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Empreendedorismo Brasileiro: uma Análise Conceitual a partir da Ética do Trabalho e da Ética da Aventura Almiralva Ferraz Gomes [email protected] Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia José Roberto Pereira [email protected] Universidade Federal de Lavras Weslei Gusmão Piau Santana [email protected] Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Uajará Pessoa Araújo [email protected] CEFET/MG Resumo: Investigar o empreendedorismo torna-se uma oportunidade rica de pesquisa, pois este fenômeno pode nos ajudar a compreender vários processos impostos pelas era moderna e contemporânea e, sobretudo, pela condição humana, social, política e material que permeia e fundamenta qualquer organização produtiva e inovadora. Contudo, hodiernamente, o empreendedorismo deve ser visto como um fenômeno heterogêneo, complexo, multidimensional e dinâmico. Neste ensaio, não só tentaremos provocar algumas reflexões a respeito da temática, mas, ousadamente, também intentaremos inserir a discussão a partir da ótica da ética da aventura e do trabalho proposta por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Ademais, apresentaremos nossas reflexões a respeito do (re)conceito de empreendedor considerando alguns elementos que a literatura especializada não tem dado, a nosso ver, a devida atenção. Nossa proposta é de um conceito que abrace os “excluídos” da sociedade e economia contemporânea. 1. Introdução Há muito se tem o empreendedorismo como objeto de estudo, contudo, ultimamente tem-se discutido, com maior intensidade, sua importância para o desenvolvimento econômico. O crescente interesse pelo tema deve-se, principalmente, ao fato de que este tem sido considerado uma importante prática para o desenvolvimento de alguns países. Sendo assim, alguns pesquisadores de diversas áreas têm se dedicado ao assunto, haja vista sua relevância numa sociedade em que os empregos tradicionais estão cada vez mais escassos e tem-se sentido a necessidade de encontrar e desenvolver novas “carreiras/oportunidades” para se manter ativamente econômico. Ora, mas como o empreendedorismo é conceituado na literatura? Esta é uma boa questão para se iniciar um debate. Apesar das inúmeras publicações a respeito da definição de empreendedor e empreendedorismo, a discussão não está exaurida. Neste artigo, não só tentaremos provocar algumas reflexões a respeito da temática, mas, ousadamente, também intentaremos inserir a discussão a partir da ótica da ética da aventura e do trabalho proposta

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  • Empreendedorismo Brasileiro: uma Anlise Conceitual a partir da tica do Trabalho e da tica da Aventura

    Almiralva Ferraz Gomes [email protected] Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Jos Roberto Pereira [email protected] Universidade Federal de Lavras Weslei Gusmo Piau Santana [email protected] Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Uajar Pessoa Arajo [email protected] CEFET/MG Resumo: Investigar o empreendedorismo torna-se uma oportunidade rica de pesquisa, pois este fenmeno pode nos ajudar a compreender vrios processos impostos pelas era moderna e contempornea e, sobretudo, pela condio humana, social, poltica e material que permeia e fundamenta qualquer organizao produtiva e inovadora. Contudo, hodiernamente, o empreendedorismo deve ser visto como um fenmeno heterogneo, complexo, multidimensional e dinmico. Neste ensaio, no s tentaremos provocar algumas reflexes a respeito da temtica, mas, ousadamente, tambm intentaremos inserir a discusso a partir da tica da tica da aventura e do trabalho proposta por Srgio Buarque de Holanda em Razes do Brasil. Ademais, apresentaremos nossas reflexes a respeito do (re)conceito de empreendedor considerando alguns elementos que a literatura especializada no tem dado, a nosso ver, a devida ateno. Nossa proposta de um conceito que abrace os excludos da sociedade e economia contempornea.

    1. Introduo H muito se tem o empreendedorismo como objeto de estudo, contudo, ultimamente

    tem-se discutido, com maior intensidade, sua importncia para o desenvolvimento econmico. O crescente interesse pelo tema deve-se, principalmente, ao fato de que este tem sido considerado uma importante prtica para o desenvolvimento de alguns pases. Sendo assim, alguns pesquisadores de diversas reas tm se dedicado ao assunto, haja vista sua relevncia numa sociedade em que os empregos tradicionais esto cada vez mais escassos e tem-se sentido a necessidade de encontrar e desenvolver novas carreiras/oportunidades para se manter ativamente econmico.

    Ora, mas como o empreendedorismo conceituado na literatura? Esta uma boa questo para se iniciar um debate. Apesar das inmeras publicaes a respeito da definio de empreendedor e empreendedorismo, a discusso no est exaurida. Neste artigo, no s tentaremos provocar algumas reflexes a respeito da temtica, mas, ousadamente, tambm intentaremos inserir a discusso a partir da tica da tica da aventura e do trabalho proposta

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    por Srgio Buarque de Holanda em seu estudo a respeito da cultura brasileira, Razes do Brasil, publicado em 1936.

    No temos aqui a pretenso de responder a questo levantada. Apenas pretendemos instigar o debate. Investigar o empreendedorismo torna-se uma oportunidade rica de pesquisa, pois este fenmeno pode nos ajudar a compreender vrios processos impostos pelas era moderna e contempornea e, sobretudo, pela condio humana, social, poltica e material que permeia e fundamenta qualquer organizao produtiva, flexvel e inovadora.

    Inicialmente, ser realizada uma discusso a respeito da cultura do povo brasileiro, mas com um foco na obra de Srgio Buarque de Holanda. Na seo seguinte, ser feita uma breve retrospectiva histrica a respeito dos estudos sobre o empreendedor e, por sua vez, apresentada as principais correntes de pesquisa sobre o empreendedorismo j com algumas inferncias, na anlise, obra de Holanda. No ltimo tpico, ser travada uma discusso a respeito do polmico campo conceitual do empreendedorismo e se tentar analisar o fenmeno luz da tica do trabalho e da aventura.

    2. Razes do Brasil: a tica do trabalho e da aventura De acordo com Srgio Buarque de Holanda (1971), a essncia do brasileiro est no

    homem cordial, que nada mais do que fruto de nossa histria, que tem origem na colonizao portuguesa com uma estrutura poltica, econmica e social completamente instvel de famlias patriarcais e escravagistas. Para os portugueses, era fundamental o valor da auto-suficincia, ou seja, que um homem garantisse a sua sobrevivncia sem necessitar dos demais. A originalidade ibrica, portanto, devia-se muito importncia que atribuam autonomia do indivduo, ao valor prprio da pessoa humana.

    Cada qual filho de si mesmo, de seu esforo prprio, de suas virtudes... e as virtudes soberanas para essa mentalidade so to imperativas, que chegam por vezes a marcar o porte pessoal e at a fisionomia dos homens (HOLANDA, 1971, p.4).

    Eles no possuam uma hierarquia feudal to enraizada, por isso a mentalidade da nascente burguesia mercantil se desenvolveu primeiro nos pases ibricos (Portugal e Espanha). Somando a isso, havia toda uma frouxido organizacional que estaria muito presente na histria de Portugal e conseqentemente do Brasil. A forma pela qual os portugueses se organizam no Brasil Colonial j supe indicativos de uma organizao poltica frgil. Em terra onde todos so bares no possvel acordo coletivo durvel, a no ser por uma fora exterior respeitvel e temida (HOLANDA, 1971, p. 4).

    A nobreza portuguesa era muito flexvel ou, como diz Holanda (1971), possua uma mentalidade moderna. J que esse pas tinha uma mentalidade mais aberta e no possua boas terras, pode-se dizer que a navegao foi uma alternativa criativa e inovadora para sua manuteno. Consequentemente, o Brasil-Colnia nada mais foi do que um lugar de passagem, e no um novo mundo para a construo de uma nova civilizao. Portanto, era natural que fosse instaurada no territrio brasileiro uma cultura de averso ao planejamento, ao pensamento a mdio e longo prazos. A ausncia de Universidades no Brasil-Colnia, ao contrrio do que ocorreu na Amrica espanhola, um claro sintoma da falta de preocupao com o planejamento, com a construo de algo futuro.

    Os portugueses pareciam agir em funo de uma rotina, ou seja, da repetio de experincias, o que equivale dizer que no se projetava anteriormente nada daquilo que seria construdo ou desenvolvido em termos de colonizao. Isso denuncia a ausncia de um projeto empreendedor de colonizao. Holanda (1971) traduz a imobilidade e a pequena sistematicidade do portugus como caractersticas de uma atitude tateante e perdulria. No

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    havia entre os portugueses um verdadeiro interesse em dominar o curso dos acontecimentos, em mudar a ordem da natureza. A ordem que aceita no a que compe os homens com trabalho, mas a que fazem com desleixo e certa liberdade;... (HOLANDA, 1971, p. 82).

    Holanda (1971) aponta dois tipos de homens: um com olhar mais amplo o aventureiro e outro com olhar mais restrito o trabalhador. O gosto pela aventura foi o que possibilitou a colonizao no Novo Mundo. Por conta de seu esprito aventureiro, o portugus adaptou-se muito bem na Amrica. Holanda (1971) ainda nos fala que o Brasil tem muitas caractersticas ibricas, tais como ojeriza ao trabalho fsico, desejo de tornar-se senhor, contudo sem ter que lutar insanamente pelo po de cada dia. Parece que o indgena brasileiro tambm estava acostumado ao cio e ao lazer e esforava-se apenas no caso da caa e da guerra, quando realmente necessrio e, de preferncia, o mnimo possvel. Assim, podemos dizer que temos uma herana muito forte, na perspectiva debatida neste trabalho, de no cultuar o trabalho suado. Portanto, a vida de grande senhor, que exclui qualquer esforo ou preocupao racional, seria representativa de uma mentalidade avessa religio do trabalho e atividade utilitria.

    Quando Holanda (1971) se prope a discutir os contrastes entre a tica do trabalho e a tica da aventura, mais especificamente lusitana, recorre ao livro clssico de Max Weber A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo. Neste livro, o autor de Razes do Brasil encontra subsdios para uma discusso em torno de um ethos particular do capitalismo, que no teria se inserido na colonizao portuguesa.

    A tica protestante se peculiariza por exaltar o trabalho como um meio de aproximao do homem com Deus. A falta de vontade de trabalhar sintoma de estado de graa ausente (WEBER, 2004, p. 144). Alm disso, a vocao para o trabalho secular vista como expresso de amor ao prximo. O trabalho no s une os homens, como proporciona a certeza da concesso da graa. Diferentemente do catolicismo, para o protestantismo a nica maneira aceitvel de viver para Deus no est na superao da moralidade secular pela ascese monstica, mas sim no cumprimento das tarefas do sculo, impostas ao indivduo pela sua posio no mundo.

    O descanso eterno dos santos est no Outro Mundo; na terra o ser humano tem mais que buscar a certeza do seu estado de graa, levando a efeito, enquanto for de dia, as obras daquele que o enviou. cio e prazer, no; s serve a ao, o agir conforme a vontade de Deus inequivocamente revelada a fim de aumentar sua glria (WEBER, 2004, p, 143).

    O trabalho, desse modo, ocupa um lugar fundamental na tica protestante. Constitui a

    prpria finalidade da vida. ... o tempo infinitamente valioso porque cada hora perdida trabalho subtrado ao servio da glria de Deus (WEBER, 2004, p. 143-144). O cio e a preguia so encarados como um sintoma da ausncia do estado de graa. No basta apenas ganhar dinheiro, ou seja, o trabalho exercido no pode ser o do tipo aventureiro e especulativo. Weber (2004) distingue muito bem a tica do capitalismo aventureiro da tica do capitalismo racional.

    Voltemos discusso a respeito da viso weberiana sobre trabalho. O acmulo de riquezas que no se baseasse no ethos de uma organizao racional do capital e do trabalho no poderia se adaptar ao iderio protestante. Mesmo enriquecendo, o indivduo no pode se sujeitar ao cio para viver de renda ou especulao. Para Weber (2004), mesmo que o protestantismo tenha tentado inibir o abandono da ascese por parte do homem que teria enriquecido, esse ethos, voluntria ou involuntariamente, serviria de estmulo ao crescimento do capitalismo.

    Holanda (1971) estabelece uma comparao que se assemelha que Weber (2004) desenvolveu. Para Weber (2004), o incio da colonizao norte-americana produz dois tipos de trabalhadores: os adventures, que organizaram as plantaes com mo de obra servil e

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    nelas viviam senhorialmente; e os puritanos, tipicamente burgueses, que se enquadravam no perfil de trabalhador voltado para a ascese. Holanda (1971) se apropria da metodologia weberiana ao criar as tipologias que vo percorrer a sua obra. Embora tenha conscincia de que esses tipos ideais, como o nome j diz, no podem ser encontrados em estado puro na Histria (somos a sociedade da mistura nas palavras de Freitas, 1997), constri algumas oposies que se encontrariam no contexto brasileiro.

    Os tipos do aventureiro e do trabalhador encarnam duas ticas totalmente diferentes. A tica do aventureiro se enquadra mais facilmente no tipo de colonizao realizada no Brasil. Holanda afirmaria: Essa explorao dos trpicos no se processou, em verdade, por um empreendimento metdico e racional, no emanou de uma vontade construtora e enrgica: fez-se antes com desleixo e certo abandono (HOLANDA, 1971, p. 12).

    Holanda (1971), com isso, distingue a tica do trabalho da tica da aventura. O tipo trabalhador s atribuir valor moral positivo s aes que sente nimo de praticar, e conseqentemente rejeitar a audcia, a imprevidncia e a instabilidade to caractersticas do tipo aventureiro. Este valorizar somente as atividades que lhe proporcionarem uma recompensa imediata. O que o portugus vinha buscar era, sem dvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, no riqueza que custa trabalho (HOLANDA, 1971, p. 18). Ao que parece, a ausncia da moral do trabalho se ajustaria bem a uma reduzida capacidade de organizao social. De acordo com Motta (2003), o Brasil foi imaginado como uma economia de extrao e at hoje repete tal lgica nas suas relaes, organizaes etc. Temos um colonizador eterno em nossa sociedade.

    Contudo, no se pode dizer que a tica do trabalho no esteve presente na colonizao realizada no Brasil, mas apenas que seu papel foi limitado por conta da ausncia de uma moral fundada no culto ao trabalho. Este s foi devidamente valorizado quando pressupunha a ausncia de esforo manual e uma recompensa imediata pelo mesmo. Como analisou Faoro (2000), o portugus no veio para se fixar, queria enriquecer depressa, voltar ao reino, sem cultivar as lavouras para perpetuar a explorao do solo. Contrastando com o colonizador ingls da Amrica do Norte que trouxe a famlia para l se fixar, o portugus a esqueceu, pois via na ocupao das novas terras uma misso de guerra e de conquista, adequada somente ao homem solteiro. Por isso mesmo, Faoro (2000, p. 139) enfatizou: O ingls fundou na Amrica uma ptria, o portugus um prolongamento do Estado.

    Esta baixa capacidade de organizao social tambm pode explicar o fato de Portugal no ter conseguido desenvolver aqui um parque industrial prprio, mesmo tendo recolhido tantas riquezas das terras brasileiras. Ao contrrio do puritanismo ingls que fomentou a Revoluo Industrial, que tinha na construo de riquezas um caminho para a salvao, a influncia do catolicismo para o povo portugus parece ter favorecido a construo de um tipo de individualismo marcado por um lado seno negativo pelo menos pouco empreendedor.

    O contraste entre a ausncia da moral do trabalho e a tica protestante fundamentada na noo de trabalho enquanto vocao permitiu a configurao da tipologia trabalho-aventura na obra de Holanda (1971). A pequena racionalizao da vida, o inexpressivo nimo para os grandes empreendimentos e o interesse por resultados imediatos constituem a principal deficincia da colonizao portuguesa. Mas Holanda (1971) no se preocupa apenas com a conotao negativa do tipo aventureiro, predominante na colonizao portuguesa. Ele faz questo de ressaltar que o gosto pela aventura teve influncia decisiva na medida em que favoreceu a mobilidade social e estimulou os homens a enfrentar com perseverana as adversidades da natureza.

    A aventura pressupe ousadia e no trabalho, por isso a economia rural no Brasil contou com macia mo-de-obra escrava, monocultura e a exigncia extrema de produtividade em detrimento do investimento tcnico e financeiro. Tal passado, de acordo com Motta (2003), nos ajuda a entender questes como distncia de poder e de distribuio de renda entre os

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    grupos sociais no Brasil, porm este assunto, por no fazer parte do escopo do presente trabalho, no ser tratado aqui. Na verdade, devemos reconhecer que em decorrncia dessa explorao rural, dessa hipertrofia do sistema latifundirio, no houve investimentos em outras reas.

    O que sobretudo nos faltou para o bom xito desta e de tanta outras formas de labor produtivo foi, seguramente, uma capacidade de livre e duradoura associao entre os elementos empreendedores do pas (HOLANDA, 1971, p. 29).

    Holanda (1971) buscava enfatizar que mesmo os empreendimentos de carter coletivo

    ocorreriam para satisfazer certos sentimentos e emoes. Essas formas de atividade coletiva dificilmente marcariam uma tendncia para a cooperao disciplinada e constante. O que importava nesses empreendimentos no era o resultado material que se pretendia alcanar, mas sim os sentimentos e inclinaes que levavam um indivduo a socorrer um amigo ou parente. O autor se utiliza da distino entre cooperao e prestncia, construda por Margaret Mead, para delinear o tipo de solidariedade que permeia as relaes profissionais na sociedade brasileira. A cooperao e a competio so comportamentos orientados, embora de modo diverso, para um objetivo material comum. Na prestncia, o objetivo material tem significao praticamente secundria, o que importa o dano ou benefcio que uma das partes pode fazer outra. A prestncia parece ser o tipo de solidariedade mais adequada ao contexto brasileiro.

    Em sociedade de origens to nitidamente personalistas como a nossa, compreensvel que os simples vnculos de pessoa a pessoa, independentes e at exclusivos de qualquer tendncia para a cooperao autntica entre os indivduos tenham sido quase sempre os mais decisivos (HOLANDA, 1971, p. 30-31).

    Essa solidariedade de cunho personalista denota um trao peculiar da vida brasileira: a preponderncia do afetivo, do irracional, que provoca uma estagnao da energia ordenadora, racional e disciplinadora, energia esta que deveria contribuir para uma organizao poltica mais slida.

    Em se tratando de cultura personalista, DaMatta (1997) procura distinguir indivduo de pessoa no Brasil. Para isso, o autor trata do mundo da casa e o mundo da rua. Ora, mas o que o mundo da casa e o da rua? No mundo da casa as pessoas valem pelo que so, reina a paz e a harmonia. Enquanto, no mundo da rua os indivduos lutam pela vida em uma batalha impiedosa e annima. Esses espaos espelham a hierarquia social brasileira e constituem um drama social. Ao mesmo tempo, revelam o desprezo que temos por aquilo que seja externo nossa moradia e a importncia que damos s pessoas prximas a ns, que podem ou no habitar nossa casa, mas que sempre so bem recebidas se quiserem nos visitar. Entretanto, h visitantes que nos so indesejveis como, por exemplo, o trabalho, que deve permanecer em outro universo, na rua, bem distante do nosso lugar de prazer e convvio com os nossos.

    Nesta batalha, as principais armas so, alternativamente, a afirmao dos privilgios de status das pessoas das classes dominantes (voc sabe com quem est falando?) e a reduo dos indivduos s leis impiedosas do mercado e da burocracia. H, portanto, uma clivagem de sistemas hierarquizados em dois mundos: da casa e da rua. E, especificamente, no caso brasileiro, h um desprezo pelo indivduo. O individualismo sinnimo de egosmo, pois individualizar significa desvincular-se da casa, da famlia e das relaes pessoais e buscar uma ligao direta com o Estado abrindo mo dos direitos dados pelo sangue, amizade e compadrio.

    Com isso, DaMatta (1997) revela um pas oscilante entre um modo de subjetivao tradicional, holstico e hierrquico, familiar e clientelstico, gerados de pessoas, e um modo de subjetivao moderno e urbano, igualitrio e impessoal, gerador de meros indivduos.

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    Entretanto, Figueiredo (1995) que introduz as noes de pessoas, meros indivduos e sujeito.

    Chamo a ateno, de incio, para os dois plurais e pra o singular; h em toda coletividade estratificada muitos lugares e assim, muitas pessoas qualitativamente diferentes; h indiscutivelmente, nas sociedades individualistas uma massa annima e infinita de meros indivduos, indiferenciados e intercambiveis; h, contudo, no rigor da palavra, apenas um sujeito. Isso quer dizer que ao elevar-se condio de sujeito o mero indivduo atingiria um nvel de regularidade, uniformidade e unidade que reduz ou mesmo elimina todas as diferenas qualitativas que definem as pessoas e toda mera multiplicidade de indivduos (FIGUEIREDO, 1995, p. 36-37).

    O carnaval chamado por DaMatta (1997) de a festa de todos propicia s pessoas renunciarem provisoriamente seus lugares e experimentar o lugar de um mero indivduo. Esta festa uma oportunidade para o rompimento das hierarquias, das convenes e para o exerccio de uma liberdade negativa. J o Voc sabe com quem est falando? uma situao que permite escapar da condio de meros indivduos e tornar-se pessoas.

    Aps estas consideraes, tem-se ento a seguinte distino entre indivduo e pessoa no Brasil. O indivduo aquele que no tem nenhuma relao e est submetido s regras, leis impessoais que regem as massas. Ao contrrio, a pessoa aquela que est bem posicionada socialmente, seja de modo institucional, pelo cargo que ocupa e o poder atribudo a si por isto e tambm pelo poder financeiro. Com isso, nas situaes do cotidiano, ele usar o sabe com quem est falando? para impor a superioridade que sua posio lhe proporciona e que reconhecida por todos. Essa distino denuncia um desenvolvimento excessivo dos laos familiares.

    Essa hipertrofia dos vnculos familiares, no caso brasileiro, de acordo com Holanda (1971), fruto de uma predominncia do rural sobre o urbano. Estes vnculos extrapolam o mundo privado e se estendem ao mundo pblico. A supervalorizao do mbito familiar ou o esprito de cl que prevalece h sculos, segundo Oliveira Vianna (1987), acaba provocando um esvaziamento do pblico, j que, se todos vivem voltados para si mesmos, as questes pblicas passam a figurar como um problema secundrio. A famlia patriarcal dificilmente se submete a um princpio superior, quando este lhe imposto sob a forma de uma lei ou conveno. Assim, o que se verifica no Brasil um liame quase imperceptvel entre o pblico e o privado. Ao que parece, o Estado Brasileiro um Estado profundamente privatizado.

    necessrio ento ultrapassar o singular, o individual, o local para que se construa um conjunto de convenes que permitam que os homens possam conviver socialmente. Esta postura inclusive se contrape tica protestante weberiana que condena a sociabilidade: Perder tempo com sociabilidade, com conversa mole [...] absolutamente condenvel em termos morais (WEBER, 2004, p. 143). O privilgio das relaes pessoais inibe a possibilidade de eficcia de um regime democrtico. Este teria sido um dos dilemas presentes em Razes do Brasil. Os polticos brasileiros idealizavam um regime liberal, mas se contentavam politicamente com um contra-senso do mesmo, ou seja, com o manejo autoritrio das opes pessoais.

    Para distinguir indivduo de pessoa, DaMatta (1997) tambm se utiliza de comparaes entre as sociedades norte-americanas e brasileira. Nos EUA, os valores liberais e do indivduo esto acima das relaes pessoais. O contrato respeitado e valorizado. Tanto assim que enquanto no Brasil se diz sabe com quem est falando? no sentido de garantir uma superioridade, l se diz quem voc pensa que ? num sentido exatamente oposto. L a expresso traz de volta ao sistema de leis e regras comuns a todos os indivduos que tentavam passar sobre elas. Portanto, o indivduo, submetido e protegido pelo conjunto de leis, valorizado. Se nos EUA o que conta o indivduo, o cidado, no Brasil o que conta a relao.

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    Para Souza (2001), no Brasil, enxerga-se um meio termo. H um sistema dual, composto por um conjunto de relaes pessoais estruturais, ou seja, que organiza a sociedade; e um sistema legal, moderno e individualista, de inspirao liberal e burguesa. No entanto, este sistema de leis que submete as massas feito por quem est no topo dessas fortes relaes pessoais e permite que estas pessoas, e quem est prximo a elas, saltem s leis (... as leis s se aplicam aos indivduos e nunca s pessoas).

    Aqui, ao contrrio do que observado nos EUA, h uma tendncia a sair do sistema, pois as relaes pessoais so totalizantes, e no o contrrio (as leis). Uma frase que caracteriza essa tendncia e prtica aos inimigos, a lei; aos amigos, tudo!. como se tivssemos duas bases atravs das quais pensssemos o nosso sistema. No caso das leis gerais e da represso, seguimos sempre o cdigo burocrtico ou a vertente impessoal e universalizante, igualitria, do sistema. Mas no caso das situaes concretas, daquelas que a vida nos apresenta, seguimos sempre o cdigo das relaes e da moralidade pessoal, tomando a vertente do jeitinho, da malandragem e da solidariedade como eixo de ao (FREITAS, 1997). Na primeira escolha, nossa unidade o indivduo; na segunda, a pessoa. A pessoa merece solidariedade e um tratamento diferencial. O indivduo, ao contrrio, o sujeito da lei, foco abstrato para quem as regras e a represso foram feitos.

    Em se tratando de jeitinho brasileiro no podemos dizer que ele seja totalmente negativo ou positivo. Ele possui, pelo menos, duas faces, pois tanto pode significar favorecimento e apadrinhamento, o que acaba prejudicando seno pelo menos irritando aqueles que no so favorecidos, como tambm pode ser visto como smbolo de esperana num mundo rgido e como uma maneira de enfrentar o cotidiano. O jeitinho uma forma diminutiva que revela intimidade e simpatia. considerado legtimo para resolver situaes aparentemente insolveis, trazendo o lado flexvel, engenhoso e criativo do brasileiro. Entretanto, se por um lado, o jeitinho representa uma das facetas da cultura brasileira na busca da conciliao, a sada amistosa, por outro, tambm pode ser um sintoma de que nossa sociedade est, estruturalmente, bastante imperfeita.

    DaMatta (1997) enfatiza que, no contexto brasileiro, o indivduo sempre espera ser reconhecido. Em qualquer situao-dilema, existe uma expectativa de que o respectivo caso seja singularizado, personalizado. O cidado a entidade que est sujeita lei, ao passo que a famlia, as relaes de amizade, porque representam um vnculo afetivo e/ou biolgico, podem se excluir de uma conveno formal. O universo das relaes permite revestir uma pessoa de humanidade, excluindo-a da temvel universalidade a que submetida enquanto cidado. O universo relacional permite que se atue sob a forma de exceo, ou seja, uma situao de conflito que resolvida de forma afetiva permite diversas solues particulares.

    DaMatta (1997) diagnostica na sociedade brasileira um universo de conflito entre o mundo pblico das leis universais e do mercado e o mbito privado da famlia, dos compadres, parentes e amigos. Contudo, o brasileiro evita as situaes de enfrentamento, abafando-as ou negando-as, postando-se sempre como avesso ao conflito. Essa, alis, uma caracterstica to marcante no povo brasileiro que parece dar origem na nossa sociedade a uma espcie de cultura do silncio, como alcunhou Paulo Freire (2006).

    De acordo com Freitas (1997), vivemos em uma sociedade que se considera capitalista e moderna, no entanto, ela possui um passado colonial-patriarcal que se manifesta continuamente. Ou seja, adotamos um sistema complexo de preceitos externos e no consideramos a sua adequao a nossa realidade.

    A ideologia impessoal do liberalismo democrtico jamais se naturalizou integralmente entre ns. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomod-la, assimilando efetivamente os princpios capitalistas at onde coincidiam com seus interesses e privilgios (FREITAS, 1997, p. 47).

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    O padro de cidadania universalista concebido pelos preceitos da modernidade, constitudo a partir dos papis modernos que se ligam operao de uma burocracia e de um mercado, freqentemente burlado ou reinventado na sociedade brasileira. O tipo de cidadania aceita nesse contexto um padro tipicamente filiado ao mundo da casa. Nesta, longe de ser indiviso, o indivduo se fragmenta atravs das diversas lealdades pessoais que se demarcam pelo parentesco e pelo lao de simpatia pessoal. O universo pblico constantemente atravessado pelo universo da casa.

    A impossibilidade que o brasileiro tem em se desvincular dos laos familiares a partir do momento que esse se torna um cidado, gera o homem cordial. Esse homem cordial aquele generoso, de bom trato que quando necessrio suprime as distncias impostas pela hierarquia para manter-se afvel e camarada. A intimidade que tal homem tem com os demais chega a ser desrespeitosa, o que possibilita chamar qualquer um pelo primeiro nome, usar o sufixo inho para as mais diversas situaes e at mesmo, colocar santos de castigo. O rigor totalmente afrouxado, onde no h distino entre o pblico e o privado: todos so amigos em todos os lugares. Ento o homem cordial tende a reduzir suas relaes ao nvel pessoal e afetivo. Contudo, esta atitude tem dois lados. Ou seja, para aqueles que tm apreo, dedica-se at emotivamente, mas, para aqueles que lhe so indiferentes ou no tem simpatia, no se esfora em ajud-los ou at mesmo cria dificuldades. Assim, a cordialidade no s um estado de benevolncia, mas pode ser tambm de malevolncia. Este o presente que o Brasil d ao mundo: ... a contribuio brasileira para a civilizao ser de cordialidade daremos ao mundo o homem cordial (HOLANDA, 1971, p. 106).

    H na sociedade brasileira uma indistino entre os domnios do pblico e do privado. O Estado, para se constituir de forma expressiva, justa e eficaz, deve se despir de todas as particularidades, subjetividades, laos de parentesco, sejam eles biolgicos ou afetivos, enfim a esfera estatal deve ser pressupostamente impessoal e isenta. Os entraves para a constituio de um Estado moderno so vistos no conjunto da interpretao de Holanda (1971) como a persistncia do patriarcalismo e do ruralismo. A viso intimista das aes sociais estimulada medida que o domnio pblico (mundo da rua) passa a ser abandonado. O esvaziamento da ao poltica pode representar um perigo do ponto de vista da idealizao de uma sociedade igualitria. A valorizao da esfera familiar (mundo da casa) provoca a transformao da mesma numa referncia moral. Transfere-se a moralidade privada para a esfera do pblico.

    Holanda (1971) alerta para o lado danoso dessas fronteiras tnues. A dificuldade do brasileiro em lidar com o impessoal torna quase que obrigatria a insero do padro familiar na esfera pblica. A famlia garantidora da manuteno do ntimo, do subjetivo, do particular, ou seja, todas as identidades so possivelmente asseguradas no mbito familiar.

    O homem cordial, portanto, resultado da cultura personalista e patrimonialista prpria da sociedade brasileira. A cordialidade brasileira simboliza o predomnio de relaes humanas mais simples e diretas que rejeitam todo e qualquer aspecto de ritualizao do comportamento. Nossa maneira de conviver socialmente representa o contrrio de uma atitude vinculada polidez. A civilidade, que pressupe uma noo ritualstica da vida, parece distante do modus vivendi do brasileiro.

    A modernidade exige do homem uma atitude mais vinculada civilidade do que propriamente cordialidade. No entanto o Brasil, visto sob a tica de Holanda (1971), parece oscilar entre um mundo arcaico e a chegada da modernizao. De acordo com Motta (2003, p. 15), ... no Brasil no existe arcaico ou moderno, existe arcaico e moderno.

    A cordialidade do brasileiro o despoja da capacidade de perceber a importncia de um certo grau de ritualismo, j que este sugere uma distncia e uma artificialidade essenciais para a socializao das pessoas num mundo distinto do mbito familiar.

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    O Brasil uma sociedade onde o Estado apropriado pela famlia, os homens pblicos so formados no crculo domstico, onde laos sentimentais e familiares so transportados para o ambiente do Estado, o homem que tem o corao como intermdio de suas relaes, ao mesmo tempo em que tem muito medo de ficar sozinho. A cordialidade um trao forte do carter nacional, contudo, pode ser modificado de acordo com as circunstncias histricas.

    Os valores atrelados cordialidade, uma espcie de sntese do ruralismo, do iberismo e da cultura personalista, estariam em ampla modificao na histria brasileira. O prprio conceito de revoluo de Holanda (1971) denota o processo longo e lento que o Brasil teria que percorrer at alcanar a sua especfica modernizao. Para Holanda (1971), o que se pode chamar de revoluo no um fato que possa ser registrado num determinado momento da histria brasileira. Mais do que isso, um processo demorado que deve encontrar a sua fundamentao nos costumes e na opinio.

    Se o processo revolucionrio a que vamos assistindo, e cujas etapas mais importantes foram sugeridas nestas pginas, tem um significado claro, ser este o da dissoluo lenta, posto que irrevogvel, das sobrevivncias arcaicas que o nosso estatuto de pas independente at hoje no conseguiu extirpar (HOLANDA, 1971, p. 135).

    O Estado, portanto, uma entidade prxima, mas transcendente. Prxima porque se trata

    de uma instituio presente em todas as esferas privadas do indivduo. Ainda visto como uma espcie de grande pai a quem se deve pedir tudo desde que passemos a respeit-lo com subservincia. A relao do brasileiro com o Estado ainda muito submissa, servil. Talvez por isso seja difcil para Holanda (1971) imaginar o Brasil do perodo no qual ele escreve como uma nao que, graas ao desenvolvimento de uma cidadania, possa promover um Estado democrtico. No h democracia sem vida democrtica. Para o autor, a democracia foi no Brasil sempre um mal-entendido. Os grandes movimentos sociais e polticos vinham de cima para baixo. Muitos traos da nossa intelectualidade ainda revelam uma mentalidade senhorial e conservadora. Em Razes do Brasil, Holanda alerta para a ineficcia da importao de um iderio liberal sem que houvesse um preparo mental para a sua receptividade. Holanda (1971) sugere que se respeite o ritmo prprio em que se constitua nossa cultura, seja ela adepta da modernidade ou no.

    3. Empreendedorismo: uma Breve Retrospectiva Histrica H muitas definies para o termo empreendedor, uma vez que pesquisadores de

    diferentes campos do conhecimento utilizam os princpios de suas prprias reas de interesse para construir o conceito. De acordo com Filion (1999), duas correntes principais tendem, no entanto, a conter elementos comuns maioria delas. So as dos pioneiros do campo: os economistas, que associam empreendedor inovao, e os psiclogos, que enfatizam aspectos atitudinais, como a intuio e a criatividade. Na abordagem dos economistas prevalece a identificao do empreendedorismo como um elemento til compreenso do desenvolvimento econmico. Os comportamentalistas, por sua vez, elaboram seu conceito de empreendedor a partir de dados subjetivos do indivduo. Embora seja pura quimera achar que o debate sobre esta questo tenha se esgotado nas discusses travadas por estas duas correntes na verdade elas so importantes principalmente enquanto introdutoras da discusso , interessante voltar mais uma vez o olhar sobre os seus posicionamentos, at mesmo para propor-se um caminho alternativo para a compreenso do conceito.

    Segundo Filion (2000), aqueles que pesquisam sobre o assunto concordam em dizer que a origem desse conceito est nas obras de Richard Cantillon (1680-1734), banqueiro e economista do sculo XVIII. Nessa poca, Cantillon1 chamou de empreendedores aqueles indivduos que compravam matrias-primas (geralmente um produto agrcola) por um preo

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    certo e as vendiam a terceiros a preo incerto, depois de process-las, pois identificavam uma oportunidade de negcio e assumiam riscos (PAULA, CERQUEIRA e ALBUQUERQUE, 2000). Ele entendia, no fundo, que se houvesse lucro alm do esperado, isto ocorreria porque o indivduo havia inovado: teria feito algo de novo e de diferente.

    Um pouco mais tarde, o industrial, economista clssico francs e divulgador da obra de Adam Smith, Jean-Baptiste Say (1767-1832) autor da clebre Lei de Say considerou o desenvolvimento econmico um resultado da criao de novos empreendimentos. O empresrio de Say um agente econmico racional e dinmico que age num universo de certezas, ou ainda, o empresrio representado como aquele que, aproveitando-se dos conhecimentos postos sua disposio pelos cientistas, rene e combina os diferentes meios de produo para criar produtos teis.

    A concepo que Say tinha do empreendedor algum que inova e agente de mudanas permanece at hoje. Foi, contudo, Schumpeter (1982) quem deu projeo ao tema, associando definitivamente o empreendedor ao conceito de inovao e apontando-o como o elemento que dispara e explica o desenvolvimento econmico.

    De acordo com a viso schumpeteriana, o desenvolvimento econmico processa-se auxiliado por trs fatores fundamentais: as inovaes tecnolgicas, o crdito bancrio e o empresrio inovador. O empresrio inovador o agente capaz de realizar com eficincia as novas combinaes, mobilizar crdito bancrio e empreender um novo negcio. Ele no necessariamente o dono do capital (capitalista), mas um agente capaz de mobiliz-lo. Da mesma forma, no necessariamente algum que conhea as novas combinaes, mas aquele que consegue identific-las e us-las eficientemente no processo produtivo. [...] chamamos empresrios no apenas aos homens de negcio independentes em uma economia de trocas, que de modo geral so assim designados, mas todos que preenchem de fato a funo pela qual definimos o conceito... (SCHUMPETER, 1982, p. 54). O conceito ao qual Schumpeter (1982) se refere , justamente, a capacidade do empresrio inovador em combinar as inovaes tecnolgicas e o crdito, ou seja, o empreendimento a realizao de combinaes novas e o empresrio inovador o indivduo capaz de realiz-las.

    [...] algum s um empresrio quando efetivamente levar a cabo novas combinaes, e perde esse carter assim que tiver montado o seu negcio, quando dedicar-se a dirigi-lo, como outras pessoas dirigem os seus negcios. Essa a regra, certamente, e assim to raro algum permanecer sempre como empresrio atravs das dcadas de sua vida ativa, quanto raro um homem de negcios nunca passar por um momento em que seja empresrio, mesmo que seja em menor grau (SCHUMPETER, 1982, p. 56). Em certo sentido pode ser chamado o mais racional e o mais egosta de todos (SCHUMPETER, 1982, p. 64). Antes de tudo, h o sonho e o desejo de fundar um reino privado, e comumente, embora no necessariamente, tambm uma dinastia. [...] H ento o desejo de conquistar: o impulso para lutar, para provar-se superior aos outros, e ter sucesso em nome, no de seus frutos, mas do prprio sucesso. [...] Finalmente, h a alegria de criar, de fazer as coisas, ou simplesmente de exercitar a energia e a engenhosidade. (SCHUMPETER, 1982, p. 65).

    Assim, o empreendedor schumpeteriano no o gerente ou diretor de firma, aquele que

    dirige um negcio estabelecido, mas um lder que toma iniciativa, tem autoridade e faz previso. O papel do empreendedor no se confunde com o do inventor, que algum que produz idias. O empreendedor aquele que faz com que as coisas aconteam, pouco importando se isso envolve ou no algum conhecimento cientfico novo. O empresrio no um tcnico nem um financista, mas um inovador. Os empresrios no constituem uma classe social como os capitalistas e os operrios, haja vista que ser um empresrio no significa ter uma profisso permanente, pois a atividade inovadora envolve sempre o lidar com situaes

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    desconhecidas. Ainda, para Schumpeter, o empresrio no aquele que corre riscos: o risco obviamente recai sempre sobre o proprietrio dos meios de produo ou do capital-dinheiro que foi pago por eles, portanto nunca sobre o empresrio (SCHUMPETER, 1982, p. 54). Desse modo, quem corre o risco do empreendimento o banqueiro e nunca o empresrio.

    Na primeira citao, quando Schumpeter (1982) diz que ao empreendedor cabe apenas criar o empreendimento e que dar continuidade ou trabalhar nele j papel, por exemplo, do administrador ou do gerente, isso nos remete a idia de que o empreendedor, pelo menos nesse momento, no necessita ser tanto do tipo trabalhador, mas precisa, principalmente, ser aventureiro, ou melhor, cabe a ele uma viso ampliada para levar a cabo as novas combinaes. Entretanto, j na citao seguinte ele se refere racionalidade que deve estar presente nas decises do empreendedor, ou seja, deve ser racional ou trabalhador, ao invs de emotivo ou aventureiro. A ltima citao tambm nos remete ao tipo trabalhador quando se refere ao exerccio da energia e da engenhosidade por parte do empreendedor, apesar da forte emotividade que parece estar presente quando se refere ao desejo, vontade de empreender. Assim, difcil afirmar que o empreendedor schumpeteriano do tipo trabalhador ou aventureiro apenas. Parece haver, num primeiro momento, uma combinao dos dois tipos na constituio deste indivduo.

    A concepo de empreendedor como um motor da economia, um agente de inovaes e mudanas, capaz de desencadear o crescimento econmico tambm uma viso compartilhada por muitos pensadores atualmente. Ao que parece este perfil corresponde ao indivduo moderno, caracteristicamente individualista, fundamentado na racionalidade instrumental e na tica do trabalho. E isso muito importante porque leva a crer que comunidades, atravs da atividade empreendedora, podem ter a iniciativa de liderar e coordenar seus esforos no sentido do seu prprio crescimento econmico.

    A segunda corrente a ser apresentada vem da psicologia os comportamentalistas. Entre as dcadas de 1970 e 1980, os behavioristas dominaram a rea do empreendedorismo. Esta supremacia coincide com o progresso das cincias do comportamento que teve grande contribuio de David McClelland. Para McClelland, psicologicamente, a sociedade pode ser dividida em dois grupos no que diz respeito percepo e ao enfrentamento de desafios e oportunidades. O primeiro grupo corresponde a uma minoria da populao que se sente disposta a enfrentar desafios e, conseqentemente, a empreender um novo negcio; o segundo grupo equivale imensa maioria que no se dispe a correr riscos dessa natureza. Apesar de inmeras crticas a McClelland, esse estudioso proporcionou contribuies s discusses sobre o tema, pois tentou mostrar que os seres humanos tendem a repetir seus modelos de referncia, o que, em muitos casos, tem influncia na motivao para algum ser empreendedor. Uma das concluses que se pde tirar de seus estudos que quanto mais o sistema de valores de uma sociedade distingue positivamente a atividade empreendedora, maior o nmero de pessoas que tendem a optar por empreender. Nesse sentido, as observaes de Holanda (1971) sobre a influncia que Portugal teve sobre o Brasil parecem ser muito coerentes, pois como nosso modelo de referncia, por sculos, foram os portugueses, natural que repitamos seus traos culturais (virtudes e defeitos) em nossas aes.

    Inmeras definies de empreendedor, portanto, podem ser encontradas na literatura. Existem aquelas que possuem influncia dos economistas, outras buscaram inspirao na escola comportamentalista, e ainda existem aqueles que fazem uma miscelnea. Muitas definies, por conseguinte, podem ser encontradas para o termo, mas qualquer uma delas impe limites percepo e ao entendimento do assunto, pois normalmente levam em conta o contexto especfico em um dado momento.

    O fato de vrias disciplinas estudarem o campo do empreendedorismo faz com que haja algumas confuses nas definies acerca do conceito de empreendedor. possvel verificar

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    que dentro da mesma rea h um certo consenso. Por exemplo, os economistas associam os empreendedores inovao e s foras direcionadoras de desenvolvimento. Os comportamentalistas tendem a identificar caractersticas como criatividade, persistncia, internalidade e liderana. Os administradores, a depender da sua rea funcional, tambm, enfatizam determinadas caractersticas, mas isso no quer dizer que sejam diferentes, talvez complementares. Portanto, os inmeros entendimentos sobre quem o empreendedor variam de acordo com a rea de interesse do pesquisador. A aparente confuso reflete, basicamente, a lgica e as culturas dessas disciplinas (FILION, 1999).

    Pereira (1992), no entanto e de certa forma, compartilha da viso schumpeteriana. Para ele, a substituio de estruturas scio-econmicas tradicionais, de base patriarcal ou feudal como a nossa, por estruturas mais racionais, de carter capitalista ou socialista, deve ser considerada como condio para o processo de desenvolvimento econmico. Quando tal substituio se realiza, surge um grupo de homens (empresrios inovadores ou empreendedores) dentro da sociedade que passa a investir de forma racional e sistemtica.

    Em termos amplos, o empresrio o dirigente e executor da reorganizao dos fatores de produo no nvel das empresas. Ele o agente pblico ou privado que, em nome prprio, dos acionistas ou do Estado, cria e desenvolve, de forma sistemtica e racional (ou seja, na qual so sempre procurados os meios mais adequados para se atingir os fins visados), uma organizao econmica bem sucedida. Vale salientar que essa racionalidade atribuda ao empresrio deriva de um ambiente racionalista que a burguesia mercantil e industrial classe de onde se originaram os primeiros empresrios modernos desenvolveu a partir da Renascena, opondo-se aos sistemas eminentemente irracionais dos regimes patriarcal e feudal, em que consideraes de ordem familiar, religiosa e militar interferiam de forma decisiva na organizao econmica (PEREIRA, 1992). Ora, esta viso nos preocupa no que diz respeito ao desenvolvimento econmico, pois nossa herana scio-poltica e cultural patriarcal e beira longe a racionalidade presente na tica protestante ou do trabalho.

    A compreenso de empresrio inovador que o ex-ministro Bresser Pereira possui e a sua associao noo de tica do trabalho de Srgio Buarque de Holanda parece tambm estar presente nos estudos de Cantillon e Say. H, portanto, na descrio que Cantillon e Say fazem do empreendedor, traos daquilo que bem mais tarde Holanda viria denominar de tica do trabalho. Note-se que esses economistas identificam o empreendedor como o agente que percebe oportunidades no prprio ambiente onde vive. Alm disso, a obteno do lucro est fundamentada na atividade de aquisio e transformao da matria-prima em um produto acabado via trabalho. O empreendedor, nessa viso, no aquele que necessariamente se lana numa odissia desatinada em busca do eldorado e que s vezes pe em risco sua prpria vida.

    Numa anlise apressada e bem pouco rigorosa, poderamos associar a tipologia de Holanda (1971) conceituao de McClelland, ou vice-versa. Da poderamos inferir que aquela minoria da populao aludida pelo psiclogo, que est disposta a correr riscos pode ser considerada aventureira enquanto a maioria trabalhadora. Ou seja, a minoria das pessoas do tipo aventureira ou empreendedora e a ela caberia a criao de modelos de referncia para a sociedade. Ora, se analisarmos dessa forma, concluiremos que somos um pas empreendedor como revelam uma srie de peridicos informativos (Exame, Voc S.A. etc.) e instituies de pesquisas (Global Entrepreneurship Monitor da Babson College).

    Existem ainda muitas questes em aberto a respeito do empreendedorismo e do empreendedor no Brasil e que merecem ser continuadas em vrias frentes, de maneira a preencher e enriquecer as lacunas existentes. A anlise que Holanda (1971) a respeito das bases formadoras da cultura brasileira deve ser compreendida dentro do prprio contexto histrico em que foi elaborada. No se pode dizer, verdade, que houve mudanas radicais desde a poca da publicao de Razes do Brasil at hoje. Mas o contexto atual, no h como

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    negar, se diferenciou bastante desde ento. Talvez, e isso no o escopo deste trabalho, at mesmo em virtude do desenvolvimento frentico das novas formas de comunicao que, de alguma forma, explicitam e trazem ao debate os efeitos nocivos do que hoje se chama de clientelismo. Em parte por conta disso, e com certeza por tantos outros fatores, a cultura brasileira (e no exclusivamente a cultura letrada) se disps a encarar e extirpar os traos de, como diria Holanda, cordialismo casustico que ainda hoje marca a vida do Estado brasileiro. Essa disposio de encarar esses achaques pode ser ilustrada por certos eventos da recente histria poltica do pas, tais como o impeachment de um presidente e a cassao de mandatos de uma leva enorme de parlamentares, condenados por algum crime de responsabilidade ou falta de decoro (muito embora tambm seja verdade que representam ainda um nmero pequeno das denncias, mas na histria do pas, h que se reconhecer, nunca houve tanta indignao da opinio pblica como tem ocorrido nesses ltimos tempos).

    Essa nova postura tem logicamente se refletido por toda a sociedade. O empreendedor no ficou inclume. A nova leva de empreendedores de alguma forma responde positivamente a esta nova atitude da sociedade. certo que seria puro otimismo simplista acreditar-se que muitos dos vcios apontados em Razes do Brasil j tenham sido superados. Mas o debate no est mais restrito a uma elite cultural e letrada. A prpria classe empreendedora desenvolveu hoje a partir de suas entidades representativas campanhas para mudar as posturas de clientelismo que ainda insistem em grassar no meio empresarial do pas. Com isso, o prprio empreendedor, principalmente, os das novas geraes, parece adotar uma postura cada vez mais distante da tica da aventura. verdade que ainda estamos longe de constatar no setor empresarial o predomnio da tica do trabalho, mas estamos, sem dvida nenhuma, mais perto hoje do que estivemos h alguns anos atrs. Tanto que no se pode dizer que o empreendedor brasileiro hodierno simplesmente do tipo aventureiro. Talvez estejamos diante de um tipo hbrido que apesar de apresentar traos da tica da aventura est se aproximando cada vez mais da tica do trabalho.

    4. O empreendedorismo no Brasil do trabalho e da aventura: consideraes

    reflexivas e finais Ser que as definies propostas pelos economistas ou comportamentalistas se aplicam a

    realidade nacional, ou melhor, se adequam aos dias de hoje? Inicialmente, nesta seo iremos apresentar nossas reflexes a respeito do (re)conceito de empreendedor considerando alguns elementos que a literatura especializada no tem dado, a nosso ver, a devida ateno. Posteriormente, tentaremos analisar o empreendedor luz da tica do trabalho e da aventura, fugindo de esteretipos.

    A construo do conceito de empreendedor pela corrente dos economistas e de seus adeptos, como foi visto, est alicerada numa noo considerada fundamental, a inovao. O conceito de inovao adotado pela maioria dos economistas aquele derivado de Schumpeter e diz respeito ao processo de destruio da ordem econmica existente atravs da introduo de novos produtos e servios, da criao de novas formas de organizao ou da explorao de novos recursos materiais (SCHUMPETER, 1982). Empreendedor, para os economistas, o sujeito que introduz novidades no mercado, aquele capaz de fazer algo de uma maneira nunca feita antes, algum capaz de ver uma brecha que ningum mais viu. Assim, inovar significa introduzir algo que rompe com o sistema econmico como um todo, produzindo ou induzindo uma mudana radical. Esta noo reduz substancialmente o universo de pessoas que podem virtualmente ser consideradas empreendedoras. Empreendedor seria to-somente aquele indivduo que se destaca de maneira dramtica dos demais seres humanos. Ele seria um ser notvel, capaz de realizar prodgios na economia. Essa uma viso que acaba por excluir da categoria de empreendedor aquele indivduo que cria pequenas coisas, s vezes teis

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    principalmente a sua pequena comunidade. Em outras palavras: o empreendedor jamais poderia ser encontrado naqueles indivduos que realizam pequenos feitos ou idias ainda que criativas, mas que permitem, por exemplo, a gerao de emprego e renda para si e seus familiares.

    Num vis diferente, os comportamentalistas, ao estudar o empreendedor, procuram nele identificar caractersticas e traos de personalidade. De um modo geral, os empreendedores seriam aqueles indivduos sobretudo intuitivos, dispostos a enfrentar desafios, correr riscos e, conseqentemente, empreender um novo negcio com criatividade. Por se tratar de anlises que lidam com aspectos eminentemente subjetivos, a tentativa de traar um perfil psicolgico objetivo do empreendedor parece no ter logrado xito. Os estudos desenvolvidos pelos behavioristas giram em torno da noo de modelos de referncia, ou seja, como os seres humanos tendem a repetir modelos bem sucedidos (FILION, 1999). De acordo com esta noo, quanto mais o sistema de valores de uma sociedade ou de uma famlia distinguir positivamente a atividade empreendedora, maior ser a probabilidade de outras pessoas optarem por esta atividade. Ora, a compreenso de que as maiores chances de surgimento de empreendedores esto restritas a ambientes em que existe uma tradio de empreendedorismo refora a idia que esse fenmeno est restrito a certas regies.

    Tanto as contribuies dos economistas quanto a dos comportamentalistas apresentam limitaes. A principal delas o fato de que ambas as correntes trazem pressupostos que levam excluso de indivduos e de comunidades ou sociedades. A noo de inovao adotada pelos economistas acaba por excluir aqueles empreendedores que, no introduzindo mudanas radicais que alterem a curva de desenvolvimento econmico, contribuem de maneira mais restrita, principalmente colaborando com sua comunidade. A noo de modelos de referncia dos behavioristas pe margem regies e sociedades em que no se observa o padro de empreendedor tido como modelar.

    Em suma, ambas as correntes trazem em seus pressupostos noes que excluem da categoria de empreendedor minorias historicamente desprestigiadas. Habitantes de regies que a modernidade alcunhou de perifricas e subdesenvolvidas; a mulher que, historicamente alijada do papel de protagonista do jogo social e cuja condio por sculos foi a de indivduo de segunda categoria, jamais viu (salvo talvez rarssimas excees) seu nome no rol de pessoas que modificaram o sistema econmico; o negro, cuja explorao impediu, por sculos, sua ascenso e acesso a direitos bsicos como a educao... Enfim, um exrcito de pequenos, esquecidos, calados que no tm como figurar na concepo de empreendedor de ambas as correntes. Essas concepes no levam em conta o papel que a educao pode desempenhar no fomento do empreendedorismo. Em outras palavras, j que a tese de que um empreendedor nasce feito no tem fundamento em proveito da de que atrs de pequenas idias pode estar um empreendedor, de que no basta ter modelos de referncia ou ainda que nem todas as sociedades e ambientes os possuem , a educao empreendedora precisa ser encarada como o caminho mais vivel para o desenvolvimento do empreendedorismo. Afinal, a atividade empreendedora, ao lado de outras aes, pode liderar e coordenar esforos na direo do crescimento econmico e social de comunidades.

    A idia defendida neste trabalho que o empreendedor nem sempre aquele indivduo que cria ou criou algo tido como grandioso, capaz de mudar ou revolucionar um ambiente scio-poltico-econmico e cultural. O empreendedor pode estar naquele que cria pequenas coisas teis a sua comunidade. Ele pode estar atrs de pequenos feitos ou idias criativas capazes, por exemplo, de gerar emprego e renda para si e seus familiares. O conceito de empreendedor e de empreendedorismo proposto por este artigo pretende ser inclusivo. Ele abraa os excludos da sociedade e economia contempornea. Um conceito que abarca, por exemplo, as mulheres, que pouca oportunidade tiveram de preparar-se profissionalmente e de se mostrar como pessoas capazes de construir a histria.

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    As referncias ao empreendedorismo, tal como utilizadas, nem sempre so claras e o entusiasmo pelo tema no pode dispensar uma reflexo terica mais amadurecida. Um slido arcabouo terico e conceitual parece, s vezes, faltar. Apesar da importncia dada por vrios autores (METCALFE, 2003; BROCKHAUS, 2000; PAULA, CERQUEIRA e ALBUQUERQUE, 2000; FILION, 1999; BARON, 1998; DOSI et al., 1990; DRUCKER, 1987; SCHUMPETER, 1982; PENROSE, 1959) ao tema, como campo de estudo acadmico, a pesquisa sobre empreendedorismo muito nova. Mas, mesmo considerando-se que ainda est em fase pr-paradigmtica, no se pode admitir que haja negligncias quanto ao rigor epistemolgico em trabalhos que tratem ou que faam uso deste conceito. Hodiernamente, o empreendedorismo deve ser visto como um fenmeno heterogneo, complexo e multidimensional.

    A busca por autonomia ou auto-suficincia no intuito de garantir sua prpria sobrevivncia, a fragilidade ou frouxido na organizao poltica, a averso ao planejamento e ao pensamento de longo prazos, o foco na mera repetio de experincias, a antipatia ao trabalho e o desejo de tornar-se senhor indicam ser caractersticas que marcaram nosso colonizador e, consequentemente, foram aprendidas por ns. Tais caractersticas que foram apontadas por Holanda (1971) e reforadas por vrios estudiosos do Brasil parecem, pelo menos em alguns instantes, estar presentes em nossos velhos, soldados, homens e mulheres do campo, crianas, mdicos, professores, funcionrios pblicos, polticos etc., no povo brasileiro. Entretanto, a presena de tais caractersticas no nos permite afirmar que somos de um tipo ou de outro. Ao se tentar fazer uma analogia entre as concepes de cada uma das correntes e a tipologia proposta por Holanda, por exemplo, percebe-se que tanto a tica do trabalho quanto a tica da aventura, em algum momento, esbarra nas noes da economia e do behaviorismo, at mesmo na nossa proposta de empreendedorismo inclusivo.

    Como diz o prprio Srgio Buarque de Holanda, necessrio que faamos uma espcie de revoluo para dar fim aos resqucios de nossa histria colonial e comear a traar uma histria nossa, diferente e particular. Com a cordialidade, o brasileiro dificilmente chegar nessa revoluo.

    Ao que parece Razes do Brasil uma vigorosa denncia do comodismo, da dependncia e da baixa auto-estima que marcaram a histria da formao da sociedade civil brasileira. Sociedade civil esta que encontra mltiplas barreiras para sua efetiva constituio. Holanda, DaMatta e tantos outros estudiosos do Brasil, portanto, nos remete a refletir sobre o que fizemos, como base para a discusso sobre o que queremos fazer e ser.

    No pretendemos aqui criar esteretipos de que o empreendedor brasileiro do tipo trabalhador ou aventureiro. Eles nos conduzem clivagem e ao reducionismo. Com isso no estamos negando a relevncia do trabalho de Holanda, DaMatta, Figueiredo etc. Ao contrrio, se o escolhemos para nortear nosso trabalho porque admiramos seu trabalho e enxergamos fundamento em suas teses. Contudo, no queremos s cegas aplicar as suas vises ao (re)conceito de empreendedor que ainda se encontra em construo. No queremos incorrer no erro da maioria das publicaes, principalmente nacionais, em simplesmente arrolar atributos aos indivduos empreendedores. Defendemos a idia de que os termos empreendedorismo e empreendedor tm significados por demais dinmicos para caberem num conceito definitivo. Conceitu-los , em certos momentos, til e mesmo necessrio, mas no nos esquecemos que qualquer conceito que defina estes termos ser sempre provisrio. A dinmica dos seus significados requer agilidade inclusive do pensamento que sobre eles se debrua. Esses significados no se deixam aprisionar numa frmula definitiva simplesmente porque esto sempre em construo. Hoje, pode-se falar e tentar definir o empreendedor dessa ou daquela maneira, mas amanh nossos conceitos fatalmente se mostraro ultrapassados. presuno, portanto, dizer que o conceito de empreendedor ainda no est pronto. Na verdade, esse conceito jamais estar concludo.

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    verdade que o estudo do empreendedorismo est em fase pr-paradigmtica, mas isso no pode ser justificativa para que as pesquisas, embora escassas, pequem por falta de rigor e de viso crtica da parte de quem as conduz. De qualquer forma, fica a lio de que existe a necessidade premente de voltar o olhar para o nosso prprio trabalho de modo a nele verificar suas limitaes para assim proceder-se uma avaliao que ao final das contas possa conduzir a uma postura menos entusiasta e otimista e mais serena e embasada. Resta reafirmar que a especulao (no aquela gratuita e superficial) um exerccio de reflexo que deve ser sempre incentivado, mas desde que baseado em alicerce terico firme e profundo. Referncias

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