2015nov02 - princípio da proporcionalidade e a efetivação de um garantismo positivo
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PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E A EFETIVAÇÃO DE UM
GARANTISMO POSITIVO
Entre a proibição do excesso e a proibição da proteção deficiente dos
direitos fundamentais.
O Garantismo Penal é teoria clássica do Direito Penal, construída por
Luigi Ferrajoli, em sua obra “Direito e Razão: teoria do garantismo
penal”. O fundamento basilar da sua teoria reside na garantia dos
direitos fundamentais de cada cidadão frente aos poderes do Estado.
A tese fundamental do garantismo está na rígida observância dos
direitos fundamentais elencados na Constituição.
Ferrajoli afasta o retribucionismo, que enxerga a pena com um fim
em si mesmo e estabelece limites ao poder de punir, uma vez que na
relação processual é o acusado a parte mais frágil e, frente à
magnitude do poder estatal, figura em condição menos favorável.
Nesta seara, a função da pena, portanto, seria a dissuasão sem uma
retribuição vingativa e desproporcional ao criminoso.
Em sua essência, estabelecendo conceitos da proporcionalidade e
isonomia, pretende escudar o imputado de tantas garantias quantas
necessárias para que, no seio da relação processual penal, consagre-
se a paridade de armas e os julgamentos aproximem-se dos ideais de
justiça.
Ferrajoli (2002, p.74-75) estrutura sua obra a partir de dez axiomas
(ou princípios axiológicos fundamentais) e dez teses deles derivadas,
que, segundo o mesmo, definem, quando ordenados e conectados
sistematicamente, o modelo garantista de direito ou de
responsabilidade penal. São os princípios, representados pelas
máximas em latim: a) Nulla poena sine crimine, princípio da
retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao
delito; b) Nullum crimen sine lege, princípio da legalidade, no sentido
lato ou no sentido estrito; c) Nulla lex (poenalis) sine necessitate,
princípio da necessidade ou da economia do direito penal; d) Nulla
necessitas sine injuria, princípio da lesividade ou da ofensividade do
evento; e) Nulla injuria sine actione, princípio da materialidade ou da
exterioridade da ação; f) Nulla actio sine culpa, princípio da
culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; g) Nulla culpa sine
judicio, princípio da jurisdicionariedade, também no sentido lato ou
no sentido estrito; h) Nullum judicium sine acusatione, princípio
acusatório ou da separação entre o juiz e acusação; i) Nulla accusatio
sine probatione, princípio do ônus da prova ou da verificação; e j)
Nulla probatio sine defensione, princípio do contraditório ou da
defesa, ou da falseabilidade.
Observados estes postulados, pode-se afirmar, sem maiores
dificuldades, que aConstituição Federal brasileira de 1988 é
garantista, assentando seus pilares nos direitos fundamentais dos
indivíduos e na dignidade da pessoa humana, conforme se extrai do
seu artigo 1º, III, que define a dignidade como princípio fundamental
da República.
O garantismo penal é comumente citado na doutrina e jurisprudência
pelo seu aspecto negativo, qual seja, a limitação ao arbítrio do Estado
frente aos direitos e garantias fundamentais e a proteção do indivíduo
contra excessos de poder, sobretudo em razão do poder punitivo
estatal.
Contudo, o garantismo, a partir dos conceitos da proporcionalidade
que também integram o ordenamento jurídico pátrio, não pode ser
enxergado apenas sob essa perspectiva de restrição ao poder estatal.
Da mesma maneira que existe um viés negativo, relacionado à
abstenção do ente estatal para preservação das liberdades públicas,
necessário entender a sua perspectiva positiva, consubstanciada num
dever de agir para salvaguardar os interesses mais importantes da
sociedade.
Nayara Caixeta e Joamar Nunes (2014), citando ROXIN (1998),
afirmam:
O direito penal serve simultaneamente para limitar o poder de
intervenção do Estado e para combater o crime. Protege, portanto, o
indivíduo de uma repressão desmesurada do Estado, mas protege
igualmente a sociedade e os seus membros dos abusos do indivíduo.
Estes são os dois componentes do direito penal: o correspondente ao
Estado de Direito e protetor da liberdade individual e o
correspondente ao Estado Social e preservador do interesse social
mesmo à custa da liberdade do indivíduo
No ordenamento brasileiro, o princípio da proporcionalidade atua
como verdadeiro guardião dos direitos fundamentais. A
proporcionalidade não se comporta apenas como um critério ou uma
regra diante de lesões e conflitos entre direitos, mas é princípio
básico do Estado de Direito, na harmonização de interesses e como
instrumento necessário para a efetivação/aplicação da Constituição. O
princípio da proporcionalidade pode ser definido como “princípio dos
princípios”, e também como garantia e pressuposto da existência dos
direitos fundamentais. (CAIXETA e NUNES, 2014)
Seu conceito contempla duas noções. A primeira é o garantismo
negativo, a proibição do excesso (Ubermassberbot), que proíbe opção
por toda e qualquer medida que seja excessivamente gravosa para o
direito fundamental subordinado no caso concreto. A segunda é a
proibição da proteção deficiente (Untermassverbot). Esta, menos
conhecida, pressupõe que, a partir do momento que um determinado
ordenamento jurídico se predispõe a proteger determinado direito
como fundamental, a proteção do bem jurídico defendido por esse
direito não pode ser insuficiente.
A Constituição Federal de 1988exige que a proteção dos direitos
fundamentais seja feita de duas formas. De um primeiro modo,
protegendo o cidadão frente ao agir do Estado; de outro, por meio do
próprio Estado no exercício do seu direito de punir. Não somente o
acusado tem o direito de ter seus direitos assegurados, como,
igualmente, o cidadão tem o direito de ver seus direitos fundamentais
resguardados, diante da violência de outros indivíduos. Em síntese,
essa concepção permite inferir que o Estado está obrigado não
apenas a observar os direitos de qualquer indivíduo em face das
investidas do Poder Público (direitos de defesa), mas também a
garantir os direitos fundamentais contra agressão propiciada por
terceiros.
Alguns dispositivos constantes do art. 5º, da Constituição Federal,
podem ser mencionados como exemplo do amplo elenco de normas
que não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a
criminalização de condutas. Art. 5º - Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida,
à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, nos termos
seguintes: XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos
direitos e liberdades fundamentais; XLII - a prática do racismo
constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de
reclusão, nos termos da lei; XLIII - a lei considerará crimes
inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura,
o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os
definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os
mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos
armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado
Democrático.
A propósito do princípio da proporcionalidade, não há como
questionar a sua existência, embora implícita, na Constituição
Federal de 1988. Dessa forma, também não há como negar a
aplicação da sua vertente positiva no atual Estado Democrático e
Social de Direito, no qual se exige uma atuação do Estado com o fim
de proteger de forma efetiva os bens jurídicos. A Carta Magna,
apesar de não trazer expressamente o princípio da proibição da
proteção deficiente, prevê a necessidade de proteção de
determinados bens e valores e, ainda, traz um rol de bens com
relevância constitucional e as indicações formais criminalizadoras.
(FREITAS, 2006)
Nesse sentido, é esclarecedora a observação de Sarlet acerca da
outra face do princípio da proporcionalidade, relacionada à proibição
da proteção deficiente:
(...) por outro lado o Estado – também na esfera penal – poderá
frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto
é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente
exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese, por sua vez,
vinculada (pelo menos em boa parte) à problemática das omissões
inconstitucionais. É nesse sentido que – como contraponto à assim
designada proibição de excesso – expressiva doutrina e inclusive
jurisprudência têm admitido a existência daquilo que se convencionou
batizar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente
implementação dos deveres de proteção do Estado e como tradução
livre do alemão I).
Sobre este tema, da doutrina brasileira emerge uma corrente
denominada Garantismo Penal Integral, que tem como defensores
Douglas Fischer, Vladimir Aras e Daniel de Resende Salgado, que
aponta para a necessidade de se praticar um garantismo observando
suas perspectivas positiva e negativa. Para eles, enxergar a
persecução penal unicamente sob o ponto de vista das garantias do
acusado é prejudicial à ordem social e isso consiste num "garantismo
hiperbólico monocular", pois é protecionista em excesso e despreza
uma face do princípio da proporcionalidade. Afirmam que o
garantismo da forma que é aplicado não é o mesmo idealizado por
Ferrajoli, mas uma distorção da sua teoria.
Sobre o Garantismo Penal Integral, Douglas Fischer leciona:
Precisamos ser sinceros e incisivos (sem qualquer demérito a quem
pensa em contrário): têm-se encontrado muitas e reiteradas
manifestações doutrinárias e jurisprudenciais com simples referência
aos ditames do “garantismo penal”, sem que se compreenda, na
essência, qual a extensão e os critérios de sua aplicação. Em muitas
situações, ainda, há distorção dos reais pilares fundantes da doutrina
de Luigi Ferrajoli (quiçá pela compreensão não integral dos seus
postulados). Daí que falamos que se tem difundido um garantismo
penal unicamente monocular e hiperbólico, evidenciando-se de forma
isolada a necessidade de proteção apenas dos direitos dos cidadãos
que se veem processados ou condenados. Relembremos: da leitura
que fizemos, a grande razão histórica para o surgimento do
pensamento garantista (que aplaudimos e concordamos, insista-se)
decorreu de se estar diante de um Estado em que os direitos
fundamentais não eram minimamente respeitados, especialmente
diante do fato do sistema totalitário vigente na época. Como muito
bem sintetizado por Paulo Rangel, (4) a teoria do garantismo penal
defendida por Luigi Ferrajoli é originária de um movimento do uso
alternativo do direito nascido na Itália nos anos setenta por
intermédio de juízes do grupo Magistratura Democrática (dentre eles
Ferrajoli), sendo uma consequência da evolução histórica dos direitos
da humanidade que, hodiernamente, considera o acusado não como
objeto de investigação estatal, mas sim como sujeito de direitos,
tutelado pelo Estado, que passa a ter o poder-dever de protegê-lo,
em qualquer fase do processo (investigatório ou propriamente
punitivo).
Sucede que a ideia que se extrai do Garantismo Penal de Ferrajoli,
consoante os axiomas já mencionados, é que sua construção,
naturalmente, já contempla a harmonia esperada entre pretensão
punitiva e garantias do acusado. Sua teoria tem o objetivo de
equilibrar o acusado na relação processual com o Estado, quando
este último busca satisfazer uma pretensão punitiva. Elmir Duclerc
(2014, p. 06) afiança que, pela teoria de Ferrajoli, "seria alcançado
equilíbrio na relação custo/benefício da intervenção penal, com a
imposição de certos limites ao poder punitivo, mediante de um
sistema de garantias penais e processuais penais". Isso, contudo,
nada tem a ver com proteger em excesso o sujeito e impedir que o
Estado consiga, mesmo quando legitimado pela ofensa a bens
jurídicos importantes, aferida no âmbito do processo, atribuir a
responsabilidade ao autor do delito.
O Garantismo Penal, consagrado por Ferrajoli, propõe um equilíbrio
fundamental entre a atividade do estado no exercício do seu direito
concreto de punir e as garantias do acusado na persecução penal.
Não integra a sua teoria a necessidade de que as garantias
individuais sobreponham o jus puniendi, ou tampouco que,
ultrapassando as barreiras dos direitos fundamentais, em prol de uma
garantia da ordem, use o estado do seu poder para, cegamente,
punir a qualquer custo, transformando o acusado num inimigo da
sociedade, tal como proposto por Günter Jakobs em sua teoria da
funcionalidade sistêmica.
Se por um lado o acusado tem direitos e garantias fundamentais que
impedem o excesso de poder do Estado, por outro, não se pode
esquecer que a sociedade tem, como um todo, direito à vida,
liberdade, segurança e propriedade. A proibição do excesso
(Ubermassverbot) e a proibição da proteção deficiente
(Untermassverbot) existem, portanto, para que ambos os valores
sejam harmonizados. Que o sujeito não seja transformado em objeto
dos processos estatais, nem tenha injustamente suprimidas suas
liberdades, mas que os bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal
sejam suficientemente protegidos diante de violações concretas. Os
direitos fundamentais desempenham não apenas uma função
limitadora do poder estatal, mas impõem a este um dever concreto
de tutela perante os cidadãos.
Para Lênio Streck (2007), a maioria da doutrina e da jurisprudência
brasileira que trata do tema, ainda não se deu conta de que está
trabalhando com o princípio da proporcionalidade sob um único
horizonte.
com a hipótese – para mim, ahistórica e atemporal – do garantismo
negativo, em que a violação da proporcionalidade se dá pela
proibição de excesso (Ubermassverbot), esquecendo a relevante
circunstância de que o estado pode via a violar o princípio da
proporcionalidade na hipótese de não proteger suficientemente
direitos fundamentais de terceiros (garantismo positivo),
representado pela expressão alemã Untermassverbot (STRECK, 2007,
p. 100).
Nayara Firmes Caixeta e Joamar Gomes Vieira Nunes (2014, p. 37),
sobre o garantismo positivo e o papel do Estado na sua proteção,
aduzem:
Ademais, o Estado, possuindo a função de protetor dos direitos
fundamentais, não tem atualmente apenas a função de proteção
contra o arbítrio, mas também a obrigatoriedade de concretizar os
direitos prestacionais e, ao lado deste, a obrigação de proteger os
indivíduos contra agressões provenientes de comportamentos
delitivos, razão pela qual a segurança passa a fazer parte dos direitos
fundamentais (art. 5º. Caput, da Constituição Federal). Portanto, a
tarefa do novo modelo de Estado, prevista na CF/88, é a de dar
resposta para as necessidades de segurança de todos os direitos,
incluindo-se nesse rol também os prestacionais por parte do Estado,
direitos econômicos, sociais e culturais, e não somente daquela parte
de direitos denominados de prestação de proteção, em particular
contra agressões provenientes de comportamentos delitivos de
determinadas pessoas. Isso significa afirmar e admitir que
a Constituição determina - explícita ou implicitamente - que a
proteção dos direitos fundamentais deve ser feita de duas formas:
em uma, protege o cidadão frente ao Estado; em outra, o faz por
meio do Estado – e inclusive através do direito punitivo – uma vez
que o cidadão também tem o direito de ver seus direitos
fundamentais protegidos, em face da violência de outros indivíduos.
Aos poucos, o princípio da Proibição da Proteção Deficiente e o
garantismo positivo vem sendo utilizado nos tribunais para
resguardar direitos fundamentais. O Supremo Tribunal Federal, no
julgamento do RE nº. 418.376-5, datado de 09.02.06, proferiu a
primeira decisão em que o citado princípio serviu como base para
afastar a aplicação de uma causa extintiva da punibilidade. O Ministro
Gilmar Mendes, como voto vencedor, decidiu impor a sanção penal ao
réu, sob o fundamento de que,
de outro modo, estar-se-ia a blindar, por meio de norma penal
benéfica, situação fática indiscutivelmente repugnada pela sociedade,
caracterizandose típica hipótese de proteção insuficiente por parte do
Estado, num plano mais geral, e do Judiciário, num plano mais
específico.
E, acerca do princípio da proporcionalidade, trouxe o seguinte
entendimento:
Quanto à proibição de proteção insuficiente, a doutrina vem
apontando para uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do
garantismo negativo (que se consubstancia na proteção contra os
excessos do Estado) já consagrado pelo princípio da
proporcionalidade. A proibição de proteção insuficiente adquire
importância na aplicação dos direitos fundamentais de proteção, ou
seja, na perspectiva do dever de proteção, que se consubstancia
naqueles casos em que o Estado não pode abrir mão da proteção do
direito penal para garantir a proteção de um direito fundamental. (...)
conferir à situação dos presentes autos o status de união estável,
equiparável a casamento, para fins de extinção da punibilidade (no
termos do art. 107, VII, do Código Penal) não seria consentâneo com
o princípio da proporcionalidade no que toca à proibição de proteção
insuficiente. Isso porque todos os Poderes do Estado, dentre os quais
evidentemente está o Poder Judiciário, estão vinculados e obrigados a
proteger a dignidade das pessoas.
Conclui-se, deste modo, que não há, no sistema constitucional
brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto,
visto que encontram limites nos demais direitos igualmente
consagrados pelo texto Constitucional. Assegura-se, assim, a
coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou
garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com
desrespeitos aos direitos e garantias de terceiros. Como bem
lecionam Gilmar e Paulo Gonet Branco (2012) os direitos
fundamentais também podem ser objeto de limitações, não sendo,
pois, absolutos. Outros direitos fundamentais e valores com sede
constitucional podem limitá-los.