24850753 marcel benedeti todos os animais merecem o ceu

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    MARCEL BENEDETIMARCEL BENEDETI

    TODOS OS ANIMAISTODOS OS ANIMAIS

    MERECEM O CUMERECEM O CU

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    TTodos os Animais Merecem o Cuodos os Animais Merecem o Cu

    Obra premiada no Concurso Literrio Joo Castardelli

    2003 2004, promovido pela Fundao Esprita Andr Luiz

    (FEAL).

    Coordenadores do Concurso: Joo Carlos Bacurau e

    Aparecida Quintal

    Comisso Julgadora: Ana Maria B Paschoal, Arnaldo

    Epstein, Carlos Coelho, Celeste P. da Silva, Cleonice S. Soares;

    Da R. Conti, Dirceu Luttke, Doracy dos R. Gonalves,Dulcelina de Jesus, Eduardo Luiz Xavier Fernando Bacurau;

    Gasto de Lima Neto, Lara Bacurau, Ildzio Bilmayer, Jayme R

    Pereira, Joo Demtrio Lorichio, Jos Geraldo Ramos, Jos

    Pozzi, Maria Rita Ortega, Marlene Santos; Nadir da S. L. de

    Assis, Nicelmo Abreu Andrade, Paulo Nanini, Ricardo P. de

    Paula, Roberto Pasetchn Sprio Faccione e Valter S. de SouzaConsultora: Ana Gaspar

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    AApresentaopresentao

    A platia aplaudia, entusiasmada, ao v-lo recebendo o

    diploma de graduao, como mdico veterinrio. Ali, naquele

    salo, cerca de quinhentas pessoas estavam reunidas para

    contemplar os amigos e parentes que se formavam, tambm,

    assim como ele.

    Seus pais e suas irms estavam felizes por v-lo colando

    grau, pois, sabiam que no havia sido fcil para todos

    conseguir chegar at ali. Foram anos de esforo e at mesmode privaes, para atingir aquele objetivo, uma vez que vinha

    de uma famlia de operrios e os recursos financeiros eram

    escassos.

    Mas, todos os esforos foram recompensados naquele

    momento. Tornara-se mdico veterinrio. Ao receber o

    diploma, virou-se para a platia e agradeceu de volta a salvade palmas que recebeu, mostrando seu cartucho azul e

    sorrindo como nunca.

    De cima do palco, acenou para os parentes, em

    agradecimento, quando os viu sentados entre o pblico.

    Havia, entretanto, algumas pessoas que ele no conhecia,

    acenando, tambm, e estavam perto aos seus pais.

    Quem seriam aquelas pessoas que pareciam to felizes

    por sua diplomao? Uma delas usava uma espcie de batina

    marrom escuro, com um grosso cordo preso cintura, de

    onde um crucifixo de madeira polida pendia, brilhante.

    Poderia ser algum padre que o conhecia ou aos seus pais. O

    eclesistico estava acompanhando. Ao lado, estava algum

    vestido de branco como um mdico, que segurava um livro e

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    um pequeno co da raa fox terrier de plos duros. Ele

    tambm acenava. Ao lado de ambos, outra figura bem-

    vestida. Usava um terno azul, bastante alinhado. Eram trs

    pessoas ali, acenando e marcando presena no evento.O recm-formado, por uma frao de segundo, desviou o

    olhar e j no mais os encontrou ali. Seus parentes

    continuavam a aplaudi-lo, e pareciam no se surpreender

    com o sbito desaparecimento daquelas trs pessoas. Com

    um grande aceno, e desceu do palco, levando seu cartucho.

    Aps a cerimnia, procurou seus pais para abra-los,enquanto, discretamente, procurava aquelas pessoas entre os

    presentes, mas no as encontrou mais.

    Os colegas de turma se abraavam, com lgrimas nos

    olhos pela despedida, quando ele notou aquele que estava de

    roupas brancas, prximo porta do saguo, fitando-o, com

    um sorriso nos lbios. Quis ir at ele para conhec-lo e

    agradecer-lhe a presena, mas, naquele saguo repleto de

    pessoas, perdeu-o de vista. Desde ento, no mais os viu.

    Passado algum tempo, em uma noite, quando estava

    prestes a pegar no sono, nota o surgimento de uma figura,

    agora conhecida, mas inesperada. O susto foi grande,

    pela surpresa.

    De um salto, saiu da cama. O visitante inesperado, comsua voz suave, acalmou o rapaz e explicou-lhe quem era.

    Aps desculpar-se pela surpresa, disse que eram amigos de

    outras vidas e que o acompanhava h muito tempo, mas

    nunca se manifestou antes, pois, no havia chegado o

    momento.

    Pediu que no se assustasse quando se encontrassemnovamente, pois estariam muito prximos, a partir de ento.

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    Ele era um monge franciscano, que estava ali, a seu prprio

    pedido, antes de reencarnar nesta vida atual, para ajud-lo a

    atingir as metas propostas para esta existncia. Ele seria um

    amigo com quem poderia aconselhar-se e pedir auxlio,quando precisasse. O monge usava uma vestimenta tpica, de

    tecido grosso e um capuz que cobria metade de sua cabea.

    As mos magras e a pequena estatura davam a ele uma

    aparncia frgil, mas sua fora estava em sua sabedoria e

    ponderao, que dividiria com o recm-formado veterinrio.

    Desde ento, os ouvia aconselhando-o em sua mente,como se fossem seus prprios pensamentos. Somente

    diferenciava dos seus, porque as frases eram sempre na

    terceira pessoa. Quando ele precisava de conselhos, ali

    estava o monge ou o homem de branco com seu co e seu

    inseparvel - livro. Este ltimo foi um veterinrio em uma

    vida anterior, que, tambm, prometeu aconselh-lo e intu-lo

    positivamente na vida profissional. Os anos se passaram, o

    rapaz se casou, tornou-se pai, abriu sua prpria Clnica

    veterinria e levava uma vida tranqila, ao lado da esposa e

    da filha pequena, que eram seus tesouros na Terra.

    Posteriormente, foi pai mais duas vezes. A esposa, muito

    espiritualizada, o levou a conhecer a Doutrina esprita. De

    inicio, estranhou os conceitos, mas lembrou-se de seusamigos espirituais e acabou aceitando tambm como sua a

    doutrina, mas, nunca se aprofundou nos conhecimentos que

    ela lhe oferecia, por simples desinteresse.

    Queria, apenas, acompanhar a esposa s reunies, e nada

    mais. Suas preocupaes eram com a clnica e com a famlia.

    Nada de estudos doutrinrios, apesar de sua esposa insistir

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    para que ele estudasse e entendesse melhoro fundamento

    daquela doutrina.

    Aos poucos foi se interessando pelos estudos referentes

    Doutrina Esprita e comeou a fazer parte de um grupo deestudos no Centro Esprita. Os assuntos eram, realmente,

    interessantes e mereciam sua ateno. Passou a ler mais e

    mais livros. O Livro dos Espritos passou a ser seu livro de

    cabeceira, por conter perguntas objetivas e respostas claras a

    diversos temas.

    Como veterinrio, pesquisou sobre o seu maior interesse,que era a vida espiritual dos animais, e notou a escassez de

    informaes a respeito. Queria saber mais, uma vez que tinha

    a certeza de que os espritos superiores no estavam

    desinteressados em divulgar o assunto. Era possvel que as

    informaes fossem raras, porque as pessoas ainda no

    estavam preparadas para elas. Pesquisou e procurou livros

    que relatassem sobre seu assunto de interesse e encontrou

    alguns: Os Animais tm Alma?, de Ernesto Bozzano, escrito

    no incio do sculo passado, e Evoluo Anmica, de Gabriel

    Delanne. No entanto, nenhum deles relatava como eram

    tratados os animais no mundo espiritual.

    Continuou sua busca, mas, pouco encontrou. Em seu

    consultrio, ouvia comentrios de clientes, que indagavam,curiosos, sobre o porqu de tanto sofrimento entre os animais

    e se eles reencarnavam. Queriam saber se tinham alma ou

    esprito e quais atenes receberiam na outra dimenso. A

    curiosidade do veterinrio aumentava, a cada livro que lia,

    mas, no encontrava as respostas que procurava.

    Quando surgiu a oportunidade, pediu ao seu amigoespiritual Monge Franciscano que o orientasse em sua

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    busca, e a resposta foi: ainda no!. Ele no entendeu a

    recusa, mas, no ousou questionar e esperou. Enquanto

    esperava, continuou por sua conta a busca, durante meses

    seguidos. Nesse nterim, lhe chegou uma notcia, que oabalou e o entristeceu: era portador do vrus da hepatite do

    tipo C, uma doena incurvel e letal que contraiu, em 1978,

    quando sofreu um acidente, em que quase desencarnou, e

    recebeu, acidentalmente, sangue contaminado por este vrus,

    que somente se transmite por transfuso sangunea. Naquela

    poca, no se sabia da existncia deste vrus. Chocado com anotcia, sentiu-se abatido depois que soube que talvez tivesse

    apenas mais dois anos de sobrevida antes que deixasse este

    mundo, pois, ainda no existe um tratamento eficaz.

    Procurou, novamente, seu amigo monge para saber dele

    se seria bem-recebido do outro lado, quando chegasse sua

    hora. O amigo disse-lhe que no era o momento de se

    preocupar com isso, pois havia muito trabalho, ainda, a fazer.

    Mas, o jovem mdico no recuperou o nimo, rapidamente.

    Ainda estava convencido de que lhe restavam poucos meses

    de vida. Certo dia, o amigo monge lembrou-lhe de que a vida

    era eterna e pediu que se afastasse destas idias tristes que

    lhe faziam baixar o padro de pensamentos.

    Ainda no convencido, sofria por no se sentir preparadopara a volta outra dimenso e pensou: se era inevitvel o

    retorno, ento, ao menos, queria deixar uma boa impresso

    de si aos que ficassem. Procuraria ser uma pessoa melhor do

    que havia sido at ento. O amigo monge perguntou-lhe o

    que o afligia e ouviu como resposta um pedido. Ele queria, ao

    ingressar na dimenso espiritual, poder enviar aos queficaram informaes sobre a vida espiritual dos animais.

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    O amigo espiritual sorriu, largamente, e disse: Eu j

    esperava isso de voc.

    O veterinrio sorriu, tambm, sem entender por que, e

    ouviu, ainda:Voc no precisa desencarnar para obter as respostas

    que procura. No se preocupe, voc viver, ainda, por muitos

    anos.

    O mdico pediu que o auxiliasse a encontr-las, ento.

    O eclesistico lhe sugeriu que estudasse mais e anotasse

    tudo o que encontrasse sobre o assunto, pois, as anotaeslhe serviriam como uma espcie de manual de consultas para

    entender o que viria depois. Feliz, comeou a fazer, no

    mesmo dia, suas anotaes. Foram quatro anos de pesquisas

    antes de encerrar suas notas.

    Em uma noite, o monge surge-lhe e pergunta: Podemos

    comear?. E ele entendeu que se referia ao recebimento das

    informaes da espiritualidade. No entanto, os meses se

    passaram sem que o amigo espiritual fizesse novo contato.

    Um dia, o veterinrio, ao acordar, sentiu-se compelido a

    pegar uma caneta. Estava ansioso, eufrico e entusiasmado

    com algo que no sabia o que era.

    Chegando ao consultrio, sentou-se em sua escrivaninha,

    e, como se fosse guiado por uma fora invisvel, comeou aescrever as primeiras palavras. Naquele instante, seus

    sentidos ficaram levemente entorpecidos, sentindo como se

    flutuasse. Era uma sensao agradvel, acompanhada de

    intenso bem-estar. Desligou-se do mundo exterior.

    No ouvia mais as pessoas que passavam na rua e nem o

    som dos automveis que, antes, o incomodava. Perdeu anoo de tempo e espao. Suas mos, impacientes,

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    continuavam a escrever, enquanto uma tela se formava em

    sua mente, atravs da qual podia acompanhar as cenas mais

    comoventes e emocionantes por ele j presenciadas.

    As cenas se desenrolavam, vivas, mas, ele era,meramente, um expectador. Era como se ele pudesse tocar

    os personagens, se o quisesse. Mas, apenas observava, ouvia

    e sentia o que acontecia. Sua secretria o observava na

    escrita frentica, sem interromp-lo. Eventualmente, era o

    telefone que tocava ou um cliente que entrava em seu

    consultrio para pedir ajuda profissional, mas, nos intervalosde cada atendimento, reiniciava de onde tinha parado,

    ansioso por conhecer o desfecho, que nem mesmo ele sabia.

    Aps escrever milhares de palavras, repentinamente,

    voltou a si. Tudo ao redor parecia estar exageradamente

    colorido, brilhante e barulhento. Suas mos no

    acompanhavam sua vontade de terminar o que comeou. O

    calor agradvel que o acompanhou por muitos minutos,

    repentinamente, tornou-se como um gelo colocado sobre a

    testa. As cenas desapareceram de sua mente, as palavras do

    narrador deixaram de ser ouvidas. Por mais que se

    esforasse, as palavras no lhe ocorriam. Restava, apenas,

    parar e ver o que escreveu.

    Era a histria de Paloma, uma gua da raa manga-largaque retornava ao mundo espiritual. S ento entendeu o que

    estava acontecendo. Eram as informaes do mundo

    espiritual que desejava receber e que lhe estavam chegando.

    No dia seguinte, novamente sente aquela compulso de

    pegar em uma caneta e escrever. Desligou-se do ambiente,

    de forma quase involuntria, retornando a ele somentequando o dever profissional o chamava de volta. Aps cada

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    atendimento, cada telefonema, retomava seu trabalho de

    descrever o mundo espiritual dos animais.

    A cada cena que lhe aparecia na mente, como se

    estivesse mergulhado em um filme, surpreendia-se, pois nosabia por antecipao o que ocorreria a seguir. A curiosidade

    tambm o impulsionava a continuar com este trabalho que se

    tornou prazeroso para ele.

    Aos poucos, envolveu-se com os personagens.

    Emocionou-se com a passagem de Paloma, com a lealdade de

    Formosa, com o sofrimento de Bob, de Sofia e dos outros.Alegrou-se com os momentos felizes e ria das situaes

    engraadas. Surpreendeu-se ao saber da existncia de

    animais no umbral; revoltou-se com aqueles que os

    maltratavam. Era surpreendido a cada cena e queria conhecer

    o desfecho daquelas narrativas.

    Ao final de seu trabalho literrio, descobriu que h muito

    a aprender e a descobrir no convvio com os animais, que nos

    passam muitas lies de humildade, pacincia e resignao.

    Os animais so, realmente, nossos irmos no s no esto

    desamparados pela espiritualidade, como so bem-assistidos.

    Existem tantos assistentes quantos forem necessrios, pois

    eles merecem a mesma ateno que ns.

    Com o despertar dessa nova conscincia que despontacom a nova era e com o novo milnio, as pessoas j esto

    mais bem preparadas para aceitar e reconhecer nos animais a

    sua prpria imagem. Eles so nossos irmos caulas, por isso

    cabe a ns a responsabilidade do bom exemplo.

    FRANCESCO VITA.So Paulo, 15 de maro de 2004.

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    AAnimaisnimais

    Eram trs horas da manh e uma brisa suave e

    refrescante soprava fazendo sibilar as folhas pontiagudas dos

    pinheiros que rodeavam a fazenda, como se fossem milhares

    de flautas executando uma melodia montona. A Lua cheia

    deixava cair sua luz prata sobre as guas do lago, criando um

    efeito que lembravam pinceladas em um quadro pintado em

    fundo escuro. Prximo ao lago, semelhante a um grande

    espelho que refletia a grande bola branca brilhante, algunscavalos pastavam sobre aquela grama tmida pelo sereno. O

    luar intenso daquela noite deixava ver os seres noturnos

    alados em VOS rasantes como sombras voadoras sobre as

    folhagens do pasto. Eram morcegos frutvoros fazendo vos

    quase acrobticos, ligeiros, e corujas, observadoras, atentas

    com seus grandes olhos, luz vinda das lmpadas queiluminavam o estbulo onde estavam duas pessoas em um

    trabalho silencioso e delicado.

    O trabalho exigia silncio e concentrao, por isso

    sussurravam tambm para no assustar a velha Paloma, uma

    gua, j aposentada dos trabalhos na fazenda desde que

    contraiu uma enfermidade no casco que a impedia de

    trabalhar. Apesar da idade relativamente avanada, Paloma

    mantinha uma aparncia jovem, com seus plos macios e

    brilhantes tal como quando deu sua primeira cria. Somente os

    plos encanecidos denunciavam que ela j no era mais a

    jovem da poca em que trabalhar era diverso.

    Paloma j tinha trinta e quatro anos de idade e sempre

    viveu na fazenda onde nasceu. Por isso, era como se fosse um

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    membro da famlia do senhor Mataveira, dono daquelas

    terras.

    Guilherme, o veterinrio, estava dando assistncia ao

    parto daquela que j no deveria mais engravidar, devido asua idade avanada. Quanto a isso, quando indagado pelo

    veterinrio, Mataveira justificou-se:

    Foi um descuido nosso, pois, h muito tempo Paloma j

    no era, ao menos aparentemente, frtil. Acreditvamos que

    j estava estril. Infelizmente, Ventania, o nosso garanho

    mais jovem, em sua fase mais viril, na qual os hormniosesto flor da pele, no se interessou em distinguir uma

    fmea jovem de Paloma. Nossa Paloma uma senhora de

    respeito, que nos ajudou muito em trabalhos que somente ela

    era capaz de fazer, devido a sua agilidade e fora. Hoje est

    fraca e velha, mas j foi jovem e forte. Ventania devia t-la

    poupado! falou Mataveira, sussurrando para no incomod-

    la.

    Guilherme, o veterinrio de vinte e seis anos de idade,

    (com quatro de experincia) estava ali no somente como

    veterinrio, mas como amigo, pois era conhecido do

    fazendeiro desde criana, quando vinha com seu pai para

    comprar queijo e mel e cavalgar em Paloma. Guilherme

    olhava srio para o senhor Mataveira, enquanto ouvia asexplicaes do amigo, quando resolveu responder, tambm

    em voz baixa, depois de soltar o queixo que apoiava com sua

    mo direita.

    Senhor Mataveira, os animais no so como ns. Eles

    no pensam e no sabem distinguir situaes que exijam

    raciocnio. Os hormnios mandam em seus instintos, pois somente isso que so. So os instintos que os levam a

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    colocar a idia da gravidade do problema de forma mais

    completa.

    Mataveira entendeu e somente observou o trabalho do

    mdico, que comeou sua interveno. Guilherme era umveterinrio experiente, apesar da pouca idade. Por isso,

    utilizando-se de suas habilidades mdicas, estava

    monitorando a respirao e os batimentos cardacos de

    Paloma. Eram notveis os sinais de cansao, e uma certa

    arritmia cardaca comprometedora o preocupava. Ao contrrio

    do que se esperava para o incio do parto, as contraes erammuito fracas e insuficientes para expulsar o filhote, que j

    dava sinais de estar passando do tempo de nascer. Uma

    interveno cirrgica parecia urgente, Mataveira, fazendeiro

    que tambm tinha experincia, percebeu que algo no estava

    bem com sua gua preferida e pediu ao mdico que fizesse o

    que fosse necessrio e possvel para salv-la, mas se ela no

    sobrevivesse, ele entenderia.

    Joo Rubens, o auxiliar de Guilherme, estava sempre

    atento aos parmetros de sade de Paloma, enquanto seu

    patro cuidava do filhote. A pedido de Guilherme, Joo aplicou

    uma dose de sedativos previamente preparada pelo doutor,

    fazendo com que Paloma relaxasse um pouco, o que permitiu

    a interveno. O filhote, muito grande e pesado, exigiu que odoutor utilizasse alguns instrumentos mdicos para melhor

    posicionamento do potro, e exigindo de ambos esforos

    fsicos extenuantes. Paloma estava mais debilitada e fraca, e

    o mdico percebeu que precisaria decidir quem deveria

    salvar. Optou por salvar o filhote, pois Paloma j demonstrava

    sinais de falncia e no suportaria uma cirurgia. A

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    manipulao do filhote tambm estava se prolongando por

    mais tempo do que o esperado.

    Duas horas se passaram, e Guilherme estava totalmente

    esgotado pelo esforo. Posicionando o filhote em direo aocanal do parto, conseguiu expor uma de suas patas, e a ponta

    do focinho podia ser vista tambm, buscando o ar. O mdico

    fazia traes lentas para no ferir o potro, mas percebeu que

    Paloma comeou a respirar com dificuldade e que sentia dor.

    O doutor pediu ao auxiliar que aplicasse novamente os

    sedativos, a fim de amenizar a dor e para que conseguissesuportar a interveno.

    Ento, Joo aplicou uma nova dose na me. Ela parecia

    estar suportando mais do que podia, to-somente para dar

    tempo de tentar salvar o seu filhote. Paloma relaxou um

    pouco e Guilherme retornou ao pequeno potro, que se

    mostrava ansioso por se livrar da angstia de estar preso.

    Guilherme podia sentir com sua mo o filhote, bem como

    observar os movimentos das narinas do potro, que

    procuravam o oxignio atravs da pequena abertura para o

    exterior, Mas, Guilherme no percebeu que OS movimentos

    das pernas do filhote perfuraram a parede uterina,

    provocando uma hemorragia. Paloma contraiu-se de dor, mas

    permaneceu firme, espera do nascimento de seu filhote.Atravs dos instrumentos auxiliares de trao, foi possvel

    expor gradativamente o corpinho do filhote.

    Com a ajuda de Joo, conseguiram retirar o escorregadio

    corpo saudvel da pequena Palominha, pois era uma fmea,

    cpia idntica da me. At mesmo a mancha branca entre os

    olhos que lembrava o contorno de uma pomba em vo, elapossua.

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    Com toalhas secas, Guilherme retirou os envoltrios e

    enxugou o filhote, alm de romper o cordo umbilical que o

    ligava me. Imediatamente, aps ver-se livre de todo

    aquele material materno, ps-se sobre as quatro trmulaspatas e tentou dar alguns passos, mas caiu. Nova tentativa de

    se levantar e, por fim, conseguiu firmar-se o suficiente para

    se manter e caminhar de maneira insegura at prximo ao

    rosto da me, j fraca. Normal mente, o filhote ao nascer

    procura mamar, mas Palominha procurou o rosto de sua me

    como se soubesse o que estava para acontecer. Permaneceuali, trmula, ao seu lado e se deitou, apoiando a cabea sobre

    a dela, como se tivesse alcanado o seu objetivo, e, ento,

    relaxou. Ela encontrou o que buscava com aquela que lhe deu

    a luz. Ao sentir o toque da filha, Paloma abriu, leve mente, os

    olhos e seu olhar encontrou o do filhote recm-nascido. A

    expresso de Paloma mudou em ver sua cria ao seu lado. Era

    notvel a felicidade estampada em seu rosto. Paloma a

    olhava com grande ternura. Era uma linda potrinha, suas

    pernas eram esguias. Os olhos expressivos depois de ver a

    me passaram a contemplar ao redor como se j conhecesse

    a todos. Parecia que ela sorria com os olhos em

    agradecimento pelo que fizeram Guilherme e Joo em seu

    favor e de sua me.Guilherme estava aplicando medicamentos em Paloma,

    quando Joo notou sua respirao ofegante. O auxiliar

    chamou o doutor que, deixando o que estava fazendo, a

    examinou nova mente. Guilherme pegou seu estetoscpio e

    auscultou o corao da me, que estava ainda mais arrtmico

    e fraco. Olha para Mataveira e fez um sinal com a cabea deque a morte era inevitvel. Mesmo assim, ainda tentou

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    aplicar-lhe alguns medicamentos cardacos estimulantes,

    mas, Paloma estava se despedindo de todos. Com grande

    esforo, levantou um pouco a cabea, passou um longo olhar

    em todos e parou em Mataveira, a quem era mais apegada.Fixou seu ltimo olhar em seu maior amigo. Deu um longo e

    sonoro suspiro e deixou de respirar, definitivamente. Suas

    pupilas se dilataram, mas, como se uma fora invisvel a

    guiasse, aproximou-se do filhote e tocou-a com seu focinho j

    gelado, para, a seguir, ficar imvel. Guilherme tentou

    reanim-la, em vo. Mataveira deu um impulso, saltou sobrePaloma e a abraou, sem conseguir pronunciar uma s

    palavra enquanto as lgrimas inundavam seus olhos.

    Permaneceu em silncio por alguns segundos e, enxugando

    as lgrimas, disse: Vamos enterr-la prxima sede, ela

    merece um lugar especial para descansar. Adeus, amiga. Que

    Deus a receba como voc merece disse Mataveira, com o

    olhar distante no horizonte, como se estivesse fazendo um

    pedido direto a Deus.

    Em um canto escuro, estava Joo Rubens, chorando

    discretamente, escondido de seu patro. Joo era uma pessoa

    extrema mente sensvel e espiritualizada, que conseguia ver

    alm do que via seu patro materialista. Ele estava sentido

    com a perda de Paloma e com a cena de Mataveira,despedindo-se dela pela ltima vez.

    Guilherme, ao contrrio, encarava seu trabalho e seus

    pacientes de uma forma extremamente racional, evitando

    deixar misturar sentimentos com a rotina de trabalho.

    Joo Rubens sabia que, se fosse flagrado naquele estado

    de sentimento, seria repreendido, pois, seu patro, apesar deser uma tima pessoa, algumas vezes era duro demais.

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    Acompanhando tudo em silncio, estava ali perto dona Na

    tlia, a esposa de Mataveira, que, assim como Joo, era muito

    sensvel. Notando a tristeza do auxiliar do veterinrio,

    aproximou-se dele e o abraou, dizendo: Voc uma boa pessoa, Joo. Ns percebemos que

    tem algo difcil de se encontrar nas pessoas: compaixo pelos

    animais. Fico feliz por voc ser assim. Nunca deixe de ser

    como , e continue a ser um exemplo, pois, talvez, um dia,

    Outras possam ser como voc. Boa noite, Joo. V para casa e

    nos perdoe por incomod-los a esta hora, tirando do sossegode seus lares para acudir um animal que, praticamente, j

    estava morto. Agradeo-lhes por virem nos atender, tendo

    que pegar estradas esburacadas neste escuro. Sei que

    fizeram o possvel.

    Guilherme fingiu nem notar que dona Natlia estava

    tentando mostrar a ele, com sua discreta crtica, o quanto

    Joo poderia ensinar-lhe. Desapontada por no atingir o

    corao do mdico, dona Natlia abraou-o e se afastou, em

    silncio.

    Assim que dona Natlia deu-lhe as costas, o mdico de

    animais dirigiu um olhar de reprovao a Joo Rubens, por

    misturar sentimento com profissionalismo, e ainda deixou que

    percebesse o seu estado emocional, que ele consideravacomo uma falta grave no trabalho e, pior ainda, deixou

    margem a comentrios.

    Voltando sua ateno para o trabalho e, aps certificar-se

    que Palominha estava bem, recomendou ao encarregado da

    fazenda que a deixasse para ser amamentada com Flecha,

    que tambm acabava de se tornar me havia poucos dias. Elaera jovem e poderia amament-la e ao seu prprio filhote,

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    sem dificuldades. O mdico guardou seus pertences, sem

    dizer uma palavra ao auxiliar que aguardava uma

    reprimenda. Despediram-se de Mataveira e dos empregados

    da fazenda, que ainda estavam acordados espera de boasnotcias sobre Paloma, que no vieram, mas a presena de

    Palominha amenizou a gravidade da situao.

    Partiram dali em um pequeno, mas confortvel, veculo

    adaptado para percorrer -os terrenos acidentados das

    fazendas a que assistiam. Guilherme, ainda com feies de

    poucos amigos, nada disse a Joo, mas este j sabia o que oesperava. Mal entraram no automvel, Guilherme o

    repreendeu, tentando, sem conseguir, no ser grosseiro, pois

    sua maneira de falar j era normalmente spera.

    Joo, voc precisa aprender a controlar seus acessos de

    choro em pblico. No podemos demonstrar fraqueza aos

    nossos clientes. Caso contrrio, no nos chamam mais para

    atend-los. Voc precisa entender a minha posio. J

    imaginou se todos ficam sabendo que voc chora assim, cada

    vez que morre um bicho? dizia isso franzindo a testa,

    usando um tom de voz autoritrio.

    Perdoe-me, patro, mas no pude me conter dessa vez,

    pois vi nos olhos do senhor Mataveira o quanto ele e sua

    senhora sentiram pela perda de Paloma. No pude conter-meante a cena comovedora de uma me tentando, com suas

    ltimas foras, tocar a filha pela ltima vez disse Joo, j

    aos soluos, como uma criana, com lgrimas caindo a

    cntaros.

    Calma, Joo. Eu no quis ser grosseiro com voc! No

    precisa se ofender, pois, eu apenas acho que voc no devese envolver emocionalmente com os pacientes. Animais,

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    como eu disse ao senhor Mataveira, no sabem de nada.

    Morrem e nem sabem o que aconteceu. Eles no sentem e

    no so como ns. Veja se entende isso: animal animal,

    gente gente. No confunda as coisas, Joo. Procure no agircomo se os animais fossem capazes de ter alguma espcie de

    sentimento. Animal s sabe comer dormir e dar cria. So

    somente instintos. Quando morrem como se uma mquina

    estivesse parando de funcionar. Sou como um mecnico de

    animais. Se a mquina no quer funcionar direito, l vou eu

    tentar consert-la; mas, se no tiver jeito, o melhor substitu-la por outra mquina. Simplesmente joga-se fora a

    mquina estragada e substitui-se por outra. Morreu, morreu!

    O que se pode fazer se ningum eterno? Esquea o que

    aconteceu com a Paloma e v descansar porque amanh

    outro dia.

    Joo Rubens nunca respondeu s crticas do patro, mas,

    desta vez resolveu falar da maneira mais polida possvel:

    Sinto muito, doutor, mas no consigo ser to racional

    quanto o senhor. Quando vejo um animal sofrendo, eu sofro

    junto. Por isso, no quero ser veterinrio. Prefiro continuar

    meus estudos supletivos e quando for possvel irei para a

    faculdade de Qumica. S assim no precisarei mais me

    deparar com tantos animais sofrendo falou Joo, que noseu ntimo queria mesmo era ser veterinrio.

    Mas, eu pensei que gostasse de fazer o que voc faz!

    retrucou Guilherme. Pensei que quisesse ser veterinrio

    tambm, para trabalharmos juntos.

    Sinto muito, doutor. muito sofrimento para mim. Eu

    gosto do que fao, pois ajudo o senhor a salvar animais que

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    no sobreviveriam sozinhos. E a maneira que tenho de

    contribuir com os nossos irmos animais.

    Guilherme olhou para Joo com expresso de deboche e

    por pouco no soltou uma gargalhada de desdm. Irmos? Perguntou o mdico, surpreso com o termo usa

    do por seu funcionrio, pois nunca sups que um animal

    pudesse ser seu irmo por consider-los apenas objeto.

    Para ele era uma idia simplesmente fora da realidade.

    Voc acredita em um absurdo destes? Quem, em s

    conscincia, poderia supor que animais sejam nossos irmos?Como voc consegue ter estas idias to doidas?

    Para mim, algo natural, patro! Sempre os considerei

    assim desde criana. No tenho muito estudo, mas sei que

    eles so inteligentes e esto aqui na Terra para nos auxiliar.

    Eles aprendem conosco e ns aprendemos com eles tentou

    explicar Joo Rubens.

    Inteligentes? Guilherme riu, debochando, sem

    disfarar desta vez. Voc vem com cada uma que, algumas

    vezes, acho que lhe faltam parafusos na cabea. Que idias

    mais esquisitas. Irmos e ainda inteligentes! Imagine eu

    sendo irmo de um burro, ou de um rato transmissor de

    leptospirose. Eu, hein! falou Guilherme, em tom de

    sarcasmo. Mas isso mesmo, doutor. Por que o senhor acha que

    os animais esto a nossa volta? Qual o propsito de estarem

    aqui convivendo conosco? O senhor acredita que eles estejam

    aqui apenas para nos servir?

    claro que sim respondeu.

    claro que no! replicou Joo. O senhor nunca seperguntou por que alguns animais nascem em locais onde so

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    bem tratados, enquanto outros somente vivem sofrendo e

    morrem sofrendo tambm? Nunca se perguntou por que um

    bovino levado ao abate em um processo doloroso de morte

    em massa, enquanto um co de raa, por exemplo, criadocomo um rei, comendo as melhores comidas, sendo cuidado

    como uma criana, recebendo o melhor tratamento possvel?

    Uns tm mais sorte que outros disse Guilherme.

    Se fosse s isso, no seria justo. Deus no agiria injusta

    mente com ningum, nem mesmo com um animal. Eu

    acredito que estejam aqui para aprender algo conoscoatravs destes Sofrimentos e alegrias que compartilham

    conosco argumentou Joo Rubens.

    Joo do cu! Voc est precisando de um psiclogo.

    Voc est ficando doido, mesmo. Onde j se viu? Animal no

    pensa, no entende nada do que acontece ao seu redor

    Guilherme ironizava, no querendo aceitar os

    argumentos do amigo. J pensou um cachorro descobrindo

    teorias cientficas? finalizou, com uma barulhenta

    gargalhada.

    Joo Rubens ficou ruborizado com as observaes irnicas

    do mdico, que queria faz-lo sentir-se um estpido, e disse:

    Doutor, os animais so to inteligentes quanto ns em

    alguns aspectos, e talvez em outros sejam melhores que ns.Acredito que o problema seja apenas de comunicao.

    Eles no conseguem pronunciar palavras como ns e por

    isso no os entendemos. No entanto, quando voc d uma

    ordem ao seu co, por exemplo, ele obedece. Voc, muitas

    vezes, no o entende, mas ele consegue entend-lo.

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    Ah, isso verdade. O meu co Bons demais. Parece

    gente, entende tudo e s falta falar concordou Guilherme,

    ao me nos neste momento.

    Ento, doutor, o Bons j no uma prova de que OSanimais so inteligentes? perguntou o amigo a Guilherme,

    feliz por encontrar um exemplo que o tocou intimamente, pois

    o mdico adorava seu co d tal maneira que chegava a

    causar cimes em sua noiva, Cludia.

    Vamos com calma falou Guilherme. Eu no disse que

    o Bons inteligente. Eu acho que ele consegue copiar de nsalgumas maneiras de agir, mas s uma repetio.

    No espontneo. Ele no poderia fazer algo se no

    tivesse me visto fazer algumas coisas que ele repete

    retrucou Guilherme, insatisfeito com o argumento de Joo

    Rubens.

    Mas, doutor, o Bons cego. Como poderia ver e copiar?

    argumentou o amigo, convencido do que dizia.

    O automvel estava se aproximando da casa de Joo e

    no teriam tempo para continuar o assunto at O final, por

    isso Joo pediu:

    Por favor, doutor, pense no que estamos falando.

    Amanh cedo, ou daqui a pouco, pois j so quase seis da

    manh, conversaremos a respeito. A o senhor me diz seestou certo ou no, em acreditar no que falamos sobre a

    inteligncia dos animais.

    Tudo bem! Amanh... Daqui a pouco, conversaremos a

    respeito. Depois de alguns minutos, parou seu automvel em

    frente casa de Joo Rubens. Despediram-se e Guilherme

    retornou, exausto, para sua casa, onde foi recebido por Bons,

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    que veio cor rendo e latindo, alegremente, pelo retorno de

    seu melhor amigo.

    Bons um co sem raa, que o mdico recolheu em uma

    de suas consultas granja do senhor Ichimura. Ele estavapassando de automvel por uma estrada que corta um

    intenso canavial, quando ouviu um som estridente. Parecia

    um miado de gato, de to agudo que era o som do latido do

    recm-nascido filhote, mestio com Cocker, que foi

    abandonado na beira da estrada para morrer.

    Caramba! exclamou Guilherme Quem poderia serto ruim assim para abandonar um filhote neste sol, sem

    gua e sem comida? Dificilmente, algum passa por aqui.

    Que gente mais doida! pensou o mdico.

    O jovem doutor recm-formado parou seu veculo, desceu

    E saiu procura de onde vinha aquele choro sentido e agudo.

    Vasculhou entre os ps de cana e encontrou um monte de

    plos pretos ressecados da poeira da estrada, com os olhos

    tomados por uma secreo pegajosa causada pela

    conjuntivite que estava a ponto de ceg-lo.

    Estava em adiantado estado de subnutrio. Deveria

    estar ali h dias sem se alimentar. Guilherme admirou-se com

    a fora com que gania, mesmo depauperado como estava.

    Ao examin-lo, notou que um lquido viscoso e mal-cheiroso escorria e em papava os plos do abdome. Era uma

    miase. Enormes larvas de moscas de at dois centmetros

    devoravam-lhe a carne, deixando um grande ferimento, no

    qual se podiam ver os vermes movendo-se no interior.

    O senhor Ichimura que me perdoe, mas no poderei

    atend-lo agora falou consigo mesmo.

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    alimentasse em excesso, mas deixou-o, pois estava vido por

    comida, aps, sabe-se l, quantos dias sem se alimentar.

    Tendo alimentao regular e tratamento adequado, em

    alguns dias ele estava irreconhecvel. Seus plos brilhantes emacios, sua pele fofa que j formava dobrinhas nas patas e

    no pescoo, davam a ele um timo aspecto, mas sua viso

    no se restabeleceu. Foi levado para a casa de Guilherme,

    onde cresceu saudvel, mesmo cego e sem nunca conseguir

    ver, desenvolveu outras sensibilidades que compensavam a

    falta de viso. O mdico procurou no modificar a disposiodos mveis e, com isso, acostumou-se a se movimentar

    normalmente em casa sem se acidentar.

    Assim, ele corria, brincava, como se pudesse ver; guiava-

    se por sons, tato e olfato. Mal se podia notar sua deficincia.

    Era, sem dvida, um co especial e Guilherme sabia disso. Por

    isso, adotou-o e cuida dele at hoje, quando j completou seu

    quinto ano de vida. Bons era um belo co de plos longos e

    brilhantes, com orelhas longas e cobertas por densos plos

    ondulados e negros.

    Depois que foi resgatado da morte certa por Guilherme,

    nunca mais ficou doente, nem sequer pegou um resfriado.

    Desde que foi adotado, so inseparveis. Por isso, quando

    Guilherme chega em casa, sempre recebido por seu amigoBons, o resgatado que agradece a seu modo, em cada latido,

    por ter sido salvo por este grande amigo.

    Ao chegar em casa, ento, aps aquela noite de trabalho

    extenuante. Bons o abraa e o lambe com tamanha alegria

    que parece que no o encontra h anos. Bons correu, pulou,

    rolou pelo cho, latiu de alegria. Apesar do cansao,Guilherme no resiste ao convite de Bons e comea a brincar

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    com ele. Rolavam pela grama do quintal e corriam feito

    crianas de um lado para o outro. Com esta algazarra toda,

    surge na janela, sonolenta, Dona Elza, me de Guilherme.

    Guilherme Tavares Benati! Que baguna essa no meujardim a esta hora da manh? Voc no cresce, mesmo, hein!

    Olha a sua roupa, est toda suja e babada. Vo tomar banho

    os dois, enquanto esquento o caf!

    Oi, me! Foi culpa do Bons, eu estava quietinho!

    brincou Guilherme com sua me, como se fosse apenas uma

    criana com seu cachorro.Dona Elza entendeu a brincadeira do filho, sorriu e fez um

    sinal com a cabea chamando-os para dentro. Bons correu

    para frente, como se pudesse ver.

    Senta, Bons! ordenou Dona Elza. Bons abaixou-se e

    colocou a cabea entre as patas dianteiras e no se moveu

    dali, obediente. Ento, dona Elza repara no odor exalado pelo

    filho e pergunta: Que cheiro esse?

    Guilherme d um sorriso sem graa, pois por estar

    acostumado com os cheiros que adquire no trabalho,

    esquece-se de que podem incomodar outras pessoas. Ele foi

    direto tomar um banho para livrar-se daquele odor que estava

    incomodando sua me e retornou para a mesa que o

    esperava com seu desjejum. Mas antes de se ajeitar em suacadeira, sua me fala:

    Filho, voc vai acabar doente trabalhando deste jeito.

    Voc est desde a noite de ontem trabalhando. Ningum

    agenta este ritmo. Descanse hoje pediu dona Elza ao filho,

    que nem pensava em dormir. Ele s queria comer algo e

    voltar para a clnica.

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    Me, a senhora j deveria saber, vida de mdico

    assim mesmo, as emergncias surgem quando menos

    esperamos, seja dia ou noite. E alm do mais, eu no poderia

    deixar de atender a Paloma. Eu a conheo desde que meconheo por gente. Lembra-se quando amos com papai

    fazenda do senhor Mataveira comprar mel e queijo? Enquanto

    vocs ficavam de conversa, eu ia cavalgar Paloma,

    acompanhado pelo seu Juca, o capataz. Paloma era muito

    querida explicou Guilherme, j com a voz um pouco lenta

    por causa do sono que se aproximava e o abatia. Seus olhosestavam irritados pela viglia prolongada, que o fazia esfreg-

    los sem parar, enquanto bocejava vrias vezes.

    Tudo bem! Voc quem sabe. Eu sou s sua me e

    voc j est bem crescidinho para saber o que melhor para

    voc ou no. Coma ao menos, para no piorar sua sade.

    Eu fiz bolo de fub com queijo, de que voc tanto gosta.

    Ah! Antes que eu me esquea, a Cludia ligou ontem, porque

    no o encontrou o dia todo e estava preocupada com o seu

    excesso de trabalho disse Dona Elza ao filho, que mal

    prestava ateno s palavras, enquanto as plpebras pesadas

    caam, obrigando-o a dar longas piscadas e fazer um grande

    esforo para se manter acordado.

    Est bem, me. J ligo para ela.Dona Elza serviu-lhe o desjejum e foi cuidar dos seus

    afazeres domsticos. Guilherme morava com sua me e com

    Bons; seu Vitor havia morrido h dois anos de cncer no

    pulmo, pois era fumante inveterado. Dona Elza nem gostava

    de tocar em assuntos relativos s doenas, pois a faziam

    lembrar-se de quanto seu Vitor sofreu, quando a doena sealastrou sem que OS mdicos pudessem fazer algo a respeito.

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    Guilherme separou um pedao de queijo fresco, que dona

    Elza mesmo fez. Serviu-se de uma grande xcara de leite com

    caf muito aucarado e uma grande fatia de seu bolo

    preferido. Bebericou um pouco de caf, cuidadosamente, poisestava muito quente. Mais um gole, uma mordida no bolo de

    fub e o sono se abate sobre Guilherme.

    Mastigava, lentamente, e, por fim, apoiando sua cabea

    sobre seus braos, adormeceu sobre a mesa. Mal fechou os

    olhos, sentiu-se leve, como se flutuasse.

    Estava sonhando. Subitamente, se v em uma grandefazenda, muito arborizada, onde soprava uma brisa

    refrescante sobre sua face, fazendo movimentar sua

    cabeleira.

    A entrada daquela fazenda era enfeitada por flores de um

    colorido pouco comum, que pareciam ter sido plantadas com

    extremo cuidado por um paciente jardineiro. Elas coloriam o

    ambiente de uma forma to harmoniosa que poderia ter sido

    feito por um artista plstico de muito bom gosto. Pareciam

    exticas, pois eram de espcies que nunca tinham sido vistas

    antes por ele. A estrada que dava para a entrada da fazenda

    era muito bem trabalhada por tijolos amarelos e pedriscos

    que pareciam ter sido colocados um a um.

    Olhando para cima, Guilherme se depara com um cumuito azul e lmpido e admira-o, pois no se conhece um cu

    assim to limpo e com atmosfera to perfumada em lugar

    antes visitado pelo jovem doutor dos animais.

    Os pssaros de plumagens to diferentes eram muito

    amistosos e pousavam prximos ao mdico, como se

    soubessem que ele no representava qualquer ameaa. Eramde todas as cores, e seus cantos pareciam msica tocada por

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    um experiente flautista. Na entrada, havia uma grande

    porteira, com uma inscrio acima, no ponto mais alto:

    Rancho Alegre.

    Rancho Alegre! Que lugar mais bonito! Parece umsonho! exclamou o mdico. Quem ser o dono disso tudo?

    Deve ser algum muito rico e deve ter muitos empregados

    para manter tudo to organizado e limpo deste jeito. No me

    lembro de ter estado aqui antes, mas sinto-me

    estranhamente familiarizado... Parece que j conheo este

    lugar, mas no me lembro. Mas, de qualquer modo, estouadmirado com tanta beleza, sem falar do bem-estar que me

    invade. Gostaria de conhecer este lugar. Ser que algum vir

    me receber?

    Mal acabou de pensar nisso, notou, ao longe, uma figura

    conhecida, que se aproximava. Estava mais jovem e mais

    disposto. Estava muito mais forte e corado do que quando o

    viu pela ltima vez. Mas, sem dvida, era ele. A semelhana

    era muito grande para no ser. Era o pai do senhor Mataveira.

    Senhor Gustavo! exclamou Guilherme, estranhando

    a presena deste que conhecia desde criana.

    Sim, Guilherme! Prazer em rev-lo bem e forte disse

    o senhor, que o doutor reconheceu como sendo seu velho

    amigo. Mas, o senhor no morreu? Eu no fui ao seu enterro

    por que no me sinto bem em velrios, mas tenho certeza de

    que meus pais foram, O senhor morreu ou estou sonhando?

    perguntou, admirado, apario.

    Morrer? Ningum morre, Guilherme. A morte apenas

    uma iluso. E um perodo temporrio entre dois estadosevolutivos em que apenas nos desvencilhamos do envoltrio

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    que nos ser viu enquanto vivamos no mundo fsico e deixa de

    ser til quando acertamos nosso retorno ao nosso verdadeiro

    mundo, o espiritual. Aquele revestimento fsico, que foi

    somente um instrumento, deixado para trs e devolvido natureza quando novamente nos reunirmos aqui nesta outra

    dimenso. explicou Gustavo, com voz paternal.

    Ento eu morri tambm? perguntou, assustado com

    a possibilidade de ter desencarnado devo ter cochilado

    enquanto estava tomando meu caf da manh e me afoguei

    no leite, ou bati com a cabea na mesa, e nem notei que noestou mais vivo.

    Nada disso, Guilherme. Todas s vezes que dormimos,

    nosso corpo espiritual, juntamente com a nossa conscincia,

    se torna livre do corpo fsico pelo perodo que durar o sono.

    Estando libertos, agimos como se estivssemos

    desencarnados sem estar. Podemos voltar ao corpo fsico a

    qualquer momento. Com isso, iremos aonde quisermos, com a

    velocidade do pensamento, pois nos movemos atravs do

    pensamento quando estamos livres do denso corpo fsico.

    Voc ainda est ligado ao seu corpo fsico atravs destes fios

    brilhantes, quase invisveis, que saem do seu peito e da sua

    cabea.

    Ah! verdade. Posso perceber. H mesmo um fio aqui. falou Guilherme, que tentou toc-lo, mas suas mos

    atravessaram os fios, como se presenciasse uma iluso

    ptica.

    Tentou vrias vezes tocar o cordo, sem sucesso, e

    desistiu. Ento, olhou para o seu amigo e notou que nele no

    havia resqucios de cordo ou algo parecido.

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    O senhor no tem cordo? Por qu? perguntou

    Guilherme.

    No, eu no preciso mais ter um, pois no estou mais

    encarnado. Meus laos com o mundo fsico se romperam hanos. Os nicos contatos que fao com o mundo fsico so

    apenas visitas ocasionais aos familiares, quando me sobra

    tempo.

    Mas se o senhor no vive mais entre ns, ento no

    precisa se preocupar mais em sobreviver, nem tem que

    trabalhar para pagar contas e os salrios dos empregados,no vai mais fazer negcios com gado leiteiro e mel. Como

    pode no ter tempo para reencontrar a famlia e os amigos?

    perguntou Guilherme, curioso.

    Com freqncia, recebo visitas dos familiares, que vm

    nos auxiliar em nosso rancho, e de amigos que nos procuram

    para uma prosa e tambm para trabalhar conosco, mas

    retornar ao mundo fsico em visita social muito raro, pois

    pode no parecer, mas h mais trabalho a fazer aqui do que

    quando eu era encarnado e trabalhava na fazenda.

    O senhor o dono desta fazenda aqui tambm?

    No, no. Sou apenas um dos trabalhadores. Esta

    fazenda , na realidade, uma colnia espiritual, isto , uma

    comunidade que cuida dos animais, auxiliando-osprincipalmente no seu aprendizado evolutivo. H vrios

    colaboradores de diversas reas de especializao e vrias

    equipes especializadas em assuntos relativos aos animais. H

    os colaboradores das equipes de resgate, de cirurgies, os

    responsveis por animais selvagens, que incluem os animais

    marinhos e diversos outros. Aqui em nossa fazenda trabalhammuitos que foram, quando encarnados, veterinrios, que nos

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    auxiliam, mas h muitos outros que se encontram ainda

    encarnados tambm. Dentre os diversos especialistas, h

    aqueles que exercem as mesmas especialidades que exercem

    na Terra, trabalhando aqui, em funes semelhantes. Haqueles que no so especialistas, mas so grandes

    colaboradores e trabalhadores valorosos naquilo que fazem e

    que por isso merecem tanto respeito quanto os Outros.

    Ento, h muitos trabalhadores aqui que ainda vivem

    na Terra, assim como eu? Como podem trabalhar no mundo

    espiritual estando encarnados? Sim, h vrios colaboradores encarnados, e quando

    dormem, assim como voc est fazendo agora, se

    transportam mentalmente at aqui para exercer o que sabem

    e o que podem fazer para auxiliar os nossos irmos animais

    em sua escala evolutiva. Ficam pelo tempo que acharem

    necessrio ou que tiverem disponvel, mas o melhor de tudo

    isso o fato de que, quando esto auxiliando, ajudam a si

    prprios tambm a se elevar espiritualmente. Trabalhar na

    espiritualidade um aprendizado constante, pois j dizia So

    Francisco de Assis: E dando que se recebe.

    O senhor falando assim parece o Joo, meu secretrio,

    que chama os animais de irmos.

    Voc se refere ao doutor Joo Rubens? perguntouGustavo.

    No, doutor no. O Joo Rubens mal fez o primrio,

    est tentando terminar o primeiro grau fazendo escola

    supletiva por correspondncia. Ele semi-analfabeto.

    explicou Guilherme, um tanto quanto constrangido com o

    suposto mal-entendido. Este a deve ser outro Joo Rubens! completou Guilherme.

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    Engano seu, amigo. Aqui ele conhecido como doutor

    Joo Rubens, e ele um dos diretores mais graduados de

    nossa comunidade. Em outras pocas, em reencarnaes

    passadas, ele j ajudava em nossa instituio e, alis, umdos fundadores desta que foi formada h mais ou menos

    quinhentos anos por ndios, negros africanos que eram

    escravos dos senhores de engenho, e alguns europeus,

    principalmente portugueses e ingleses. Depois disso,

    juntaram-se a ns vrios japoneses, chineses, egpcios e

    muitos outros de diversas nacionalidades e em pocasdiferentes. O doutor Joo Rubens, quando da poca da

    fundao de nossa colnia de animais, era um ndio muito

    respeitado em sua comunidade. Como lder, era uma pessoa

    extremamente justa e bondosa, mas sempre sentiu

    necessidade de reencarnar para resolver problemas crmicos

    e para ajudar naquela outra dimenso em que voc vive hoje.

    Retornou a ns novamente como escravo em diversas

    reencarnaes. Em outras reencarnaes, estudou medicina;

    em outras, foi engenheiro, fsico, qumico, bilogo. Foi um

    cientista brilhante, reconhecido por mrito entre a

    comunidade cientfica no sculo XX. Recebeu prmios

    importantes como cientista. Hoje, um humilde auxiliar, por

    opo, mas no o subestime. uma mente notvel expsGustavo a Guilherme, que nem piscou, atento e boquiaberto.

    Quem diria, hein! O Joo Rubens. Eu nem poderia

    imaginar. Esse Joo Rubens sempre me surpreendendo

    comentou Guilherme, com um misto de surpresa e

    constrangimento por t-lo subestimado.

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    Notando que Guilherme ficou pouco vontade com a

    notcia de ter um auxiliar to graduado, Gustavo o convidou

    para conhecer o Rancho Alegre.

    Vamos entrando, vamos conhecer a casa! Ns o chamamos aqui para isso mesmo.

    Vocs me chamaram? Como assim? Eu pensei que

    tivesse chegado aqui por acaso.

    Depois que voc e Joo Rubens conversaram sobre a

    vida espiritual dos animais, sentimos que voc estava quase

    amadurecido para nos auxiliar. Se voc quiser, claro. Mas eu discordei de quase tudo o que o Joo me falou!

    Mesmo assim voc est apto a auxiliar.

    O que devo fazer, ento?

    Por enquanto, s conhecer a casa e depois a rotina dos

    trabalhos daqui. Posteriormente, voc ir trabalhar conosco

    efetivamente, mas, por enquanto, ainda precisa preparar-se

    melhor para as tarefas que desenvolvemos aqui. Mas, venha,

    vamos entrando...

    Ao se aproximarem da grande porteira, ela se abriu,

    automaticamente, tornando-se quase invisvel para tornar-se

    novamente slida, aps a atravessarem. Guilherme admirou-

    se com o mecanismo de abertura daquela porteira enorme e

    exclamou:Ah! Por isso no notei as porteiras se abrirem quando

    voc saiu!

    Exatamente. Este portal somente se abre s pessoas

    cadastradas. Assim, so evitadas invases e ataques de

    selvagens que querem agredir nossos irmos que esto sob

    nossa responsabilidade. Selvagens? perguntou Guilherme.

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    Sim, os selvagens so seres ignorantes, no sentido

    espiritual. No so ignorantes intelectualmente, pois muitos

    deles so at mesmo doutores na Terra; no entanto, se

    comprazem em ferir e maltratar animais. Organizam caadase safris no mundo fsico para exterminar animais indefesos

    e, durante o sono, libertam-se de seus corpos fsicos e tentam

    entrar clandestinamente em nossos limites, a fim de praticar

    este esporte detestvel, que a caa de animais com armas

    plasmadas mentalmente por eles. Os animais que esto aqui

    no podem ser aniquilados, pois j esto desencarnados,mas, mesmo assim, podem sofrer graves desequilbrios que

    atrasariam seu retorno ao mundo fsico, em funo dos

    transtornos decorrentes. Essas pessoas so freqentemente

    acompanhadas por seres horripilantes, que se assemelham a

    animais em aspecto, apesar de serem humanos vindos de

    regies trevosas, agindo como guias de caa, indicando os

    lugares onde se encontram os animais e fornecendo armas e

    munies em troca de um pagamento que me arrepia s de

    pensar.

    Pagamentos?

    Sim, como pagamento pelos servios de guia, eles

    entregam suas energias vitais a eles, que os sugam enquanto

    esto em atividade na Terra durante a viglia. Nossa! Que terrvel. E se conseguirem entrar, como se

    defendem?

    Temos uma equipe de segurana a postos,

    ininterruptamente, munida de armas eltricas que produzem

    descargas dolorosas que fazem os encarnados desdobrados

    despertarem na Terra com horrveis dores de cabea. Osdesencarnados atingidos pelos raios, geralmente desmaiam e

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    so levados de volta ao seu lugar nas profundezas. Enquanto

    os encarnados se preocupam com a cefalia, esquecem

    nossos animais e os seus parasitas espirituais tambm no os

    alcanam, pois, os raios possuem uma caracterstica que ade modificar seus padres vibratrios. Quando os mudam,

    tornam-se indigestos aos parasitas que procuram se afastar,

    ao menos, temporariamente. Na verdade, a descarga eltrica

    que recebem se assemelha, em termos de freqncia, ao

    passe magntico, ou hstia, ou, ainda, quando vo igreja

    evanglica, s energias da imposio das mos. Quando osselvagens se sobrecarregam destas energias positivas, que

    so contrrias s energias que carregam consigo,

    normalmente, sentem forte mal-estar e acordam.

    Deve ser uma guerra, no mesmo?

    Sim, terrvel; mas, vamos entrando convidou

    Gustavo Caminharam por uma estrada rodeada de extensos

    jardins floridos e de onde podiam ver diversas estradas que

    ligavam muitos prdios. Eram dezenas de prdios em todas

    as direes. Continuaram a caminhar por alguns metros.

    Ento, Guilherme olhou para frente e percebeu uma nuvem

    de poeira que se formava e se movia grande velocidade em

    direo aos dois. Gustavo no parecia surpreso, mas

    Guilherme ficou curioso. O que ser aquilo? perguntou Guilherme ao seu

    amigo Gustavo.

    No reconhece? Olhe melhor.

    Parece um cavalo, e veja que cavalo esperto e gil. Faz

    movimentos muito rpidos como nunca presenciei algum

    animal destes fazendo. Galopa to velozmente que malconsigo acompanhar seus movimentos. Ele parece flutuar no

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    ar. Isso incrvel! observou Guilherme, admirado com

    tamanha agilidade em um animal to pesado.

    Repare melhor e ver que a nossa Paloma.

    Paloma?! Mas ela estava agora mesmo morrendo, porestar totalmente enfraquecida. Como pode? Ela parece to

    jovem e saudvel!

    Lembra-se do que lhe disse sobre o corpo fsico?

    perguntou Gustavo. Pois ento, o corpo de Paloma j

    estava gasto pelo tempo, mas seu esprito permanece jovem.

    A aparncia dela agora reflexo de como se sente nestemomento e era assim que tambm estava, mesmo quando

    sua mquina fsica falhou. O corpo envelhece, mas o esprito

    no. Assim que a libertamos de seu corpo fsico, ela saltou

    para nossa dimenso como uma borboleta sai de sua

    crislida, j dando galopes, saltos, como se nada houvesse

    acontecido. De fato, nem houve necessidade de sed-la para

    proceder soltura dos liames que a prendiam ao seu velho

    corpo esgotado. espantoso como eles no se ressentem dos

    males sofridos no fsico ao retornarem.

    Enquanto Gustavo falava, Paloma vinha se aproximando

    dos dois. A poucos metros, diminuiu seu ritmo e aproximou-se

    trotando, para demonstrar como estava bem. E, mesmo

    quando estava a longa distncia, j havia reconhecidoGuilherme. Aproximou-se ainda mais e devagar para tocar-lhe

    a face com seu grande e quente focinho, como quem diz: Eu

    sabia que voc viria. Bem-vindo, amigo, minha nova casa.

    Em seguida, ofereceu um olhar meigo a ambos e afastou-se

    dali, a galope, at sumir de vista Guilherme no tinha certeza,

    mas parecia-lhe que ouviu as palavras de Paloma ecoarem

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    dentro de seu crebro. Tentou disfarar, para no parecer

    tolo, e se recomps antes de perguntar:

    O que acontece com Paloma agora? Viver aqui para

    sempre? Aqui seria como o paraso dos cavalos? Aqui no o paraso, mas um timo lugar, onde os

    animais so bem tratados at se recuperarem e estar em

    condies de retornar ao mundo fsico e continuar seu

    aprendizado. Aqui se encontram no somente cavalos, mas

    todas as espcies de animais que conhecemos na Terra, dos

    quais cuidamos at sua recuperao. Aqui ns os preparamospara um novo retorno vida fsica. Mas, como pode perceber,

    no exatamente um paraso, mas to-somente uma colnia

    espiritual. Este lugar apenas um posto intermedirio. H

    muitos outros em outras localidades que cuidam de assuntos

    ligados a animais mais evoludos que os que conhecemos,

    cuja tecnologia desconhecida de ns. necessrio muito

    tempo de estudo e trabalho para sermos levados a pontos

    mais avanados de trabalho que esto, digo, com certeza, a

    muitos anos-luz de nossa capacidade. Nosso trabalho aqui

    bem elementar, se comparado com o que desenvolvem por

    l, mas no nos preocupemos com isso ainda.

    Gustavo ia prosseguindo com o dilogo quando,

    subitamente, notou que Guilherme estremeceu, como sefosse tomado por um grande susto, para, a seguir, ter seus

    cordes prata avolumados e aumentado sem consistncia.

    Seus msculos se retesaram e suas pupilas se dilataram, O

    cordo que o ligava ao corpo fsico aumentou de dimetro e

    parecia se contrair. Estava como tomado por uma dor

    repentina que o impedia de continuar o dilogo final,Guilherme, como se desmaterializasse diante de Gustavo,

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    desapareceu sem ter tempo de se despedir de seu velho

    amigo. Guilherme retornou subitamente ao corpo fsico, pois

    sua me o estava acordando.

    Acorde, Guilherme! Acorde! No durma sobre a mesa,voc vai ficar com a coluna toda dolorida. Tome seu leite e

    deite se em sua cama. J est arrumada, sua espera.

    Guilherme ainda sonolento e sem recuperar totalmente

    sua conscincia, acordou, falando de modo desconexo.

    O que foi? O que aconteceu? Senhor Gustavo?

    perguntava Guilherme atormentado pelo retorno inesperado erepentino sua me.

    Que Gustavo, que nada. Voc est sonhando. V deitar-

    se em sua cama pegando o filho pelo brao, carregou-o

    como a uma criana, ajudando-o a encontrar o quarto e sua

    cama.

    Me! Eu vi o senhor Gustavo no sonho e a Paloma

    tambm estava l. Que sonho mais esquisito! Sonhei que ela

    falou comigo. Quanto tempo eu dormi?

    Ah! No chegou a um minuto, mas ali no lugar de

    dormir. Lugar de dormir na cama falou a me, com certa

    autoridade.

    Ajudando-o a deitar-se, acomodou o rapaz e o cobriu,

    saindo devagarzinho, sem dizer mais nada, pois notou queseu filho novamente tinha pegado no sono. Em silncio,

    afastou-se e fechou a porta atrs de si com todo cuidado. O

    cansao fsico aps o trabalho extenuante com Paloma o

    havia esgotado. Por isso, dormiu sem notar que j estava em

    sua cama, para onde caminhou automaticamente sem saber

    como chegou ali.

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    No se preocupe, filho respondeu a me, falando

    tambm alto, do outro lado da casa a Cludia passou por

    aqui e o encontrou em sono pesado, por isso cuidou de tudo.

    Ela j deve ter organizado sua agenda de hoje de modo a nosobrecarreg-lo. Voc sabe, a Cludia a organizao em

    pessoa. Se ela no ligou porque no surgiu nenhuma

    emergncia. Fique tranqilo, tenho certeza que estar tudo

    pronto, sua espera, quando voc chegar no seu escritrio.

    Ainda apressado, Guilherme gritou de novo, j na porta da

    sada, e se despediu de sua me. Me! gritou Guilherme Estou indo. At mais tarde!

    At mais tarde, filho. Tenha um bom dia de trabalho!

    Saindo rpido, do lado de fora estava Bons, que veio

    correndo em sua direo e pulou sobre ele para desejar-lhe

    um bom dia, mas acabou sujando sua cala branca.

    No, Bons. Seu desastrado! Agora vou ter que ir

    trabalhar sujo. Veja o que fez na minha cala! Ah! Voc nem

    pode ver Fica a. Depois ns conversaremos sobre isso

    bronqueou Guilherme.

    Saindo apressado rumo ao consultrio, Guilherme nem ao

    menos reparou o quanto feriu os sentimentos de seu amigo.

    Bons sentiu-se o ltimo dos ces. Ento, ficou ali, cabisbaixo.

    Abaixou as orelhas, como se estivesse se desculpando. Eleparecia dizer: Desculpe-me e afastou-se indo deitar-se,

    triste, sobre o tapete da porta da cozinha. Permaneceu imvel

    por horas, deixando Dona Elza preocupada.

    Guilherme, ao chegar ao consultrio, encontrou Joo

    Rubens, seu auxiliar tcnico, em uma animada conversa com

    sua noiva, Cludia, que o ajudava na clnica enquanto estavade folga no hospital onde trabalhava dando plantes.

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    Ela nutricionista do Hospital Municipal o principal

    hospital da cidade. Cludia descendente de japoneses. Aqui,

    seus parentes se estabeleceram e criaram razes.

    Tiveram seus filhos e netos. Cludia tem uma vitalidadede dar inveja. Adepta da prtica de yoga e tai-chi-chuan,

    possui energia de sobra para trabalhar em seu planto e

    ainda dar auxlio em uma creche e em outros trabalhos

    voluntrios pela cidade, com pessoas carentes.

    No hospital conhecida como mosquitinho, por no parar

    quieta um segundo. Sobe e desce as escadarias do prdiocom uma celeridade que chama a ateno de todos.

    Ela muito querida pelos pacientes, mdicos e

    enfermeiros, que a respeitam por ser uma pessoa que se

    importa com todos. Passa de quarto em quarto para obter a

    opinio dos pacientes sobre a qualidade e a aceitao dos

    alimentos que so servidos, e ainda encontra tempo para

    ouvir o que cada um tem a dizer. Todos querem contar como

    surgiu sua enfermidade e como sofrem com isso. Cludia,

    pacientemente, ouve a todos e sempre transmite a cada um

    deles a confiana que os motiva a lutar contra o mal fsico

    que os aflige. Isso OS ajuda a enfrentar suas doenas com

    mais nimo, pois Cludia sabe o quanto so carentes,

    principalmente aqueles com enfermidades incurveis.A nutricionista to querida que em alguns chega a

    causar cime. Sua chefe est constantemente dando-lhe

    reprimendas porque ela fica ouvindo os lamentos dos

    pacientes.

    Mas, Cludia sabe que so apenas reaes de cime, pois

    ela consegue cumprir suas obrigaes a contento, sem deixarde ouvir um paciente que seja.

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    Ela faz seu trabalho, que vai alm de sua obrigao, mas

    faz com boa vontade. Quando os pacientes tm alta, voltam

    sempre ao hospital, somente para visit-la. uma pessoa

    especial, sem dvida, tmida, mas ao mesmo tempo muitocarismtica. Ela muito espiritualizada e compartilha com

    Joo as mesmas opinies, a respeito dos animais serem

    nossos irmos, mas nunca comentou com Guilherme a

    respeito disso, pois sabe como o seu noivo cptico.

    Certa vez, perguntou-lhe sobre Deus. A resposta foi, no

    mnimo, estranha para ela, cuja condio espiritual elevada.Guilherme respondeu: Deus!? Deus no existe.

    apenas uma criao mental das pessoas para que se

    sintam amparadas de qualquer forma, mas s isto.

    Cludia, surpresa com a resposta, perguntou-lhe:

    Guilherme, se Deus no existe, o que faz tudo funcionar to

    coordenadamente e sincronizadamente no Universo? Quem

    criou e pe ordem nessa imensido?

    a Natureza! A Natureza perfeita respondeu o noivo,

    certo de que sua resposta era abrangente o suficiente para

    convencer sua noiva de que seu argumento era melhor.

    Ento, Cludia acalmou seu corao, pois notou que

    Guilherme entendia Deus como sendo a Natureza e sentiu-se

    satisfeita, pois de certa forma ele estava certo e discutir noera sua inteno. Alis, Cludia raramente entrava em

    contendas por pontos de vista. Ela respeitava todas as

    opinies.

    Por isso, ambos se davam bem, pois ela era o oposto de

    Guilherme. Um completava o outro de certa forma. Dona Elza,

    a me de Guilherme, no sabia ainda, mas ambos estavam

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    planejando unir-se em matrimnio em breve tempo e

    pretendiam ter Joo Rubens como padrinho.

    Ao entrar na clnica, vendo Joo Rubens e Cludia em

    animado colquio, Guilherme sentiu-se um pouco enciumado,e Joo Rubens percebeu sua expresso e calou-se,

    repentinamente.

    Cludia estava de costas para a porta de entrada e,

    notando a mudez repentina de Joo Rubens, virou-se e viu

    Guilherme com fcies de poucos amigos.

    Bom dia, Gu! Era assim que ela o chamava. Dando-lheum beijo no rosto disse: Acordou mal-humorado? O que

    aconteceu? Levantou com o p esquerdo? brincou a noiva,

    tentando reanim-lo. Ento, fez-lhe ccega na barriga,

    oferecendo um largo sorriso.

    Ah! Foi o Bons. Encheu-me de terra. Olha s falou

    Guilherme, apontando com o indicador a pegada de poeira do

    co carimbada em sua coxa esquerda como que vou

    trabalhar, estando sujo de pata de cachorro?

    Trabalhando, u! Todos sabem que veterinrio pode se

    sujar um pouco no seu ramo. Ningum liga para isso! Relaxe

    e deu outro beijo no rosto de seu noivo, que se mostrou

    mais sossegado.

    Tudo bem. Vamos agenda disse Cludia. Algumaspessoas ligaram e eu expliquei que voc ficou a noite toda no

    senhor Mataveira em uma emergncia e voltou exausto.

    Estava descansando um pouco, mas atenderia a todos.

    Marquei os nomes dos que querem sua visita e os horrios em

    que voc poderia atend-los.

    Guilherme examinou a agenda, verificou os horrios edisse:

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    Obrigado, Cludia. No sei o que eu faria sem voc.

    No sei onde voc consegue energia para fazer tantas coisas

    ao mesmo tempo. Trabalha no planto do hospital e, na sua

    folga, ao invs de descansar, vem aqui e organiza a minhabaguna. Que energia! Guilherme estava admirado com a

    vitalidade de sua noiva de pequenos olhos amendoados e

    cabelos pretos com leve tom castanho.

    Irei atend-los de acordo com sua organizao. Aposto

    que o primeiro da lista o senhor Ichimura, estou certo?

    ele mesmo! respondeu a pequena sansei de pelebranca como algodo.

    Guilherme, aps conhecer seu roteiro e horrios, comeou

    a preparar a valise que carregava consigo quando saa em

    consultas externas, e quis saber:

    Mas, me digam, sobre que assunto vocs falavam to

    animados!

    Falvamos sobre a espiritualidade dos animais. Joo me

    falou que vocs conversaram a respeito disse Cludia.

    Isto mesmo, mas no sabia que voc se interessava por

    isso. Eu sei que voc estuda assuntos relativos a estas coisas

    de espiritualidade, mas achei que voc s entendia de

    fantasmas.

    Disse Guilherme, mostrando sua ignorncia a respeito dosassuntos espirituais.

    Cludia, com pacincia extrema, nunca se exaltava com

    as observaes debochadas e sarcsticas do noivo. Ao

    contrrio, via em suas atitudes e palavras a oportunidade de

    expor suas idias ao noivo cptico que, aos poucos, estava

    aceitando melhor os assuntos preferidos dela.

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    Ah! Como voc bobo, Gu! No tem isso de fantasmas.

    So espritos. E animais tambm tm esprito. Quando

    morremos, nosso esprito se liberta definitivamente e

    deixamos para trs nosso invlucro fsico do corpo e nosatiramos em outra dimenso: a espiritual, onde no mais

    precisamos daquele corpo que nos serviu enquanto vivamos

    na Terra. Assim, temos nosso esprito livre. Alguns so

    encaminhados s colnias espirituais para tratamento ou

    educao. Outros, que no acreditavam, ou nem sabiam

    enquanto estavam encarnados que a vida continua, aps aperda do corpo fsico, nem ao menos notam que no

    pertencem mais a esta dimenso e ficam vagando por entre

    as pessoas. Antes de serem resgatados por parentes e

    amigos que os esperam naquela dimenso, podem ser vistos

    por algumas pessoas encarnadas que tenham maior

    sensibilidade medinica, isto , se mantm perceptveis aos

    que possuem vidncia. Os animais so como ns: quando

    morrem, tambm so encaminhados para a dimenso

    espiritual e so acolhidos por equipes que os tratam e

    alimentam.

    Guilherme interrompeu neste ponto, com inteno de

    fazer mais deboches. Mas, Cludia percebia um interesse

    oculto, que ele relutava em revelar: E fantasma precisa comer? Falou rindo.

    A maioria das pessoas est muito ligada aos hbitos

    terrestres. Precisam se alimentar, dormir, vestir-se, etc. Os

    animais so mais ligados ainda aos hbitos alimentares, por

    isso, apesar de no precisarem para manter seus corpos

    fsicos que no possuem mais , so alimentados mais

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    A razo! s pensar um pouco e tudo isso que voc diz

    perde o valor respondeu, sem rodeios.

    Ora, Gu! Pense voc, ento, no que eu digo e me diga

    onde est o absurdo de minhas palavras. Ns temos provasda existncia da espiritualidade e de seus habitantes o tempo

    todo. Muitos cientistas esto atestando isso.

    Devem ser cientistas malucos ironizou o doutor.

    Sem dar ouvidos aos comentrios irnicos do noivo,

    Cludia tenta explicar-lhe sobre os estudos cientficos a

    respeito. Na Rssia, os cientistas conseguiram provar que ns

    possumos tambm um corpo no fsico, que eles chamam de

    corpo biofsico ou corpo de bioplasma. Este corpo seria o

    nosso corpo espiritual. Parte deste corpo de bioplasma nos

    acompanha aps nossa desencarnao ou durante o nosso

    sono, quando podemos abandonar temporariamente o corpo.

    Quando dormimos nos livramos, durante o tempo que durar o

    sono, do corpo fsico. Estando novamente livres, entramos na

    dimenso espiritual para retornarmos dela para mais um dia

    aqui, quando acordamos. Quantas vezes sonhamos com

    pessoas que j partiram e obtemos delas informaes que

    somente elas poderiam nos trazer? disse Cludia ao

    companheiro incrdulo, que permaneceu um momento imveltentando lembrar-se do sonho que teve h pouco. Ele pareceu

    realmente interessar-se por este tpico.

    Se for verdade o que est dizendo, ento, h pouco, em

    sonho, conversei com o senhor Gustavo, pai do senhor

    Mataveira, e me encontrei com a Paloma, que morreu disse

    o mdico. Claro, voc realmente os encontrou. No h dvida.

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    Guilherme estava relutante em demonstrar interesse, e

    por isso quis interromper a conversa, demonstrando um falso

    desinteresse.

    Vamos parar um pouco. Esse papo est me deixandocansado. Eu vou sair para atender estes clientes e depois

    voltamos ao assunto. Irei ao senhor Ichimura e casa de

    Luciana, que est com sua gata doente. Volto logo.

    E saiu, apressado, sem levar o auxiliar, como se estivesse

    fugindo da conversa.

    Assim que saiu, entrou uma pessoa com uma gata nosbraos. Era Luciana, que a pedido de Bruno, seu irmo,

    preferiu no esperar por Guilherme em casa e a trouxe para o

    consultrio.

    Ol, Luciana cumprimentou Cludia. No agentou

    esperar pelo Guilherme?

    No isso. O Bruno muito estressado e no sossegou

    enquanto no peguei a Branquinha para traz-la para ser

    examinada e tratada. Eu sei que no grave, mas voc sabe

    como o Bruno, no ? Ele nunca deixa nada para depois.

    Mas, deixe-me sentar um pouco. A caminhada me deixou

    cansada. O doutor est ocupado agora? perguntou Luciana.

    Ele acabou de sair para atender o senhor Ichimura e

    depois iria sua casa. Vou ligar para o seu celular e avis-loque voc est aqui.

    Diga a ele que no precisa ter pressa. Faz tempo que

    no conversamos e esta uma boa oportunidade para

    pormos nossa conversa em dia.

    Concordando com a cabea e dando um sorriso, Cludia

    avisou o veterinrio que Luciana estava na clnica.

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    Voc est de folga hoje do hospital? perguntou

    Luciana.

    No, j fui fazer meu planto e estou dando uma pequena

    ajuda ao Gu. Ele anda muito atarefado, ultimamente. Hojetrabalhou durante toda a noite na fazenda do senhor

    Mataveira e est exausto.

    Pelo jeito voc gosta tambm dos bichinhos, no ,

    Cludia?

    Sim, adoro os animais, mas no gostaria de ser

    veterinria. Gosto do que fao no hospital. Admiro os animaispor sua natureza e inteligncia, principalmente.

    Isso verdade. So muito inteligentes. A Pretinha,

    minha outra gata, demais. No que a Branquinha no seja

    tambm, mas o que aconteceu ontem foi muito interessante e

    provou o que eu digo. Estvamos eu e o Bruno tomando

    nosso desjejum, quando Pretinha veio at ns, miando,

    fortemente, e olhando para a jarra de leite, como que pedindo

    um pouco de forma insistente. Estranhamos, pois ela no

    gosta de leite, mesmo assim, peguei uma vasilha e coloquei

    um pouco para ela no cho. Para minha surpresa, Pretinha

    saiu correndo e voltou acompanhando Branquinha, como se

    estivesse amparando-a at se aproximar do leite. Deixou-a

    beber e ficou observando-a o tempo todo, em silncio. Pareciaque ela estava ali certificando-se de que ela tomaria tudo. Ela

    estava preocupada com a sade de Branquinha, que no

    acordou bem naquela manh.

    Ento o leite era para a outra gatinha? perguntou

    Cludia.

    Exatamente. Ela se preocupou em saber se aBranquinha estava se alimentando adequadamente e pediu o

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    leite. No uma gracinha? Bruno ficou to comovido com a

    cena que quase chorou. Foi a que notamos que a Branquinha

    no estava bem de sade e resolvemos chamar o doutor. E

    tambm percebi como Pretinha evoluda.Como estavam na clnica, o assunto de animais se

    mesclou com os espirituais e voltaram ao assunto de que

    conversavam antes de Guilherme sair.

    Pois. O Guilherme no entende que os animais sofrem

    tanto quanto ns e aprendem com o sofrimento. No , Joo?

    falou Cludia, tentando puxar o tmido auxiliar para oassunto.

    Sim, verdade, O patro no aceita estes conceitos

    por acreditar que animais somente existem para nos servir e

    servir aos seus prprios instintos respondeu Joo Rubens,

    timidamente. Mas, aos poucos, acredito que se interessar

    pelo assunto e os entender melhor O tema muito vasto e

    complexo. O maior problema a falta de material para

    estudos. Existe somente o contato com eles e as explicaes

    dadas por mentores espirituais para conseguirmos um

    pequeno acesso s informaes mais profundas. Ontem, digo,

    hoje de madrugada, quando fomos atender Paloma, l no stio

    do senhor Mataveira, pude presenciar as equipes espirituais

    trabalhando conosco para salvar o filhote dela, a Palominha, edesligar a sua me dos envoltrios fsicos para que passasse

    para a outra dimenso sem traumas.

    Joo Rubens tinha uma mediunidade muito evidenciada.

    A equipe numerosa teve pouco trabalho com Paloma,

    que colaborou com eles, facilitando tudo. Pude notar quando

    ela se soltou das amarras e saiu de seu estado de semi-sonolncia para o outro em que inclusive tinha uma aparncia

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    bem mais jovem e vivaz. Saiu em um galope em direo ao

    pasto, no sem antes fazer um carinho em seu filhote. Havia

    vrias pessoas, mas alguns s observavam como se

    estivessem ali para aprender como era feito o trabalho queconsistia em desativar pontos que serviam como fixao do

    corpo fsico ao corpo espiritual. Enquanto uns aplicavam raios

    de energia sobre o corpo, outros aplicavam sobre o tero.

    Parece que estavam fazendo o possvel para que Palominha

    nascesse antes que sua me se libertasse totalmente. Foi

    uma cena realmente comovente. Difcil foi conter as lgrimasdiante de tudo sem que o doutor notasse.

    No fcil para voc ter um patro excessivamente

    racional, sendo voc o outro extremo em termos de

    sensibilidade. Voc consegue vislumbrar o mundo espiritual,

    mas no pode compartilhar com ele o que pode captar da

    espiritualidade falou Luciana.

    Eu sei que o patro se importa com o que se passa com

    os animais, e sei tambm que ele sensvel ao sofrimento

    dos nossos irmos, mas ele prefere manter esta aparncia

    indiferente por simples questo profissional. Ele acredita que

    se demonstrar esses sentimentos, estar se expondo. Por

    isso, as esconde, das pessoas e talvez at de si mesmo,

    algumas vezes. Tenho certeza de que ele tem interesse porassuntos espirituais, mas no quer se abrir.

    Aps algum tempo de conversa, o telefone toca. Era

    Guilherme, avisando que j terminara a consulta no stio do

    senhor Ichimura, e j estava voltando para atender a gata

    Branquinha, da Luciana.

    O stio um tanto retirado da cidade e para chegar at l necessrio passar pelo mesmo canavial onde Guilherme

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    encontrou Bons. Sempre que passa por ali, ele revive a cena

    do resgate do co, que hoje seu companheiro, e se comove

    com essas lembranas.

    Guilherme vai dirigindo, apressado, para no deixarLuciana esperando por muito tempo no consultrio. Enquanto

    isso, Bons, deixando sua depresso momentnea por causa

    da reprimenda que recebeu de seu dono, passou a se

    comportar de modo estranho, ficando um tanto agitado e

    inquieto. De um momento para outro, Bons ficou ansioso e

    angustiado como se algo o estivesse ameaando. Dona Elzano podia ver o que era e no podia entender o que estava

    ocorrendo e provocando esta transformao em Bons, que

    no parecia o mesmo. Ele fixava o olhar em alguma coisa,

    mas no poderia, pois era cego.

    Repentinamente, comea a rosnar e a mostrar seus

    caninos ameaadores, enquanto continuava a fixar o olhar em

    algum ponto no horizonte. Parecia que ele estava mesmo

    vendo algo. Dona Elza aproximou-se dele e tentou toc-lo, e

    conversar com ele para acalm-lo, mas, como se estivesse

    hipnotizado, no deu ateno voz da me de Guilherme,

    que o chamava sem ser ouvida. Quando ela o tocou no dorso

    para tentar acalm-lo com carcias, Bons deu um salto, como

    se estivesse querendo se defender ou atacar algum. DonaElza assustou-se, pensando que ele queria atac-la, por isso

    correu para dentro de casa e trancou a porta da cozinha,

    isolando-se do animal que estava transformado. Parecia um

    animal raivoso com a aparncia alterada como nunca antes

    havia visto.

    Observava-o atravs da janela, temerosa por um ataque,e notou que continuava rosnando insistentemente para algo

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    ou algum que somente ele poderia ver. Dona Elza estava

    achando que o co havia enlouquecido e no queria ficar

    sozinha com aquele perigo, por isso ligou para o consultrio,

    mas seu filho no estava. Tentou ligar para o celular, mas notinha sinal algum, ento, pediu Cludia que lhe avisasse

    sobre Bons e lhe pedisse que voltasse para casa o mais

    rapidamente possvel.

    Naquele instante, Guilherme voltava pela estrada que

    cortava por entre a enorme plantao de cana. Eram

    quilmetros e quilmetros de cana. Repentinamente, ouve-seum estrondo e Guilherme quase perde o controle de seu

    veculo, que derrapou e quase entrou no canavial. O susto foi

    grande, mas nada sofreu.

    O que aconteceu? pensou Guilherme.

    Plido de susto e com o corao disparado com aquele

    acidente que poderia ter sido mais grave, se no fosse por

    sua percia no volante, Guilherme parou e deu um grande

    suspiro de alvio por estar bem. Permaneceu imvel dentro de

    seu veculo por algum tempo, tentando se recuperar do susto,

    e em alguns minutos se refez. Ainda trmulo e com a

    respirao ofegante, desceu do veculo para verificar o que

    acontecera, e qual era a causa daquele som que se

    assemelhava ao estouro de uma bomba.Observando ao redor, notou uma tbua com vrias pontas

    de ao perfurantes que, coberta pela poeira da estrada, ficou

    camuflada. Provavelmente, foi a causa do estouro dos dois

    pneus dianteiros.

    Que azar! exclamou Guilherme em pensamento

    dois pneus furados, e s tenho um sobressalente. Terei que

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    chamar um guincho para me rebocar. Droga! Agora complicou

    tudo. Vou atrasar todas as consultas por causa disso.

    Nesse instante, em casa, Bons continuava com

    comportamento cada vez mais estranho, agressivo e fora donormal. Comeou a eriar os plos das costas e latir

    fortemente de forma ameaadora para algum ou alguma

    coisa que dona Elza no podia ver o que era. De repente, a

    expresso de Bons modificou-se completamente. Parecia um

    animal selvagem prestes a atacar o inimigo. Com expresses

    faciais alteradas, partiu em disparada em direo ao muro,batendo fortemente com a cabea e desmaiando em seguida.

    Guilherme, nesse momento, nada sabia sobre Bons. Sua

    nica preocupao era conseguir ajuda para sair dali, daquele

    deserto de canas. Mas, seu celular no tinha sinal por causa

    de uma colina que faria uma barreira transmisso das

    ondas. Se quisesse pedir ajuda, teria que caminhar a p por

    alguns quilmetros at o topo da colina onde haveria sinal.

    Enquanto a ajuda no chegasse quele local, ele estava

    isolado e desprotegido. Retirando aquela tbua de pregos do

    caminho e observando os estragos ocorridos por causa do

    acidente, no notou que surgiam dentre as folhagens dois

    vultos.

    Dois assaltantes se aproximaram de Guilherme,sorrateiramente, quando ele estava distrado. Foram eles que,

    propositadamente, colocaram o artefato perfurante na

    estrada, com intenes escusas.

    Ao se aproximarem de Guilherme, gritaram, anunciando o

    assalto. Assustado com mais esta surpresa, quase no podia

    se mover diante da arma de grosso calibre portada por umdos homens de expresses duras. Estavam com o controle da

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    situao, mas notava-Se que eram inexperientes e estavam

    mais assustados que o prprio assaltado.

    Suas mos tremiam, assim como sua voz, que ordenou a

    Guilherme que lhes entregasse todo seu dinheiro. Guilhermetentou argumentar, dizendo que tinha poucos valores consigo,

    mas poderiam ficar com seu celular e seu relgio. Irritados,

    pois queriam somente o dinheiro, os dois homens gritavam e

    ameaavam atirar se no lhes entregasse, o que acreditavam

    que o mdico escondia. O jovem mdico se viu em uma

    situao de grave perigo, pois, real