21 seg(undo)s
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Uma carta minha uma antiga namorada -- ou a mim mesmo, mesmo...TRANSCRIPT
21 seg(undo)s1
Por W. V. Fochetto Junior2
Violões de vidro com suas cordas de cristal chorando, teimosamente, lamentos
temporais. Nossos olhares cruzar-se-ão nunca mais... Mas eu continuo por aqui,
Adriana. Eu continuo.
Os caminhos. Os descaminhos. Os pés. As mãos. As cores das estrelas
guardadas no céu nocturnico de mais de duas décadas. Sou looouco mesmo: creio
poder pisar lá naquele ponto e reencontrar a nós dois, numa de minhas viagens no
tempo, antes e depois do tempo. “Alma de escritor”, isso sim, eu sei – mas poucos
se importam. “Quando você entender a piada, ser o Comediante será a única coisa
que importará” para mim. Não – ou “não”?
Podemos nos olhar de novo, duas décadas e um décimo de novo e dizermos:
“Como você vai? O que tem feito? Casou-se? Quantos filhos?” Poucos creem
quando eu digo que não é de ti que eu gosto, mas do contexto da época; da imagem
de tua casa e de nós dois encostados naquele muro, namorando, dividindo carícias.
Será que isso ultrapassa a morte? Digo, será que isso será lembrado, terá algum
valor após a morte? Ah, Adriana, ah, meus quinze anos, cabelos sendo poupados de
corte, influência do Faith No More, do Nirvana, do Metallica, quem sabe... Ah, os
seus dezoito anos. Recordo-me, ora muito bem, daquela quarta-feira, dia 25 de
março de 1992 , numa manhã chuvosa, quando meus pais saíram, foram para São
Paulo eu acho, e eu, sentado à beira da cama, tentava, até com certo êxito,
reproduzir, por cópia à mão livre, a capa do número dois de três de uma minissérie
de “O Homem Aranha”, datada de 1991. Em meu walkman tocava, ao vivo, uma 1 Finalizado às 21:57 horas de 30 março de 2013. 2 Publicitário, professor e escritor por diversão (ou necessidade?).
versão de “Epic”, do referido FNM, presente em “Live At The Brixton Academy”.
Ouço-a agora, e o Agora é tudo o que me pertence, embora eu não pertença ao
agora, nem – eu suspeito disso – à época nenhuma. Por isso “viajo” tanto no tempo,
como ninguém que eu conheça. Isso mesmo: “viajo” no tempo como ninguém. Os
riffs de Jim Martin, a voz de Patton – ele faz aniversário no mesmo dia que eu –,
enfim, o contexto geral (a banda em si), numa gravação clássica de sua melhor fase
ao vivo (fevereiro de 1990, quando, nessa época, eu conhecera você, ao vê-la
passeando pela Nove de Julho, perto de sua casa).
Desde que li, numa resenha da extinta revista Bizz (acho que era meados de
1996), sobre uns discos do Genesis (“Seconds Out”, entre eles), quis escrever uma
de minhas cartas-mensagem intitulada “Segundos Fora”. Pois é just like that I’m
feeling now! Tente entender, Adriana. “Segundos Fora” parece ser uma frase
interessantíssima, do ponto de vista da criação literária em favor da subjetividade ou
o oposto, sei lá. Porque tem um “sabor” de décadas de distância como se fossem
apenas segundos a nos separar. Se Deus existe, só ele deverá entender-me. Ou
pessoas com alma de poeta, porque elas reconhecem, na voz do outro escritor, os
sentimentos a tomarem forma e mesmo adquirirem vida própria.
Daqui uns anos estaremos mais distantes ainda de tudo, de todos... e de sei
lá mais o que. Que importa? Já estamos distantes de nós mesmos, certo? Distantes
há décadas. O distante aproxima-se a todos quando o tempo não dita regras; antes,
pelo contrário, é ignorado, deixado num canto, por razões que até a razão
desconhece.
Você deve saber porquê eu estou escrevendo isso, ok? Porque, hoje, faz
vinte e um anos – pra mim, vinte e um segundos – que beijei-te pela última vez,
ficando contigo até uma e meia da manhã. De resto, ignorarei o que possa ser
lembrado. Não fará efeito nenhum. Dia 30 de março de 1992: uma noite eterna em
minha vida. Isso quase já me basta.
Às vezes sonho com tua casa. Agora, graças a algum imbecil, dela não
sobrou nada. Só a lembrança que eu tenho dela. De vinte e um segundos atrás,
quando nos beijamos pela última e derradeira vez. Estou em frente a ela, Adriana.
Em frente a ela, claro, simbolicamente. Mas mesmo assim estou em frente a ela.
Não sei por quanto tempo, afinal, o tempo, para mim, em casos como esse em que
me encontro agora, não diz muita coisa. É o tempo psicológico que mais conta, que
conta mais que qualquer coisa. (Talvez eu me prestasse a ser analisado por algum
psicólogo ou psiquiatra, pra dizer o que há comigo que não consigo me esquecer
disso). Estou ouvindo “The Carpet Crawls”, do Genesis, porque recordo-me de ter
ouvido essa canção em meados de 1996, antes de ir à nossa escola, onde, quatro
anos antes, tu se formaste no 3º Contabilidade C. A referida canção genesiana me
encanta bastante, quase com a mesma força que o fizera pela primeira vez, há
dezessete anos. “Temos que entrar para sair”, canta Phil Collins no refrão. E Tony
Banks no controle dos teclados, eh... Canção clássica dos caras.
Meu sonho, Adriana, era escrever vinte e uma páginas sobre as lembranças
que carrego desses “vinte e um segundos fora”. Não creio ser possível. Se eu
chegar a cinco, tá de bom tamanho. Quem sabe eu passe dessas três?
Vamos “bater uma bolinha”? Preciso te contar umas coisinhas de uns anos
antes. Preparada? Então, vejamos: Em outubro de 1991 eu visitara, com a minha
mãe e a minha irmã, a Feira de Química da nossa escola. Você devia estar
cursando o 2º ou mesmo o 3º, caso tenha repetido. Era uma outra época. (Ainda
é...) A feira era promovida pelos estudantes do 4º ano de Química Noturno. Deus!
Como posso me esquecer! O finado Rehder – antes de tudo acabar. Eu estudava
de manhã.
Eu te via passar pela Nove de Julho, com calças e colete jeans, ambos azuis.
Pensava: “Meu Deus do Céu! Queria namorar com essa loirinha linda...” Tive que
esperar por dois anos até poder me apresentar a você. Lembra de quando eram
umas dez pras sete e eu te perguntei que horas eram, você disse e eu me
apresentei, ao passo que trocamos três beijinhos no rosto? Lembra?
“Temos que entrar para sair”... Entrar na fantasia para sair da loucura do dia a
dia, essa besteira de sermos estritamente racionais. Isso não me agrada muito,
não...
Com o passar de tantas coisas ditas, revelações (a mim mesmo, pois sei que
você jamais saberá disso, oras...), pergunto-me: “haveria como eu escrever vinte e
uma páginas acerca dos vinte e segundos em que estive fora? Como?”
O que esperar quando se passam duas décadas e eu ainda estou lá? O que
esperar quando o mundo virou, tanta coisa aconteceu, tudo mudou tudo e nada
permaneceu no lugar? Eu até estou terminando a minha pós-graduação em Língua
Portuguesa, mas não ignoro cursar Arqueologia no Piauí, para saldar uma dívida
comigo mesmo: ser arqueólogo, viver aventuras em outros países, sei lá, deve ser
isso que faço aqui. A esperança (fantasia) de que viveremos uns duzentos, trezentos
anos nos faz sonhar acordados, até tarde da noite, não? Pelo menos comigo é
assim. (A propósito, enquanto os outros se ligam em baladas, shows até de
madrugada, eu “fervo” com os fones de ouvido em meu escritório, quarto ou
qualquer nome que se queira dar a esse cômodo de casa). E consigo “compor”
meus textos mais pessoais, minhas viagens em torno de minha cabeça pensante.
Ser, estar, viver, sobreviver, amar, deixar... Ano que vem você completa
quarenta anos, certo? Certíssimo! E eu, trinta e sete. Se a gente se reencontrasse –
eu acho isso dificílimo de acontecer, pode apostar que sim – eu gostaria muito que
você se esforçasse para, de forma sincera, reconhecer-me. Eu fui o seu quinto
namorado.
E ainda estou aqui – longe de ti e perto de lugar nenhum. Sentado num sofá,
aqui, nas nuvens. Escrevendo essa carta-que-nunca-chegará-a-ti-mas-mesmo-
assim-eu-a-escrevo. Porque sei que, a despeito de ser eu a única pessoa que irá lê-
la, já é uma dívida, para comigo mesmo, que está sendo paga.
1992 reluta em não ser enterrado pelo tempo e pela poeira do esquecimento.
Quem não quer se lembrar, tá certo, esqueça tudo. Para sempre. Mas deixe quem
não consegue – ou não deseja – esquecer viver no passado tão presente mais uma
vez, só para satisfazer uma vontade de poder fugir um pouco da realidade. Porque o
ontem guarda tantas coisas consigo, tantos “tesouros” em forma de lembranças que
mal podemos nos recordar de tudo o que brilhou tanto. Quem sabe daqui uns 978
anos eu não possa te encontrar pra gente se falar sobre uma vaga memória que
teremos de um casal, formado por um rapaz de quinze anos e uma moça de dezoito,
que, por alguma razão em especial, não puderam prosseguir. Ele tornou-se
professor universitário, depois arqueólogo e ela morreu velhinha, enfermeira padrão.
Deixando netos com seu sobrenome eslavo.
E ele, o rapaz?
Não deixou filhos nem nada. Apenas livros – mais de vinte – que publicou em
vida. E roteiro para quatro, cinco filmes. Ah, claro: alguns discípulos tanto dentro
como fora da universidade.
E essa história para contar. Ou para ser engavetada. Para ser descoberta por
algum de seus discípulos mais fieis. E publicá-la num volume póstumo. Ou guardá-la
em sua gaveta preferida.
Ou, como queria Nietzsche, justamente no fim de “Aurora”: “Ou – ou?”