares, que cantam canes que tm sculos de histria, os quais frequentemente dizem que tais canes foram compostas por eles. Talvez seja mentira, mas quando algo se passa na memria de algum e literalmente se solta do prprio corpo, um acontecimento to pessoal e algo que foi elaborado nessa memria individual a ponto de se transformar, isto , em uma memria pessoal.

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    Felizmente temos medidas para verificar se estava ou no. Mas, o que mais me entusiasma quando dizem que estavam, quando no estavam de fato, mais do que quando dizem que estavam, quando de fato estavam! E a contradio muito interessante, quando diz que sabe que a escravido acabou em 1888, tendo nascido em 1901, afirmando que viveu na escravido. Parece-me que, em princpio, trata-se de uma contradio, ou seja, da maneira como isso nos vale nos sonhos, no necessariamente vale na memria. Essa a questo da memria fragmentria: o que de fato faz sentido o sentido em si mesmo.

    Quando entrevistava as pessoas em Terni, sobre a morte do trabalhador, pela polcia, em 1949, todos diziam que havia morrido em 53. O que me interessava era saber porque isso se dava. Deixava que dessem sua verso dos fatos e depois considerava correto dizer o que me constava: que o fato havia ocorrido em 49. Apesar disso, essas pessoas no faziam caso do dado que lhes fornecia, ignorando-o completamente. Preferiam ficar com sua verso sobre o fato e com o sentimento que traziam a respeito. O sentido da experincia que esse acontecimento tornou-se significativo em 53. Que tenha ocorrido em 49 ou em 53, o sentido o mesmo. Saber que no viveram a escravido, mas crer que a viveram quer dizer que h algo na condio da escravido que se transmite e assim prossegue.

    Ana Magna (Doutoranda PUC/SP Professora de Histria/UFU) - Vemos que parcela dos historiadores brasileiros tm lidado com temas como festas, cantorias, canes, tradies populares, como por exemplo o carnaval. Isso importante pelo resgate que fazem dessas tradies significativas da cultura brasileira, extremamente diversificadas. Por outro lado, essa historiografia, ou parcela dela, embora resgate tradies, tratam-nas como se fossem cristalizadas, deixando de lado, por vezes, uma dimenso poltica e modos como essas manifestaes culturais expressam relaes sociais, muitas vezes de excluso, de negao de direitos, de negao de uma memria das classes populares. Gostaria que comentasse a respeito desse panorama delineado com relao ao tratamento que se tem dado a essas tradies.

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    Prof. Portelli - Minha pesquisa teve incio buscando canes populares. A instituio mais importante de Histria Oral da Itlia o Instituto Ernesto de Martino que se estabeleceu em Milo e agora est em Florena, o Sesto Fiorentino. Foi estabelecido por Giani Bosio, entre os anos 50 e 60, e o musiclogo Roberto Leydi. A ideia que tinham era que, se pretendamos fazer a histria das classes no hegemnicas, teramos que buscar os meios de expresso mais importantes das classes populares.

    Um dos ensaios mais importantes Elogio ao gravador de Giani Bosio, pois coloca a importncia do gravador, ou seja, graas inveno deste aparelho haveria a possibilidade de fazer um estudo crtico das colocaes orais, o que era impossvel de se realizar antes.

    Foram feitas pesquisas de campo sobre memrias e msicas. Criou-se o folk revival e todos os grupos de msica popular e discos, sendo que o primeiro disco que fizeram no foi de canes polticas, mas de cantos religiosos populares, porque isso era poltico tambm. O conceito que se tem que o poltico no se restringe quilo que fala de poltica ou de ideologia, pois o fato poltico fundamental que as classes no hegemnicas tm suas formas expressivas, sejam as festas, sejam os mitos, sejam os cultos, seja uma maneira distinta de participar na religio oficial. Isso era um fato histrico e no algo cristalizado. tambm um fato de protagonismo popular e no algo que devesse ser visto com um olhar paternalista, da cultura alta sobre a cultura baixa.

    Giani Bosio escreveu outro ensaio fundamental, O homem histrico e o homem folclrico, falando sobre a ideia em torno desse homem folclrico como algum que no faz parte dessa nossa sociedade, do nosso tempo, da nossa poca e que, enfim, no um cidado. Se olharmos para o folclore como atividade de homens histricos, temos outra maneira de interpret-lo.

    Tive, certa vez, uma polmica com um folclorista norte americano sobre um disco de canes populares que publiquei nos Estados Unidos, Avanti popolo!, que era uma seleo de canes populares de protesto, de tradio oral pura, puro folclore, mas que falavam de socialismo, comunismo, anarquia, greves. Publicaram uma nota crtica no Journal of American Folklore que

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    dizia que no se tratava de folclore, mas de ideologia. Repliquei dizendo que os cantores populares tambm votam, so tambm cidados e tm ideias.

    Na Itl ia houve todo um perodo histrico que lamentavelmente est acabando em que havia uma ideia de sociedade alternativa, que tinha sua conscincia poltica, que se exprimia em uma tradio oral, assim como na participao poltica. Um exemplo de historiografia de festas populares a questo da chamada Pizzica, uma dana popular extraordinria que se faz em Puglia: h toda uma revitalizao da Pizzica, pois todos tocam o tamborim e todos danam, algo que estava praticamente esquecido.

    H uma discusso poltica em torno disso, pois a Pizzica uma dana como outra qualquer, mas tem esse nome porque havia uma tradio de religio popular nessa regio, em que as pessoas diziam que eram picadas por uma aranha tarntula da a origem de Tarantella e teriam um transe muito perigoso, sendo que a maneira de evitar esse transe era atravs de msicos que tocavam na casa da pessoa vitimada pela picada. O movimento incontrolvel do corpo tornava-se gradualmente uma ordem rtmica e essa msica era utilizada para evitar o transe e recuperar o controle.

    H agora toda uma ideologia e um pensamento antropolgico dos franceses que tm ideias muito interessantes, porm um tanto diferentes que acreditam ser o transe uma realidade alternativa, uma forma de sair deste mundo inaceitvel e buscar outros nveis de conscincia. Assim, dizem que a Pizzica tem essa finalidade, ou seja, de buscar o transe.

    Deste modo, h uma discusso sobre o sentido alternativo da Pizzica como forma de alienao da conscincia cotidiana, buscando uma experincia de transe. exatamente o contrrio, pois ideologicamente no admitem que as pessoas tm tambm necessidade de controle, ou seja, de ordem em suas vidas. No candombl ou no vodu, por exemplo, o ritmo serve justamente para buscar outro nvel, ou o transe, mas no o caso da Pizzica, em que a crise existencial ocorre de formas distintas, de pessoa para pessoa, mas simbolizada por esta picada da aranha. Agora,

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    uma infinidade de jovens vo a Puglia para danar a Pizzica. H uma festa em 15 de agosto, em San Rocco, cuja tradio era que todos iam com os tamborins, tocavam e danavam (tenho isso gravado por duas vezes). Atualmente, parece que qualquer pessoa pode pegar um tamborim e sair danando, o que indica que a tradio est bastante contaminada. Contudo, a contaminao tambm algo interessante. Uma ideia que a Pizzica um rito que tem dois mil anos e que serve para buscar o transe: essa a cristalizao mitificada.

    Escrevi um artigo, H s a Pizzica em Puglia?, questionando sobre o que fazem as pessoas em Puglia quando no danam a Pizzica. Puglia o lugar onde desembarcam todos os clandestinos provenientes da Albnia e h um relacionamento muito complexo entre as pessoas, moradores italianos do local e os albaneses, e a msica. Assim, a Pizzica um fato histrico que diz algo sobre as mudanas antropolgicas e polticas. Por outro lado, a campanha eleitoral do candidato de direita daquela regio se desenvolveu em torno da Pizzica. Ento, um olhar progressista sobre a Pizzica um olhar que no a cristaliza em folclore, a v como um fato histrico em constante movimento.

    Universidade Federal de Uberlndia Instituto de HistriaGrupo de Estudos e Pesquisas em Histria, Movimentos

    Sociais e Trabalho

    Transcrio e traduo: Noemi Campos Freitas Vieira6Reviso tcnica e notas: Leandro Jos Nunes7

    6 Professora de espanhol com Diploma Superior de Espaol Lengua Extranjera, conferido pelo Ministerio de Educacin y Cultura da Espanha. Graduanda no curso de Letras do Instituto de Letras e Lingustica da Universidade Federal de Uberlndia; pesquisadora em Lingustica e Literatura no programa Pibic/CNPq.

    7 Leandro Jos Nunes Mestre em Histria Social pela PUC-SP, doutorando em Histria pela USP e professor do Instituto de Histria da Universidade Federal de Uberlndia.