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    Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 3, pg. 2943

    VASCO GRAA MOURA E O NAUFRGIO DE SEPLVEDA

    Andr Luiz Alves Caldas Amra (UNICARIOCA)[email protected] e [email protected]

    Pensar Portugal no sculo XX no apenas situ-lo historicamen-te, mas refletir sobre a condio de um pas atado a suas antigas conquis-tas e glrias, como uma metrpole colonialista, detentora de um imprioonde o sol nunca se punha. A autoimagem distorcida remete epopeia deCames, das armas e dos bares assinalados, em que a caravela lusitanaostentava a condio de senhora do ultramar. Porm, o que se pde per-ceber no decorrer da histria de Portugal foi um imprio marcado por

    perdas e por imposies estrangeiras. O sonho expansionista e o cartercolonizador do Imprio lusitano, cantados por Cames em sua epopeia,encontram-se merc de uma melancolia devastadora140, que perdura nopeito ilustre lusitano.

    Os seguidos naufrgios dos sonhos portugueses e a constataocrua de sua condio semiperifrica em relao aos outros pases da Eu-ropa direcionam Portugal a uma crnica melancolia que envolve tudoaquilo que poderia ter sido e no foi, num estado de quase inrcia de seu

    tempo que acaba por tocar no prprio perfil do homem portugus que,segundo Maria Luisa Blanco, no se revolta face ao destino, h neleuma aceitao resignada do que o destino lhe pe diante. A maioria delesso assim: calados, pausados, nunca estridentes, o sorriso em vez do risoaberto, a cortesia, a discrio. (BLANCO, 2002, p. 19)

    Na postura quase passiva, resignada ante o destino, comentada porBlanco, percebe-se a sugesto de um povo cuja identidade parece cons-truda a partir da prostrao. De onde viria tal prostrao? De que modoos acontecimentos histricos se refletem no processo identitrio lusitano?

    Para Bauman (2005, p. 16), na construo ou busca de identidade, tarefaintimidadora de alcanar o impossvel. Bauman diz ainda que a identi-dade uma luta simultnea contra a dissoluo e a fragmentao: umainteno de devorar e ao mesmo tempo uma recusa resoluta a ser devora-

    140No esqueamos, porm, a clarividncia camoniana que o faz antecipar o julgamento da ptria edos seus concidados, por uma voz que no hesita em afirmar, com dureza repassada de dor, os

    descaminhos de Portugal, presente nOs Lusadas, em X, 145.

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    do (Ibidem, p. 84) e que [...] o prazer de selecionar uma identidade es-timulante corrompido pelo medo (Ibidem, p. 45).

    Lilia Moritz Schwartz, em sua apresentao da obra de BenedictAnderson, Comunidades imaginadas, refere-se aos romances de funda-o como verdadeiros construtores de um passado e de identidade. Se-gundo a estudiosa, mais que inventadas, as naes so imaginadas [...]e constituem objetos de desejos e projees (ANDERSON, 2008, p. 10).E, no caso portugus, as glrias do passado so ritualizadas em textosque canonizam a conquista, naquilo que Hall denomina narrativa da na-o:

    Como contada a narrativa da cultura nacional?

    [...]Em primeiro lugar, h a narrativa da nao, tal como contada e recon-

    tada nas histrias e nas literaturas nacionais, na mdia e na cultura popular. Es-sas fornecem uma srie de estrias, cenrios, eventos histricos, smbolos e ri-tuais nacionais que simbolizam ou representamas experincias partilhadas, as

    perdas, os triunfos e os desastres que do sentido nao. (HALL, 2006, pp.51-2)

    O povo portugus, apegado prpria imaginao, tem nOs Lus-adasa sua maior inveno. Comentando a assertiva de Anderson, que o

    que intenta o nacionalismo a lngua impressa (ANDERSON, 2008, p.190), Schwartz comenta que por meio do material impresso que a na-o se converte numa comunidade slida, recorrendo constantemente auma histria previamente selecionada (Ibidem, p. 13).

    No caso portugus, a dissoluo e a fragmentao referidas porBauman podem ser explicadas pela melancolia proveniente do fracassoda empresa expansionista de Portugal. O prprio ufanismo portugus, di-fundido na epopeia camoniana, constri uma imagem distorcida e fanta-siosa da nao e de sua verdadeira identidade. A respeito dessa represen-

    tao fantasiosa realizada por meio de smbolos, num discurso nacional,diz Hall:

    As culturas nacionais so compostas no apenas de instituies culturais,mas tambm de smbolos e representaes. Uma cultura nacional um discur-so um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas a-es quanto a concepo que temos de ns mesmos. As culturas nacionais, ao

    produzir sentidos sobre a nao, sentidos com os quais nos podemos identi-ficar, constroem identidades. Esses sentidos esto contidos nas estrias queso contadas sobre a nao, memrias que conectam seu presente com seu

    passado e imagens que dela so construdas. (HALL, 2006, pp. 51-2)

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    A luta contra a dissoluo e a fragmentao da identidade gloriosaportuguesa e as constantes perdas em sua decadente realidade interferemno prprio processo de construo da identidade nacional. Sobre a iden-

    tidade portuguesa, Eduardo Loureno atribui a ela um carter mtico,sendo aquela, ao mesmo tempo, a glria e o calvrio de seu povo:

    Essa identidade mtica, razo de sua estranheza e do seu mistrio, o seucu e a sua cruz. Quem os far sair de um labirinto que no mais do que o dasua imagem sublimada, consoladora, de que eles so o criador e as criaturas?E por que sairiam dele? Acabou, realmente, esse tempo em que os portuguesesressentiam como uma ferida o fosso que separava o seu presente sem relevo

    particular, invisvel aos olhos de outrem, desse momento imperial de simesmos para sempre perdido? (LOURENO, 1999, p. 11)

    Publicado em 1988, o romanceNaufrgio de Seplveda, de VascoGraa Moura, tem como temtica a falncia de Manuel de Sousa Sepl-veda, um empresrio que se arruna financeiramente s vsperas da Re-voluo dos Cravos.

    Alm da presena de um personagem homnimo ao do sculoXVI protagonista do relato annimo sobre o naufrgio do galeo SoJoo, ocorrido em 1552, compilado por Bernardo Gomes de Brito, na

    Histria Trgico-Martima, e personagem central da epopeia de Jerni-mo Corte-Real, de 1594, sobre o mesmo naufrgio , a obra de Graa

    Moura analisa a questo da identidade nacional, que, segundo o narra-dor/autor, , por vezes, uma discusso em que intelectuais utilizam a ver-borragia para demonstrarem um saber intil, meramente retrico:

    [...] essa questo da identidade nacional, quando resvala para a retrica, e res-vala quase sempre para a retrica, tornou-se um verdadeiro onanismo intelec-tual, mesmo para os portugueses que no tm nada de onanistas (porque paraos outros, a questo de identidade ser, ela tambm, apenas mais uma modali-dade estafante de onanismo) [...] (MOURA, 1988, p. 11-2)

    Em contraposio ao discurso vazio dos intelectuais que utilizam

    a questo da identidade apenas por vaidade, o narrador de Naufrgio deSeplvedainvoca D. Afonso IV, enfatizando o seu nacionalismo embru-tecido, mas verdadeiro, sem a retrica vazia de tais intelectuais:

    [...] D. Afonso IV procurava, no seu modo brusco e medieval, circunscreverpor inteiro a identidade nacional, quando escrevia brutalmente ao rei de Caste-la, seu genro: E sem dvida sabei que os Portugueses nunca deixaram de usartrs cousas, a saber, lutar, pelejar com castelhanos, e demandar com boa von-tade mulheres. (Ibidem, p. 12)

    Guilherme Carneiro, amigo do narrador, com o qual discute sobre

    a arte, a poltica e a prpria identidade portuguesa, afirma que a tal iden-

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    tidade seria um assunto descontextualizado, que no seria mais um gran-de problema de Portugal, uma vez que a nao j no possua os grandesadversrios, como Castela, nem as colnias de frica, numa clara aluso

    derrocada portuguesa. Ainda em suas palavras, destaca a perda da razoda luta e do enaltecimento da nacionalidade:

    [...] esta noo emprica do vencedor do Salado, do pai e da formosssima Ma-ria, tornada de todo incua, de todo falha de contedo, porque j no haviacontexto em que pudesse ser aplicada, pois j no tnhamos onde, nem talvez

    por que lutar, nem na Europa, nem em mais parte nenhuma, Castela deixara denos incomodar havia muito e a frica fora-se [...] (Ibidem, p. 12)

    At demandar comboa vontade mulheres, uma das caractersticasmarcantes segundo Afonso IV dos portugueses, se teria perdido com

    o tempo, pois cada vez era menos preciso demand-las, bastavam a boavontade e um certo jeito para a piscadela de olho, o que, s por si, eradesconfortavelmente curto para definir a identidade nacional (Ibidem, p.12), j que o sentido da conquista se perdera. O personagem afirma quetal identidade no passaria de um orgulhinho sentido por aqueles quemantm a alma portuguesa somente em discursos vazios.

    Significativamente, o personagem, que tanto deprecia a discussoacerca da identidade portuguesa, parece ressaltar esse desprezo ao adotarcomo pseudnimo artstico Estevo Malarmado, que remete de forma i-

    nequvoca ao simbolista francs Stphane Mallarm. Interessante notarque o simbolista francs morreu sem ter concludo seu grande projeto,AGrande Obra obra em diversos volumes, de carter mstico, que busca-va explicar a origem do universo. J o personagem portugus tenta, pormeio de seu discurso incisivo a respeito da identidade portuguesa, inver-ter o processo alqumico-discursivo elaborado pela histria oficial, trans-formando aquele Portugal de ouroem um Portugal de chumbo, numa cla-ra inverso do processo alqumico. Se a nao portuguesa se enxergassecomo um pas sem iluses, seria um pas comparvel a outras naes eu-

    ropeias.Ainda segundo o personagem, a questo da identidade seria ape-

    nas um tema discutido por pessoas que quisessem ter ideias originais, a-inda mais com o acrscimo do conceito de alteridade, formando, assim,um binmio que, alm de ser um excelente mote para diversos jogos de

    palavras, seria um tema de fcil entendimento para todos:

    [...] afinal sempre a questo da identidade que se pe como tema a toda agente que queira ter ideias originais por toda a gente que nunca as teve, aquesto da identidade, agora, para mais, enriquecida com a questo da alteri-

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    dade e os jogos de palavras respectivos entre as duas noes, que no so as-sim to difceis e esto ao alcance tambm de toda a gente [...] (Ibidem, p. 19)

    A identidade ser uma das marcas mais importantes do romance

    Naufrgio de Seplveda. Ora surge em seu aspecto conceitual, por meiode debates entre os personagens, ora assume outro aspecto, referente prpria figura do empresrio Seplveda. Observa-se que, apesar de havervrias coincidncias em relao a traos biogrficos do navegante, ficaclaro que se trata de um homnimo em vez da apropriao do persona-gem histrico quinhentista. Jos Cndido de Oliveira Martins, em seu es-tudo sobre o referido romance, tece o seguinte comentrio:

    O narrador conta-nos, se assim podemos dizer, o naufrgio financeiro deum empresrio, nas vsperas da Revoluo de 25 de Abril (naufrgio de um

    Portugal?), mas com uma particularidade muito significativa, ao nvel da sele-o onomstica [...]. Com efeito, os nomes das personagens da famlia do pro-tagonista, Manuel de Sousa Seplveda, coincidem com os nomes da famliado infeliz navegador quinhentista, coincidncias que se estendem a vrios

    pormenores biogrficos. (MARTINS, s/d, p. 162)

    A tempestade, to temida pelos navegantes do sculo XVI, surgelogo no incio do romance de Vasco Graa Moura, sendo uma das coin-cidncias biogrficas que perpassam o romance. Pancadas, relmpagos,troves, chuva e ventos intensos do ao incio do romance um cenrio

    prximo ao da tempestade sofrida pelo grande Galeo So Joo, que levao seu capito e famlia ao lastimoso sucesso, num indcio do naufrgiosimblico que, no texto contemporneo, estaria por vir para o empresrioManuel de Sousa Seplveda:

    De repente, uma porta bateu com muita fora ao fundo do corredor: a ja-nela estava escancarada e a pancada viera da corrente de ar, no exato momen-to em que o relmpago tinha fendido a noite para l de Monsanto, com o seulongo rasgo de fogo em ziguezague e o seu largo estremecimento violeta p-lido a alastrar nos ares. O estrondo da porta pareceu aproximar o relmpago e

    provir dele, e a sensao s desvaneceu, segundos depois, com o ribombar datrovoada, a chegar propagado de mais longe em sucessivos mugidos surdosentrecochando-se, seguido de rajadas furiosas de chuva e de vento enfunadoao longo das ruas, numa btega tumulturia de granizo grosso enxotado contraas vidraas. (MOURA, 1988, p. 9)

    O narrador observa a destruio causada pela tempestade atravsda televiso. Se, por um lado, o fragmento em questo remete explicita-mente s tragdias martimas do sculo XVI causadas por tempestades,

    por outro, o fato de a tev surgir como elemento mediador e a presenada Ponte 25 de Abril, antiga Ponte Salazar, inserem traos da modernida-de no texto. Apesar das marcas do sculo XX, a atmosfera de medo e de

    degradao permanece a mesma do sculo XVI, inclusive com uma voz

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    que aconselha prudncia, sobretudo na ponte sobre o Tejo, evocando e-cos de um velho que vociferava contra os riscos que se enfrentavam nomar, advindos da ganncia:

    Na sala, a televiso comeava a transmitir o segundo noticirio falando datempestade, rajadas ciclnicas de 120 km por hora, aeroportos fechados, casasaludas, rvores arrancadas ou derrubadas pelo raio, inundaes por toda parte,automveis transformados em anfbios desajeitados, barcos de pesca afunda-dos junto costa, algumas vidas perdidas, imagens terrveis do mar a galgar osmolhes nos portos do norte, a gua dos rios a subir desmedidamente engrossa-da pelo temporal numa lama revolta, apelos prudncia na ponte sobre o Te-

    jo que estava em condies de meter medo. [grifos nossos] (Ibidem, p. 9)

    O romance de Vasco Graa Moura tem como narrador um editorde livros movido pela curiosidade a respeito da histria de um empres-

    rio portugus que fora falncia um pouco antes da Revoluo de Abril,e que tem o mesmo nome de um navegante portugus, vtima de naufr-gio no sculo XVI. A aproximao entre o Seplveda quinhentista e oempresrio moderno surge quando o narrador, em uma ida ao banco coma finalidade de contrair um emprstimo, ouve do gerente sobre o ocorridoao empresrio, momento em que aquele faz um paralelo entre a falnciade Seplveda e o naufrgio do homnimo quinhentista:

    [...] o gerente daquela agncia do banco, homem sorridente e afvel [...] tinhasido o gerente que [...] me perguntara [...] se eu j tinha lido nos jornais o caso

    do Seplveda, do Manuel de Sousa Seplveda, e acrescentara, com uma pis-cadela cmplice prpria dos iniciados nestas coisas de cultura, que era um au-tntico naufrgio de Seplveda. (Ibidem, p. 25)

    Curiosamente, o interesse manifestado pelo narrador no ocorrede forma imediata. Treze anos depois da conversa com o gerente do ban-co, a leitura de um artigo e de uma entrevista versando sobre a identidade

    portuguesa desencadeia no narrador a lembrana da histria mencionadapelo gerente e o interesse por ela. A partir do interesse pela histria, sur-ge o desejo de investig-la e escrever sobre ela. Tem-se, dessa forma,

    uma narrativa maior que toca em trs pontos fundamentais da literaturaportuguesa contempornea: a escrita da Histria, o paralelo entre os doispersonagens um histrico e um ficcional, que remonta a ele e o pen-sar a identidade portuguesa na atualidade.

    O narrador da histria do Seplveda atual busca escrever sobre ocaso de Seplveda/empresrio, movido pelas aproximaes entre a hist-ria do empresrio e a do navegador, e a daquele e a do pas. Este narra-dor, por coincidncia, acaba por receber em seu escritrio o senhor Jer-nimo Corte-Real, um professor que tenta publicar a obra da filha de seu

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    amigo Manuel de Sousa Seplveda, cujo nome Catarina de Sousa Se-plveda De Groot. Alm da presena de Corte-Real, homnimo do autordoLastimoso Naufrgio de Seplveda, de 1594, interessante perceber a

    relao onomstica da filha de Seplveda da obra de Vasco Graa Mouracom a me de D. Leonor de S, mulher do Seplveda do sculo XVI:

    [...] esta Catarina era filha desse Manuel, o seu melhor amigo, repetiu, e queera verdade que ele tinha falido pouco antes da revoluo, acrescentando logoque essa tinha sido a verdadeira infelicidade, porque se ele tivesse falido a se-guir revoluo, poucas ou nenhumas consequncias teria tido a falncia, isto

    porque, para j, o Manuel de Sousa Seplveda no teria sido confrontado coma iminncia da convocao dos credores, muitos deles tambm falidos a seguir revoluo [...] (Ibidem, p. 35)

    Aps o primeiro encontro com Jernimo Corte-Real, melhor ami-go de Seplveda, o narrador decide utilizar-lhe o conhecimento comofonte de pesquisas. Na tentativa de saber mais de seu objeto de pesquisa,o narrador vai casa de Corte-Real em busca de informaes. interes-sante notar que o depoimento do professor no se revela digno de credi-

    bilidade, uma vez que ele mesmo declara ser por vezes trado pela me-mria, como se verifica em seu discurso, marcado por reticncias e pelotom modalizante:

    Se eu estivesse a escrever um romance, talvez encontrasse maneira deus-las, pelo menos transpondo vrios aspectos, mas infelizmente... j no te-nho idade para essas fantasias e tudo isto me deixou muito abalado nessa po-ca. E depois este tempo infernal, chuva e vento sem parar, esta ventania ener-vante... mas olhe que j cheguei a ver estas coisas como se percorresse um li-vro. H pontos em que no sei se elas foram mesmo assim, ou se os inventei,

    por isso no acredite cegamente no que eu lhe digo. De resto vai ter de contac-tar com outras pessoas, que podero completar algumas partes da histria. (I-bidem, p. 54)

    Corte-Real revela ao narrador os casos da vida profissional e pes-soal de Seplveda, como o controle que detinha de diversas empresas, a-lm de seu primeiro casamento, conturbado, com uma jovem estudantecom a qual teve a sua filha, Catarina.

    De acordo com o relato de Corte-Real, aps o primeiro casamen-to, Seplveda seduz Leonor, filha do General Garcia de S, que queriacas-la com Lus Falco. Novamente, percebe-se a coincidncia dos no-mes dos personagens da narrativa de Graa Moura com os dos persona-gens histricos presentes nos textos do sculo XVI.

    O relato de Corte-Real revela ainda as circunstncias nada abona-doras em que se deu a unio de Seplveda e Leonor quando, logo aps

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    o casamento desta com Lus, ainda na sada da igreja, ela foge com oempresrio, numa cena que destaca a impulsividade do jovem casal:

    [...] ora bem, o pior que no dia do casamento, quando os noivos j iam sair

    da igreja para o copo de gua, quando os noivos desciam ao longo do arco desabres cruzados no ar pelos camaradas do Lus, o Manuel estava c fora, es-

    pera dela, num automvel emprestado, um Chevrolet muito velho, com a portaaberta, e a Leonor, mal saiu da igreja, mal passou debaixo dos sabres, foi di-reita ao carro e entrou, sentou-se ao lado dele e o Manuel arrancou imediata-mente [...] (Ibidem, p. 60)

    Apesar de toda a impulsividade do casal para poderem viver jun-tos, Corte-Real registra os primeiros sinais de desequilbrio emocional deLeonor. Seplveda decide levar a filha, Catarina, fruto de seu primeirocasamento, para morar com eles, gerando um comportamento hostil emLeonor, que passa a alhear-se cada vez mais do mundo.

    Apesar de toda a alienao de Leonor invertendo a situao emrelao ao casal quinhentista, j que l era ele quem apresentara sinais deinsanidade , o casal no se separa, segundo Corte-Real, provavelmente

    pelo fato de Seplveda ter investido a fortuna da mulher para a formaode holding.

    Vtima de um colaborador, um destes tecnocratas formados noestrangeiro [...], cheio de diplomas e recomendaes (Ibidem, p. 63),sendo, segundo Corte-Real, vigarizado pelo tal sujeito (Ibidem, p. 63),Seplveda entra em decadncia, fato que est diretamente ligado ao mo-mento poltico, uma vez que a instabilidade do Portugal do momento i-mediatamente anterior revoluo teria gerado a falncia.

    Devido a tal situao, Seplveda tem de recorrer ao banco de seucunhado para tentar salvar o barco de qualquer maneira (Ibidem, p.63). O empresrio compelido a realizar um depsito de todas as suasaes no banco, alm de hipotecar seus imveis e penhorar os bens de

    sua empresa como garantia de pagamento de suas dvidas com o banco.A entrega compulsria de seus bens ao banco pode ser comparada

    entrega das armas feita pelo capito quinhentista nos relatos tradicio-nais referentes ao naufrgio do galeo So Joo. Na sociedade capitalista,os bens representam o poder socioeconmico, as armas na terra da cafra-ria, no sculo XVI, representam o poder blico. A semelhana entre as a-titudes dos dois Seplvedas desemboca na runa de ambos.

    Continuando a sua busca de informaes, o narrador, por interm-

    dio de sua mulher, chega a Mariana, ex-mulher de Manuel de Sousa Se-

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    plveda e me de Catarina. Descobre que ela, mesmo depois de largarseu marido por Paulo de Almeida, um tpico revolucionrio, torna-se, a-nos depois, amante de Seplveda, quando o reencontra em Paris.

    Interessante notar no relato de Mariana a reflexo acerca daquiloque contado. Segundo ela, a histria, devido distncia de tempo, sera juno da verdade com a imaginao, sem que se possam delimitar oslimites de cada uma. Alm disso, ela afirma que nem tudo o que se sabefoi necessariamente contado por Corte-Real, para no macular a imagemdo empresrio.

    O relato de Mariana evidencia um Seplveda covarde que estariadisposto a colaborar com a Pide por medo das represlias impostas pelo

    regime salazarista: indcios de covardia e de vileza, caractersticas que seopem ao Seplveda quinhentista, enaltecido por sua honradez e cora-gem:

    Sabe, a Pide no era para brincadeiras [...]. O Manuel nunca se tinha me-tido na poltica, no era o gnero dele, mas comeou a encher-se de pnico...,como alguns dos outros de resto, que piavam muito [...], mas, mal lhe cheiroua esturro, meteram o rabinho entre as pernas [...]. O nico que se portou bemfoi o Jernimo: continuou a aparecer nos mesmos stios e a fazer exatamenteas mesmas coisas... [...] Mas o Manuel [...] assustou-se mesmo, deu at algunssinais de que estava disposto a colaborar com a polcia [...], acho que foram

    esses indcios de... de pequena cobardia ou de vileza [...] que me comearam aafastar dele, parecia-me que ele era menos homem com tanta prudncia. (Ibi-dem, p. 83-4)

    Voltando a encontrar-se com o professor Corte-Real, este ressaltaa ingenuidade do empresrio ao aceitar as condies extorsivas propostas

    pelo banco. semelhana do homnimo, Seplveda comea a sofrer dedores de cabea e Corte-Real ressalta a debilidade emocional do amigo:

    Trezentos mil contos!, exclamou o professor. Imagina o que isto era emMaro de 1974? [...] Nessa altura ele veio algumas noites seguidas a minhacasa, no imagina o estado em que ele vinha. Ora parecia alucinado, capaz dedar cabo deste mundo e do outro [...] ora completamente aniquilado, cheio dedores de cabea, tinha-lhe dado uma diarreia nervosa, enquanto estava l emcasa pedia para ir casa de banho umas cinco ou seis vezes. (Ibidem, p. 102)

    J Guiomar, irm do empresrio, demonstra naturalidade ao falardaquele em quem nunca mais pensou. Suas palavras sugerem ainda queas coisas passadas h muito tempo [...] hoje no interessam a ningum(Ibidem, p. 117). Em seu relato, aponta o carter mulherengo e volveldo irmo, possvel causa do fracasso do casamento com Leonor, numcontraste com o Seplveda quinhentista, apaixonado e fiel. O Seplveda

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    do sculo XX aparece como o responsvel pela extrema infelicidade vi-venciada por Leonor. Seus delrios, j mencionados por Corte-Real e porMariana, tambm so evidenciados por Guiomar. A esposa de Seplveda

    comea a se identificar de forma doentia com a homnima, a ponto deser encontrada nua numa praia, agachada num buraco das dunas, a ten-tar-se cobrir com os cabelos, criando, em seu delrio, uma situao se-melhante que teria sido vivenciada pela nobre dama quinhentista:

    claro que a Leonor devia ter tambm um fundo esquizofrnico, lanava-se muitas vezes num discurso delirante, no sei se pode fazer ideia, destes dis-cursos estranhos e impressionantes, coerentes, mas completamente fechadosem si mesmos, de uma lgica evidente para quem fala, mas inacessvel para osoutros. E ocorriam-lhe associaes inacreditveis, despropositadas, perigosasat. Uma vez, estavam eles a passar um fim de semana no Algarve, o Manuel

    foi dar com ela s seis da manh, completamente nua na praia, agachada numburaco das dunas, a tentar-se cobrir com os cabelos. Estava para ali aninhada,no ouvia o que lhe diziam, at foi preciso chamar uma ambulncia e tir-la del fora. (Ibidem, p. 121)

    O conhecimento que a Leonor contempornea possui acerca dotriste fim de sua homnima f-la aproximar-se da personagem histrica, a

    ponto de projetar no filho que havia morrido com poucas semanas de vi-da o filho que o Seplveda histrico teve de enterrar:

    Ela prosseguiu com a histria de Leonor de Seplveda nas dunas, que

    quando a tiraram de l s dizia que o Manuel j tinha enterrado o menino nu-ma cova de areia [...]. Levou-lhes muito tempo a perceberem, a compreende-rem o que nunca lhes tinha ocorrido [...], e acontece que ela estava a encenar-se como a Leonor de Seplveda da Histria Trgico-Martima, a viver a situ-ao a partir da literatura... Note que eles tinham tido um filho que morreu desemanas, e por isso talvez ela falava no menino. (Ibidem, p. 121)

    Outro relato a ser analisado o de Erclia, empregada do casal.Seu relato particularmente importante pelo fato de ela ter sido a ltimaa v-los com vida. Alm de reiterar a loucura da patroa e o carter vol-vel do patro, ela mostra a degradao em que o casal se encontrava pou-

    co antes de morrer, num contraste definitivo entre o casal quinhentista,vtima de intempries e tragdias, e o contemporneo, que caminha pau-latinamente rumo decadncia:

    Eu via muito pouco o senhor engenheiro Seplveda, que chegava sempremuito tarde a casa, o jardineiro que l ia at costumava dizer que era por causadas amantes, isso realmente eu no sei, mas com a senhora naquele estado euno me admirava que ele tivesse de se arranjar por fora, a senhora tomavamuitos remdios, s saa de casa para ir ao psiquiatra, uma vez comeou aosgritos a dizer que a banheira estava a ficar cobertas de pelos que cresciam a-travs do esmalte e que queriam embrulh-la toda, e a garrafeira tinha de estar

    sempre fechada, porque se algum se esquecia ela ia l e bebia tudo o que lhe

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    Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 3, pg. 2953

    ficasse mo, uma vez at bebeu gua de colnia, e depois ficava-se aos tom-bos na sala ou ento no quarto, vi-a assim muitas vezes e muitas vezes a aju-dei, minha senhora em que estado se ps, mas ela no respondia, era comose no ouvia nada, outras vezes punha-se a escrever, com uma letras muito es-

    quisita, assim como se as palavras e as letras andassem aos trambolhes na fo-lha de papel, no se percebia nada do que ela escrevia, e s vezes, quando ain-da no tinha tomado os remdios todos, punha-se a falar, a falar, a falar, maseu tambm no percebia nada do que ela dizia, muitas vezes era ao telefoneque ela falava [...] (Ibidem, p. 163)

    Em uma de suas diversas crises, Leonor encontrada desacordadajunto a um frasco de comprimidos vazio, o que faz Seplveda desespe-rar-se, clamando pela ajuda da empregada. Quando volta ao quarto e en-contra Leonor falecida, o marido, como o capito do relato annimo, ficaao lado de sua mulher, por meia hora, sem dizer uma palavra:

    [...] quando a viu falecida, quis apartar-me dali, e assentar-se perto dela, com orosto posto sobre uma mo, por espalho de meia hora, sem chorar, nem dizercoisa alguma, estando assim com os olhos postos nela, e acabando este espaoo senhor engenheiro disse tenho de a levar j embora, ajuda-me a vestir-lhequalquer coisa, [...] chovia que Deus dava, aquilo era uma coisa impossvel,ficmos completamente encharcados, o senhor engenheiro abriu a porta de trsdo carro, mas antes eu tive de segurar sozinha a senhora para ele abrir a portada garagem, pareceu-me que estava mesmo morta, a chuva batia-lhe com todaa fora na cara e ela no se mexia nem dava sinal, [...] ento o senhor enge-nheiro l me pediu para ajudar a met-la no banco de trs e para abrir o porto

    e saiu a toda a velocidade. (Ibidem, p. 165-6)Interessante notar a presena da tempestade, que aparece tambm

    no incio do romance, alm de ser a principal causa da desgraa do casaldaHistria Trgico-Martima. E, no pice do infortnio do casal da nar-rativa de Vasco Graa Moura, que aos poucos se delineava, em um dia dechuva intensa, Seplveda e a esposa so encontrados mortos no fundo deum rio, num acidente que deixa a impresso de ter sido provocado peloempresrio. Enquanto o personagem histrico naufraga e mantm a cora-gem e a integridade, alm do amor pela esposa, o contemporneo parece

    buscar no fundo do rio a soluo para os problemas com os quais no sa-bia lidar, numa confirmao de sua covardia e impotncia:

    [...] a cozinheira, aos murros na porta do meu quarto, que havia uma grandedesgraa, que a polcia tinha tirado o carro do senhor engenheiro do rio, ali pa-ra os lados de Belm, que ele e a senhora estavam mortos [...], depois vieramos tais senhores da Judiciria e eu contei-lhes o que sabia [...], ento um delesdisse que parecia que o senhor engenheiro andava desesperado havia uns tem-

    pos por coisas l da vida dele, os negcios parece que estavam a correr-lhemuito mal e ele tinha ido entregar tudo ao banco [...] (Ibidem, p. 166)

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    pg. 2954 Anais do XVI CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2012.

    Por fim, Erclia deixa em dvida se Leonor estaria realmente mor-ta, acendendo suspeitas sobre a atitude de seu patro. Alm da runa fi-nanceira, as circunstncias acidentais ou no da morte do casal rea-

    firmam na contemporaneidade o naufrgio do protagonista:[...] e se calhar com esse desespero, ao ver a senhora assim, se calhar aindano estava morta, mas isso s depois se podia ver, se ela tivesse gua nos

    pulmes era porque ainda respirava quando o carro caiu no rio, se calhar comesse desespero o senhor engenheiro em vez de ir urgncia do hospital tinharesolvido acabar com aquelas infelicidades de uma vez por todas e foi-se atirarao rio a direito, um dos senhores da Judiciria comentou para o outro que a-quilo era um naufrgio de Seplveda [...] (Ibidem, p. 167)

    O comentrio do inspetor da Judiciria que aquilo era um nau-frgio de Seplveda encerra de forma irnica a histria do Seplvedacontemporneo. O narrador/autor apresenta a obra editora, com inten-es de public-la no futuro, destacando que Tudo fico (Ibidem, p.171), como a prpria construo da identidade nacional.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexes sobre a o-rigem e a difuso do nacionalismo. Trad.: Denise Bottman. So Paulo:

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    BLANCO, Maria Luisa. Conversas com Antnio Lobo Antunes. Lisboa:Dom Quixote, 2002.

    HALL, Stuart.A identidade cultural na ps-modernidade. Trad.: TomazTadeu da Silva, Guaraeira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A,2006.

    LOURENO, Eduardo. Mitologia da saudade: seguido de Portugal co-mo destino. So Paulo: Cia. das Letras, 1999.

    MARTINS, J. Cndido. Naufrgio de Seplveda: texto e intertexto.Lis-boa: Replicao, [s/d].

    MOURA, Vasco Graa Moura. Naufrgio de Seplveda. Lisboa: Quet-zal, 1988.