219221494 john murray a redencao consumada e aplicada

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  • REDENOConsumada e Aplicada

    JOHN MURRAY

  • JOHN MURRAY Professor de Teologia Sistemtica

    Westminster Theological Seminary Philadelphia, Pa. Estados Unidos

    A RedenoConsumada e Aplicada

    Traduo:Ivan G. Grahm Ross

    eValter Graciano Martins

    Editora Cultura Crist

  • Traduzido do original ingls: Redemption Accomplished and Applied Direitos cedidos Editora Cultura Crist por Wm. B. Eerdmans Publishing

    Company para publicao em lngua portuguesa. Proibida a reproduo desta obra sem a devida autorizao da ECC.

    Diretoria Executiva: Diretor-Presidente: Addy Flix de Carvalho Diretor-Comercial: Paulo Gonalves Jnior

    Diretor-Editor: Valter Graciano Martins Diretor-Administrativo Financeiro: ber de Aquino

    Reviso:Gecy Soares de Macdo

    Clia Regina Romero Arajo Glucia Lima Arajo

    Capa:Jader de Almeida

    Composio: Zenaide Rissato dos Sari

    Ia Edio 1993 1.000 exemplares

    Editora Cultura frist

    Rua Miguel Teles Jr., 1^2/394 01540-P

    V * n F o n e : (011) 270-7099

    MAIINHO RODRIGUES

  • ContedoPRIMEIRA PARTE A REDENO CONSUMADA1. A Necessidade da Expiao........................................... 112. A Natureza da Expiao................................................. 233. A Perfeio da Expiao .............................................. 574. A Extenso da Expiao .............................................. 655. C oncluso....................................................................... 83SEGUNDA PARTE A REDENO APLICADA1. A Ordem na Aplicao . . . ..................................... ... 892. Vocao Eficaz ............................................................. 993. Regenerao................................................................... 1074. F e Arrependimento ........................ ........................... 1195. Justificao .................................................................... 1316. Adoo .......................................................................... 1477. Santificao................................................................... 1578. Perseverana ................................................................ 1679. Unio com Cristo ........................................................... 17910. Glorificao ................................................................ 193

  • ApresentaoFaltava a esta Editora um manual especfico de soteriologia,

    que pudesse oferecer aos evanglicos e a todo estudioso da Bblia fora de nossos arraiais uma viso estritamente bblica do mais insondvel dos atos divinos registrados na histria humana e universal. Entender ao mximo o drama da redeno preciso, a fim de podermos entender tambm ao mximo todos os demais atos divinos dentro da economia do Deus Trino. So quinze captulos, todos preciosos. Primeira parte: A Redeno Consumada-A Necessidade da Expiao; A Natureza da Expiao; A Perfeio da Expiao; Os Limites da Expiao; Concluso. Segunda Parte: A Ordem na Aplicao; Vocao Eficaz; Regenerao; F e Arrependimento; Justificao; Adoo; Santificao; Perseverana dos Santos; Unio com Cristo; Glorificao.

    E verdade que o texto em si muito complexo, trazendo ao leigo de leitura elementar dificuldade na apreenso do contedo teolgico. Isto nos causa pesar, porquanto o nosso maior desejo que a igreja seja edificada. Todavia, a nossa esperana que os seminaristas, futuros pastores, e os pastores em pleno exerccio traduzam para o povo leigo em geral (porquanto h leigos muitssimo doutos na Palavra e nas cincias seculares), o contedo to precioso e necessrio deste compndio.

    Acreditamos que uma igreja que entenda bem a cincia bblica do ato divino no Calvrio (como centro de vim todo) estar tambm solidamente preparada para entender a natureza e sutileza das seitas herticas que atormentam a igreja moderna. H urgncia a que a igreja se rena com seus mestres para o estudo profundo da obra divina da redeno do homem. Se for bem observado,

  • fcil notar que os inimigos esto atacando o reino de Deus precisamente nesta esfera. O homem no precisa de Cristo, ele pode resolver os seus prprios problemas- o slogan atual. Renegamos tal conceito como blasfemo, e reafirmamos nossa lealdade a Cristo!

    Que o Senhor e Redentor abenoe sua igreja!

    So Paulo, maio de 1993 Valter G. Martins

    Editor -ECC

  • Primeira ParteA Redeno Consumada

  • Captulo 1A necessidade da expiao

    A realizao da redeno preocupa-se com aquilo que geralmente chamado a expiao. Nenhum estudo da expiao pode ser devidamente desenvolvido sem reconhecer em primeiro lugar o livre e soberano amor de Deus. Esta perspectiva se encontra no texto mais conhecido da Bblia: Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unignito, para que todo o que nele cr no perea, mas tenha a vida eterna (Jo 3.16). Temos aqui uma revelao fundamental de Deus, e, portanto, do pensamento humano. Alm disso no podemos e nem devemos aventurar-nos ir.

    Pelo fato de ser um fundamento do pensamento humano no exclui, contudo, outras caracterizaes desse amor de Deus. A Escritura nos informa que esse amor de Deus, do qual a expiao emana, e da qual a sua expresso, um amor distinto. Ningum gloriava-se nesse amor de Deus mais do que o apstolo Paulo. "Mas Deus prova o seu prprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por ns, sendo ns ainda pecadores (Rm 5.8). "Que diremos, pois, vista destas coisas? Se Deus por ns, quem ser contra ns? Aquele que no poupou a seu prprio Filho, antes, por todos ns o entregou, porventura no nos dar graciosamente com ele todas as coisas? (Rm 8.31,32). Contudo, o mesmo apstolo que nos delineia o eterno conselho de Deus que fornece

  • o contexto para tal afirmao e que nos define a rbita dentro da qual tais pronunciamentos tm sentido e validade. Ele escreve: Porquanto aos que de antemo conheceu, tambm os predestinou para serem conformes imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primognito entre muitos irmos (Rm 8.29). E em outro lugar, ele se toma talvez ainda mais explcito quando diz: Assim como nos escolheu nele antes da fundao do mundo, para sermos santos e irrepreensveis perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoo de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplcito de sua vontade (Ef 1.4,5). O amor de Deus, do qual a expiao se origina, no indiscriminado; um amor que elege e predestina! Deus foi servido em colocar o seu amor invencvel e eterno sobre uma multido inumervel, e o propsito determinante deste amor que assegura a expiao.

    necessrio salientar este conceito de amor soberano. Verdadeiramente, Deus amor. O amor no algo parte de Deus, no algo que ele pode escolher ser ou no ser. Deus necessariamente amor; o amor lhe inerente e eterno. Da mesma forma em que Deus esprito e luz, assim ele amor. Porm, pertence * prpria essncia do amor eletivo o reconhecimento de que este amor necessariamente no deve culminar em redeno e adoo em favor de objetos que so totalmente indesejveis e merecedores

    do inferno. Foi do livre e soberano beneplcito de sua vontade, um beneplcito que emana das profundezas da sua prpria bondade, que ele elegeu um povo para ser herdeiro de Deus e co-herdeiro com Cristo. A razo reside inteiramente nele mesmo e procede das determinaes que so peculiarmente suas: Eu Sou o que Sou.A expiao no persuade e nem compele o amor de Deus. Pelo contrrio o amor de Deus que compele expiao, como o meio para cumprir o propsito determinante deste mesmo amor.1

    1. V. Hug Martin: The Atonement: in its relation to The Covenant, The Priesthood, The Intercession of our Lord (Edinburgh, 1887), pg. 19.

  • 5 Devemos compreender, portanto, que o amor de Deus uma premissa estabelecida, ou seja, este amor a causa ou a fonte da expiao. Todavia, isto no resolve o problema quanto razo ou necessidade da expiao. Qual a razo por que o amor de Deus deve tomar um caminho na realizao de seu fim e no cumprimento de seu propsito? Somos compelidos a indagar Por que o sacrifcio do Filho de Deus? Por que o sangue do Senhor da glria? Anselmo de Canterbury perguntou: Sabendo que Deus onipotente, qual foi a necessidade e qual foi a razo para tomar sobre si a humilhao e enfermidades da natureza humana a fim de realizar a sua restaurao?2 Por que Deus no podia realizar os propsitos de seu amor para a humanidade pela palavra de seu poder ou pelo decreto de sua vontade? Se declaramos que ele no podia, estamos impugnando o seu poder? Se declaramos que ele podia, porm no quis, estamos impugnando a sua sabedoria? Tais indagaes no so sutilezas escolsticas e nem v curiosidade. Fugir delas perder algo que central na interpretao da obra redentora de Cristo e perder a viso de uma parte de sua glria essencial. Por que Deus se fez homem? E tendo-se tomado homem, por que morreu? E tendo morrido, por que morreu a morte maldita de cruz? Esta a indagao sobre a necessidade da expiao.

    Entre as respostas oferecidas para estas perguntas, duas so mais importantes. Elas so, antes de tudo, o conceito conhecido como necessidade hipottica, e, segundo, o conceito que podemos designar como o da necessidade conseqente e absoluta. O primeiro foi defendido por homens eruditos, tais como Agostinho e Toms de Aquino.3 O Segundo pode ser considerado como a posio clssica do protestantismo.

    2. V. Cur. Deus Homo, Lib. I, Cap. I qua necessitate scilicet et ratione Deus, cum sit omnipotens, humilitatem et infirmitatem humanae naturae pro eius restauratione as- sumpserit.

    .V V. augustine: On The Trinity, Liv. XIII, Cap. 10; Aquinas: Suma Theologica, Parte III, Perg. 45, Arts. 2 e 3.

  • O conceito conhecido como necessidade hipottica assevera que Deus podia perdoar o pecado e salvar os seus eleitos sem a expiao ou satisfao outros meios estavam disponveis a Deus a quem todas as coisas so possveis. Porm, a forma de sacrifcio vicrio do Filho de Deus foi simplesmente o meio que Deus, em sua graa e sabedoria soberanas, escolheu, porque este o meio pelo qual o maior nmero de vantagens concorre, e o meio pelo qual a graa mais maravilhosamente revelada. Assim, embora Deus pudesse salvar sem uma expiao, todavia, de acordo com o seu decreto soberano, ele de fato no o fez. Sem derramamento de sangue, realmente no h remisso nem salvao. Contudo, no h nada inerente natureza de Deus ou natureza da remisso do pecado que faz o derramamento de sangue indispensvel.

    Chamamos ao outro conceito de necessidade conseqente e absoluta. A palavra conseqente, nesta designao, se refere ao fato de que a vontade de Deus ou o decreto para salvar algum de livre e soberana graa. A salvao de homens perdidos no foi uma necessidade absoluta, e, sim, a expresso do beneplcito de Deus. Os termos necessidade absoluta, porm, indicam que

    Deus, tendo elegido alguns para a vida eterna, segundo o seu livre beneplcito, se sentiu na obrigao de cumprir este propsito atravs do sacrifcio de seu prprio Filho, uma obrigao que emanou das perfeies da sua prpria natureza. Em uma palavra, embora no fosse inerentemente necessrio que Deus salvasse, todavia, desde que a salvao foi propositada, era necessrio assegurar esta salvao atravs de uma satisfao que pudesse ser realizada somente atravs de um sacrifcio substitutivo e uma redeno adquirida por meio de sangue.44. V. Francis Turretin: Institutio Theologiae Elencticae, Loc. XIV, Q. X; James Henly

    Thorwell: The Necessity of The Atonement in Collected Writings, vol. II (richa- fflond, 1886), pgs.205-261; George Stevenson: A Dissertation on The Atonement (Philadelphia, 1832), pgs. 5-98; A. A. Hodge, The Atonement (London, 1868), pgs.217-222.

  • Pode parecer algo inutilmente especulativo e presunoso forar tal indagao e procurar determinar o que inerentemente necessrio para Deus. Alm disso, pode surgir um texto como: sem derramamento de sangue no h remisso, que a revelao se limita a dizer que de fato no h remisso sem derramamento de sangue, e que iramos alm da autoridade da Escritura afirmando o que de fato indispensvel para Deus.

    Mas no presunoso quando dizemos que certas coisas so inerentemente necessrias ou impossveis para Deus. Pertence nossa f em Deus confessar que ele no pode mentir e que no pode negar-se a si mesmo. Os no pode divinos so a sua glria, e para ns deixar de admitir tais impossveis seria negar a glria e a perfeio de Deus.

    A realidade da questo : a Escritura nos fornece evidncias ou consideraes pelas quais podemos concluir que esta uma das coisas impossveis ou necessrias para Deus; impossvel que ele snlve pecadores sem sacrifcio vicrio e inerentemente necessrio, portanto a salvao, livre e soberanamente determinada, seria realizada somente pelo derramamento do sangue do Senhor da glria. As seguintes consideraes bblicas nos induzem a dar uma resposta afirmativa. Quando aduzimos estas consideraes, devemos lembrar que elas tm de ser vistas em coordenao e em seu efeito cumulativo.

    1. Existem passagens que criam uma forte conjectura em favor desta inferncia. Por exemplo, em Hb 2.10,17 afirmado que Deus, a fim de conduzir muitos filhos glria, foi servido que o Comandante da salvao deles fosse aperfeioado pelos sofrimentos e que em todas as coisas se tomasse semelhante aos irmos. A fora de tais expresses dificilmente satisfeita pela noo de que foi simplesmente consoante com a sabedoria e o amor de Deus realizar a salvao desta maneira. Os adeptos do conceito da necessidade hipottica no reconhecem estas dificuldades. Mas

  • existe muito mais nesse texto. Ele ensina que as exigncias do propsito da graa que os ditames divinos requeriam que a salvao fosse realizada somente atravs de um Lder supremo da salvao que seria aperfeioado atravs de sofrimentos, e foi necessrio que este supremo Guia da salvao fosse feito em todas as coisas semelhante aos homens. Em outras palavras, somos conduzidos da idia de consonncia com o carter divino idia dos direitos divinos que tomam indispensvel que muitos filhos sejam conduzidos glria desta maneira especfica. Se este for o caso, ento somos levados a concluir que as exigncias divinas so satisfeitas pelos sofrimentos do Chefe da salvao.

    2. H passagens, como Jo 3.14-16, que de forma clara sugerem que a alternativa de oferecer o Filho unignito de Deus e de ser ele levantado no madeiro maldito a perdio eterna dos perdidos. O perigo eterno a que os perdidos esto expostos remediado pela doao do Filho. Porm, dificilmente podemos escapar da idia adicional de que no existe outra alternativa.

    3. Passagens tais como Hb 1.1-3; 2.9-18; 9.9-14,22-28 ensinam claramente que a eficcia da obra de Cristo dependente da constituio nica de sua pessoa. Este fato, por si mesmo, no estabelece o ponto em questo. Porm, consideraes contextuais revelam outras implicaes. A nfase nestes textos tem por base a finalidade, a perfeio e a eficcia transcendentes do sacrifcio de Cristo. Tal finalidade, perfeio e eficcia so necessrias por causa da gravidade do pecado, e o pecado tem de ser eficazmente removido para que a salvao seja realizada. Esta a considerao que d fora necessidade mencionada em Hb 9.23, ao efeito que, enquanto as figuras das coisas celestiais se purificassem com o sangue de cabritos e bezerros, as prprias coisas celestiais fossem purificadas com nenhum outro sangue seno o do Filho. Em outras palavras, existe uma necessidade que no pode ser expiada seno pelo sangue de Jesus. Mas o sangue de Jesus o sangue que tem a indispensvel virtude e eficcia somente naquele que o Filho,

  • a refulgncia da glria do Pai e a expressa imagem da sua substncia. Ele se tomou participante da carne e sangue, e assim ele foi qualificado por um nico sacrifcio a aperfeioar todos aqueles que so santificados. Certamente que no uma inferncia sem base concluir que a idia aqui apresentada que somente esta pessoa, oferecendo tal sacrifcio, pde resolver o problema do pecado, removendo-o e fazendo total purificao, garantiu que muitos filhos seriam trazidos glria, tendo acesso santssima presena divina. o mesmo que dizer que o derramamento do sangue de Jesus foi necessrio para os fins propostos e assegurados.

    H tambm outras consideraes que podem ser derivadas destas passagens, especialmente Hb 9.9-14, 22-28. So consideraes que surgem do fato de que o prprio sacrifcio de Cristo o grande exemplo do qual os sacrifcios levticos foram figuras. As vezes pensamos nos sacrifcios levticos como que fornecendo as figuras do sacrifcio de Cristo. Esta forma de pensar no incorreta os sacrifcios levticos nos fornecem os elementos em termos por meio dos quais podemos interpretar o sacrifcio de Cristo, especialmente as categorias da expiao, propiciao e reconciliao. Porm esta linha de pens-mento no a caracterstica de Hb9.A idia especfica que os sacrifcios levticos foram figuras segundo o modelo celestial foram figuras das coisas que se acham nos cus (Hb 9.23). Por isso, a necessidade de se oferecer sangue na economia levtica surgiu do fato de que o modelo, do qual elas eram figuras, foi uma oferenda de sangue, a oferenda do sangue transcendente pelo qual as coisas celestiais so purificadas. A necessidade de derramamento de sangue na ordenana levtica simplesmente uma necessidade que surge da necessidade de derramamento de sangue na mais alta esfera celestial. Ora, a nossa pergunta a seguinte: que espcie de necessidade esta que surgiu na esfera celestial? Foi meramente hipottica ou foi absoluta? As seguintes observaes indicaro a resposta.

    a) A nfase do contexto que a eficcia transcendente do sacrifcio de Cristo requerida pelas exigncias oriundas do peca-

  • do. E estas exigncias no so hipotticas so absolutas. A lgica desta nfase sobre a gravidade intrnseca do pecado e a necessidade de sua remoo no concordam com a idia de uma necessidade hipottica a realidade e a gravidade do pecado fazem com que uma expiao efetiva seja indispensvel e, portanto, absolutamente necessria.

    b) A natureza exata da oferta sacerdotal de Cristo e a eficcia de seu sacrifcio esto inseparavelmente ligadas com a constituio de sua pessoa. Se houvesse a necessidade de tal sacrifcio a fim de remover o pecado, nenhum outro, seno Cristo, poderia oferecer tal sacrifcio. E isso revela a necessidade que tal pessoa oferea tal sacrifcio.

    c) Nesta passagem, as coisas celestiais em conexo com as quais o sangue de Cristo foi derramado so denominadas verdadeiras. O contraste subentendido no verdadeiro em oposio ao falso ou real, mas em oposio ao fictcio. O celestial contrastado com o terreno, o eternal com o temporrio, o completo com o parcial, o final com o provisrio, o permanente com aquilo que efmero. Quando consideramos o sacrifcio de Cristo como uma oferta em conexo com as coisas correspondentes quela caracterizao celestial, eterno, completo, final, permanente impossvel pensar que este sacrifcio foi apenas hipoteticamente necessrio na realizao do desgnio de Deus em trazer muitos filhos glria. Se o sacrifcio de Cristo fosse apenas hipoteticamente necessrio, ento as coisas celestiais em conexo com o que relevante e significante, seriam tambm apenas hipoteticamente necessrias. E esta sem dvida uma hiptese demasiadamente difcil.

    A sntese da questo que uma necessidade (Hb 9.23) para o derramamento do sangue de Cristo para a remisso dos pecados (vv.14, 22, 26) aqui proposta, e uma necessidade sem reserva ou qualificao.

  • 4. A salvao que a eleio da graa envolve em cada conceito da necessidade da expiao a salvao do pecado para a santificao e comunho com Deus. Mas se pensarmos na salvao assim concebida em termos que so compatveis com a santidade e justia de Deus, esta salvao deve incluir no apenas o perdo do pecado, mas tambm a justificao. E deve ser uma justificao que reconhea a nossa situao como culpados e condenados. Esta justificao implica a necessidade de uma justia que seja adequada nossa situao. De fato a graa reina, mas uma graa reinante parte da justia no apenas inverossmel, mas tambm inconcebvel. Ora, que justia igual justificao de pecadores? A nica justia concebvel que satisfar as necessidades da nossa situao como pecadores e que satisfar as exigncias de uma plena e irrevogvel justificao a justia de Cristo. Esta afirmao implica a sua obedincia e, portanto, a sua encarnao, morte e ressurreio. Em uma palavra, a necessidade da expiao inerente e essencial justificao. Uma salvao do pecado que divorciada da justificao uma impossibilidade, e a justificao de pecadores sem a justia divina do Redentor inconcebvel. E difcil fugir da relevncia da palavra de Paulo: Porque se fosse promulgada uma lei que pudesse dar vida, a justia, na verdade, seria procedente de lei. (G1 3.21). O que Paulo enfatiza que, se a justificao fosse possvel por qualquer outro mtodo e no pela f em Cristo, ento esse mtodo teria sido utilizado.

    5. A cruz de Cristo a demonstrao suprema do amor de Deus (Rm 5.8; I Jo 4.10). O carter supremo da demonstrao reside no extremo custo do sacrifcio oferecido. E a respeito deste elevado custo que Paulo faz referncia quando escreve: Aquele que no poupou a seu prprio Filho, antes, por todos ns o entregou (Rm 8.32).sO custo do sacrifcio nos persuade a respeito da grandeza do amor de Deus e garante a doao de todas as demais ddivas de forma gratuita.

    Contudo, devemos perguntar: a cruz de Cristo seria a manifestao suprema do amor de Deus se no houvesse necessidade

  • ' de tal custo? No verdade que a nica inferncia com base na qual a cruz de Cristo pode nos ser recomendada como a manifestao suprema do amor de Deus, e que as exigncias em questo requereram nada menos que o sacrifcio do Filho de Deus? Com base nesta pressuposio, podemos entender a palavra do apstolo Joo: Nisto consiste o amor, no em que ns tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou, e enviou o seu Filho como propiciao pelos nossos pecados (I Jo 4.10). Sem isto somos despidos dos elementos necessrios para compreendermos o significado do Calvrio e a maravilha de seu supremo amor insupervel para com os homens.

    6. Finalmente, h o argumento da justia vindicatria de Deus, O pecado o oposto de Deus; portanto, o Senhor tem de reagir contra ele com uma santa indignao. o mesmo que dizer que o pecado tem de confrontar-se com o juzo divino (vejam-se Dt 27.26; Na 1.2; Hc 1.13; Rm 1.17; 3.21-26; G1 3.10,13). esta santidade inviolvel da lei de Deus o ditame imutvel da santidade e a exigncia irrevogvel da justifia que faz obrigatria a concluso de que a salvao do pecado sem expiao e propiciao inconcebvel. Este o princpio que explica o sacrifcio do Senhor da glria, as agonias do Getsman e o seu abandono no madeiro maldito. E este o princpio que fundamenta a grande verdade de que Deus justo e o justificador daquele que cr em Jesus. Na obra de Cristo, os ditames da santidade e as exigncias da justia foram plenamente vindicados! Deus o estabeleceu como a propiciao a fim de declarar a sua justia.

    Por estas razes somos levados a concluir que o tipo de necessidade que as consideraes bblicas propem aquele que pode ser compreendido como absoluto ou indispensvel. Os proponentes da necessidade hipottica no reconhecem suficientemente as exigncias envolvidas na salvao do pecado para a vida eterna; eles no consideram convenientemente os aspectos teocn- tricos da realizao de Cristo. Se conservarmos em mente a gravi-

  • dade do pecado e as exigncias oriundas da santidade de Deus que devem ser encaradas na execuo da salvao, ento a doutrina da necessidade indispensvel faz que o Calvrio seja inteligvel e que a maravilha incompreensvel tanto do Calvrio como do propsito soberano do amor de Deus que o Calvrio cumpriu sejam exaltados. Na medida em que enfatizarmos as exigncias inflexveis da justia e santidade, o amor de Deus e todas as suas providncias se tomaro ainda mais maravilhosos.

  • Captulo 2A natureza da expiao

    No tratamento da natureza da expiao, convm tentar descobrir alguma categoria abrangente sob a qual os vrios aspectos do ensino bblico possam ser agrupados. As categorias mais especficas dos termos que a Escritura expe com referncia obra expiatria de Cristo so sacrifcio, propiciao, reconciliao e redeno. Porm, podemos indagar com propriedade se no existe algum ttulo mais inclusivo sob o qual estas categorias mais especficas possam ser compreendidas.

    A Escritura considera a obra de Cristo em termos de obedincia, e emprega este termo ou o conceito que ele envolve com uma freqncia suficiente para justificar a concluso de que esta obedincia genrica, e, portanto, bastante abrangente, ao ponto de ser vista como o princpio que unifica ou integra. Devemos prontamente apreciar a convenincia desta concluso ao lembrarmos que o texto singular do Velho Testamento, mais que qualquer outro, delineia o curso da expiao de Cristo em Isaas 53. Todavia, perguntamos: qual o papel da personagem sofredora de Isaas 53? No nenhum outro seno o de servo. E com esta designao que ele apresentado em Is 52.13: Eis que o meu servo proceder com prudncia. E nesta atribuio que ele colhe o fruto justifi- cador: O meu Servo, o Justo, com o seu conhecimento justificar a muitos (Is 53.11). O prprio Senhor, de forma inquestionvel,

  • define o propsito de sua vinda ao mundo, em termos que transmitem precisamente tal conotao: Porque eu desci do cu no para fazer a minha prpria vontade, e, sim, a vontade daquele que me enviou (Jo 6.38). E com referncia ao evento culminante que decisivo na realizao da redeno, a sua morte, ele diz: Por isso o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para a reassumir. Ningum a tira de mim, pelo contrrio, eu espontaneamente a dou. Tenho autoridade para a entregar e tambm para reav-la. Este mandato recebi de meu Pai (Jo 10.17,18). E nada neste sentido pode ser mais explcito do que as palavras do apstolo: Porque, como pela desobedincia de um s homem muitos se tomaram pecadores, assim tambm, por meio da obedincia de um s, muitos se tomaro justos (Rm 5.19). Antes a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tomando-se em semelhana de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tomando-se obediente at morte, e morte de cruz (Fp 2.7,8; veja-se G1 4.4). E a epstola aos Hebreus tambm tem a sua prpria maneira de expressar quando diz que o Filho aprendeu a obedincia pelas coisas que sofreu, e tendo sido aperfeioado, tomou-se o Autor da salvao etema para todos os que lhe obedecem (5.8,9; veja-se 2.10).

    Esta obedincia tem sido freqentemente qualificada como obedincia ativa e passiva. Esta frmula, quando devidamente interpretada, serve ao bom propsito de destacar os dois aspectos distintos da obra de obedincia de Cristo. Porm, desde o incio preciso atenuar a frmula de alguns dos equvocos e maus empregos aos quais ela est sujeita.5

    (a) O termo obedincia passiva no significa que em tudo o que Cristo fez ele foi passivo, a vtima involuntria de uma obedincia imposta sobre ele. bvio que tal concepo iria contradizer o prprio princpio de obedincia. E deve ser zelosa5. V. T. J. Crawford: The Doctrine of The Holy Scripture Respecting The Atonement

    (Edinburgh, 1880), pgs. 58, etc., 89, etc.; Hugh Martin: op. cit., Cap. IV, especialmente pg. 81; James MLagan: Lectures and Sermons (Aberdeen, 1853), pgs. 54 etc.; Francis Turren: op. cit., Loc. XIV, Q. XIII.

  • mente mantido que mesmo nos sofrimentos e morte de nosso Senhor, ele no foi o recipiente passivo das situaes a que ficou sujeito. Em seus sofrimentos, ele foi gloriosamente ativo, e a prpria morte no caiu sobre ele como cai sobre os demais homens. "Ningum a tira de mim; pelo contrrio, eu espontaneamente a dou so as suas prprias palavras. Paulo nos ensina que ele foi obediente at morte. E isso no significa que sua obedincia se estendeu at proximidade da morte, mas, antes, que Cristo foi obediente ao ponto de entregar o seu esprito morte e derramar a sua vida. No exerccio de uma volio auto-consciente e soberana, sabendo que todas as coisas foram realizadas, e que o momento certo no tempo para este evento tinha chegado, ele efetuou a separao do corpo do esprito e entregou este ltimo ao Pai. Ele entregou o seu esprito e derramou a sua vida. A palavra passivo, pois, no deve ser interpretada como mera passividade no exerccio de sua obedincia. Os sofrimentos que ele suportou, e que chegaram ao extremo em sua morte sobre o madeiro maldito, foram uma parte integral de sua obedincia e foram suportados no cumprimento da obra que lhe foi confiada a realizar.

    b) No podemos vincular certas fases ou atos na vida de nosso Senhor sobre a terra obedincia ativa e outras fases e atos obedincia passiva. A distino entre a obedincia passiva e ativa no uma distino de perodos. a obra total da obedincia de nosso Senhor em cada fase e perodo que entendida como ativa e passiva. Devemos evitar o erro de pensar que a obedincia ativa se aplica obedincia de sua vida e a passiva obedincia de seus sofrimentos finais e morte.

    O verdadeiro uso e propsito da frmula para enfatizar os dois aspectos distintos da obedincia vicria de nosso Senhor. Esta verdade repousa no reconhecimento de que a lei de Deus tem suas sanes penais como tambm suas exigncias positivas. Ela exige no apenas o pleno cumprimento de seus preceitos, mas tambm a aplicao de uma pena para todas as infraes e falhas. E esta

  • dupla exigncia da lei de Deus que levada em conta quando falamos da obedincia ativa e passiva de Cristo. Cristo, como o substituto de seu povo, assumiu a maldio e condenao que o pecado trouxe, e cumpriu a lei em todas as suas exigncias positivas. Em outras palavras, ele cuidou da culpa do pecado e cumpriu perfeitamente as exigncias da justia. Ele cumpriu perfeitamente ambas as exigncias da lei de Deus: a penal e a preceptiva. A obedincia passiva se refere penal, e a obedincia ativa preceptiva. A obedincia de Cristo foi vicria no sentido de que ele carregou todo o juzo de Deus derramado sobre o pecado, e foi vicria no pleno cumprimento das exigncias da justia. A sua obedincia tomou-se a base da remisso do pecado e da verdadeira justificao.

    No devemos considerar esta obedincia em qualquer sentido artificial ou mecnico. Quando falamos da obedincia de Cristo, no devemos consider-la como se fosse o simples cumprimento formal dos mandamentos de Deus. O que a obedincia de Cristo envolveu provavelmente em nenhum outro lugar mais notavelmente expresso do que emHb2.10-18;5.8-10, onde nos dito que ele aprendeu a obedincia pelas coisas que sofreu, e que foi aperfeioado pelos sofrimentos, e que, tendo sido aperfeioado, tomou-se o Autor da salvao eterna para todos os que lhe obedecem. Quando examinamos estes textos, as seguintes lies se tomam evidentes. (1) No foi simplesmente pela encarnao que Cristo realizou a nossa redeno. (2)* No foi simplesmente pela morte que a salvao foi consumada. (3)* No foi simplesmente pela morte numa cruz que Cristo tomou-se o Autor da salvao.

    *(4) A morte na cruz, como exigncia culminante do preo da redeno, foi satisfeita como o ato supremo de obedincia; no foi a morte irresistivelmente infligida, porm a morte na cruz voluntria e obedientemente efetuada.

    Quando falamos de obedincia no estamos pensando em atos meramente formais de realizao, mas tambm na disposio,

  • vontade, determinao e volio que esto por trs, e so registrados nestes atos formais. E quando falamos da morte de nosso Senhor na cruz como o ato supremo de sua obedincia, estamos pensando no apenas no ato pblico de morte no madeiro, mas tambm na disposio, vontade, e volio determinante que estiveram por trs deste ato pblico. E, alm disso, somos levados a formular a pergunta: donde nosso Senhor obteve a disposio e santa determinao para entregar a sua vida morte como o ato supremo de auto-sacrifcio e obedincia? Somos compelidos a fazer esta pergunta porque foi na natureza humana que ele prestou esta obedincia e entregou a sua vida morte. E os textos na epstola aos Hebreus confirmam no apenas a propriedade, mas tambm a necessidade desta pergunta. Porque nestes textos somos claramente informados de que ele aprendeu a obedincia, e ele a aprendeu pelas coisas que sofreu. Era indispensvel que ele fosse aperfeioado pelos sofrimentos e se tomasse o Autor da salvao atravs desse aperfeioamento. Naturalmente, no foi um aperfeioamento que requereu a santificao do pecado para a santidade. Ele foi sempre santo, inculpvel, sem mcula e separado dos pecadores. Mas houve um aperfeioamento de desenvolvimento e crescimento no curso e caminhada de sua obedincia ele aprendeu a obedincia. O corao, a mente e a vontade de nosso Senhor foram moldados e por que no dizer fundidos? na fornalha da tentao e sofrimento. Foi em virtude daquilo que ele aprendeu na experincia da tentao e sofrimento que ele conseguiu, no ponto crucial determinado pela providncia de sabedoria infalvel e amor eterno, ser obediente at morte, e morte de cruz. Foi somente atravs da obedincia aprendida na caminhada do cumprimento inerrante e imaculado da vontade do Pai que seu corao, mente e vontade foram moldados ao ponto de ele ser capacitado para, livre e voluntariamente, entregar a sua vida morte no madeiro maldito. .

    Foi atravs deste curso de obedincia e aprendizagem de obedincia que ele foi aperfeioado como Salvador, equivale dizer, lomou-se completamente equipado para que pudesse ser constitu-

  • do no Salvador perfeito. Foi o equipamento formado atravs de todas as experincias de tribulao, tentao e sofrimento que providenciou os recursos necessrios para as exigncias culminantes da sua comisso.* Foi aquela obedincia, levada perfeita consumao na cruz, que o constituiu como o todo-sufciente e perfeito Salvador. Em outras palavras: foi esta obedincia aprendida e praticada ao longo de toda humilhao que o fez perfeito como o Consumador da salvao. E a obedincia aprendida pelo sofrimento, aperfeioada por meio do sofrimento e consumada no sofrimento da morte na cruz que define a sua obra e cumprimento como o Autor da salvao. Foi pela obedincia que ele garantiu a nossa salvao, porque foi pela obedincia que ele realizou a obra que a garantiu.

    Obedincia, pois, no algo que pode ser concebido de forma artificial ou abstrata. E a obedincia que atraiu todos os recursos da sua humanidade perfeita, obedincia que residia em sua pessoa, e obedincia da qual ele eternamente a incorporao perfeita. A obedincia encontra nele a sua virtude e eficcia permanentes. E ns tomamo-nos os beneficirios dela, de fato participantes dela, em virtude de nossa unio com ele. isto que serve para fazer conhecida a importncia daquilo que a verdade central de toda a soteriologia, a saber, unio e comunho com Cristo.

    Embora o conceito de obedincia nos fornea uma categoria inclusiva em termos pelos quais a obra expiatria de Cristo pode ser compreendida e que desde o incio estabelece a agncia ativa de Cristo na realizao da redeno, todavia devemos agora proceder a anlise daquelas categorias especficas por meio das quais a Escritura revela a natureza da expiao.

    1. Sacrifcio. Que a obra de Cristo deva ser interpretada como um sacrifcio6 o ensino claro do Novo Testamento. E a nica6. V. B.B. Warfield: Biblical doctrines (New York, 1929), Christ our Sacrifice,

    pgs.401-435; W. P. Paterson: A Dictionary of The Bible, ed. James Hastings (New York, 1902), vol. IV, pgs.329-349.

  • pergunta esta: qual a noo de sacrifcio que governa o uso abrangente deste termo em sua aplicao obra de Cristo? Esta pergunta s pode ser respondida atravs do esforo de determinar a noo de sacrifcio adotada pelos proclamadores e escritores do Novo Testamento. Arraigados como estes estavam na linguagem e conceitos do Velho Testamento, resta-nos, porm, um recurso pelo qual podemos descobrir a sua interpretao do significado e efeito do sacrifcio. Qual o conceito veterotestamentrio de sacrifcio? Esta pergunta tem suscitado muita discusso. Mas podemos ficar tranqilos e afirmar em confiana que os sacrifcios veterotestamentrios foram basicamente expiatrios. Isto significa que eles se referiam ao pecado e culpa. O pecado envolve uma certa responsabilidade, por um lado, responsabilidade esta surgida da santidade de Deus, e, por outro lado, da seriedade do pecado como a oposio quela santidade. O sacrifcio foi a proviso divinamente instituda por meio da qual o pecado podia ser encoberto e a sujeio maldio e ira divinas removidas. Quando o adorador veterotestamentrio trazia ao altar a sua oferta, a sua pessoa era substituda por um animal como vtima. Pela imposio de suas mos sobre a cabea da oferta, o ofertante transferia simbolicamente para a oferta o seu pecado e sua responsabilidade, liste o piv sobre o qual a transao era realizada. A noo em essncia estava no fato de que o pecado do ofertante era imputado oferta, e esta recebia a pena de morte como o resultado. Ele era como que o pra-raio substitutivo da penalidade ou responsabilidade que o pecado merecia.

    Obviamente, houve uma grande desproporo entre o ofer- lante e a oferta e uma desproporo correspondente entre a responsabilidade do ofertante e aquela executada sobre a oferta. Estas ofertas eram apenas sombras e figuras. Contudo, a noo de expiao evidente, e esta significao expiatria fornece a base para a interpretao do sacrifcio de Cristo. A obra de Cristo expiatria, sem dvida expiatria com uma transcendente virtude,

  • eficcia e perfeio que nunca poderia aplicar-se a novilhos e cabritos, porm expiatria segundo as figuras apresentadas no sacrifcio ritual do Velho Testamento. Para Deus, isto significa que no grande e imaculado sacrifcio que Cristo ofereceu, os pecados e responsabilidades daqueles em cujo lugar ele se ofereceu foram transferidos para ele. Pelo motivo desta imputao, ele sofreu e morreu, o justo pelo injusto, para que pudesse trazer-nos presena de Deus*Por um nico sacrifcio, ele aperfeioou para sempre todos aqueles que so santificados.

    Embora os escritores neotestamentrios no encontrem no auto-oferecimento de Cristo um cumprimento literal de todas as prescries da lei levtica7 como estas se aplicavam s oferendas de animais, todavia muito evidente que eles tenham certas transaes especficas do ritual mosaico dominando os seus pensamentos. Um exemplo disso est em Hb 9.6-15. As transaes do grande dia da expiao so mencionadas especificamente, e com estas, dominando claramente o seu pensamento e sobre a base da importncia simblica e tpica deste ritual, o escritor demonstra a transcendente eficcia, perfeio e finalidade do sacrifcio de Cristo. Quando, porm, veio Cristo como sumo sacerdote dos bens j realizados, mediante o maior e mais perfeito tabernculo, no feito por mos, quer dizer, no desta criao, no por meio de sangue de bodes e de bezerros, mas pelo seu prprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna redeno (vv.l 1 e 12, cf. com vv.23 e 24).

    De modo semelhante, em Hb 13.10-13, no podemos deixar de ver que o escritor apresenta a obra de Cristo e o seu sacrifcio sob a forma daquelas ofertas pelo pecado a oferta pelo pecado do sacerdote e a oferta pelo pecado de toda a congregao cujo sangue foi trazido para dentro do lugar santo, e cuja carne, pele e pernas eram queimadas fora do acampamento. Visto que nenhuma parte da carne de tais ofertas pelo pecado era disponvel aos7. V. James Dcnny: The Death Of Christ (New York, 1903), pgs. 54 etc.

  • sacerdotes, o escritor aplica este fato a Cristo, certamente no como o cumprimento literal de todos os detalhes, mas em apreciao de seu significado parablico e tpico. Por isso foi que tambm Jesus, para santificar o povo, pelo seu prprio sangue, sofreu fora da porta. Saiamos, pois, a ele, fora do arraial, levando o seu vituprio (vv.12 e 13).

    Jesus, portanto, ofereceu-se em sacrifcio, e de forma muito particular, sob a forma ou figura fornecida pelas ofertas pelo pecado na economia levtica. Ao oferecer-se desta maneira, ele expiou a culpa e removeu o pecado para que pudssemos aproximar-nos de Deus em plena certeza de f e entrar no santo dos santos pelo sangue de Jesus, tendo os nossos coraes purificados de m conscincia e lavados os nossos corpos com gua pura.

    Nesta conexo, devemos tambm lembrar do que j observamos at aqui: os sacrifcios levticos foram figuras de acordo com o exemplar celestial, segundo o que a epstola aos Hebreus chama as coisas celestiais. As ofertas cruentas do ritual mosaico foram figuras das grandes ofertas do prprio Cristo pelas quais as coisas celestiais foram purificadas (Hb 9.23). Este fato serve para confirmar a tese de que o que era constitutivo nos sacrifcios levticos, deve tambm ter sido constitutivo no sacrifcio de Cristo. Se os sacrifcios levticos foram expiatrios, quanto mais expiatria deve ter sido a oferta arquetpica, e expiatria, lembre-se, no no nvel do temporrio, provisrio, preparatrio e parcial, mas no nvel do eterno, do que permanentemente verdadeiro, final e completo. A oferta arquetpica, portanto, foi eficaz de uma forma

    ' etn que a ectpica (=cpia) jamais poderia ser. Este o pensamento que fica em evidncia quando lemos: Muito mais o sangue de Cristo que, pelo Esprito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mcula a Deus, purificar a nossa conscincia de obras mortas para servirmos ao Deus vivo (Hb 9.14). Devemos interpretar o sacrifcio de Cristo em termos dos padres levticos, porque eles mesmos foram modelados segundo a oferta de Cristo. Porm,

  • justamente porque os sacrifcios levticos eram apenas exemplos que devemos tambm reconhecer as limitaes que os envolviam em contraste com o carter perfeito da prpria oferta de Cristo. E em virtude de tais limitaes inerentes nas ofertas levticas, no encontramos e nem poderamos esperar encontrar no sacrifcio de Cristo um cumprimento literal de todos os detalhes dos sacrifcios levticos. Foi a desproporo entre o ofertante e a oferta, e entre a responsabilidade do ofertante e o derramamento do sangue da oferta segundo o ritual veterotestamentrio, que fez necessria a eliminao de tal desproporo no caso do sacrifcio de Cristo. A ausncia desta desproporo no sacrifcio do Filho de Deus correlativo com a ausncia no caso de todos os detalhes da prescrio levtica que teriam sido incompatveis com o carter nico e transcendental do sacrifcio voluntrio de Cristo.

    O fato de que a obra de Cristo consistia em oferecer-se a si mesmo como sacrifcio pelo pecado implica, contudo, uma verdade complementar que to freqentemente negligenciada, ou seja, se Cristo ofereceu-se a si mesmo como sacrifcio, ento ele foi tambm um sacerdote.8 Foi como um sacerdote que ele ofereceu-se a si mesmo. Ele no foi oferecido por algum outro; ele mesmo se ofereceu. Isto algo que no poderia ser exemplificado no ritual do Velho Testamento. O sacerdote no se oferecia, nem tampouco a prpria oferta se oferecia. Contudo, em Cristo temos esta combinao singular que serve para demonstrar a unicidade de seu sacrifcio, o carter transcendental de seu ofcio sacerdotal e a perfeio inerente em sua oferta sacerdotal. Em virtude de seu ofcio sacerdotal e em conseqncia de sua funo sacerdotal que ele fez expiao pelo pecado. Ele foi deveras o cordeiro morto, mas foi tambm o sacerdote que ofereceu-se a si mesmo como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. nesta conjuntura admirvel que a unio nele tanto do ofcio sacerdotal como da oferta de carter expiatrio se reala. Tudo est implcito na8. V. Hugn Martin: op. cit., Cap. III.

  • expresso simples que citamos com tanta freqncia, mas que raramente compreendemos, a si mesmo se ofereceu sem mcula a Deus. E comprova na mais plena extenso o que temos estudado at aqui, que no evento mximo que registrou e trouxe comple- tao o seu ato sacrificial, ele foi intensamente ativo, e ativo seja lembrado no oferecimento a Deus da oferenda que expiou o pleno tributo da condenao divina que pairava sobre uma multido to grande de todas as naes, tribos, povos e lnguas que ningum poderia enumerar.

    Alm disso, finalmente, o reconhecimento da funo sacerdotal de Cristo que une o sacrifcio uma vez oferecido com a permanente funo sacerdotal de Redentor. Ele um sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque. Ele um sacerdote agora, no para oferecer sacrifcio, mas como a incorporao pessoal e permanente de toda eficcia e virtude que advm do sacrifcio oferecido uma nica vez. E nesta funo ele continua para sempre a fim de fazer intercesso em favor de seu povo. A continuao ininterrupta e a prevalncia permanente da sua intercesso so jungidas a este sacrifcio nico. Mas esta interrelao em virtude da sua competncia como o grande sumo sacerdote da nossa confisso, a qual ele aperfeioou no sacrifcio e continua na intercesso.

    2. Propiciao. A palavra grega que foi traduzida como propiciao no aparece com freqncia no Novo Testamento. Este fato pode causar estranheza, especialmente quando consideramos que ela aparece com muita freqncia na traduo grega do Velho Testamento, e que em nossas verses a palavra expiao. Poderamos pensar que a palavra que to comum no grego do Velho Testamento em conexo com o ritual de expiao teria sido usada livremente pelos escritores do Novo Testamento. Porm, este no o caso.

  • Contudo, este fato no significa que a obra expiatria de Cristo no deva ser interpretada em termos de propiciao.9 Existem textos nos quais a linguagem da propiciao explicitamente aplicada obra de Cristo (Rm 3.25; Hb 2.17; I Jo 2.2; 4.10). Isto significa, sem qualquer dvida, que a obra de Cristo deve ser analisada como propiciao. Mas h tambm outra considerao: a freqncia com que este conceito aparece no Velho Testamento em conexo com o ritual de sacrifcios, o fato de que o Novo Testamento aplica obra de Cristo o prprio termo que denotava este conceito no grego do Velho Testamento, e o fato de que o Novo Testamento considera o ritual levtico como figura providencial para o sacrifcio de Cristo conduz concluso de que esta uma categoria em termos dos quais o sacrifcio de Cristo no apenas devidamente, mas necessariamente, interpretado. Em outras palavras, a idia de propiciao to intretecida na estrutura do ritual veterotestamentrio que seria impossvel entender aquefe ritual como uma figura do sacrifcio de Cristo se a propiciao no ocupasse um lugar semelhante naquele nico e grande sacrifcio oferecido uma vez por todas. Esta apenas uma outra maneira de dizer que sacrifcio e propiciao permanecem juntos numa relao estreita e inseparvel. A expressa aplicao do termo propiciao obra de Cristo pelos escritores neotestamentrios a confirmao desta concluso.

    Porm, qual o sentido de propiciao? No hebraico do Velho Testamento, ela se expressava por uma palavra que significa

    - cobrir. Em conexo com esta cobertura, existem trs fatos especficos que devem ser observados: (1) sempre em referncia ao pecado que se d esta cobertura; (2) o efeito desta cobertura a purificao e o perdo; (3) perante o Senhor que se d tanto a9. V. T. J. Crawford: op. cit., pgs. 77 etc.; George Smeaton: The Doctrine of The

    Atonement as Taught by The Apostles (Edinburgh, 1870), pgs. 137 etc.; A. A. Hodge: The Atonement (Philadelphia, 1867), pgs. 39 etc., e 179 etc., mais recentemente, veja o estudo cuidadoso e detalhado, por Roger R. Nicole: C. H. Dodd and The Doctrine of Propitiation in The Westminster Theological Journal, May 1955, vol. XVII, 2, pgs. 117-157.

  • cobertura como o seu efeito (veja-se especialmente Lv 4.35; 10.17; 16.30). Isto significa que o pecado cria uma situao em relao ao Senhor, uma situao que faz a cobertura necessria. Esta referncia a Deus em conexo com o pecado, bem como cobertura dele, precisa ser plenamente apreciada. Podemos afirmar que o pecado ou, talvez, a pessoa que pecou coberta perante os olhos do Senhor. No pensamento do Velho Testamento h uma s interpretao que podemos dar a esta proviso do ritual de sacrifcios. o pecado que provoca o santo desprazer ou ira de Deus. A vingana a reao da santidade de Deus contra o pecado, e a cobertura a providncia que remove este santo desprazer provocado pelo pecado. E bvio que somos conduzidos aos trios daquela verdade que claramente denotada pela traduo grega em ambos os Testamentos, a saber, a propiciao. Propiciar signi- - fica aplacar, pacificar, conciliar, acalmar. Este o pensamento que aplicado expiao realizada por Cristo.

    Propiciao pressupe a ira e o desprazer de Deus, e o propsito da propriao a remoo deste desprazer. Em termos simples, a doutrina da propiciao significa que Cristo propiciou a ira de Deus e convenceu a Deus a ser propcio para com o seu povo.

    Talvez no haja nenhuma outra opinio a respeito da expiao que tenha sido mais violentamente criticada do que esta.10 Ela tem sido acusada de envolver uma concepo mitolgica de Deus, como que supondo um conflito interno na mente de Deus e entre as pessoas da Deidade. Tem-se suscitado a acusao de que esta doutrina representa o Filho como aquele que persuadiu o Pai encolerizado a usar de clemncia e amor uma suposio inteiramente inconsistente com o fato de que o amor de Deus a prpria fonte da qual a expiao emana.10. V. Auguste Sabatier: The Doctrine of The Atonement and itss Historical Evolution

    (Trad. Ing. New York, 1904), pgs.29,113,118, etc., F. D. Maurice: The Doctrine of Sacrifice Deduced from The Scriptures (London, 1893) pg. 15 etc., 157 etc.; D. M. Baillie: God was inThrist (New York, 1948) pg. 168 etc.; Hastings Rashdall: The Idea of The Atonement in Christian Teology (London, 1925), pgs. 100 etc.

  • Quando a doutrina da propiciao apresentada por este prisma, ela pode ser muito eficazmente criticada e pode ser exposta como uma caricatura revoltante do evangelho cristo. Mas a doutrina da propiciao no envolve esta caricatura pela qual ela tem sido mal conceituada e mal representada. Para dizer o mnimo, esta forma de crtica deixou de entender e de apreciar algumas distines importantes e elementares.

    Em primeiro lugar, amar e ser propcio no so termos conversveis. No correto supor que a doutrina da propiciao considera esta como algo que constrange o amor divino. um raciocnio indisciplinado, do tipo mais deplorvel, afirmar que a propiciao da ira divina prejudica ou incompatvel com o mais pleno reconhecimento de que a expiao a proviso do amor divino.

    Segundo, a propiciao no uma converso da ira de Deus em amor. A propiciao da ira divina, efetuada na obra expiatria de Cristo, a proviso do eterno e imutvel amor de Deus, para que, atravs da propiciao da sua prpria ira, o amor pudesse realizar seus propsitos de uma maneira que fosse consoante com e para a glria dos ditames da sua santidade. Uma coisa dizer que o Deus irado se fez amoroso, o que inteiramente errneo. Outra coisa dizer que o Deus irado amoroso, o que profundamente verdadeiro. Pormf igualmente verdadeiro que a ira, pela qual ele se fez irado, propiciada atravs da cruz. Esta propiciao o fruto do amor divino que a providenciou. Nisto consiste o amor, no em que ns tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou, e enviou o seu Filho como propiciao pelos nossos pecados (I Jo 4.10).A propiciao a base sobre a qual o amor divino opera, e o canal pelo qual ela flui para alcanar os seus devidos fins.

    Terceiro, a propiciao no prejudica o amor e a misericrdia de Deus; antes, enaltece a grandeza de seu amor; porque ela revela o preo que o amor redentor impe. Deus amor. Mas o objeto supremo desse amor a sua prpria pessoa. E em virtude de amar

  • supremamente a si mesmo, ele no pode tolerar que tudo o que pertence integridade de seu carter e glria seja comprometido ou prejudicado. Esta a razo da propiciao. Deus aplaca a sua prpria ira santa na cruz de Cristo, a fim de que o propsito de seu amor pelos homens perdidos seja realizado de acordo com e para a vindicao de todas as perfeies que constituem a sua glria. A quem Deus props, no seu sangue, como propiciao, mediante a f, para manifestar a sua justia... para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem f em Jesus (Rm 3.25,26).

    A antipatia para com a doutrina da propiciao, no sentido de propiciar a ira divina, contudo, baseia-se na incompreenso do que seja a expiao. A expiao aquele ato que satisfaz as exigncias de santidade e justia. A ira de Deus a reao inevitvel da santidade divina contra o pecado. Pecado o oposto da perfeio de Deus, e ele no pode fazer outra coisa seno repelir aquilo que contradiz a sua pessoa. Este gesto emana de sua indignao santa. A ira de Deus se revela do cu contra toda impiedade e perverso dos homens que detm a verdade pela injustia (Rm 1.18). O juzo de Deus contra o pecado essencialmente a sua ira. Se devemos crer que a expiao o procedimento vicrio de Deus pelo qual ele julgou o pecado, ento absolutamente necessrio crer no sofrimento vicrio daquele sobre quem este juzo condensado. - Negar a propiciao destruir a natureza da expiao como sofrimento vicrio pela pena do pecado. Em uma palavra, negar a expiao substitutiva. Gloriar-se na cruz gloriar-se em Cristo como o sacrifcio propiciatrio oferecido uma nica vez, como o propiciatrio permanente e como aquele que incorpora em si mesmo, para todo o sempre, toda a eficcia propiciatria da propiciao realizada uma vez por todas. Se todavia algum pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o justo; e ele a propiciao pelos nossos pecados, e no somente pelos nossos prprios, mas ainda pelos do mundo inteiro (I Jo 2.1,2).

    3. Reconciliao. A propiciao focaliza a nossa ateno na ira de Deus e na proviso divina para a remoo dessa ira. A

  • reconciliao focaliza o nosso interesse na nossa alienao de Deus e no mtodo divino para restaurar-nos ao seu favor. Obviamente, estes dois aspectos da obra de Cristo esto intimamente relacionados. Porm, a distino importante. somente pela observncia da distino que podemos descobrir as riquezas da proviso divina para satisfazer as nossas mltiplas necessidades.

    Reconciliao pressupe interrupo nas relaes entre Deus e o homem. Ela subentende inimizade e alienao. Esta alienao dupla: a nossa alienao para com Deus e a alienao de Deus para conosco. Natualmente que a causa desta alienao o nosso pecado, mas a alienao consiste no apenas em nossa inimizade mpia contra Deus, mas, tambm, na santa alienao de Deus para conosco. Mas as vossas iniqidades fazem separao entre vs e o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu rosto de vs, para que no vos oua (Is 59.2). Se dissociarmos da palavra inimizade, em referncia a Deus, tudo quanto se refira natureza de malcia e malignidade, podemos falar com propriedade desta alienao por parte de Deus como a sua santa inimizade para conosco. Esta a alienao que a reconciliao contempla e remove.

    Podemos concluir que a reconciliao se limita no apenas santa inimizade de Deus contra ns, seno tambm nossa mpia inimizade contra ele. A prpria palavra poderia gerar esta impresso. Alm disso, parece que o Novo Testamento d margem a esta noo. Nunca se diz em muitas palavras que Deus reconciliado conosco, antes ns que somos reconciliados com Deus (Rm 5.10,11; II Co 5.20). E quando a voz ativa empregada, Deus quem nos reconcilia consigo mesmo (II Co 5.18,19; Ef 2.16; Cl 1.20,21). Isto pareceria confirmar o argumento de que a reconciliao termina em nossa inimizade contra Deus e no em sua santa alienao para conosco. Assim, tem-se asseverado que, quando a reconciliao vista como a ao da parte de Deus, o que Deus fez para transformar a nossa inimizade em amor; e quando vista

  • como resultado, o afastamento da nossa inimizade contra Deus. Conseqentemente, a reconciliao tem sido interpretada como que consistindo daquilo que Deus fez para que a nossa inimizade pudesse ser removida. Em uma palavra, o pensamento focalizado sobre a nossa inimizade, e a doutrina da reconciliao formulada nestes termos.11

    Quando examinamos a Escritura mais detalhadamente, des- * cobrimos que o reverso deve ser o caso. No a nossa inimizade contra Deus que se destaca na reconciliao, e, sim, a alienao de Deus para conosco. Esta alienao da parte de Deus se origina, deveras, do nosso pecado; o nosso pecado que desperta esta reao de sua santidade. Porm, a alienao de Deus para conosco que se destaca na reconciliao, seja ela considerada em termos de ao ou de resultado.

    Neste sentido, instrutivo examinar algumas das ocasies nas quais a palavra reconciliar aparece no Novo Testamento. Estas ocasies aplicam o uso da Palavra s relaes humanas. A primeira Mt 5.23,24:12 Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmo tem alguma coisa contra ti, deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com o teu irmo; e, ento, voltando, faze a tua oferta. Neste texto, o sentido do imperativo, vai primeiro reconiliar-te com o teu irmo, ocupa, aqui, o nosso interesse. As seguintes observaes precisam ser mencionadas.

    a) No se supe ou se sugere que o adorador que traz a sua oferta ao altar nutre em seu corao qualquer malcia ou inimizade contra o seu irmo com quem ele tem que se reconciliar. Esta11. V. A. W. Argyle: The New Testament Interpretation of The Death of Our Lord em

    The Expository Times (June, 1949), pgs. 255; G. C. Workman: Ar Onement or Reconciation with God (New York, 1911), pg. 76 etc.; F. W. Dillistone: The Significance of The Cross (Philadelphia, 1944), pgs. 114 etc.; John B. Champion: The Heart of The New Testament (Grand Rapids, 1941), pgs. 21 etc.)

    12. V. T. J. Crawford: op. cit. pgs. 69 etc.

  • possibilidade pode ser aceita ou no. No h, porm, nenhuma interferncia de tal fator na situao. O fator que apresentado como a razo da interrupo no ato de culto simplesmente que existe alienao. Alguma coisa penetrou nas relaes das duas pessoas, a qual ofendeu quele que se chama irmo. O adorador no ficou ofendido, porm lembrou-se da circunstncia que provocou o rompimento da comunho entre ambos.

    b) Entende-se que neste caso, provavelmente, o adorador tenha feito alguma coisa para ofender o outro irmo, e que ele culpado de uma m conduta ou violao da lei do amor. Contudo, esta probabilidade no absolutamente necessria, e, seja isto verdadeiro ou no, o que temos de reconhecer o fato de que o adorador tem de agir, uma atitude que no depende da justia ou injustia do irmo ofendido.

    c) O adorador obrigado a reconciliar-se com o seu irmo. O mandamento, vai primeiro reconciliar-te, no significa pr de lado a sua inimizade ou malcia. No se pressupe que ele nutra qualquer inteno. Alm disso, se tal coisa o que se lhe ordenou

    * fazer, ento ele no teria necessidade de abandonar o altar a fim de se corrigir. Ele no poderia estar em melhor lugar do que o santurio, caso a exigncia fosse para arrepender-se e pr de lado a sua m vontade. A exigncia que o adorador recebe algo inteiramente diferente. Exige-se que ele deixe o altar, aproxime-se de seu irmo ofendido, e ento faa alguma coisa. O que que ele tem de fazer? Ele tem de remover de seu irmo a causa da desavena ou alienao. Ele tem de corrigir o problema de taf- forma que o seu irmo no tenha mais motivo de estar ofendido; tem de fazer o que necessrio para que se recomecem relaes harmoniosas. A reconciliao como ato consiste na remoo da causa da desarmonia; a reconciliao como resultado o reinicio das relaes harmoniosas, entendimento e paz.

    E de suma importncia, pois, reconhecer que o adorador considera no ato de reconciliao a ofensa nutrida pelo irmo;

  • a atitude da pessoa com quem ele se reconcilia que deve ser considerada e no qualquer inimizade que ele mesmo nutre. E se usarmos a palavra inimizade, a inimizade por parte do irmo ofendido que se reala no pensamento e considerao. Em outras palavras, o contra nutrido pelo irmo ofendido que a reconciliao contempla; a reconciliao procede a remoo deste contra.

    Esta passagem, pois, nos fornece a mais instrutiva lio sobre o sentido de ser reconciliado-, ela mostra que esta expresso, pelo menos neste caso, focaliza o pensamento e considerao, no sobre a inimizade da pessoa que se declara reconciliada, mas sobre a alienao na mente da pessoa com quem a reconciliao se processa. E se o sentido que se obtm deste texto aquele que se mantm em conexo com a nossa reconciliao com Deus por meio da morte de Cristo, ento o que se destaca quando se diz que somos reconciliados com Deus a alienao de Deus para conosco, a santa inimizade para conosco da parte de Deus pela qual somos alienados dele. A reconciliao como ao seria a remoo da base da alienao de Deus para conosco; a reconciliao como resultado seria a relao harmoniosa e pacfica estabelecida em virtude da base da alienao de Deus para conosco ter sido removida.' Neste ponto, no afirmaramos que esta a fora precisa da palavra reconciliao em referncia nossa reconciliao com Deus. Teremos de derivar a nossa doutrina da reconciliao das passagens que tratam especificamente deste tema. Contudo, Mt 5.23,24 nos mostra que no uso neotestamentrio da palavra reconciliar, ela usada num sentido bem diferente daquele que primeira vista parece ser. Por isso, quando o Novo Testamento fala de nosso ser sendo reconciliado com Deus por meio da morte de seu Filho, ou de Deus nos reconciliando consigo mesmo, no podemos pressupor que o conceito deva ser formulado em termos de remoo da nossa inimizade contra Deus. No mnimo, Mt 5.23,24 sugere uma direo de pensamento bem diferente.

    Outra instncia onde a palavra reconciliar evidencia a mesma linha de pensamento I Co 7.11. Referindo-se mulher separada

  • de seu marido, Paulo diz: que no se case, ou que se reconcilie com seu marido. Neste caso, seja qual for a extenso da inimizade subjetiva por parte da mulher que possa ter contribudo para a causa da separao conjecturada, evidente que a ordem, que se reconcilie com seu marido, no pode consistir em pr de lado a sua inimizade ou hostilidade subjetiva. Isto no iria levar a exortao a bom termo. Antes, a reconciliao contempla o trmino da separao e o reinicio do relacionamento matrimonial em harmonia e paz. A reconciliao considerada em termos de ao para efetuar o trmino da separao; e, como efeito, o reinicio das relaes pacficas no matrimjjio.

    ' Em Rm 11.15 temos uma instncia do substantivo reconciliao. Porque, se o fato de terem sido eles rejeitados trouxe reconciliao ao mundo, que ser o seu restabelecimento, seno vida entre os mortos? E evidente que a reconciliao contrastada com a rejeio, e a rejeio contrastada com o restabelecimento.O restabelecimento nada menos do que o recebimento de Israel outra vez no favor divino e a bno do evangelho. O afastamento a rejeio de Israel do favor divino e da graa do evangelho. A reconciliao dos gentios, que se deu por ocasio da rejeio de Israel, , de forma semelhante, o recebimento dos gentios no favor divino. A reconciliao dos gentios, portanto, no pode ser interpretada em termos de afastamento da inimizade por parte dos gentios, e, sim, em termos de mudana na economia da graa de Deus quando a alienao dos gentios chegou ao fim e eles foram feitos concidados dos santos e da famlia de Deus (veja-se Ef 2.11-22). Seja qual for a extenso da mudana da inimizade para a f e o amor nos coraes dos gentios, quanto ao efeito da mudana na economia da graa e do juzo de Deus, graa para os gentios e juzo sobre Israel, devemos considerar a reconciliao do mundo como consistindo na mudana de relao que Deus mantinha para com o mundo gentlico, a mudana da alienao para o favor e bno do evangelho. E o relacionamento de Deus para com os gentios que se destaca neste emprego da palavra reconciliao.

  • Quando prosseguimos estudando passagens que concernem diretamente obra de reconciliao realizada por Cristo, necessrio ter em mente que a reconciliao nessas e noutras instncias luto se refere ao afastamento da inimizade subjetiva no corao da pessoa que se diz reconciliada; antes, refere-se alienao por parte da pessoa de quem se diz reconciliada. Veremos como esta noo se aplica exatamente reconciliao realizada por Cristo. A reconciliao trata da alienao de Deus para conosco em virtude do nosso pecado; pelo afastamento do pecado, a reconciliao remove a causa desta alienao, e a paz com Deus o efeito. Os dois textos que passamos a considerar so Rm 5.8-11 e II Co 5.18-21.

    Romanos 5.8-11. A partir do incio, a maneira pela qual o assunto da reconciliao introduzido nos aponta para a direo na qual descobriremos o sentido da reconciliao. Mas Deus prova o seu prprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por ns, sendo ns ainda pecadores (v.8). A morte de Cristo pela qual a reconciliao foi consolidada demonstrada como a suprema manifestao do amor de Deus para com os homens. O que gerou a proeminncia o amor de Deus como ele se expressa numa ao bem definida como a morte de Cristo. A nossa ateno , pois, despertada, no para a esfera subjetiva da at itude do homem para com Deus, seno para a atitude divina como demonstrada num evento histrico. Para interpretar a reconciliao em termos do que ocorre em nossa disposio subjetiva se chocaria com esta orientao. Mas existem tambm razes mais diretamente comprobatrias para pensarmos desta maneira.

    a) Paulo nos conta expressamente que fomos reconciliados com Deus por meio da morte de seu Filho. O tempo do verbo indica que este um fato realizado uma vez por todas, quando Cristo morreu. Podemos ver quo impossvel interpretar a reconciliao como a remoo da nossa inimizade para com Deus ou o afastamento da inimizade por nosso prprio esforo. E verdade que Deus

  • fez alguma coisa, uma vez por todas, para garantir que a nossa inimizade fosse removida e que ns seramos induzidos a abandonar a nossa inimizade. Porm, se fosse apenas isto o que Deus fez uma vez por todas, no consistiria na remoo da nossa inimizade nem no afastamento da nossa inimizade. Alm disso, o argumento afortiori que Paulo usa neste texto nos forneceria uma interpretao incongruente caso tivssemos de considerar a reconciliao como a remoo da inimizade por parte de Deus ou o afastamento dela por nossa parte. O argumento de Paulo teria de ser mais ou menos assim: Porque se ns, quando inimigos, abandonamos a nossa inimizade contra Deus, mediante a morte de seu Filho, quanto mais, tendo abandonado a nossa inimizade, seremos salvos por sua vida (cf. v. 10). A incoerncia evidente, e pode ser remediada somente atravs de uma outra interpretao bem diferente da palavra reconciliar.

    b) As palavras reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho (v. 10) so paralelas com as palavras justificados pelo seu sangue (v.9). Este paralelismo pressuposto na seqncia do argumento. Mas justificao sempre forense e nunca se refere a qualquer mudana subjetiva na disposio do homein. Sendo assim, a expresso paralela, a saber, reconciliados com Deus, deve receber de forma semelhante uma fora judicial, o que pode acontecer somente na esfera objetiva da ao e juzo divinos.

    c) A reconciliao algo recebido acabamos agora de receber a reconciliao (v. 11). No mnimo, no muito razovel tentar ajustar ou acomodar esta noo idia de remoo ou abandono da nossa inimizade. Aqui, o conceito representado como algo a ns entregue como uma ddiva gratuita. De fato, verdade que por meio da obra da graa de Deus em ns o que nos capacita a voltarmos da inimizade contra Deus para a f, arrependimento e amor. Porm, na linguagem da Escritura, esta ltima obra de graa no representada em termos tais como so usados aqui. Podemos detectar a falta de propriedade de tal interpretao se pudssemos parafrasear tal concepo nas palavras:

  • "acabamos agora de receber a remoo da nossa inimizade; ou, "acabamos agora de receber o abandono da nossa inimizade. Por outro lado, se reconhecermos a reconciliao como a livre graa dc Deus na remoo da alienao de Deus e aceitao em seu favor, ento tudo se toma coerente e significativo. O que temos recebido c a readmisso no favor de Deus. Quo consistente afirmar com os termos do texto e com o regozijo do apstolo: Regozijamo-nos cm Deus por intermdio de nosso Senhor Jesus Cristo, por meio de quem no mais suportamos a alienao de Deus, mas fomos recebidos no favor e na paz com ele.

    d) Paulo afirma que enquanto ainda ramos inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte de seu Filho (v. 10). E plenamente razovel considerar que a palavra inimigos, aqui, no sc refere nossa inimizade contra Deus, e, sim, refere-se alienao de Deus, qual ficamos sujeitos. A mesma palavra usada no lempo passivo em Rm 11.28. Quando esta interpretao adotada, a anttese instituda entre inimizade e reconciliao exatamente a mesma que existe entre alienao e recepo no favor divino. Iso corroboraria o argumento anterior quanto ao sentido de reconciliao. Mas, mesmo que a palavra inimigos fosse entendida no sentido ativo de nossa hostilidade para com Deus, o mesmo sentido (1c reconciliao teria de ser mantido. Como poderia qualquer outra interpretao compatibilizar-se com o argumento do apstolo? Seria muito difcil dizer: Porque se ns, sendo inimigos ativos de Deus, a nossa inimizade foi removida pela morte de seu Filho, quanto mais tendo a nossa inimizade sido removida seremos salvos por sua vida.

    II Corntios 5.18-21. Este texto servir para confirmar o que encontramos em Rm 5.8-11, para destacar as caractersticas salientes do ensino desta passagem.

    a) A reconciliao representada como uma obra de Deus.I la inicia-se com Deus e consumada por ele. Ora, tudo provm dc Deus que nos reconciliou consigo mesmo (v. 18). Deus estava cm Cristo, reconciliando consigo o mundo (v. 19). Esta nfase

  • sobre o monergismo divino nos adverte que a reconciliao uma obra que, como tal, no comporta, dentro de sua esfera, a ao humana. Como uma realizao, ela no utiliza nem dependente da atividade dos homens.

    b) A reconciliao uma obra concluda. Os tempos nos vv. 18, 19 e 21 pem este fato acima de qualquer dvida. No uma obra que Deus vai realizando continuamente; algo realizado no passado. Deus no apenas o nico agente, mas tambm o agente de uma ao j aperfeioada.

    c) Em qu a reconciliao consistiu nos demonstrado neste texto. Aquele que no conheceu pecado, ele o fez pecado por ns; para que nele fssemos feitos justia de Deus (v. 21). Esta verdade aponta claramente para Cristo que carregou vicariamente o pecado, ele que levou a reconciliao sua realizao. O carter forense da reconci liao demonstrado no v. 19, onde no imputando aos homens as suas transgresses relacionado reconciliao do mundo como a explicao daquilo em qu a reconciliao consiste ou como a conseqncia da qual ela emerge. De qualquer modo, a reconciliao tem as suas afinidades com a no imputao das transgresses, em vez de qualquer operao subjetiva.

    d) Esta obra de reconciliao, consumada, a mensagem confiada aos mensageiros do evangelho (v. 19). Ela constitui a substncia da mensagem. Mas a mensagem aquela que deve ser anunciada como um fato. Deve-se lembrar que a converso no o evangelho. a exigncia da mensagem evanglica e a resposta adequada ao seu apelo. Qualquer transformao que ocorra em ns ser o efeito daquilo que proclamado como tendo sido realizado por Deus. A mudana em nossos coraes e mentes pressupe a reconciliao.

    e) A exortao que vos reconcilieis com Deus (v.20) deve ser interpretada nos termos do que descobrimos ser a concepo prevalecente na reconciliao. Isto significa: no permanea mais

  • num estado de alienao com Deus, mas, ao contrrio, entre na relao de favor e paz estabelecida pela obra reconciliatria de Cristo. Apodere-se da graa de Deus e entre neste status de paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo.

    * A reconciliao que a Escritura proclama, aquela consumada pela morte de Cristo, visa, pois, relao de Deus conosco. Ela pressupe uma relao alienatria e efetua uma relao de favor e paz. Esta nova relao constituda da remoo da causa da alienao.^A causa o pecado e a culpa. A remoo realizada na obra vicria de Cristo, quando ele foi feito pecado por ns, para que nele fssemos feitos justia de Deus. Cristo tomou sobre si o pecado e a culpa, a condenao e a maldio daqueles em cujo lugar morreu. Esta a sntese do amor e da graa divinos. E a prpria proviso de Deus e a sua prpria realizao. Deus mesmo, em seu prprio Filho, removeu a causa da ofensa e agora recebemos a reconciliao. a mensagem desta realizao divina, aperfeioada e consumada, que nos dirigida no evangelho, e a exigncia de f cristalizada no apelo que anunciado no nome de Cristo como se Deus exortasse: que vos reconcilieis com Deus. Creia naquela mensagem como um fato, e entre no gozo e bno daquilo que Deus realizou. Receba a reconciliao.

    4. Redeno.13 O conceito de redeno no deve ser reduzido noo geral de libertao.A linguagem da redeno a linguagem de aquisio e mais especialmente de resgate. E resgate aquisio de um livramento mediante o pagamento de um valor. A evidncia que estabelece este conceito de redeno muito copiosa, e no deve ficar nenhuma dvida de que a redeno adquirida por Cristo tem de ser interpretada nestes termos. A palavra de nosso Senhor (Mt 20.28; Mc 10.45) deve estabelecer, sem sombra de dvida, trs fatos: (1) a obra que ele veio realizar no mundo uma obra de resgate; (2) a doao de sua vida foi o preo do resgate; e (3) este resgate foi substitutivo em sua natureza.13. V. B. B. Warfield: op. cit., pgs. 327, 398; op. cit., pgs. 60 etc.

  • Resgate pressupe alguma forma de servido ou cativeiro, e redeno implica, pois, na existncia de um estado do qual o resgate nos liberta? Assim como o sacrifcio dirigido necessidade criada por nossa culpa, a propiciao dirigida necessidade que surge da ira de Deus, e a reconciliao dirigida necessidade criada por nossa alienao de Deus, assim a redeno dirigida servido qual o nosso pecado nos entregou. Esta servido, naturalmente, multiforme. Conseqentemente, a redeno como aquisio ou resgate recebe uma ampla variedade de referncia e aplicao.*"A redeno se aplica a cada aspecto em que somos escravizados, e ela nos libera para uma liberdade que nada menos do que a liberdade da glria dos filhos de Deus.

    Naturalmente que no devemos forar indevidamente a linguagem de aqiiisio ou resgate. Como C. T. Crawford nos lembra, no podemos traar na obra de Cristo uma conformidade exata a tudo o que feito nos atos humanos de redeno.14 As nossas formulaes se tomariam assim muito artificiais e imaginrias. Todavia, que a nossa salvao realizada por um processo de comutao, anlogo ao pagamento de um resgate (ibid., pg. 63), evidente em todo o Novo Testamento. Portanto, de que aspectos a Escritura julga a redeno realizada por Cristo? Os mais destacados destes podem ser compreendidos sob as duas divises seguintes.

    1. A lei. Quando a Escritura relaciona a redeno com a lei de Deus, os termos devem ser cuidadosamente observados. Ela no diz que somos redimidos da lei. Tal coisa no seria uma descrio exata, e a Escritura no emprega tal expresso. Ns no somos redimidos da obrigao de amar o Senhor nosso Deus de todo o nosso corao, alma, fora, entendimento e o nosso prximo como a ns mesmos. A lei est compreendida nestes dois mandamentos (Mt 22.40), e o amor o cumprimento da lei (Rm 13.10). Supor que somos libertados da lei, no sentido de tal obrigao, traria14. V. Op. cit., pg. 62.

  • contradio ao propsito da obra de Cristo. Contradiria a prpria natureza de Deus concluir que algum poderia ser liberto da necessidade de amar a Deus de todo o corao e de obedecer aos seus mandamentos. Quando a Escritura relaciona a redeno com a lei de Deus, ela usa termos que so bem mais especficos.

    (a) A maldio da lei. Cristo nos resgatou da maldio da lei, fazendo-se ele prprio maldio em nosso lugar (G13.13). A maldio da lei est em sua sano penal. Esta essencialmente a ira ou a maldio de Deus, o desprazer que pousa sobre cada infrao das exigncias da lei. Maldito todo aquele que no permanece em todas as coisas escritas no livro da lei, para pratic-las (G1 3.10). Sem livramento desta maldio, no haveria salvao. desta maldio que Cristo redimiu o seu povo, e o preo da redeno foi que ele mesmo se tomasse em maldio. Ele se identificou tanto com a maldio que repousava sobre o seu povo, que ele mesmo assumiu a totalidade dela em toda a sua inexorvel intensidade. Esta foi a maldio que ele suportou, e esta foi a maldio que ele exauriu. Este foi o preo pago por esta redeno, e a liberdade garantida a seus beneficirios que a maldio no mais existe.

    (b) A lei cerimonial. Vindo, porm, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebssemos a adoo de filhos (G1 4.4,5). O que se destaca aqui a redeno da servido tutelar na economia mosaica.15 O povo de Deus sob a velha dispensao era filho de Deus pela adoo divina da graa. Mas eles eram filhos menores sob o cuidado de tutores e curadores at ao tempo predeterminado pelo Pai (G1 4.2). A economia mosaica foi a ministradora dessa tutela e disciplina pedaggica (G1 3.23,24). Paulo est contrastando este perodo de tutela sob a lei mosaica com a plena liberdade concedida a todos os crentes sob o evangelho, sejam eles judeus ou gentios. Ele denomina esta plena15. V. John Calvin: ad loc.

  • liberdade e privilgio de adoo de filhos (G14.5). Cristo veio para que esta adoo pudesse ser assegurada. A considerao especialmente relevante no tocante ao preo pago por esta redeno o fato de que Cristo estava sujeito lei. Ele nasceu sob a lei mosaica; estava sujeito s suas condies e cumpriu todos os seus termos. Nele a lei mosaica cumpriu os seus propsitos, e nele o seu significado recebeu a sua validade e incorporao permanentes. Conseqentemente, ele redimiu o seu povo da servido provisria e relativa, da qual a economia mosaica foi o instrumento.

    O significado desta redeno visa no s aos judeus, mas tambm aos gentios. Na economia evanglica, os gentios no precisam submeter-se disciplina tutelar qual os judeus ficaram sujeitos. Mas, tendo vindo a f, j no permanecemos subordinados ao tutor. Pois todos vs sois filhos de Deus por meio da f em Jesus Cristo (G13.25,26). Esta imensa graa infinita, por meio da qual todos, sem qualquer distino ou discriminao, so filhos de Deus pela f em Jesus Cristo, o fruto da redeno adquirida pelo fato de ter Cristo nascido sob a lei e cumprido todos os seus termos e propsitos.

    (c) A lei das obras. Cristo nos redimiu da obrigatoriedade de guardar a lei como a condio (sine qua non) de sermos justificados e aceitos por Deus. Sem esta redeno no existiria justificao e nem salvao. a obedincia do prprio Cristo que garantiu esta libertao. Pois por meio de sua obedincia que muitos sero justificados (Rm 5.19). Em outras palavras, a obedincia ativa e passiva de Cristo que se constituiu no preo desta redeno, obedincia ativa e passiva em virtude de ter ele nascido sob a lei, cumprido todas as exigncias da retido e satisfeito todas as sanes da justia.

    2. O pecado. Que Cristo redimiu o seu povo do pecado decorre-se de tudo o que foi dito a respeito da lei. A fora do pecado

  • c a lei, e onde no existe lei, tambm no existe transgresso (I Co 15.56; Rm 4.15). Mas a Escritura tambm pe a redeno em relao direta com o pecado. nesta conexo que o sangue de Cristo claramente indicado como o meio pelo qual esta redeno c adquirida. A redeno do pecado abrange vrios aspectos pelos quais o pecado pode ser considerado. Ela a redeno do pecado em todos os seus aspectos e conseqncias. Isto especialmente provvel de textos tais como Hb 9.12 e Ap 5.9. O carter inclusivo da redeno quanto ao pecado e seus males acompanhantes demonstrado mais claramente, talvez, pelo fato de que a consumao escatolgica de todo o processo redentivo visto como a redeno (cf. Lc 21.28; Rm 8.23; Ef 1.14; 4.30; e, possivelmente,1 Co 1.30). O fato que o conceito de redeno deve ser usado para designar a libertao plena e definitiva de todo o mal e a realizao do propsito, para o qual todo o processo da graa redentora age, revela conspicuamente como a redeno adquirida por Cristo inseparavelmente unida realizao da liberdade da glria dos li lhos de Deus. E revela tambm que a redeno importante para a prpria noo de bem-aventurana reservada para o povo de Deus. No surpreendente, pois, que a profecia do Velho Testamento use estes termos (veja-se Os 13.14) e que o cntico dos glorificados seja um cntico da redeno (veja-se Ap 1.5,6; 5.9).

    Todavia, nesta discusso estamos contemplando a redeno que Cristo adquiriu como uma obra consumada. Quando a redeno considerada no sentido mais restrito, existem dois aspectos do pecado que se destacam proeminentemente quanto redeno realizada por Cristo. Estes so a culpa e o poder do pecado. Os dois efeitos que emanam desta obra redentiva so, respectivamente: (1) justificao e perdo do pecado e (2) libertao do poder e da poluio escravizadora do pecado. A redeno, no que se refere culpa e que resulta em justificao e remisso, vista em textos lais como Rm 3.24; Ef 1.7; Cl 1.14; Hb 9.15. E a redeno quanto ao seu efeito no poder escravizador e na poluio do pecado vista

  • em Tt 2.14; I Pe 1.18; ainda que nestes ltimos no podemos excluir toda implicao forense.

    Em conexo com a redeno da culpa do pecado, o sangue de Cristo como resgate substitutivo e como preo do resgate de nossa libertao claramente apresentado. Os ensinos de nosso Senhor sobre o resgate (Mt 20.28; Mc 10.45) revelam, sem sombra de dvida, que ele interpretou o propsito de sua vinda ao mundo em termos de resgate substitutivo, e que este resgate foi nada menos que a doao de sua prpria vida. E, na linguagem do Novo Testamento, a doao de sua vida sinnimo de derramamento de seu sangue. A redeno, pois, no conceito de nosso Senhor, consistia do derramamento de sangue substitutivo ou o derramamento de sangue no lugar de muitos, com o propsito de adquirir para si mesmo os muitos pelos quais ele deu a sua vida como resgate. Esta mesma noo reproduzida no ensino apostlico. Embora a terminologia no seja precisamente aquela da redeno, no podemos confundir a significao redentiva da palavra de Paulo em sua exortao dirigida aos presbteros em Efeso quando ele se refere igreja de Deus, a qual ele comprou com seu prprio sangue (At 20.28). O pensamento que Paulo expressa aqui claramente a linguagem de redeno ou resgate que expressou em outro lugar, quando fala de Jesus Cristo como aquele que a si mesmo se deu por ns, a fim de remir-nos de toda iniqidade e purificar para si mesmo um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras (Tt 2.14). Ou, ainda, quando Paulo diz que no Amado temos a redeno, pelo seu sangue, a remisso dos pecados (Ef 1.7; G1 1.14), plenamente bvio que ele entende o perdo dos pecados como a bem-aventurana que surge da redeno por meio do sangue. E embora Hb 9.15 seja difcil de se analisar, contudo claro que a morte de Cristo o meio de redeno em referncia aos pecados praticados sob o antigo concerto: a morte de Cristo redentivamente eficaz em referncia ao pecado.

  • No podemos separar artificialmente a redeno como um resgate da culpa do pecado das demais categorias nas quais a obra de Cristo deva ser interpretada. Estas categorias outra coisa no so seno aspectos dos quais a obra de Cristo, realizada uma vez por todas, deve ser entendidas; portanto, podemos dizer que eles se interpermeiam. Este fato, em sua aplicao redeno, aparece, por exemplo, em Rm 3.24-26. Paulo diz: Sendo justificados gratuitamente, por sua graa, mediante a redeno que h em Cristo Jesus; a quem Deus props, no seu sangue, como propiciao... tendo em vista a manifestao da sua justia no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem f em Jesus.Aqui, redeno e propiciao no so apenas dispostas, mas existe uma combinao de conceitos que aponta para o propsito e efeito da obra de Cristo, e isto revela como os vrios conceitos so intimamente interrelacionados. Este texto exemplifica e confirma o que outras consideraes estabelecem, a saber, que a redeno da culpa do pecado deve ser formulada em termos forenses, anlogos queles que devem ser aplicados expiao, propiciao e reconciliao.

    A redeno do poder do pecado pode ser chamada o aspecto triunfal da redeno. Em sua obra consumada, Cristo fez uma coisa, uma vez por todas, a respeito do poder do pecado, e em virtude desta vitria que ele garantiu que o poder do pecado interrompido em todos aqueles que se unem a ele. neste sentido que o fio do ensino neotestamentrio deve ser apreciado, mas que freqentemente negligenciado. No apenas o fato que considera Cristo morrendo em favor do pecador, mas tambm o que considera o crente morrendo em Cristo e ressurgindo com ele para a novidade de vida. Este o resultado da unio com Cristo. Por meio desta unio, Cristo no apenas unido queles que lhe foram confiados, mas eles tambm so unidos com Cristo. Assim, no apenas Cristo quem morreu por eles, mas tambm eles morreram e ressuscitaram com Cristo (vejam-se Rm 6.1-10; II Co 5.14,15;

  • Ef 2.1-7; Cl 3.1-4; I Pe 4.1-2). o fato de ter morrido com Cristo na eficcia de sua morte e de ter ressuscitado com ele no poder de sua ressurreio que garante a todo o povo de Deus a libertao do domnio do pecado. Este fato fornece a base da exortao: Assim tambm vs, considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus (Rm 6.11), e gera fora para a certeza inabalvel: Porque o pecado no ter domnio sobre vs (Rm 6.14). o fato de ter morrido e ressuscitado com Cristo, visto como uma implicao da morte e ressurreio de Cristo, realizadas uma vez por todas, que fornece a base do processo santificador. E constantemente apresentado como impulso e incentivo santificao na vida prtica do crente.

    Outrossim, aqui que podemos refletir convenientemente sobre a redeno em termos de pagamento a Satans. E ao aspecto triunfal da redeno que isto deve ser relacionado. Os primeiros pais da Igreja crist deram lugar proeminente a este aspecto da redeno, e o elaboraram em termos de um resgate pago ao diabo. Este conceito tomou-se fantasioso e um ludbrio. A sua falsidade foi eficientemente impugnada por Anselmo em sua obra clebre Cur Deus Homo. Todavia, em reao contra esta formulao fantasiosa, somos tambm propensos a desacreditar a grande verdade que esses pais procuraram elucidar. Esta verdade conecta a obra redentora de Cristo com o poder e atividade de Satans e com as foras espirituais do mal nas regies celestes (Ef 6.12). Nesta conexo muito importante lembrar que a primeira promessa da graa redentora, o primeiro raio de luz redentora que brilhou sobre os nossos primeiros pais cados, estava nos termos da destruio do tentador. E esta mesma nfase est engastada no Novo Testamento. Quando nosso Senhor se aproximava do Calvrio, e como ele lembrara uma vez mais, em virtude do pedido dos gregos, da significao mundial da obra que estava prestes a realizar, ele se valeu da oportunidade para referir-se vitria sobre o seu arqui -inimigo, dizendo: Chegou o momento de ser julgado este mundo,

  • e agora o seu prncipe ser expulso (Jo 12.31). E para o apstolo Paulo, a glria que refulgia da cruz de Cristo era uma glria irradiada pelo fato de que ele, despojando os principados e as potestades, publicamente os exps ao desprezo, triunfando deles na cruz (Cl 2.15). Embora ns, to amide, deixamos de reconhecer a realidade cruel da morte, e ficamos conformados em sua presena, no em virtude da f, e, sim, em virtude da insensibilidade recrudescida, assim no acontecia no fervor da f neotesta- mentria. Com um profundo significado, o escritor da epstola aos Hebreus registrou que Jesus participou da carne e sangue, para que, por sua morte, destrusse aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo, e livrasse a todos que, pelo pavor da morte, estavam sujeitos escravido por toda a vida (Hb 2.14,15). Foi unicamente aquele triunfo que livrou os crentes da servido do medo e que inspirou a confiana e serenidade da f. Porm, este triunfo era muito importante para eles, porquanto a sua conscincia estava condicionada pela percepo do carter e atividade de Satans, e a confiana e serenidade entraram em seus coraes porque sabiam que o triunfo de Cristo desfechou-se sobre o agente sinistro que detinha o poder da morte.

    Assim entendemos que a redeno [do homem das garras] do pecado no pode ser devidamente compreendida ou formulada a no ser que inclua a vitria que Cristo alcanou uma vez por todas sobre aquele que o deus deste mundo, o prncipe das foras do ar, o esprito que agora opera nos filhos da desobedincia. Devemos visualizar o pecado e o mal em suas propores maiores como um reino que compreende a sutileza, duplicidade, ingenuidade, poder e atividade incansvel de Satans e suas legies os principados e potestades, os dominadores deste mundo tenebroso, as hostes espirituais do mal nas regies celestes (Ef 6.12). E impossvel falar em termos de redeno do poder do pecado, a no ser que esteja ao alcance desta realizao redentora a destruio do poder das trevas. E assim que podemos nutrir um entendimento

  • mais inteligente do que Cristo encontrou quando ele disse: Esta, porm, a vossa hora, e o poder das trevas (Lc 22.53), e do que o Senhor da glria realizou quando ele expulsou o prncipe deste mundo (Jo 12.31).

  • Captulo 3A perfeio da expiao

    Nas polmicas protestantes, este aspecto da obra expiatria de Cristo tem sido orientado contra o conceito romanista, de que a obra de satisfao realizada por Cristo no li