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MATERIAL DE APOIO DIREITO CIVIL DIREITO DE FAMÍLIA Apostila 03 Prof. Pablo Stolze Gagliano 1. Comentários ao art. 1647, CC O art, 1647 do Código Civil merece referência especial: Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: (grifos nossos) I - alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis; II - pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos; III - prestar fiança ou aval; (inovação legal) IV - fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação. Parágrafo único. São válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelecerem economia separada. Note-se que, mesmo casados no regime de participação final nos aquestos, a anuência do outro cônjuge faz-se necessária (ressalvado, claro, suprimento judicial ou se os cônjuges houverem dispensado a necessidade de outorga, no pacto antenupcial art. 1.656, CC).

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MATERIAL DE APOIO

DIREITO CIVIL

DIREITO DE FAMÍLIA

Apostila 03

Prof. Pablo Stolze Gagliano

1. Comentários ao art. 1647, CC

O art, 1647 do Código Civil merece referência especial:

Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do

outro, exceto no regime da separação absoluta: (grifos nossos)

I - alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis;

II - pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos;

III - prestar fiança ou aval; (inovação legal)

IV - fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar

futura meação.

Parágrafo único. São válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou

estabelecerem economia separada.

Note-se que, mesmo casados no regime de participação final nos aquestos, a anuência do outro cônjuge

faz-se necessária (ressalvado, claro, suprimento judicial ou se os cônjuges houverem dispensado a

necessidade de outorga, no pacto antenupcial – art. 1.656, CC).

Com efeito, de acordo com a mais abalizada doutrina, “separação absoluta” deve ser entendida como

sendo a separação convencional, ou seja, escolhida no pacto antenupcial (nesse sentido, NELSON NERY

JR. e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY, Novo Código Civil e Legislação Extravagante Anotados, SP, RT,

2002).

E a razão é lógica e óbvia.

Isso porque, na separação obrigatória, é razoável exigir-se a outorga, considerando-se a necessidade de

se beneficiar ou proteger o outro cônjuge, por conta da aplicação da S. 377, STF, estudada na apostila

anterior.

Nesse sentido, julgado do próprio STJ:

RECURSO ESPECIAL - AÇÃO ANULATÓRIA DE AVAL - OUTORGA CONJUGAL PARA CÔNJUGES CASADOS

SOB O REGIME DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS - NECESSIDADE - RECURSO PROVIDO.

1. É necessária a vênia conjugal para a prestação de aval por pessoa casada sob o regime da separação

obrigatória de bens, à luz do artigo 1647, III, do Código Civil.

2. A exigência de outorga uxória ou marital para os negócios jurídicos de (presumidamente) maior

expressão econômica previstos no artigo 1647 do Código Civil (como a prestação de aval ou a alienação

de imóveis) decorre da necessidade de garantir a ambos os cônjuges meio de controle da gestão

patrimonial, tendo em vista que, em eventual dissolução do vínculo matrimonial, os consortes terão

interesse na partilha dos bens adquiridos onerosamente na constância do casamento.

3. Nas hipóteses de casamento sob o regime da separação legal, os consortes, por força da Súmula n.

377/STF, possuem o interesse pelos bens adquiridos onerosamente ao longo do casamento, razão por

que é de rigor garantir-lhes o mecanismo de controle de outorga uxória/marital para os negócios

jurídicos previstos no artigo 1647 da lei civil.

4. Recurso especial provido.

(REsp 1163074/PB, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/12/2009, DJe

04/02/2010)

Separação absoluta, por consequência, em nosso sentir, deve ser a convencional.

Art. 1.648. Cabe ao juiz, nos casos do artigo antecedente, suprir a outorga, quando um dos cônjuges a

denegue sem motivo justo, ou lhe seja impossível concedê-la.

Art. 1.649. A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art. 1.647), tornará anulável

o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a

sociedade conjugal.

Parágrafo único. A aprovação torna válido o ato, desde que feita por instrumento público, ou particular,

autenticado.

Art. 1.650. A decretação de invalidade dos atos praticados sem outorga, sem consentimento, ou sem

suprimento do juiz, só poderá ser demandada pelo cônjuge a quem cabia concedê-la, ou por seus

herdeiros.

Em conclusão, vale transcrever a S. 332 do STJ, referente à fiança prestada pelo cônjuge:

A fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a ineficácia total da garantia.

(CORTE ESPECIAL, julgado em 05.03.2008, DJ 13.03.2008 p. 1)

2. União Homoafetiva1

Correntes que coexistiam no Brasil:

a) trata-se de entidade familiar – O art. 226 da CF é uma norma geral de inclusão, não

sendo admissível excluir-se uma relação estável calcada na afetividade (PAULO LOBO).

Deve-se reconhecer direitos de família (alimentos) e sucessórios (herança)2;

1 Ver DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. Porto Alegre: Livraria do

Advogado. IMPORTANTE: O tema “união estável” foi objeto de aula própria, neste semestre,

ministrada pelo Prof. André Barros.

b) trata-se de mera sociedade de fato, regida pela Direito Obrigacional (S. 380, STF).

Os ministros do Supremo Tribunal Federal, por sua vez, em 2011, reconhecerem a união estável

homoafetiva como forma de família:

Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgarem a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)

4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, reconheceram a união

estável para casais do mesmo sexo. As ações foram ajuizadas na Corte, respectivamente, pela

Procuradoria-Geral da República e pelo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral.

O julgamento começou na tarde de ontem (4), quando o relator das ações, ministro Ayres Britto, votou

no sentido de dar interpretação conforme a Constituição Federal para excluir qualquer significado do

artigo 1.723 do Código Civil que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como

entidade familiar.

O ministro Ayres Britto argumentou que o artigo 3º, inciso IV, da CF veda qualquer discriminação em

virtude de sexo, raça, cor e que, nesse sentido, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função

de sua preferência sexual. “O sexo das pessoas, salvo disposição contrária, não se presta para

desigualação jurídica”, observou o ministro, para concluir que qualquer depreciação da união estável

homoafetiva colide, portanto, com o inciso IV do artigo 3º da CF.

Os ministros Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de

Mello e Cezar Peluso, bem como as ministras Cármen Lúcia Antunes Rocha e Ellen

Gracie, acompanharam o entendimento do ministro Ayres Britto, pela procedência das ações e com

efeito vinculante, no sentido de dar interpretação conforme a Constituição Federal para excluir qualquer

significado do artigo 1.723 do Código Civil que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do

mesmo sexo como entidade familiar.

Na sessão de quarta-feira, antes do relator, falaram os autores das duas ações – o procurador-geral da

República e o governador do Estado do Rio de Janeiro, por meio de seu representante –, o advogado-

geral da União e advogados de diversas entidades, admitidas como amici curiae (amigos da Corte).

2 O próprio TSE consagrou entendimento avançado: Registro de candidato. Candidatura ao cargo de prefeito. Relação estável homossexual com a prefeita reeleita do município. Inelegibilidade. (CF 14 § 7º). Os sujeitos de uma relação estável homossexual, à semelhança do que ocorre com os de relação

estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art. 14, § 7º, da Constituição Federal. Recurso a que se dá provimento. (TSE – Resp Eleitoral 24564 – Viseu/PA – Rel. Min. Gilmar Mendes – j. 01/10/2004).

Ações

A ADI 4277 foi protocolada na Corte inicialmente como ADPF 178. A ação buscou a declaração de

reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Pediu, também, que

os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis fossem estendidos aos

companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo.

Já na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, o governo do Estado do Rio

de Janeiro (RJ) alegou que o não reconhecimento da união homoafetiva contraria preceitos

fundamentais como igualdade, liberdade (da qual decorre a autonomia da vontade) e o princípio da

dignidade da pessoa humana, todos da Constituição Federal. Com esse argumento, pediu que o STF

aplicasse o regime jurídico das uniões estáveis, previsto no artigo 1.723 do Código Civil, às uniões

homoafetivas de funcionários públicos civis do Rio de Janeiro.

Fonte: http://www.stf.jus.br/portal/geral/verImpressao.asp acessado em 22 de junho de 2011.

Por fim, lembrando MARIA BRAUNER (in Direitos Fundamentais do Direito de Família, coordenado por

Belmiro Welter e Rolf Madaleno, Livraria do Advogado, 2004, págs. 267-268):

“A aceitação recente da união afetiva entre iguais no âmbito do Direito de Família representa uma

nova face do conceito de cidadania, transpondo a barreira do interdito, buscando a afirmação da

diferença a partir da manifestação da liberdade de expressão e do direito ao livre desenvolvimento da

personalidade”.

A partir deste julgamento, e, bem assim, do REsp 1.183.378/RS, o casamento homoafetivo passou a

ser admitido.

Neste sentido, recente Resolução do CNJ:

Resolução nº 175, de 14 de maio de 2013

Texto original

Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento

civil, ou de conversão de união estável em casamento,

entre pessoas de mesmo sexo.

O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições constitucionais e

regimentais,

CONSIDERANDO a decisão do plenário do Conselho Nacional de Justiça, tomada no julgamento do Ato

Normativo no 0002626-65.2013.2.00.0000, na 169ª Sessão Ordinária, realizada em 14 de maio de 2013;

CONSIDERANDO que o Supremo Tribunal Federal, nos acórdãos prolatados em julgamento da ADPF

132/RJ e da ADI 4277/DF, reconheceu a inconstitucionalidade de distinção de tratamento legal às uniões

estáveis constituídas por pessoas de mesmo sexo;

CONSIDERANDO que as referidas decisões foram proferidas com eficácia vinculante à administração

pública e aos demais órgãos do Poder Judiciário;

CONSIDERANDO que o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento do RESP 1.183.378/RS, decidiu

inexistir óbices legais à celebração de casamento entre pessoas de mesmo sexo;

CONSIDERANDO a competência do Conselho Nacional de Justiça, prevista no art. 103-B, da Constituição

Federal de 1988;

RESOLVE:

Art. 1º É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de

casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.

Art. 2º A recusa prevista no artigo 1º implicará a imediata comunicação ao respectivo juiz

corregedor para as providências cabíveis.

Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.

Ministro Joaquim Barbosa

Fonte: http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/resolucoespresidencia/24675-

resolucao-n-175-de-14-de-maio-de-2013,

acessado em 01 de julho de 2013.

3. Parentesco3

Com base no pensamento de MARIA HELENA DINIZ, poderíamos dizer que o parentesco é a relação

vinculatória não só entre pessoas que descendem umas das outras ou de um mesmo tronco comum,

mas também entre o cônjuge ou companheiro e os parentes do outro e entre adotante a adotado

(Curso de Direito Civil Brasileiro – Direito de Família, Ed. Saraiva). Na mesma linha, poderá haver

parentesco nas relações nascidas da socioafetividade no campo da filiação.

O parentesco poderá ser:

a) natural ou consangüíneo;

b) por afinidade e

c) civil.

Em sala de aula, deverão ser desenvolvidos esses conceitos.4

Pensamos, finalmente, ainda ser atual o entendimento do STJ que não reconhece dever de

alimentar entre parentes por afinidade:

ALIMENTOS A OBRIGAÇÃO ALIMENTAR DECORRE DA LEI, NÃO SE PODENDO AMPLIAR A PESSOAS POR

ELA NÃO CONTEMPLADOS. INEXISTE ESSE DEVER EM RELAÇÃO A NORA.

(RMS .957/BA, Rel. Ministro EDUARDO RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 09.08.1993, DJ

23.08.1993 p. 16575)

3 Tema ministrado, neste semestre, pelo querido Prof. André Barros.

4 Lembramos, no entanto, que a adoção é tratada em outra grade, dedicada ao estudo do

Direito da Criança e do Adolescente.

E já que tocamos no tema “parentesco por afinidade”, a ser analisado em sala, veja o teor da Lei n.

11.924 de 2009:

LEI Nº 11.924, DE 17 DE ABRIL DE 2009.

Altera o art. 57 da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973, para autorizar o enteado ou a enteada a adotar o nome da família do padrasto ou da madrasta.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o Esta Lei modifica a Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973 – Lei de Registros Públicos, para autorizar o enteado ou a enteada a adotar o nome de família do padrasto ou da madrasta, em todo o território nacional.

Art. 2o O art 57 da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973, passa a vigorar acrescido do seguinte § 8o:

“Art. 57. .....................................................................

.............................................................................................

§ 8o O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2o e 7o deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família.” (NR)

Art. 3o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 17 de abril de 2009; 188o da Independência e 121o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Tarso Genro

4. Poder Familiar

Trata-se de um verdadeiro munus, consistente em um conjunto de poderes (direitos e deveres),

exercitáveis em prol do interesse existencial dos filhos.

Este poder familiar não se mantém em face de filhos maiores e capazes.

A esse respeito, leia-se interessante julgado do STJ:

Habeas Corpus. Internação involuntária em clínica psiquiátrica. Ato de particular. Ausência de

provas e/ ou indícios de perturbação mental. Constrangimento ilegal delineado. Binômio poder-

dever familiar. Dever de cuidado e proteção. Limites. Extinção do poder familiar. Filha maior e

civilmente capaz. Direitos de personalidade afetados.

- É incabível a internação forçada de pessoa maior e capaz sem que haja justificativa proporcional

e razoável para a constrição da paciente.

- Ainda que se reconheça o legítimo dever de cuidado e proteção dos pais em relação aos filhos, a

internação compulsória de filha maior e capaz, em clínica para tratamento psiquiátrico, sem que

haja efetivamente diagnóstico nesse sentido, configura constrangimento ilegal.

Ordem concedida.

(HC 35.301/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03.08.2004, DJ

13.09.2004 p. 231)

Veja, no tópico “Textos Complementares”, excelente artigo do professor PAULO LÔBO a respeito

do Poder Familiar.

É a nossa recomendação no seu estudo para concurso.

5. Responsabilidade Civil nas Relações Afetivas

Trata-se de tema bastante polêmico, e que ganhou fôlego com a disciplina dos direitos da

personalidade, inaugurada pelo CC de 2002.

Sem pretender esgotar o raio da abrangência da matéria, poderíamos centrar o nosso esforço

analítico na:

a) resp. civil no casamento e na união estável;

b) resp. civil por abandono afetivo na filiação.

Sobre a primeira situação, o STJ já se pronunciou a respeito:

Separação judicial. Proteção da pessoa dos filhos (guarda e interesse). Danos morais (reparação).

Cabimento.

1. O cônjuge responsável pela separação pode ficar com a guarda do filho menor, em se tratando

de solução que melhor atenda ao interesse da criança. Há permissão legal para que se regule por

maneira diferente a situação do menor com os pais. Em casos tais, justifica-se e se recomenda que

prevaleça o interesse do menor.

2. O sistema jurídico brasileiro admite, na separação e no divórcio, a indenização por dano moral.

Juridicamente, portanto, tal pedido é possível: responde pela indenização o cônjuge responsável

exclusivo pela separação.

3. Caso em que, diante do comportamento injurioso do cônjuge varão, a Turma conheceu do

especial e deu provimento ao recurso, por ofensa ao art. 159 do Cód. Civil, para admitir a

obrigação de se ressarcirem danos morais.

(RESP 37.051/SP, Rel. Ministro NAVES, TERCEIRA TURMA, julgado em 17.04.2001, DJ 25.06.2001

p. 167)

Já o abandono afetivo na filiação, poderá, em nosso sentir, autorizar a aplicação dos princípios da

responsabilidade civil, sem que isso signifique a “monetarização” da relação de afeto.

Assim pensamos desde que se entenda que a indenização imposta ao pai ou mãe que abandona o

seu filho, em franco desrespeito ao dever legal de educação (que pressupõe amor) consiste em

uma resposta que o novo Direito Civil dá, manifestando repulsa a este tipo de comportamento,

violador do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Trata-se, em nosso sentir, de especial aplicação da teoria do desestímulo.

A função da indenização, pois, teria condão eminentemente pedagógico.

Abaixo, no tópico “textos complementares”, não deixe de ler o excelente texto da querida

professora GISELDA HIRONAKA a respeito do tema.

Em um primeiro momento, no entanto, o STJ negou a aplicação da teoria, no campo da filiação:

RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS.

IMPOSSIBILIDADE.

1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à

aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de

reparação pecuniária.

2. Recurso especial conhecido e provido.

(Resp 757.411/MG, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em

29.11.2005, DJ 27.03.2006 p. 299)

DIREITO CIVIL. PÁTRIO PODER. DESTITUIÇÃO POR ABANDONO AFETIVO.

POSSIBILIDADE. ART. 395, INCISO II, DO CÓDIGO CIVIL C/C ART. 22 DO ECA. INTERESSES DO

MENOR. PREVALÊNCIA.

- Caracterizado o abandono efetivo, cancela-se o pátrio poder dos pais biológicos. Inteligência do

Art. 395, II do Código Bevilacqua, em conjunto com o Art. 22 do Estatuto da Criança e do

Adolescente.

Se a mãe abandonou o filho, na própria maternidade, não mais o procurando, ela jamais exerceu o

pátrio poder.

(Resp 275.568/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em

18.05.2004, DJ 09.08.2004 p. 267)

E, no STF, a Min. Ellen Gracie, julgando o RE 567164 (referente à responsabilidade civil por

abandono afetivo), negou-lhe seguimento:

Quarta-feira, 27 de Maio de 2009

Ministra arquiva recurso sobre abandono afetivo por não existir ofensa direta à Constituição

A ministra Ellen Gracie, do Supremo Tribunal Federal (STF), arquivou Recurso Extraordinário (RE 567164)

em que A.B.F. pedia ressarcimento por danos morais em razão de abandono familiar. Ele alegava ofensa

aos artigos 1º, 5º, incisos V e X, e 229 da Constituição Federal.

O autor questionava decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que ao dar provimento a um recurso

especial concluiu, com base no artigo 159 do Código Civil de 1916, a inviabilidade do reconhecimento de

indenização por danos morais decorrente de abandono afetivo.

“O apelo extremo é inviável, pois esta Corte fixou o entendimento segundo o qual a análise sobre a

indenização por danos morais limita-se ao âmbito de interpretação de matéria infraconstitucional,

inatacável por recurso extraordinário”, explicou a ministra. Ela avaliou que, conforme o ato contestado, a

legislação pertinente prevê punição específica, ou seja, perda do poder familiar, nos casos de abandono

do dever de guarda e educação dos filhos.

Assim, Ellen Gracie afastou a possibilidade de analisar o pedido de reparação pecuniária por abandono

moral, pois isto demandaria a análise dos fatos e das provas contidas nos autos, bem como da legislação

infraconstitucional que disciplina a matéria (Código Civil e Estatuto da Criança e do Adolescente), o que é

inviável por meio de recurso extraordinário. Para a ministra Ellen Gracie, o caso “não tem lugar nesta via

recursal considerados, respectivamente, o óbice da Súmula 279, do STF, e a natureza reflexa ou indireta

de eventual ofensa ao texto constitucional”.

Ao citar parecer da Procuradoria Geral da República, a ministra asseverou que conforme o Código Civil e

o ECA, eventual lesão à Constituição Federal, se existente, “ocorreria de forma reflexa e demandaria a

reavaliação do contexto fático, o que, também, é incompatível com a via eleita”. Dessa forma, a ministra

Ellen Gracie negou seguimento (arquivou) ao recurso extraordinário.

EC/LF

Fonte: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=108739 acessado em 05 de

julho de 2009

Mas, recentemente, todavia, o STJ veiculou a seguinte noticia, no sentido da aceitação da tese:

É cabível indenização por abandono afetivo

“Amar é faculdade, cuidar é dever! Com estas palavras da ministra Nancy Andrigui, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, de forma inédita, que é possível exigir indenização por dano moral por causa de abandono afetivo dos pais” (...).

Confira a íntegra do noticiário no: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=448&tmp.texto=105696&tmp.area_anterior=44&tmp.argumento_pesquisa=abandono%20afetivo# (acessado em 11 de junho de 2012)

Nesse contexto, apenas sob o prisma teórico, e aprofundando a pesquisa: a perda do poder familiar

imposta ao pai que ignora moral e espiritualmente a sua prole seria, para ele, uma sanção ou um

favor?...

Não seria o caso de o nosso Direito, no futuro, consolidar o entendimento no sentido da aplicação a

função social da responsabilidade civil em casos como esse?

Vale a pena refletir...

E acompanhar o debate em torno do tema...

Em conclusão, vale registrar que o professor GUILHERME DE OLIVEIRA, autoridade internacional em

Direito de Família, analisando o tema, conclui:

“Embora não haja jurisprudência clara sobre o assunto, suponho, julgo que é aceitável defender que o

abandono afetivo – quer se traduza em descumprimento dos deveres jurídicos, quer integrados no poder

parental e que provoque danos não-patrimoniais na pessoa do filho – pode dar lugar à obrigação de

indenizar. Como em qualquer outra ação de responsabilidade civil, é preciso provar o descumprimento, a

culpa, o dano e a causalidade”

(Boletim iBDFAM 4 – Setembro/Outubro de 2006)

OBS.:

Pode ser que, em breve, a matéria seja uniformizada (veja o texto abaixo, do Min. Luis Felipe Salomão,

publicado no excelente site do CONJUR, cuja íntegra encontra-se no final da apostila).

Acompanhe a jurisprudência!

MOMENTO PROPÍCIO

STJ vai uniformizar jurisprudência sobre abandono afetivo

08 de abril de 2014, 10:15h

Por Luis Felipe Salomão

Abandono afetivo é termo hoje encontrado com relativa frequência no âmbito forense e nos mais

variados manuais de direito de família.

Em resumo, consiste na indiferença afetiva dispensada por um genitor a sua prole, um desajuste familiar

que sempre existiu na sociedade e, decerto, continuará a existir, desafiando soluções de terapeutas e

especialistas.

O que é relativamente recente, contudo, é a transferência dessa contenda própria do ambiente familiar

para as salas de audiências e tribunais país afora, essencialmente sob a forma de indenizações

pecuniárias buscadas pelo filho em face do pai, ao qual se imputa o ilícito de não comparecer aos atos da

vida relacionados ao desenvolvimento social e psíquico de seu descendente.

O Superior Tribunal de Justiça terá a inédita oportunidade de uniformizar o entendimento acerca do

tema por ocasião do julgamento dos EREsp 1.159.242/SP, de relatoria do eminente ministro Marco Buzzi,

previsto para esta quarta-feira (9/4), na 2ª Seção - Direito Privado.

A primeira vez em que a corte deliberou sobre o tema foi no julgamento do REsp (...)

Luis Felipe Salomão é ministro do Superior Tribunal de Justiça.

Revista Consultor Jurídico, 08 de abril de 2014, 10:15h

Fonte: http://www.conjur.com.br/2014-abr-08/luis-felipe-salomaostj-uniformizar-entendimento-

abandono-efetivo?imprimir=1 acessado em 24 de junho de 2014.

6. TEXTOS COMPLEMENTARES

6.1. DO PODER FAMILIAR

Paulo Lôbo* (fonte: www.ibdfam.com.br)

1. Poder familiar ou autoridade parental? – 2. Conteúdo básico do poder familiar – 3. Regulação do

poder familiar no novo Código Civil comparada com a do Código de 1916 – 4. A interpretação

conforme com a Constituição – 5. Regras sobreviventes do Estatuto da Criança e do Adolescente

sobre “pátrio poder” – 6. Titulares do poder familiar – 7. Exercício do poder familiar – 8. Suspensão

do poder familiar – 9. Extinção do poder familiar – 10. O castigo “moderado” dos filhos.

1. PODER FAMILIAR OU AUTORIDADE PARENTAL?

O poder familiar é a denominação que adotou o novo Código para o pátrio poder, tratado no

Código de 1916. Ao longo do século XX, mudou substancialmente o instituto, acompanhando a

evolução das relações familiares, distanciando-se de sua função originária – voltada ao exercício

de poder dos pais sobre os filhos – para constituir um múnus, em que ressaltam os deveres.

A denominação ainda não é a mais adequada, porque mantém a ênfase no poder. Todavia, é

melhor que a resistente expressão “pátrio poder”, mantida pelo Estatuto da Criança e do

Adolescente (Lei n. 8.069/90), somente derrogada com o novo Código Civil. Com a implosão, social

e jurídica, da família patriarcal, cujos últimos estertores deram-se antes do advento da

Constituição de 1988, não faz sentido que seja reconstruído o instituto apenas deslocando o poder

do pai (pátrio) para o poder compartilhado dos pais (familiar), pois a mudança foi muito mais

intensa, na medida em que o interesse dos pais está condicionado ao interesse do filho, ou

melhor, no interesse de sua realização como pessoa em formação.

Desafortunadamente, o novo Código não apreendeu a natureza transformada do instituto,

mantendo praticamente intacta a disciplina normativa do Código de 1916, com adaptações

tópicas.

Ainda com relação à terminologia, ressalte-se que as legislações estrangeiras mais recentes

optaram por “autoridade parental”. A França a utilizou desde a legislação de 1970, que introduziu

profundas mudanças no Direito de Família1, com as alterações substanciais promovidas pela Lei de

4 de março de 2002. O Direito de Família americano tende a preferi-lo, como anota Harry D.

Krause.2 Com efeito, parece-me que o conceito de autoridade, nas relações privadas, traduz

melhor o exercício de função ou de múnus, em espaço delimitado, fundado na legitimidade e no

interesse do outro.3 “Parental” destaca melhor a relação de parentesco por excelência que há

entre pais e filhos, o grupo familiar, de onde deve ser haurida a legitimidade que fundamenta a

autoridade. O termo “paternal” sofreria a mesma inadequação do termo tradicional.

A discussão terminológica é oportuna, pois expressa a mudança radical operada no instituto.4

Contudo, para que se possa avançar na exposição do conteúdo, valer-me-ei, doravante, dos

termos empregados pelo novo Código.

2. CONTEÚDO BÁSICO DO PODER FAMILIAR

As vicissitudes por que passou a família, no mundo ocidental, repercutiram no conteúdo do poder

familiar. Quanto maiores foram a desigualdade, a hierarquização e a supressão de direitos, entre

os membros da família, tanto maior foi o pátrio poder e o poder marital. À medida que se deu a

emancipação da mulher casada, deixando de ser alieni juris, à medida que os filhos foram

emergindo em dignidade e obtendo tratamento legal isonômico, independentemente de sua

origem, houve redução do quantum despótico, restringindo esses poderes domésticos. No Brasil,

foram necessários 462 anos, desde o início da colonização portuguesa, para a mulher casada

deixar de ser considerada relativamente incapaz (Estatuto da Mulher Casada, Lei n. 4.121, de 27 de

agosto de 1962); foram necessários mais 26 anos para consumar a igualdade de direitos e deveres

na família (Constituição de 1988), pondo fim, em definitivo, ao antigo pátrio poder e ao poder

marital.

A redução do quantum despótico do antigo pátrio poder foi uma constante, na história do Direito.

O patria potestas dos romanos antigos era muito extenso, ao início, pois abrangia o poder de vida

ou morte, mas gradativamente restringiu-se, como se vê em antigo aforismo, enunciando que o

pátrio poder deve ser exercido com afeição e não com atrocidade.5

A evolução gradativa deu-se no sentido da transformação de um poder sobre os outros em

autoridade natural com relação aos filhos, como pessoas dotadas de dignidade, no melhor

interesse deles e da convivência familiar. Essa é sua atual natureza.

Assim, o poder familiar, sendo menos poder e mais dever, converteu-se em múnus, concebido

como encargo legalmente atribuído a alguém, em virtude de certas circunstâncias, a que se não

pode fugir. O poder familiar dos pais é ônus que a sociedade organizada a eles atribui, em virtude

da circunstância da parentalidade, no interesse dos filhos.6 O exercício do múnus não é livre, mas

necessário no interesse de outrem. É, como diz Pietro Perlingieri.7 “um verdadeiro ofício, uma

situação de direito-dever; como fundamento da atribuição dos poderes existe o dever de exercê-

los”.

Extrai-se do artigo 227 da Constituição o conjunto mínimo de deveres cometidos à família, a

fortiori ao poder familiar, em benefício do filho, enquanto criança e adolescente, a saber: o direito

à vida, à saúde, à alimentação (sustento), à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à

dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar. Evidentemente, tal conjunto de

deveres deixa pouco espaço ao poder. São deveres jurídicos correspectivos a direitos cujo titular é

o filho.

3. REGULAÇÃO DO PODER FAMILIAR NO NOVO CÓDIGO CIVIL COMPARADA COM A DO CÓDIGO DE

1916

O novo Código, nos arts. 1.630 a 1.638, manteve a disciplina normativa do Código anterior,

adaptando-a aos princípios determinantes na Constituição, notadamente quanto ao exercício

conjunto do poder familiar pelo pai e pela mãe, conforme já tinha antecipado o Estatuto da

Criança e do Adolescente. O enunciado deficiente da Lei do Divórcio, que se referia ao exercício do

pátrio poder pelo marido “com a colaboração da mulher”, apenas atenuando a desigualdade entre

os gêneros, foi expurgado de vez, na linha do estabelecido pelo ECA.

Do confronto entre os dois textos (o antigo e o novo Códigos), chega-se à surpreendente

conclusão de que a estrutura legal do antigo pátrio poder foi mantida intacta, com modificações

tópicas de redação. A ordem, a seqüência e o conteúdo dos artigos permaneceram, como se a

mudança da denominação e dos titulares (do pai para o pai e a mãe) e a exclusão das referências a

filhos ilegítimos fossem suficientes.

Houve, apenas, duas inclusões ao texto de 1916: a) outro tipo de extinção do poder familiar (por

decisão judicial); b) outro tipo de perda do poder familiar, por ato judicial (incidir, reiteradamente,

em falta aos deveres inerentes aos pais).

Manteve-se o que já estava previsto com relação aos titulares do poder familiar, ao exercício e à

suspensão e extinção.

A alteração de monta foi a exclusão de toda a Seção III do Código de 1916, relativa ao pátrio poder

quanto aos bens dos filhos, transferida para o Título destinado ao Direito Patrimonial, na forma de

Subtítulo II deste, com a denominação de “Do Usufruto e da Administração dos Bens dos Filhos

Menores” (arts. 1.689 a 1.693). A matéria, todavia, diz respeito ao poder familiar. O novo Código

mantém o usufruto legal dos bens dos filhos em favor dos pais. A inclusão de artigo prevendo a

representação dos filhos menores de 16 anos e a assistência aos filhos entre 16 e 18 anos é de

natureza pessoal, não se atendo apenas às questões de cunho patrimonial. Modificando o texto

legal anterior, há inovação no sentido de instituição de verdadeiros “bens reservados” em

benefício do filho maior de 16 anos que os adquirir em virtude de qualquer atividade profissional

que desenvolva (art. 1.693).

4. A INTERPRETAÇÃO CONFORME COM A CONSTITUIÇÃO

O princípio da interpretação conforme com a Constituição é uma das mais importantes

contribuições dos constitucionalistas nas últimas décadas. Consiste, basicamente, em explorar ao

máximo a compatibilidade com a Constituição das normas infraconstitucionais a ela anteriores ou

supervenientes, e a partir dela. Apenas deve ser declarada a inconstitucionalidade de uma norma

quando a incompatibilidade dela com a Constituição for insuperável. Essa diretriz hermenêutica

harmoniza-se com os princípios da presunção de constitucionalidade das normas

infraconstitucionais e da força normativa própria da Constituição. Mais importante é a função que

desempenha na interpretação do conteúdo das leis, que há de ser conformado, delimitado e

densificado pelos princípios e normas constitucionais. Assim, o Código há de ser interpretado,

sempre, a partir da Constituição. No passado e, infelizmente, na atitude de muitos aplicadores do

Direito, a operação hermenêutica encontrava-se invertida, pois a Constituição era tida apenas

como uma moldura, cujo conteúdo era preenchido pelas leis e códigos. No que concerne aos

princípios, a regra do art. 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil, de vedação de non liquet

(“Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os

princípios gerais de direito”), favoreceu a inversão hermenêutica, pois os princípios foram tidos

como supletivos. Essa regra da LICC há de ser interpretada “em conformidade com a Constituição”,

ou seja, apenas em relação aos princípios gerais que não sejam constitucionais, pois estes não são

supletivos, mas conformadores da lei.

O advento do novo Código traz à baila essas demarcações conceituais, imprescindíveis à sua

interpretação adequada. Significa dizer que suas normas hão de ser interpretadas em

conformidade com os princípios e regras que a Constituição estabeleceu para a família no

ordenamento jurídico nacional, animados de valores inteiramente diferentes dos que

predominavam na sociedade brasileira, na época em que se deu a redação do capítulo relativo ao

pátrio poder do Código de 1916, que, em grande medida, manteve-se no capítulo destinado ao

poder familiar para a família do século XXI. As palavras utilizadas pelo legislador de 1916,

reaproveitadas pelo legislador do novo Código, são apenas signos, cujos conteúdos deverão ser

hauridos dos princípios e regras estabelecidos pela Constituição.

5. REGRAS SOBREVIVENTES DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE SOBRE “PÁTRIO

PODER”

O ECA trata do poder familiar em duas passagens, a saber: a) no capítulo dedicado ao direito à

convivência familiar e comunitária, arts. 21 a 24; b) no capítulo dedicado aos procedimentos,

relativamente à perda e à suspensão do pátrio poder, arts. 155 a 163, que estabelecem regras

próprias, uma vez que a legislação processual é apenas supletiva.

As regras procedimentais do ECA permanecerão, pois o novo Código delas não trata nem é com

elas incompatível. No ECA são legitimados para a ação de perda ou suspensão do poder familiar o

Ministério Público ou “quem tenha legítimo interesse”. Prevê-se a possibilidade de decretação

liminar ou incidental da suspensão do poder familiar, ficando o menor confiado a pessoa idônea

(art. 157). A sentença que decretar a perda ou suspensão será registrada à margem do registro de

nascimento do menor (art. 163).

Quanto ao direito material, há convergência entre o novo Código e o ECA sobre o exercício

conjunto pelo pai e pela mãe, com recurso à autoridade judiciária para resolver as divergências. O

Estatuto ressalta os deveres dos pais, enquanto o novo Código, repetindo o anterior, opta pelas

dimensões do exercício dos poderes, como será demonstrado abaixo. No ECA há previsão de

hipótese de perda do poder familiar não prevista no novo Código, justamente voltada ao

descumprimento dos deveres de guarda, sustento e educação dos filhos (arts. 22 e 24). Em suma,

não se vislumbra antinomia (cronológica ou de especialidade) entre os dois textos legais, não se

podendo alvitrar a derrogação da lei anterior (ECA), salvo quanto à denominação pátrio poder,

substituída por poder familiar. Como a menoridade, no novo Código, foi reduzida para até os 18

anos – deixou de haver divergência com o que o ECA denomina de criança (até 12 anos) e

adolescente (até 18 anos) – para fins do poder familiar, passa a ser a denominação comum aos

campos de aplicação de ambas as leis.

6. TITULARES DO PODER FAMILIAR

O novo Código estabelece que “os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores”,

podendo levar à interpretação ligeira de serem os pais os únicos titulares ativos e os filhos os

sujeitos passivos dele. Para o cumprimento dos deveres decorrentes do poder familiar, os filhos

são titulares dos direitos correspectivos. Portanto, o poder familiar é integrado por titulares

recíprocos de direitos.

O ECA estabelece que o poder familiar será exercido pelo pai e pela mãe, “na forma do que

dispuser a legislação civil”. O novo Código refere-se apenas à titularidade dos pais, durante o

casamento ou a união estável, restando silente quanto às demais entidades familiares tuteladas

explícita ou implicitamente pela Constituição. Ante o princípio da interpretação em conformidade

com a Constituição, a norma deve ser entendida como abrangente de todas as entidades

familiares, onde houver quem exerça o múnus, de fato ou de direito, na ausência de tutela regular,

como se dá com irmão mais velho que sustenta os demais irmãos, na ausência de pais, ou de tios

em relação a sobrinhos que com ele vivem.8

O poder familiar, concebido como múnus, é um complexo de direitos e deveres. O poder familiar

não é mais o âmbito de competência delegada ou reconhecida pelo Estado para exercício de

poder. Assim, a cada dever do filho corresponde um direito do pai ou da mãe; a cada dever do pai

ou da mãe corresponde um direito do filho.

A convivência dos pais, entre si, não é requisito para a titularidade do poder familiar, que apenas

se suspende ou se perde, por decisão judicial, nos casos previstos em lei. Do mesmo modo, a

convivência dos pais com os filhos. Pode ocorrer variação de grau do poder familiar, máxime

quanto ao que cumpre o dever de guarda, mas isso diz respeito apenas ao seu exercício e não à

titularidade.

O novo Código estabelece que havendo separação judicial, divórcio ou dissolução da união estável,

o poder familiar permanece íntegro, exceto quanto ao direito de terem os filhos em sua

companhia (art. 1.631). No art. 1.589, quando tratou da dissolução da sociedade conjugal,

estabelece que o pai ou a mãe que não for guardião poderá não apenas visitar os filhos mas os ter

em suas companhias, bem como fiscalizar sua manutenção e educação, que são características do

poder familiar. Do mesmo modo, o art. 1.579 prescreve que o divórcio não modifica os direitos e

deveres dos pais em relação aos filhos. O direito (e dever) à companhia dos filhos, daquele que o

reteve na separação, não exclui o do outro, na forma em que tiver sido decidido, amigável ou

judicialmente, no tocante ao chamado direito de visita. A tendência mundial, que consulta o

princípio do melhor interesse da criança, recomenda a máxima utilização da guarda

compartilhada, da manutenção da coparentalidade,9 de modo a que o filho sinta a presença

constante de ambos os pais, apesar da separação física deles. Neste sentido, o “direito à

companhia” é relativo e não pode ser exercido contrariamente ao interesse do filho, que deve ter

assegurado o direito à companhia do pai ou mãe que não seja o guardião. Em suma, o direito de

um não exclui o direito do outro e o filho tem direito à companhia de ambos. No caso da guarda

compartilhada,10 por ser modo de preservação das relações familiares, entre pais e filhos, tendo

ambos os pais direitos/deveres equivalentes, a regra de exclusão do novo Código não pode ser

aplicada.

É importante frisar que o novo Código revogou a norma contida no art. 10 da Lei n. 6.515/77, que

atribuía a guarda dos filhos ao cônjuge que não tivesse dado causa à separação judicial.

Consequentemente, o filho ficará sob a guarda de quem revelar melhores condições para exercê-

la, afastando-se a odiosa regra da culpa do pai ou da mãe.

O novo Código não utiliza os termos “criança” e “adolescente”, presentes na Constituição, no

capítulo dedicado à família,11 porém “menor”. Mais uma vez, em conformidade com a

Constituição, menor deve ser entendido como criança ou adolescente, segundo a distinção que o

ECA faz.

O art. 1.633 do novo Código determina, repetindo essencialmente o Código anterior, que o filho

não reconhecido pelo pai “fica sob o poder familiar exclusivo da mãe”. A redação aprovada pelo

Senado Federal, para o artigo correspondente, previa “autoridade da mãe”, muito mais adequado

do que o malposto poder, que prevaleceu na Câmara dos Deputados. Se a mãe for desconhecida,

diz a lei, o menor ficará sob autoridade de tutor. Para haver tutela, todavia, ambos os pais devem

ser desconhecidos. O disciplinamento do ECA sobre desconhecimento dos pais, que permanece

aplicável, é mais abrangente, pois não apenas se refere à tutela, mas à colocação do menor em

família substituta, mediante guarda, tutela ou adoção (art. 28).

Por ser dever, o poder familiar assegura ao menor o direito imprescritível ao reconhecimento do

estado de filiação (art. 27), exercitável contra os pais.

7. EXERCÍCIO DO PODER FAMILIAR

Conferindo ao instituto o atributo preferencial de poder, o novo Código reproduz, quase

literalmente, as sete hipóteses de “competências” (a redação é: “Compete aos pais, quanto à

pessoa dos filhos menores: ...”) atribuídas aos pais, a saber: a) dirigir a educação e criação; b) ter

direito de companhia e guarda; c) dar consentimento para casar; d) nomear tutor; e) representar e

assistir o filho nos atos da vida civil; f) retomar o filho contra quem o detenha; g) exigir obediência,

respeito e “serviços próprios de sua idade e condição”.

A leitura das hipóteses de exercício do poder familiar está a demonstrar que significam expressão

do poder doméstico, sem referência expressa aos deveres, que passaram à frente na configuração

do instituto. O novo Código é omisso quanto aos deveres que a Constituição cometeu à família,

como acima foram destacados.

O ECA, quando cuida do poder familiar, incumbe aos pais (art. 22) “o dever de sustento, guarda e

educação dos filhos menores” e, sempre no interesses destes, o dever de cumprir as

determinações judiciais. Essa regra permanece aplicável, pois aos poderes assegurados pelo novo

Código somam-se os deveres fixados na legislação especial e na própria Constituição. O dever de

guarda não é inerente ao poder familiar, pois pode ser atribuído a outrem.

Tenho por incompatível com a Constituição, principalmente em relação ao princípio da dignidade

da pessoa humana (arts. 1.º, III, e 227), a exploração da vulnerabilidade dos filhos menores para

submetê-los a “serviços próprios de sua idade e condição”, além de consistir em abuso (art. 227, §

4.º). Essa regra surgiu em contexto histórico diferente, no qual a família era considerada, também,

unidade produtiva e era tolerada pela sociedade a utilização dos filhos menores em trabalhos não

remunerados, com fins econômicos. A interpretação em conformidade com a Constituição apenas

autoriza aplicá-la em situações de colaboração nos serviços domésticos, sem fins econômicos, e

desde que não prejudique a formação e educação dos filhos.

O induzimento ao menor para fugir do lugar em que se exercite o poder familiar constitui crime,

sujeito a pena de detenção de um mês a um ano, previsto no artigo 248 do Código Penal. Também

constitui crime subtrair o menor à autoridade de quem detém o poder familiar, sujeito à pena de

detenção de dois meses a dois anos (art. 248 do Código Penal). O crime considera-se agravado,

com pena de reclusão de dois a seis anos, se a subtração do menor, de quem detém o poder

familiar, se der com intuito de colocá-lo forçosamente em lar substituto.

8. SUSPENSÃO DO PODER FAMILIAR

O novo Código manteve, praticamente intactas, as hipóteses de suspensão e extinção do poder

familiar, salvo o acréscimo de normas de remissão a outras de mesma natureza. A suspensão

impede, temporariamente, o exercício do poder familiar.

São três as hipóteses de suspensão do poder familiar dos pais, a saber (art. 1.637): a)

descumprimento dos “deveres a eles (pais) inerentes”; b) ruína dos bens dos filhos; c) condenação

em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão. As duas primeiras hipóteses

caracterizam abuso do poder familiar.

Os deveres inerentes aos pais, ainda que não explicitados, são os previstos na Constituição, no ECA

e no próprio Código Civil, em artigos dispersos, sobretudo no que diz respeito ao sustento, guarda

e educação dos filhos. De modo mais amplo, além dos referidos, a Constituição impõe os deveres

de assegurarem aos filhos (deveres positivos ou comissivos) a vida, a saúde, a alimentação, o lazer,

a profissionalização, a dignidade, o respeito, a liberdade, a convivência familiar e comunitária, e de

não submetê-los (deveres negativos ou de abstenção) a discriminação, exploração, violência,

crueldade e opressão.

A suspensão pode ser sempre revista, quando superados os fatores que a provocaram. No

interesse dos filhos e da convivência familiar, apenas deve ser adotada pelo juiz quando outra

medida não possa produzir o efeito desejado, no interesse da segurança do menor e de seus

haveres.

9. EXTINÇÃO DO PODER FAMILIAR

A extinção é a interrupção definitiva do poder familiar.

São hipóteses exclusivas: a) morte dos pais ou do filho; b) emancipação do filho; c) maioridade do

filho; d) adoção do filho, por terceiros; e) perda em virtude de decisão judicial.

A morte de um dos pais faz concentrar, no sobrevivente, o poder familiar. A emancipação dá-se

por concessão dos pais, mediante instrumento público, dispensando-se homologação judicial, se o

filho contar mais de 16 anos. A natureza da adoção, que imita a natureza e impõe o corte

definitivo com o parentesco original, leva ao desaparecimento do poder familiar.

A perda por decisão judicial, por sua vez, depende da configuração das seguintes hipóteses: a)

castigo imoderado do filho; b) abandono do filho; c) prática de atos contrários à moral e aos bons

costumes; d) reiteração de faltas aos deveres inerentes ao poder familiar. A quarta hipótese não

existia no Código anterior.

Quanto ao castigo imoderado, por sua relevância, merece ser destacado abaixo. A moral e os bons

costumes são aferidos objetivamente, segundo standards valorativos predominantes na

comunidade, no tempo e no espaço, incluindo as condutas que o Direito considera ilícitas. Não

podem prevalecer os juízos de valor subjetivos do juiz, pois constituiriam abuso de autoridade. Em

qualquer circunstância, o supremo valor é o melhor interesse do menor, não podendo a perda do

poder familiar orientar-se, exclusivamente, no sentido de pena ao pai faltoso.

Por sua gravidade, a perda do poder familiar somente deve ser decidida quando o fato que a

ensejar for de tal magnitude que ponha em perigo permanente a segurança e a dignidade do filho.

A suspensão do poder familiar deve ser preferida à perda, quando houver possibilidade de

recomposição ulterior dos laços de afetividade.

10. O CASTIGO “MODERADO” DOS FILHOS

Como resquício do antigo pátrio poder, persiste na doutrina e na legislação a tolerância ao que se

denomina castigo “moderado” dos filhos. O novo Código, ao incluir a vedação ao castigo

imoderado, admite implicitamente o castigo moderado. O castigo pode ser físico ou psíquico ou de

privação de situações de prazer.

Deixando de lado as discussões havidas em outros campos, sob o ponto de vista estritamente

constitucional não há fundamento jurídico para o castigo físico ou psíquico, ainda que

“moderado”, pois não deixa de consistir violência à integridade física do filho, que é direito

fundamental inviolável da pessoa humana, também oponível aos pais. O artigo 227 da

Constituição determina que é dever da família colocar o filho (criança ou adolescente) a salvo de

toda violência. Todo castigo físico configura violência. Note-se que a Constituição (art. 5.º, XLIX)

assegura a integridade física do preso. Se assim é com o adulto, com maior razão não se pode

admitir violação da integridade física da criança ou adolescente, sob pretexto de castigá-lo.

Portanto, na dimensão do tradicional pátrio poder era concebível o poder de castigar fisicamente

o filho; na dimensão do poder familiar fundado nos princípios constitucionais, máxime o da

dignidade da pessoa humana, não há como admiti-lo. O poder disciplinar, contido na autoridade

parental, não inclui, portanto, a aplicação de castigos que violem a integridade do filho.

NOTA DE RODAPÉ

1 Com influência no recente Código Civil da província canadense de Québec (1994), arts. 597 a 612. O

artigo 699 refere-se a “direito e dever” de guarda, sustento e educação, que podem ser delegados. Sobre

a Lei francesa de 4 de março de 2002, cf. Claude Lienhard, Les Nouveaux Droits du Père, Paris: Delmas,

2002, passim.

2 Family Law. St. Paul: West Publishing, 1991, p. 191.

3 Para José Artur Rios (cf. verbete “autoridade”, no Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro:

Fundação Getúlio Vargas, 1986), forte em Max Weber, autoridade não se confunde com poder, que é a

coação física ou psíquica exercida sobre grupos ou indivíduos que a ela são forçados a se submeter. A

autoridade pode ser chamada de poder legítimo, pois é a ascendência sobre outros indivíduos, fundada

na legitimidade.

4 Registre-se, ainda, a tentativa de encontrar “expressão neutra” compreensiva da transformação havida

no instituto, a exemplo de “poderes e deveres parentais”

sugerida por Luiz Edson Fachin. FACHIN, Luiz Edson. Em nome do pai, estudo sobre o sentido e alcance

do lugar jurídico ocupado no pátrio dever, na tutela e na curatela. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.).

Direito de família contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 585-604.

5 Patria potestas in pietate debet, non in atrocitate, consistere.

6 Orlando Gomes (Direito de Família, Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 389) considera o múnus um

ministério correspondente a um cargo privado, que deve ser exercido no interesse do filho.

7 Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de

Janeiro: Renovar, 1997, p. 129.

8 Aqui não é o espaço adequado para discorrer, mais largamente, sobre tese que tenho sustentado de

não constituírem numerus clausus os três tipos de entidades familiares, pois todas as uniões de pessoas

com finalidades afetivas, com intenções sexuais ou não, e que assim se comportam socialmente,

enquadram-se no conceito de “família”, previsto no artigo 226 da Constituição, não sendo necessário

nem constitucionalmente sustentável equipará-las a sociedades de cunho econômico ou lucrativo

(“sociedades de fato”).

9 Sobre a experiência francesa da mediação para promoção da guarda compartilhada, v. GANANCIA,

Danièle. Justiça e mediação familiar: uma parceria a serviço da co-parentalidade. Revista do Advogado,

AASP, n. 62, mar. 2001, p. 7-15.

10 Ainda sobre a guarda compartilhada, na perspectiva da psicanálise, cf. NICK, Sergio Eduardo. Guarda

compartilhada: um novo enfoque no cuidado dos filhos de pais separados ou divorciados. In: BARRETO,

Vicente (Org.). A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 127-168.

11 O título do Capítulo VII do Título VIII é justamente “Da Família, da Criança, do Adolescente e do

Idoso”.

(*) Doutor em Direito Civil (USP), professor da UFAL e da UFPE (Pós-graduação).

6.2. Responsabilidade Civil na Relação Paterno-Filial

Giselda Hironaka (fonte: www.ibdfam.com.br)

1. Primeiras palavras

O enfrentamento do presente tema – que me foi especialmente deferido, neste conclave, pela

conhecidíssima e eterna gentileza de nosso Presidente, o Dr. Rodrigo da Cunha Pereira –

descortinou para mim, ao tempo em que me dediquei a imaginar como construir esta exposição,

um panorama tão variado e rico, que não tenho hoje nenhuma dúvida de que se trata de mais um

daqueles assuntos que não se esgotam, que não auto-desenham os seus próprios limites, mas, ao

contrário, oferecem de modo contínuo e incessante, ao pesquisador, ao estudioso e ao operador

do direito, um fabuloso manancial de aspectos que podem ser sempre e sempre percorridos, sem

o risco do esgotamento da seiva profícua que o vivifica.

Pessoalmente, na minha atividade acadêmica, tenho dedicado muita atenção e grande esforço de

pesquisa à volta da temática da responsabilidade civil, mormente esta conhecida como indireta, da

qual se diz ora ser uma responsabilidade subjetiva – por culpa presumida – ora se tende a dizer ser

uma responsabilidade objetiva, por se lhe conferir cada vez menos o ônus probatório da culpa.

Estou a me referir à responsabilidade dos pais pelos danos causados pelos seus filhos menores,

conforme é a regra da Lei Civil que ainda vige, o Código de 1916, em seu art. 1521, especialmente.

Tem me sensibilizado, igualmente, nesta vertente da relação paterno-filial em conjugação com a

responsabilidade, este viés naturalmente jurídico, mas essencialmente justo, de se buscar

compensação indenizatória em face de danos que pais possam causar a seus filhos, por força de

uma conduta imprópria, especialmente quando a eles é negada a convivência, o amparo afetivo,

moral e psíquico, bem como a referência paterna ou materna concretas, acarretando a violação de

direitos próprios da personalidade humana, magoando seus mais sublimes valores e garantias,

como a honra, o nome, a dignidade, a moral, a reputação social, o que, por si só, é profundamente

grave.

Mas, dizia-lhes antes, o descortinamento do tema, conforme minha concepção, permitiu-me logo

verificar que havia um estreitamento na temática que me fora presenteada, de sorte que a

preocupação com a responsabilidade deveria cingir-se à civil e, sob este viés, deveria decorrer dos

laços familiares que matizam a relação paterno-filial.

Ora, assim visualizado o tema, impôs-se, prontamente, para mim, esta idéia de que deveria tratá-

lo sob as tintas da responsabilidade civil propriamente dita, costurando os conceitos – tão

conhecidos, para mim e para tantos dos senhores – da urgência da reparação do dano, da re-

harmonização patrimonial da vítima, do interesse jurídico desta, sempre prevalente, mesmo à face

de circunstâncias danosas oriundas de atos dos juridicamente inimputáveis...

E não me satisfiz com esta idealização estrutural, já bem formatada na minha mente.

Pensei ainda mais e concluí que a insatisfação vinha de um fato muito simples: se íamos nos reunir

em Congresso de Direito de Família, certamente a pujança do tema deveria – como o sadio ramo

de trigo que se enverga ao ritmo do vento, mas não se quebra – inclinar-se para um outro lado e

suscitar outra ordem de inquietações, além daquelas (importantíssimas igualmente, não resta

dúvida) que se condensa na preocupação com a vítima – quer a vítima de danos produzidos por

filhos menores e indenizáveis pelos seus pais, quer a vítima consolidada na pessoa do próprio filho,

pela violação de seus direitos de personalidade, principalmente – na recuperação de sua

normalidade patrimonial ou moral, como instrumento de superior categoria e valoração,

endereçado à mantença da dignidade da pessoa humana.

Pensei então que seria adorável e certamente oportuno revirar os alicerces mais profundos do

assunto para trazer à tona as inquietações, as dúvidas, as questões que nem sempre são do

interesse imediato do direito, mas que são, indubitavelmente, a sua raiz mediata. Melhor de tudo,

pensei, esta busca, ainda que significativamente difícil para mim, revelaria aquela nova maneira de

se procurar desvendar e descrever o fenômeno jurídico a partir de sua interface com os

fenômenos não-jurídicos que o antecedem.

Este é, senhores, o rico caminho da interdisciplinaridade, que admite – a um agrupamento de

pessoas como este nosso de hoje, sob as dobras da diversidade de pensamento, de linhas e de

construções científicas, dobras essas que caracterizam e personificam o IBDFAM – que nos

sentemos uns ao lado dos demais, sociólogos, antropólogos, psicólogos, filósofos e homens do

direito. Sem castelos ou prisões. Sem moldes pré-estruturados e estratificados. Mas

absolutamente abertos à contemplação da vida como ela é, e atentos aos contornos do caminho

que leva à realização pessoal e plena de cada um dos homens, enquanto membro do grupo

familiar que o abriga e guarda.

E a inquietação intrigante que se encontrava presa dentro de mim, emergiu e expandiu-se,

desdobrando-se na mais singela das perguntas: Por que impõe-se – e repercute no Direito de

Família – a responsabilidade advinda da relação paterno-filial?

Em que bases extra-jurídicas estariam assentadas as razões, as justificativas e os fundamentos da

imposição de tal dever?

Poderia, acaso, a filosofia fornecer alguma base para a discussão da responsabilidade civil na

relação paterno-filial?

Poderia, acaso, a psicologia adequadamente explicar qual o liame existente entre pais e filhos, que

seja capaz de gerar e de justificar a concretude desta responsabilização, à face de terceiros, mas –

e principalmente – à face deles próprios, um em ralação ao outro?

Sim, certamente sim, do mesmo modo como outros segmentos de apreciação e formulação do

conhecimento humano, como a antropologia, como a sociologia, e como todas as demais

persecuções científicas que tenham por objeto de interesse imediato o homem e sua circunstância

relacional humana.

E assim, sob este desenho pré-jurídico, sob esse matiz fundante, sob esta inquietação acerca da

raiz, decidi mudar o curso de minha apreciação, a qual lhes trago hoje, deixando-a sob suas mais

que competentes considerações e críticas.

2. O arco filosófico da circunstância relacional humana, entre pais e filhos.

Levando o conceito de responsabilidade civil para suas bases mais longínquas, que o confundem

com o termo genérico da responsabilidade, e o dever clássico da prestação do devido, a filosofia,

por exemplo, tem sim, muito que dizer.

Basicamente, ela tem muito que dizer sobre essa responsabilidade na relação entre pais – ou só o

pai, ou só a mãe – e filhos, sempre que a idéia de família estiver presente ou for o centro das suas

questões.

Há, a propósito, uma longa história do conceito de família na própria história da filosofia, além da

história das instituições civis. E essa é uma história que vem desde os gregos – portanto, desde o

início da filosofia ocidental – e que se confunde muitas vezes com a própria filosofia política, com o

próprio pensamento em torno do direito e das sociedades.

Já de uma forma muito sofisticada, o tema da família aparece nessa ligação com a política

justamente no pensamento político de Aristóteles, quando, em sua Política, apresenta uma

explicação da pólis (cidade) como sendo uma associação de várias associações menores, das quais

a originária é a família.

A cidade, antes de ser uma reunião de poderes, de instituições, de leis, é uma associação de

famílias. Essa concepção aristotélica da cidade como uma reunião de famílias, célebre na história

da filosofia política, não prosseguiu, todavia, com grande repercussão desde a Idade Média.

A partir do longo período medieval, a concepção da vida política se verá derivada, em especial, das

próprias instituições e da presença efetiva de certos poderes ou autoridades, perdendo-se de certa

forma a idéia grega de que a cidade é uma grande família. Mais do que isso, quer no período

medieval, quer nos períodos subseqüentes (em especial naquele em que se desenvolve o jus-

naturalismo moderno), será possível encontrar longas considerações jurídicas a respeito do que a

família é ou deva ser.

Mas há algo na concepção aristotélica que é fundamental, que talvez não convenha esquecer,

mesmo quando se desviar a atenção para as concepções mais modernas. Trata-se do seguinte,

resumindo este aspecto: Por que a cidade é uma associação máxima que resulta da reunião de

outras associações que resultam, por sua vez, da reunião de associações menores que são, enfim,

as famílias? Porque, justamente, a família é uma associação natural humana (como a cidade, de

certa forma, será de maneira mais complexa), onde as relações dentro dessa associação são

naturalmente determinadas. O que permitiria, assim, conceber não só a família, não só a cidade,

mas qualquer associação, é a sua condição de elo de ligações naturais.

Há, bem sabe e lembra Aristóteles, vários tipos diferentes de associações, e conseqüentemente

vários tipos diferentes de cidades, de famílias e de comunidades de toda ordem. A conseqüência é

que, se for o caso de tentar uma classificação dos tipos de cidade ou dos tipos de família, isso só

será possível se for definido um critério para a tipologia.

Esse critério é buscado por Aristóteles para a classificação das cidades; e é encontrado não como

critério único, mas como critério duplo: primeiro, uma cidade pode ser governada por um só, por

poucos ou por muitos; segundo, o governo pode ser puro ou corrompido. Conseqüência: há seis

tipos de cidades – três tipos puros (monarquia, o governo de um só; aristocracia, o governo de

poucos; politéia, o governo de muitos) e três tipos impuros, corrompidos, que são

correspondentes às três formas puras (respectivamente: tirania, oligarquia e democracia).

E para a família? Diferentemente do que ocorre com a cidade, para o caso da família não há

critério que permita sua classificação em vários modelos puros; existem, certamente, vários tipos

de família, no sentido de que há famílias com diferenciados números de componentes, que se

beneficiam ou não de servos, propriedades, etc. Mas, diferente do que ocorre com a cidade (onde

o poder pode estar na mão de um só, ou não), no caso da família o comando familiar está sempre

nas mãos dos pais, e para certas funções está exclusivamente em poder do pai. Em outras

palavras: em Aristóteles, assim como em toda a tradição grega, é um consenso entre os autores a

idéia de que são os pais que têm autoridade sobre seus filhos, e que é o marido que tem

autoridade sobre sua esposa (ou suas esposas).

Por que essa autoridade masculina, paterna e marital? Porque ela é, como toda autoridade, uma

autoridade natural, segundo a visão filosófica de Aristóteles.

Ora, segundo a concepção clássica, então, será por uma necessidade natural humana que os filhos

devam obedecer aos pais e a mulher deva obediência ao marido. Se a família antiga, assim, é

patriarcal, é porque a natureza inteira o é.

Essa concepção clássica, que obviamente se encontra em completo descompasso com a

contemporaneidade, é a concepção que, como se sabe, mais dominou as teorias ou doutrinas em

torno da família, por toda a história da humanidade. De fato, Aristóteles está mais presente do

que distante em certos aspectos: ainda que nunca mais se tivesse desenvolvido a idéia de que a

cidade é uma reunião de famílias, por praticamente toda a história da humanidade se manteve a

idéia de que a família é a mais originária das associações naturais, e que sua composição envolve

uma autoridade natural dos pais sobre os filhos e do marido sobre a mulher.

Por isso mesmo, pressinto que a análise do tema, a partir de Aristóteles seja relevante, na medida

em que deixa claro o que sempre estará em questão, na composição da família: a família é uma

associação na qual alguém tem poder sobre outrem, restando saber, primeiro, a quem e por que

se deve esse poder e, segundo, se a família não pode ser uma associação baseada em outra coisa

que não a dominação ou a dependência.

Sempre que se tratar das relações de família e da responsabilidade envolvida nas relações de

família, fundamental será que se trate, também, da base dessa relação.

A inquietação tipicamente pós-moderna assenta-se em buscar a resposta à pergunta: no seio da

família da contemporaneidade desenvolve-se ainda, e tipicamente, uma relação de poder ou é

possível afirmar, por exemplo, que a ênfase relacional se encontra deslocada para a afetividade?

O tema da responsabilidade nas relações de família envolve necessariamente essa visão clássica da

autoridade, para bem ou para mal.

O olhar histórico de contemplação pretérita sobre o assunto admite afirmar que é marcante essa

significação da família do passado mais como uma relação de poder do que como uma relação de

afeto. Por conseqüência, a família aparece tradicionalmente como uma associação cujos

benefícios se dirigem mais para os pais (e mais ainda para o pai ou o marido) do que para os filhos

(ou para a mulher).

A tradição patriarcal, de índole francamente autoritária, na concepção das relações de família,

pretendeu muitas vezes, e na intenção de justificar-se como instituição civil, fazê-lo por vieses

imaginados racionais ou científicos.

E mesmo que uma tal justificação fosse ideológica e impossível, o principal argumento utilizado

para a defesa da autoridade do patriarca foi, desde os gregos, a existência de uma hierarquia ou

de uma dependência natural. Essa idéia – que está na base das concepções antigas e clássicas de

família e que se faz notar principalmente na imposição da autoridade nas relações familiares –

curiosamente aparecerá também como índice, no pólo oposto dessa relação, vale dizer, aparecerá

como o fator de consagração da responsabilidade dos pais diante dos filhos, assim como do

marido diante da mulher.

O que a tradição mostra, enfim, é que a concepção da autoridade é baseada numa idéia de

natureza, mas ao mesmo tempo essa idéia de natureza traz uma concepção de responsabilidade

muito equivalente.

A primeira explicação para a idéia de que a associação mais primitiva é a família, pode ser vista,

ainda em Aristóteles, por meio de sua afirmação de que a família é o resultado da associação

daqueles seres que "não podem, por natureza, ficar separados um do outro". Refere-se, o filósofo

grego, ao homem e à mulher.

Ou seja: Aristóteles até concebe que as famílias tenham ou não posses, que tenham ou não filhos,

mas não concebe uma família sem a idéia de casamento, e muito menos concebe as famílias

homoafetivas. A concepção corrente da família brasileira até muito pouco tempo era vulgarmente

aristotélica, ainda que a prática da família brasileira fosse muitas vezes o inverso da sua imagem...

E porque o novo Código Civil não incluiu as uniões homoafetivas entre as entidades familiares,

talvez seja o caso de dizer que, em termos oficiais, ainda estamos na visão aristotélica de família,

onde essa associação originária só é legítima se obedecer ao que a sociedade patriarcal considera

normalidade sexual e moral.

Mas enfim, a idéia original é a de que a família é uma associação que decorre da natureza humana,

na medida em que decorre de uma necessidade de vida em comum, que Aristóteles, e novamente

a tradição posterior a ele, atribuirá à relação entre homem e mulher.

E que relação é essa? Uma relação física, apenas, ou uma relação de dependência?

Aristóteles coloca que é uma relação de dependência, especialmente da mulher em relação ao

homem: esta, sozinha, não apenas não é capaz de procriar, como não seria capaz de subsistir, e

muito menos comandar uma cidade ou um exército. E não seria capaz por quê? Porque, por sua

constituição natural, ela seria mais fraca que o homem, incapaz, enquanto só ele seria capaz, para

a prática de certas ações que demandam força e prudência.

Aristóteles quer apontar, portanto, uma deficiência, uma debilidade natural na mulher, visível seja

por sua comparação ao homem, seja por sua própria compleição.

Ora, sob o preconceito dessa idéia de que a mulher é fisicamente, mas também racionalmente,

inferior ao homem, Aristóteles sequer foi um dos primeiros: a idéia já estivera colocada com todas

as letras por Demócrito de Abdera, quando recomendou que a mulher não se exercite na palavra,

porque isso é coisa perigosa, ou que ser governado por uma mulher é, para o homem, a suprema

violência.

Esse argumento pretensamente naturalista de que a mulher é inferior ao homem hoje nos assusta

com sua brutalidade? Pois foi o principal argumento utilizado em quase toda a história da

humanidade para tentar justificar o poder patriarcal ou masculista sobre as mulheres. É esse o

principal argumento utilizado hoje em dia para justificar a violência doméstica contra as mulheres

e meninas no Brasil, assim como a violência generalizada contra as mulheres e meninas em

regimes fundamentalistas como o do Taleban, que por uma certa e infeliz contingência tem sido

constantemente focado e criticado em nossos dias.

Numa palavra, o argumento da debilidade ou incapacidade natural da mulher é o argumento mais

utilizado para tentar justificar a autoridade do homem em relação à mulher dentro da estrutura

familiar, ao mesmo tempo que a dependência da mulher em relação ao homem, nessa mesma

estrutura.

O nosso tema aqui não é, diretamente, essa relação patriarcalista entre homens e mulheres, entre

maridos e esposas, entre pais e filhas, e por isso não é o caso de levar adiante a análise e a crítica

dessa concepção irracional que sempre insiste em se manifestar até hoje na concepção dos papéis

do homem e da mulher na família.

Mas é fundamental que tenhamos começado por apontá-la, pois ela é a base para aquela outra

relação que constitui, aqui, o nosso tema principal: a relação entre pais e filhos.

O que a história mostra, e as histórias do pensamento e das instituições mostram junto, é que, se a

relação entre homens e mulheres, em família, foi sempre baseada numa concepção naturalista de

dependência e subordinação da mulher, com muito mais razão será apontada uma dependência e

subordinação dos filhos em relação aos pais.

Se a própria subordinação da mulher era vista como necessária, mesmo sendo a mulher um

indivíduo adulto e experiente, o que dizer então, e sempre, de pessoas que tinham pouca

experiência ou não tinham experiência nenhuma? Pessoas que não tinham condições de se

manterem sozinhos? Dir-se-á não apenas que dependiam muito mais dos adultos na relação

familiar, mas, conseqüentemente, que deviam, na mesma proporção, muito mais obediência.

Se a família, nessa concepção clássica e reiteradamente patriarcal, foi tida como uma relação de

poder praticamente despótico, cujo pater era o detentor exclusivo ou principal de todo o poder de

decisão quanto à liberdade e o destino dos integrantes da família, então os filhos estiveram,

certamente, numa posição muito próxima à escravidão: sua dependência física, material e moral

foi eternamente a causa do seu dever incessante de obediência.

Se assim é, o que dizer, então, de uma concepção de família que a vê como uma associação

daqueles que não podem deixar de estar unidos (Aristóteles), ao mesmo tempo em que o homem

é, naturalmente, o cabeça de sua família (cultura grega, teologia judaico-cristã, direito romano...)?

Nessa associação, o elo de ligação e o índice dos deveres não se indicam pelo amor, não se

matizam pela recíproca generosidade, não se caracterizam pela mútua proteção, mas sim se

realizam por meio da dominação. E se trata de dominação porque, na concepção patriarcal

clássica, jamais haverá um espaço para que a mulher e os filhos assumam, contra a vontade do pai,

o posto que deveria lhes corresponder.

O correr histórico desnudará a certeza de que, para se vislumbrar a igualdade de direitos entre

homem e mulher – e também entre pais e filhos – na condução da família, serão necessários

milênios.

Mas esse longo tempo, necessário certamente para a concepção dessa igualdade de direitos, de

certa forma seria necessário, também, para a concretude da própria responsabilidade paterna

como um dever dos pais, em lugar de um poder dos pais.

A idéia de responsabilidade paterna que existe hoje não encontra grandes referências nas

concepções antigas de natureza humana e de família. É verdade que o mundo antigo concebeu

deveres dos pais, dos chefes de família; mas a concepção de responsabilidades civis é muito mais

recente. Por quê? Porque, se a simples responsabilidade envolvida no dever de assistência é

classicamente determinada pelo poder do pai sobre sua família, a responsabilidade envolvida nos

danos decorrentes da má gestão dessa chefia de família não decorre mais do arbítrio desse

mesmo pai de família.

Vale dizer: na concepção antiga e tradicional de família, o pater tinha obrigações, mas tinha

também poder suficiente para arbitrar quais seriam essas obrigações, já que era senhor de suas

mulheres e de seus filhos.

Ao contrário, em concepções mais recentes de família – e que remontam, no máximo, ao início do

período moderno – os pais de família têm certos deveres que independem do seu arbítrio, porque

agora quem os determina é o Estado.

3. A concepção jus-naturalista de família e a distinta visualização do pátrio poder.

A partir do Renascimento e da modernidade, ser chefe de família continuou significando deter um

poder privilegiado e amplo, mas que já não é mais um poder superior à capacidade – cada vez

mais visível – dos outros integrantes da família. A modernidade abre espaço para uma

transformação lenta, mas radical, na concepção de família, já que investe pela primeira vez

(especialmente no âmbito do jus-naturalismo) na idéia de igualdade entre homem e mulher

quanto à capacidade para chefiar a família.

Quem mostra isso com muita ênfase desde a década de 1970 é um dos maiores historiadores do

jus-naturalismo, Alfred Dufour. Num ótimo estudo publicado originalmente em 1975, mas

retomado e desenvolvido anos mais tarde, denominado Autoridade marital e autoridade paterna

na escola do direito natural moderno, Dufour mostra que uma das maiores contribuições do jus-

naturalismo foi inovar na concepção dos direitos entre os integrantes da família.

Neste estudo, Dufour mostra que tanto a relação entre homem e mulher recebeu inovações

importantes no ambiente jus-naturalista, como também as recebeu a relação entre pais e filhos,

ainda que em menor medida. No que diz respeito à relação entre homens e mulheres, autores

como John Locke no século XVII, mas também como Christian Wolff, e seu discípulo Daniel

Nettelbladt, no século XVIII, investiram na idéia de que a mulher, como o homem, detém uma

autoridade natural sobre os filhos, e efetivamente equivalente à do homem.

No que respeitasse, pois, à autoridade sobre os filhos, a mulher teria os mesmos direitos que o

homem, e por razões naturais diferentes daquelas que eram alegadas por Aristóteles ou por toda a

tradição medieval cristã: a mulher, como o homem, é causa da existência dos filhos, e isso torna a

sua autoridade natural. Esta lógica é menos restritiva do que a concepção anterior, mas é ainda,

sem dúvida, um reconhecimento tímido do potencial racional da mulher, já que ela não é

desenhada, ainda, como uma possível autoridade equivalente à de seu próprio marido.

No que respeita à relação paterno-filial, por outra parte, nota-se que as mudanças serão também

visíveis, embora se mostrem menores do que a relativa equalização de direitos ou de autoridade

entre homem e mulher. Todavia, apesar do seu menor peso, dar-se-á igualmente, nesta

circunstância relacional, uma mudança suficiente para caracterizar, enfim, a concepção da relação

entre pais e filhos como uma relação na qual sempre haverá uma responsabilidade dos pais em

relação às necessidades dos filhos, a ponto de se poder dizer que é aí que nasce, propriamente,

uma concepção articulada de responsabilidade civil na relação paterno-filial.

Esta interferência do jus-naturalismo moderno na reformulação da concepção em tela, ocorrida

nos séculos XVII e XVIII, fez com que se realizasse, aos poucos, a noção propriamente jurídica de

responsabilidade – que se desenvolve até se tornar responsabilidade civil, no início do século XIX –

e também porque é aí, na modernidade, que a condição jurídica dos filhos dentro da família passa

a ser apresentada segundo critérios que se pretendem racionais ou científicos, para além dos

antigos critérios do costume.

É certo que esta concepção jus-naturalista, assim como traçada, guarda uma grande distância com

respeito à concepção contemporânea ou pós-moderna. Contudo, penso que dedicar uma certa

atenção à maneira como os autores modernos trabalharam o assunto, pode dizer muito à

contemporaneidade, quando somos convidados a considerar a família como uma entidade real,

concreta, cuja significação e cujas necessidades talvez não estejam mais definidas unicamente pela

lei ou pelo arbítrio do juiz.

4. O desafio da modernidade para demonstrar, racionalmente, os fundamentos da autoridade e da

dependência entre os seus componentes.

Ao tratar da família, os autores modernos tinham, então, o desafio de demonstrar racionalmente

quais os fundamentos da autoridade e da dependência entre os seus componentes. É claro que o

tema desta autoridade em família era (como sempre é) um princípio corrente; mas, por mais

consensual que fosse a idéia de autoridade marital e paterna, no plano da teoria jurídica havia

sempre a necessidade de evidenciar os seus fundamentos. Um dos paradoxos originados dessa

tarefa, todavia, foi a revelação, por vezes, de que uma certa prática por quase todos aceita não

tinha fundamentos tão racionais, como se poderia imaginar.

Qual efetivamente seria a razão e o fundamento da existência perenizada de um pátrio poder, a

significar uma autoridade dos pais sobre os filhos, garantida pelo Estado, e que permite àqueles

determinar a vida destes. O que é que, enfim, impulsiona o Estado a conceder e garantir um tal

poder?

A argumentação original é, novamente, a que se aperfeiçoa na noção da natureza.

Os filhos vêm ao mundo na dependência completa dos pais, e assim permanecem enquanto não se

tornam, eles mesmos, adultos ou emancipados. A dependência natural é tão certa e inegável, que

sequer pode ser recusada pelos pais. Perfeitamente compreensível e aceitável.

Mas a questão que insiste em não calar, e que decorre desta singela verdade versa sobre a dúvida

de qual seria a origem da autoridade dos pais?

Ou, em outros termos, por que a dependência dos filhos equivale a uma dominação por parte dos

pais, a uma autoridade destes sobre aqueles, enfim?

O pátrio poder, justamente, não é um poder acidental, involuntário. Ele é exercido pelos pais

como dominação sobre os filhos. Já que é uma dominação, talvez o pátrio poder não envolva

nenhum componente afetivo. Ao menos, nenhum componente positivamente afetivo, como a

generosidade com respeito aos filhos.

Ao contrário, talvez o seu sentido seja sempre, ou prioritariamente, negativo, no sentido de um

aproveitamento ou ‘usufruto’ dos filhos, um exercício desenvolvido – talvez – mais em benefício

dos próprios pais, do que para a alegria ou proveito dos filhos. Por que isso? Porque, de ponta a

ponta, na relação entre pais e filhos simbolizada pelo pátrio poder, os filhos não têm poder

nenhum.

A idéia de pátrio poder, assim, pressupõe algo semelhante à antiga concepção da subordinação da

mulher ao homem: ela é devida segundo a natureza. Ela é devida porque a parte dominada na

relação é mais fraca, é mais débil... Numa palavra, é dependente da outra.

Talvez.

Mas o que causa esta dependência, de fato? A natureza, como se fosse uma condição sem

conserto ou mudança? Ou as circunstâncias, como se fosse uma condição determinada

unicamente pela maior força do dominador?

Se a reflexão nos fizer passear os olhos para a história da condição feminina, facilmente observar-

se-á que a causa da dependência reside exatamente na segunda opção: o que historicamente

determinou, às mulheres, a ausência de direitos e a submissão ao patriarcado foi uma

circunstância de imposição pela força, reiterada pelos costumes e pelas instituições, ao mesmo

tempo que endossada pelo próprio direito.

Desde a Antigüidade, o homem é caput de sua mulher e das mulheres de sua família. Não porque

tenha sido um desejo das mulheres. Mas elas sempre viveram em um mundo dominado por

instituições patriarcais, cuja estrutura não permitia a própria modificação.

O mesmo pode ser descrito para a situação dos filhos.

Desde sempre, e com mais forte razão, os pais – mas principalmente o pai – são caput dos

infantes. Em parte, por causa de uma concreta dependência dos filhos, que não têm nem forças,

nem meios, nem principalmente experiência para emancipar-se na vida. Mas, em parte porque a

família foi sempre constituída como um domínio particular de quem o instaurou. O círculo familiar,

no qual o chefe de família é senhor dos membros da família, funciona como uma monarquia

particular, como bem lembraria Cesare Beccaria, no capítulo 26 de seu tratado Dos delitos e das

penas.

A definição tradicional e jurídica de família, então, e por todos os motivos, está muito longe da

definição de uma relação afetiva. Ela define diretamente uma espécie muito particular de domínio

e dominação.

Na família marcada pelo pátrio poder, como compreender, assim, algum fundamento natural ou

racional para a responsabilidade dos pais diante dos filhos?

Se esta responsabilidade, desde o início, diz respeito a uma dependência dos filhos em relação aos

pais, então ela é determinada mais pelos filhos do que pelos pais?

Ou determinada mais pelo Estado do que pelos filhos?

Num ou noutro caso, não é, certamente, uma responsabilidade determinada pelos próprios pais,

porque não cabe a eles decidir a sua validade ou não. Se lhes coubesse, não seria, então,

responsabilidade. Seria assunção volitiva de obrigação.

Há, concretamente, uma condição de dependência dos filhos em relação aos pais que é, sim, uma

dependência natural, em dois sentidos: primeiro, porque os pais são causa dos filhos; segundo,

porque os filhos, para se manterem, precisam do auxílio dos adultos; e como só existem porque

seus pais os deram à existência, são estes que devem ser encarregados da sua subsistência.

A obrigação primeira dos pais em relação aos filhos é, certamente, a transmissão da cultura. Lévi-

Strauss esclarece que, para que se passe da natureza (os meros impulsos, o simples biológico,

nossa parte mais animal) para a cultura (o humano, o criado), para que se passe do individual para

o social, são necessárias três interditos básicos: canibalismo, parricídio e incesto. Dada a condição

humana de indefensão, para que os filhos sobrevivam, as suas necessidades vitais primeiras serão

satisfeitas pela mãe, por um período relativamente prolongado em relação às outras espécies

animais.

Os filhos, assim, são um encargo natural trazido pela união dos pais: o nascimento dos filhos

obriga os pais a manterem os próprios filhos, como se os filhos fossem, de certa forma, uma culpa

deles próprios, que não incumbe ao Estado assumir. Ou seja, mesmo nos termos em que os filhos

dependem dos pais para sobreviver e se desenvolver, não cabe, à luz do viés da Antigüidade que

está em foco, tentar enxergar, aí, nenhuma relação afetiva.

Se ela ocorrer também, tanto melhor, é um excedente. Aos olhos do Estado, a relação entre pais e

filhos é a de uma sociedade causada por vontades completamente particulares, que não têm

poder nem legitimidade para transferir sua causalidade ao Estado, se este não o desejar. Porque

causam os filhos, os pais causam, conjuntamente, todos os gastos envolvidos na sua manutenção e

desenvolvimento.

Se assim é, raciocine-se: por qual motivo o Estado ou outra entidade que não os próprios pais,

poderia ou deveria ser considerado co-responsável nessa criação? Se – e somente se –

considerarmos que por nenhum motivo, então, de fato, a relação paterno-filial pode ser avaliada

como uma relação de um senhor com seus próprios bens. Apenas isso.

Assim entendida, contudo, a relação paterno-filial não envolve, é claro, o poder paterno de decidir

pela vida ou morte dos filhos (isto era coisa dos déspotas antigos), mas envolve, sim, uma

precedência na determinação externa da vida dos filhos.

Quem deve decidir o destino e as preferências dos filhos, seria o caso de se perguntar – o Estado

ou os pais? Ou, ao menos, quem tem precedência nessa decisão – o Estado ou os pais? Não

importa qual seja a resposta que se dê, se a opção for por um dos dois – o Estado ou os pais – se

estará, com isso, aceitando a idéia de que os filhos são coisa...

Na verdade, saindo enfim desse plano que concebe a autoridade paterna como pátrio poder,

encontra-se o verdadeiro desafio de definir quem deve ter precedência para decidir sobre os

destinos da criança ou do jovem atrelado, ainda, à vida em família.

Sem dúvida, a essência da pós-modernidade responde e estampa a concepção contemporânea

mundializada, ao menos em sociedades assemelhadas à nossa: é a própria criança ou jovem,

sempre, que deve ter precedência na determinação do seu destino. Sempre. Ainda que esteja sob

o pátrio poder, ou sob o poder familiar, como prefere a nova Lei Civil Brasileira , ou ainda que

esteja sob a dependência dos pais ou do Estado.

Pais e Estado – assim como toda a sociedade, afinal – não podem, em momento nenhum, tratar a

criança como coisa só pelo fato de ser ela sem experiência ou sem atividade produtiva, sem

maturidade espiritual ou sem autonomia material. A criança, apesar de seu estado de extrema e

concreta dependência, é um ser humano como qualquer outro, é um ser desejante e emotivo

como qualquer outro, que sente dor diante da crueldade alheia e revolta por não lhe ser

concedida a liberdade que é capaz de administrar sozinha. E é por ser dotada desse desejo e dessa

necessidade que a criança, enfim, é dotada de dignidade e assim deve ser respeitada. Não

respeitar essas necessidades e negar a relevância do desejo é tratar a criança como coisa, é

efetivamente ser violento com ela, o que afasta, em definitivo, qualquer relação ética com a

criança.

Senhores.

Se é o caso de pensar a responsabilidade na relação entre pais e filhos, vale a pena pensá-la

apenas pelo viés do direito ou é o caso de pensá-la a partir especialmente da ética? É o caso de

pensá-la em ambos os planos, necessariamente, inclusive porque nenhum deles é válido sem o

outro, na consideração da responsabilidade.

Qualquer que seja o tema proposto, a respeito da responsabilidade, ele será um tema tanto

jurídico quanto ético. Numa perspectiva ética, como fica essa responsabilidade? Ela não pode, de

forma alguma, negar validade ao desejo da criança. O contrário demonstrará a vida em família

como uma relação de violência, justamente porque é uma relação de neutralização e de

dominação apenas, o que é muito bem mostrado, entre outros autores, por Michel Foucault, em

seus vários estudos sobre as relações de poder, mas especialmente a Microfísica do poder e, mais

ainda, na sua última obra, a História da sexualidade.

Importante também é verificar que as considerações acerca da responsabilidade na relação entre

pais e filhos não devem se reduzir ao fato de se averiguar quais são as obrigações que já existem,

ou que decorrem desta relação por sua própria condição e estrutura natural, nem de se averiguar

quais são os meios de compensação de danos na má gestão dessa autoridade paterna, por vez

patriarcal.

É claro que envolve estes aspectos também, mas de forma alguma deve se restringir a eles, pois,

se ficarem, as considerações, restritas a essa perspectiva técnica, talvez não se ampliem

satisfatoriamente os horizontes. Talvez seja necessário – e até imprescindível – ir a um ponto

outro, de estranha inversão, e verificar que é preciso conhecer o que há, nos filhos, que determina

a autoridade dos pais.

Questão muito curiosa, essa, porque parece inverter a própria idéia de autoridade. Afinal, se

alguém tem autoridade sobre um outro, que coisa mais extravagante haveria do que a idéia de

que a autoridade é medida por quem está a ela subordinado?

De fato, a questão é extravagante.

Mas será que pode ser garantido algum resultado positivo à questão oposta, que é mesmo a

questão clássica, de saber qual é o poder que a autoridade tem por sua própria vontade ou

potência? Ao que parece, ela sempre foi útil para conceber a relação dos pais com os filhos como

um pátrio poder, como uma relação de dominação dos filhos pelos pais. E sendo apenas isso, os

benefícios ou as garantias desta relação, para os filhos, são mais produto da sorte do que das

necessidades dos filhos. Ou não?

Deixo essa questão em aberto, porque o mais importante, segundo me parece, é o enfrentamento

da outra questão: o que há, nos filhos, que determina a autoridade dos pais?

5. Os critérios para a definição da autoridade e, conseqüentemente, da responsabilidade paterno-

filial, sob o enfoque do jus-naturalismo moderno: o fundamento, a titularidade e a extensão.

Esta questão é, de certa forma, esboçada pelo jus-naturalismo, como mostra Alfred Dufour, no

estudo antes mencionado, sendo certo que a partir de então ocorreram algumas inovações de

peso na concepção jurídica da relação entre pais e filhos.

Pela primeira vez, provavelmente, apareceu no pensamento jurídico moderno a idéia de que os

filhos não são propriedade dos pais, ainda que estejam necessariamente sob sua custódia e

autoridade. Não há, entre esses autores do pensamento jurídico moderno, um perfeito consenso

em todos os aspectos, mas há pontos em comum que permitem, imagino, uma visão sistemática

do conjunto.

O que Dufour mostra em seu estudo é que há três critérios distintos para a definição da

autoridade paterna, todos inovadores no sentido de superarem a antiga concepção de que a

autoridade paterna é algo inquestionável, ou decididamente arbitrário. Esses três critérios, por

terem uma significação moderna, podem soar estranhos à compreensão contemporânea; mas

contêm elementos únicos para que a mesma autoridade paterna, e a responsabilidade nessa

relação, seja repensada hoje em dia. Os critérios para a definição dessa autoridade, e

conseqüentemente das condições da sua responsabilidade, são: o fundamento; a titularidade; a

extensão.

A respeito do critério relativo ao fundamento da autoridade paterna, há três formas de expressá-

la, segundo o jus-naturalismo moderno: uma fundamentação hierárquica, uma fundamentação

convencionalista e uma fundamentação funcional.

A fundamentação hierárquica lembra, em parte, as concepções antigas e consiste na concepção de

que a autoridade dos pais sobre os filhos no quadro da sociedade familiar tem como fundamento a

natureza. Essa é a posição, por exemplo, de Hugo Grotius (autor do tratado Do direito de guerra e

de paz, de 1625), que considera que os pais, por gerarem os filhos, têm direito sobre suas pessoas

como quem tem direitos sobre qualquer coisa de que seja o criador. É, na verdade, a primeira das

concepções da autoridade paterna desenvolvida dentro do jus-naturalismo e será, em

conseqüência, muito combatida mesmo dentro de seus domínios, especialmente porque carrega

ainda algo das concepções pré-jus-naturalistas.

Mas ela é inovadora na medida em que coloca como base para a concepção da autoridade a

necessidade de um critério que seja racional. Para Grotius, esse critério racional é a natureza, mas

a natureza que ele vê é semelhante à que a teologia via quando analisava a relação entre o

homem e Deus: já que Deus é o criador dos homens, os homens são como objetos que pertencem

a Deus; identicamente, já que os filhos são criação original dos pais, são como que objetos que

lhes pertencem, ou cuja liberdade depende diretamente dos pais.

A linha jus-naturalista de pensamento manterá, nos dois séculos seguintes, a idéia de natureza

como base para se pensar a liberdade e os direitos; mas trabalhará uma outra idéia de natureza,

ou verá, a partir da mesma natureza, outras necessidades e outros direitos, seja para os pais, seja

para os filhos.

A fundamentação convencionalista consiste numa idéia que se assemelha muito à concepção jus-

naturalista do contrato social, e está presente, por exemplo, no Leviatã (1651) de Hobbes: da

mesma forma como a vida em sociedade só existe porque os cidadãos consentem com sua

existência, a vida em família também só existe porque os filhos assim o consentem. Mesmo que a

família seja uma associação onde há uma certa relação de poder, não à toa muito assemelhada

com a relação que um monarca tem com seus súditos, o que ocorre é que esse poder só existe

porque os súditos, isto é, os filhos, o aceitam.

A idéia – ainda que bastante curiosa – é reveladora de um certo poder por parte dos filhos, coisa

que talvez não se visse em Grotius, e que certamente não se via antes do jus-naturalismo. É uma

ousadia gigantesca, em termos teóricos, conceber que há algo na vontade dos filhos que

determina o poder dos próprios pais, ainda mais porque se trata de algo que não está sob o poder

dos pais: a razão dos filhos, a vontade dos filhos.

Os pais, de fato, podem obrigar as ações dos filhos, mas não podem obrigar sua vontade, seu

desejo. Da mesma forma como é inútil legislar a consciência na vida civil, na vida familiar essa

tentativa também é completamente inútil. Isso significa, do ponto de vista de Hobbes que, se a

sociedade familiar está estabelecida (e ela certamente vem de fatores naturais), é igualmente

verdade que a sua continuidade e perpetuidade depende diretamente do arbítrio de quem está

abaixo do poder. Ora, este é um modo de análise absolutamente novo na história do pensamento

jurídico.

Na mesma linha, um outro autor do século XVII, Samuel Pufendorf, em seu tratado Do direito de

natureza e das gentes (1672), dirá que a autoridade paterna é a autoridade mais antiga e a mais

sagrada que se acha entre os homens. Ou seja, o que marca a validade dessa autoridade é um

valor moral que Pufendorf atribui à autoridade paterna, porque, para ele, o sagrado não é aquilo

que decorre do divino, mas é aquilo que é tido como moralmente válido.

É um passo que vai além da simples geração dos filhos como sendo base para a autoridade paterna

(como era em Grotius), porque, segundo Pufendorf, o que determina a autoridade dos pais sobre

os filhos não é a simples geração, mas a semelhança: há validade na autoridade desde que os

filhos sejam semelhantes a nós e estejam, como nós, igualmente dotados daqueles direitos

naturais comuns a todos os homens.

Vale dizer, a autoridade paterna tem um fundamento natural que envolve, agora, a moral. Num

certo sentido, a autoridade depende, também, dos filhos, porque ela só é válida na medida em

que os pais cumprem obrigações perante os filhos. Essas obrigações, se não são impostas pela

vontade dos filhos (como talvez fosse o caso em Hobbes), ao menos são moralmente necessárias,

e nenhuma autoridade pode ser concebida se não houver, reciprocamente, o cumprimento das

obrigações por parte dos próprios pais.

Assim, segundo Pufendorf, a condição paterna envolve moralmente um encargo, do qual os pais

não têm como escapar moralmente (ainda que possam dele escapar materialmente).

O que se extrai de Hobbes e de Pufendorf, se tomados em conjunto, é a revelação de que a

paternidade, mesmo que envolva um poder sobre os filhos, envolve necessariamente um dever

quanto aos filhos. Não importa se em função da vontade dos filhos (concepção de Hobbes) ou se

em função da moralidade da própria relação (como em Pufendorf).

Em qualquer caso, não está mais nas mãos dos pais, apenas, todo o arbítrio sobre o valor dessa

autoridade e a sua correspondente responsabilidade. Essa idéia é extremamente reveladora,

porque mostra a fragilidade a que se pode expor a idéia de domínio dos filhos pelos pais. Esse

domínio, sempre que os filhos não o desejarem porque é violento, ou sempre que for contrário à

necessidade moral da relação, não pode ser legítimo.

Por seu turno, a fundamentação funcional consiste numa concepção do final do jus-naturalismo

que tenderá a ser continuada após o jus-naturalismo moderno: ela considera que a sociedade

familiar tem uma finalidade – o sustento e educação ou formação dos filhos – e que a autoridade é

válida em função de cumprir essa finalidade.

Se a finalidade é natural ou voluntária, pouco importa; o que importa é que ela é irrecusável, e que

nenhuma família poderia ser concebida sem que tivesse como finalidade conjunta a formação dos

seus integrantes. Na divisão de poderes e funções dentro da própria família, aos pais cabe, como

adultos e ainda como geradores, proverem a formação dos filhos, e a estes cabe obediência na

medida em que recebem a formação ou dependem dela.

Caso não mais dependam, todavia, seja da formação, seja dos pais para receber a formação, nada

mais de potestativo resta como elo para essa estrutura familiar. Quem formula bases teóricas para

uma tal concepção, por exemplo, são jus-naturalistas do final do século XIX, como o inglês John

Locke, e outros do correr do século XVIII, como Christian Wolff, Thomasius, Burlamaqui e

Barbeyrac.

Uma passagem de Locke, nesse sentido, é esclarecedora: Os filhos, confesso, não nascem [em]

estado pleno de igualdade, embora nasçam para ele. Quando vêm ao mundo, e por algum tempo

depois, seus pais têm sobre eles uma espécie de domínio e jurisdição, mas apenas temporários. Os

laços dessa sujeição assemelham-se aos cueiros em que são envoltos e que os sustentam durante

a fraqueza da infância. Quando crescem, a idade e a razão os vão afrouxando até caírem

finalmente de todo, deixando o homem à sua própria e livre disposição.

Talvez esta seja, dentre as concepções elementares do jus-naturalismo em torno da relação

paterno-filial, a mais próxima da contemporaneidade, mas é importante notar o que ela ainda

mantém de essencialmente moderno: a relação de obediência e de autoridade se mantém na

medida em que se mantém, antes de tudo, a relação de segurança e formação.

O que há de novo e importante nessa concepção, buscando compará-la, inclusive, com as demais

que já eram esboçadas pela século XVII é o fato de que ela diz algo radical: a relação entre pais e

filhos deve ser pensada em benefício, principalmente, dos filhos. E é a primeira vez em que isso é

dito. E é porque a relação entre pais e filhos deve ser pensada sempre tendo em vista

prioritariamente o benefício dos filhos, que aos pais cabe a educação deles, e a estes está

legitimada a desobediência em caso de irresponsabilidade ou incapacidade dos pais.

Além da concepção da autoridade paterna a respeito da sua fundamentação, há ainda as

concepções a respeito da titularidade e a respeito da extensão:

A respeito da titularidade, a vertente precípua de indagação quer verificar quem é titular do pátrio

poder – o pai ou a mãe? Com esta questão, dá-se o retorno ao papel da mulher na família. Como

aqui a referência, ainda que temporariamente, está sendo o pensamento moderno, ou seja, os

séculos XVII e XVIII, é claro que não se encontrará uma defesa entusiasmada de uma igualdade de

direitos para o homem e a mulher no que respeita a esse título. Pelo contrário, para a maioria dos

pensadores modernos, o pai tem uma autoridade maior que a mãe, inclusive porque a mulher está

sob sua autoridade, na mesma família.

Ainda assim, haveria uma defesa de igual titularidade entre homem e mulher na direção da

família, entre os modernos? Sim, houve e ela está, por exemplo, em autores como John Locke e

Thomasius, quer dizer, aqueles mesmos autores que, diante da indagação sobre o fundamento da

autoridade, fixaram-no na obrigação que têm os pais para com a educação dos filhos. De modo

semelhante, eles reconhecerão um igual direito entre o pai e a mãe, quanto à detenção da

autoridade sobre os filhos, em função justamente desse igual poder, ou igual obrigação, para

educar.

É possível assim concluir, de uma forma curiosa, acerca da finalidade da autoridade dos pais: esta

autoridade serve, segundo este pensamento, para indicar a obrigação, dos pais ou de um dos pais,

de prover a educação dos filhos. É para isso que se forma a sociedade familiar e, talvez mesmo, a

sociedade conjugal. De forma que a titularidade de nada vale se não for exercida como

cumprimento de certas finalidades as quais, segundo tais autores, são naturais tanto do ponto de

vista dos filhos quanto do ponto de vista dos pais. A educação, portanto, é o índice principal tanto

da autoridade quanto da responsabilidade dos pais, que somente nessa hipótese se confundem

evidentemente.

A respeito da extensão, como elemento identificador e qualificador da autoridade paterna, caberia

indagar até onde e até quando ela se impõe sobre os filhos?

É uma questão delicada, na medida em que envolve a concepção dos filhos como sendo ou não

propriedade dos pais. No pensamento jus-naturalista, essa idéia tende a se enfraquecer pela

primeira vez, mas é ainda um referencial para sustentar a idéia de dependência dos filhos em

relação aos pais. Não importa qual seja a fundamentação da autoridade paterna, ela sempre tem

uma necessidade de justificação racional.

Mesmo no caso da idéia de uma fundamentação natural (que era a concepção de Grotius), em que

os pais têm autoridade simplesmente por gerarem os filhos, já existe uma certa restrição do poder

paterno, na medida em que esse poder necessita, mesmo aí, abandonar o arbitrarismo.

Existe, no pensamento moderno, sempre a idéia de uma finalidade, ou de uma necessidade, a

governar a ação humana, e em especial a ação potestativa. Isso vale diretamente para a

autoridade paterna, na medida em que o pai não pode ir contra as necessidades dos filhos, ou as

finalidades coletivas dessa relação (como a educação).

Ora, mesmo no caso em que se considera, como em Grotius no início do século XVII, que só o pai é

titular do poder paterno e que este lhe é devido tão somente por ser genitor, isso ainda não é

suficiente para dar, a ele, direito de vida ou morte sobre os filhos. Essa restrição ao arbítrio

paterno é constante na figura do pai.

Assim, na definição do direito equivalente, ou seja, do que está em poder do pai ou dos pais para

arbitrar a respeito dos filhos, há uma tendência nesse pensamento moderno a desenvolver a idéia

de que podem fazer o que não prejudicar a finalidade original da relação de família. Ou seja, os

pais podem fazer o que quiserem com os filhos e com seus os bens, desde que não signifique isso

uma diminuição de segurança dos próprios filhos. Ao contrário, o que cabe aos pais em termos de

segurança dos filhos é justamente a sua formação em conjunto com a preservação de seus bens.

Isso quando não significar, como em Locke, que a própria formação envolve ensinar aos filhos a

preservar os próprios bens.

A extensão dessa autoridade dos pais equivale, portanto, a considerar que a autoridade continua

enquanto continua o processo de formação dos filhos. A partir do momento em que os filhos já

são dotados de experiência suficiente para se manterem sozinhos em suas próprias vidas, cessa

concretamente a missão original e natural dos pais com respeito à sua formação e, também, com

respeito à tutela dos seus bens.

Mas o resultado desse encerramento, em vez de significar uma libertação de um poder opressivo,

pode significar, como coroação de toda a história familiar, a fundação de uma identidade entre

pais formadores e filhos já formados, eqüalizados agora não só em seus direitos naturais, mas no

que lhes cabe como direitos civis: ao final do processo de autoridade paterna, de formação

familiar, de dependência dos filhos em relação aos pais, o que temos é uma outra associação,

cujos laços mais fortes que os laços determinados pela vida civil a todos os cidadãos são

justamente os laços do afeto, quando tais laços tenham tido a devida oportunidade de se

formarem, ao longo de todo esse percurso.

A história das concepções de autoridade paterna não começara no pensamento moderno e não

terminará com ele. E a história propriamente dita da responsabilidade envolvida nessa autoridade,

se aparece com clareza nos modernos, tenderá a continuar.

De modo que seria possível estender essa história da concepção do poder paterno, cada vez mais

distinto da concepção clássica e mais ainda da concepção antiga de pátrio poder, para os tempos

atuais. Mas não é o objetivo desta palestra.

A intenção desta referência aos modernos é encontrar, na história do pensamento jurídico, uma

fonte racional para se pensar a responsabilidade paterna fora daqueles moldes que vinham, desde

os gregos, fixando a idéia de que os pais têm um poder equivalente à sua vontade ou seu arbítrio,

sem medidas estabelecidas seja pela natureza, seja pela moral, seja pela razão, seja pelo desejo.

E a modernidade nos apresenta esta medida, certamente pela primeira vez.

A autoridade paterna existe somente enquanto corresponde a uma obrigação, obrigação

fundamentalmente de prover o sustento e a formação; mas essa obrigação é definida cada vez

mais pelas necessidades dos filhos e cada vez menos pelos arbítrios dos pais ou do pai.

A grande prova de que os filhos deixam de ser coisas nas mãos despóticas dos próprios pais é a

existência crescente de sua liberdade para interferir na determinação dos rumos de toda a família.

Quando o mundo moderno se conclui na passagem do século XVIII para o XIX, os filhos já tinham,

dentro do pensamento político e pedagógico, uma importância nunca antes vista.

Ainda que a prática pedagógica e a prática social, assim como a própria dogmática civilista, se

demorem a absorver essas concepções, elas são uma conquista estabelecida no interior da

modernidade. Como diz Alfred Dufour: "Ao substituir um universo de hierarquias naturais por um

universo de autoridades consentidas em favor de aplicação, no domínio das ciências sócio-morais,

do método das ciências físicas e matemáticas, os teóricos do Direito natural moderno não se

contentaram em lançar as bases de uma nova ordem moral e política emancipada da tutela da

teológica."

O que os filósofos jus-naturalistas causaram, com sua revolução metodológica no tratamento do

assunto, foi a necessidade de dar ao pensamento em torno da autoridade e da responsabilidade

paterna bases exclusivamente racionais, bases necessariamente científicas. É com esse

pensamento moderno, enfim, que o cálculo e a definição dos papéis em família exige ser pensado

fora de modelos, mas unicamente dentro da observação das relações humanas como elas

concretamente se dão.

Tendo isso em vista, podemos passar para um outro registro, que é o de considerar a validade

dessa fundamentação racional da autoridade e da responsabilidade paterna. A questão é válida

desde que se mantenha válido o princípio de que aos pais não cabe qualquer arbítrio contrário à

necessidade dos filhos. Essa é uma lição dos modernos, que cabe diretamente a nós, hoje.

Retomemos algo que foi perguntado mais atrás: o que há, nos filhos, que determina a autoridade

dos pais?

Essa questão é mais ousada do que parece à primeira vista, porque pressupõe o questionamento

de algo que o costume usa considerar inquestionável, a autoridade paterna.

Ora, se os pais detêm alguma autoridade sobre os filhos, o que determina a legitimidade das suas

decisões?

À luz dos modernos, poderíamos dizer que é o benefício dos filhos, sempre. A julgar pelo que nos

esclarece a filosofia jurídica moderna, jamais, não importa qual seja a fundamentação da

autoridade, os pais estão livres de atender às necessidades dos filhos.

Os pais que têm aquele poder quase absoluto sobre os filhos porque são genitores e estão, na

verdade, subordinados a uma necessidade da natureza inteira, que é a de preservação de todos os

seus elementos constituintes.

O direito quase divino dado aos pais, segundo Grotius, sobre seus filhos (porque estes vieram

daqueles) não significa, jamais, o direito de retirar-lhes a vida. Pense-se nisto a partir do ponto de

vista do filho, por outro lado. É claro que não há nada na sua estrutura natural que peça a sua

morte, a sua própria destruição, o seu aprisionamento ou seu suplício. Mas tudo na sua natureza

pede proteção e orientação.

Exatamente como na vida civil. Não há nada no súdito ou no cidadão que peça a extinção da sua

liberdade. Ao contrário, a sua natureza em sociedade pede liberdades, direitos, segurança da parte

do poder soberano.

Parece-me correto, então, dizer que a relação de obediência e orientação só é válida na medida

em que ofereça segurança aos atores aí envolvidos, e prioritariamente aos que mais dependem

dessa segurança, na família, isto é, os filhos.

Talvez toda a autoridade dos pais possa, por isso mesmo, ser reduzida a esse único princípio – sua

potência, ou sua responsabilidade, para garantir segurança aos filhos.

Essa redução, completamente legítima e reveladora do essencial, dá à idéia de poder paterno um

significado que retira qualquer pontificação negativa. Com ela, o poder paterno não desaparece,

mas se torna uma atividade voltada para o benefício do receptor, portanto para um benefício que

é público e não privado. É essa publicidade do poder paterno, dentro da sociedade familiar, que

permite chamar a esse poder, na verdade a essa generosidade, uma autoridade em certa medida.

Quando a autoridade se apresenta não como entidade castradora ou opressora, mas formadora e

protetora, a criança se vê continuada nos próprios pais. Ao contrário, quando ela se vê explorada

ou de alguma forma neutralizada, o que ela vê não são os seus protetores, mas os seus inimigos

mais diretos.

O índice a determinar se a relação entre pais e filhos é uma relação entre formadores mútuos ou

entre inimigos mútuos é, especialmente, a necessidade dos filhos.

Essa idéia não estaria, em contrapartida, dando aos filhos um poder que eles não têm ou não

deveriam ter? A saber: o poder de, pelo próprio desejo, quando não pela própria birra, recusar a

orientação e proteção dos pais?

A idéia de natureza, de certa maneira, se preserva aí, sem, todavia, deixar uma reserva para a

violência agora pelo lado da parte mais fraca, ou inferior na antiga hierarquia.

Como diria Espinosa, a essência do homem é o desejo, e não há como pretender eliminar o desejo

em quem quer que seja, muito menos na criança, que comumente vive em estado de hilaridade.

O perigo para qualquer ser humano em qualquer relação, e isso vale para pais e filhos na relação

de família, não é o desejo que se manifesta por qualquer das partes, mas a violência que pode

decorrer das próprias ações. A violência é, por definição, a própria ação contrária à natureza de

algo ou de alguém. Se o desejo é natural, um ato violento não decorre necessariamente do desejo

humano, mas de uma compreensão equivocada do que se deseja ou do que se necessita

verdadeiramente.

Isso vale para qualquer relação humana, isso vale também para as relações de família: assim como

não cabe aos pais serem violentos com os filhos, não cabe aos filhos serem violentos com os pais.

O que não representar violência, todavia, não representa perigo à natureza de cada uma das

partes, e portanto merece toda concessão, ou, para usarmos a palavra que deve sempre estar

presente, merece toda liberdade.

A responsabilidade dos pais consiste principalmente em dar oportunidade ao desenvolvimento dos

filhos, consiste principalmente em ajudá-los na construção da própria liberdade. Trata-se de uma

inversão total, portanto, da idéia antiga e maximamente patriarcal de pátrio poder. Aqui, a

compreensão baseada no conhecimento racional da natureza dos integrantes de uma família quer

dizer que não há mais fundamento na prática da coisificação familiar.

As relações de família, já que se dão no interior de uma sociedade, tendem a atravessar

constantemente essa tensão que ora distancia, ora aproxima, as relações de poder e as relações

de afeto. Consideremos que a relação em família não precise ser uma relação de poder, ainda que

haja quem considere isso impossível. Mas se ela não é uma relação de poder, ou de dominação, o

que ela é ou pode ser? Somente uma relação afetiva. Isso, para o que entendemos por família, faz

sentido, mas a concorrência entre afeto e interesses familiares não é tão evidente quanto deveria,

o que exige, do civilista que se dedica hoje ao tema das relações de família, uma atenção especial à

condição dessas pequenas sociedades como ligações mantidas nuclearmente pelo afeto.

Conceber as famílias como associações determinadas pelo afeto significa necessariamente recusar

que sejam determinadas por uma relação de dominação ou poder.

Paralelamente, significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em termos,

justamente, de afeto e proteção. Poder-se-ia dizer, assim, que uma vida familiar na qual os laços

afetivos são atados por sentimentos positivos, de alegria e amor recíprocos em vez de tristeza ou

ódio recíprocos, é uma vida coletiva em que se estabelece não só a autoridade parental e a

orientação filial, como especialmente a liberdade paterno-filial.

Uma vida familiar que, ao contrário, é marcada pelas relações de ódio é claramente uma vida na

qual se perdeu qualquer equilíbrio afetivo, porque já não se percebem, aí, identidades,

semelhanças, generosidades. Pior: concebe-se que alguma paz só pode ser conquistada se se

impuser, de qualquer das partes, uma tirania da opressão sobre a parte inimiga. Aí já não se trata

mais de responsabilidade numa relação paterno-filial, mas de uma responsabilidade mais

apropriada àquilo que Grotius chamava de direito de guerra.

Que contribuição pode dar, assim, a filosofia, e especialmente a filosofia moderna, para a

consideração racional ou ética da responsabilidade nas relações de família? Diria que uma

contribuição precisa e espantosamente necessária hoje em dia: a reflexão sobre o sentido, nas

relações de família, dos laços afetivos como laços inquebrantáveis apesar do próprio

desaparecimento dos modelos tradicionais de família.

O que torna esses laços inquebrantáveis é mais que o fracasso ou a natureza nefasta dos laços de

poder e dominação, quando estes infestam a concepção que uma família pode ter de si própria. Os

laços afetivos são inquebrantáveis porque, como mostrava já Pufendorf, sempre estiveram na

origem das relações de família, porque ela é o lugar natural dessa prática da identidade entre os

seus integrantes.

Seria, posteriormente, a excessiva carga institucional dada às relações familiares que voltaria a

dificultar a compreensão da família como campo de liberdade coletiva; mas, como o desejo de

identidade e união é mais forte do que o desejo de dominação e disputa, nenhuma autoridade ou

responsabilidade fora desse interesse exclusivo na proteção e na formação dos filhos pode ser

verdadeiramente válido.

É isso, principalmente, o que os modernos nos mostram a respeito da responsabilidade nas

relações de família: elas só são legítimas enquanto se concentram no interesse pela formação e

pela liberdade dos filhos.

* Palestra proferida no III Congresso Brasileiro de Direito de Família – Família e Cidadania: o novo

Código Civil Brasileiro e a ‘vacatio legis’, em 26.10.2001, promovido pelo Instituto Brasileiro de

Direito de Família – IBDFAM e pela OAB/MG, na cidade de Ouro Preto (MG).

1.Registro, com grande honra, que para a elaboração desta palestra, contei com a generosidade da

inteligência de certos colegas de assunto, aos quais sou extremamente grata, e que, com sua

colaboração inestimável, deixaram estas notas mais sofisticadas, com um certo ar interdisciplinar,

pelo qual tanto ansiei. São eles: Fernando Dias Andrade (filósofo e professor), Sandra Olivan Bayer

(advogada), Giselle Groeninga (psicóloga e mediadora), Águida Arruda Barbosa (advogada e

mediadora), Maria Berenice Dias (desembargadora), Rodrigo Cunha Pereira (advogado e

professor) e Euclides de Oliveira (advogado e professor), todos, à exceção do primeiro, membros

e/ou dirigentes do IBDFAM.

2.Dentre a riquíssima bibliografia que pode ser consultada a respeito do assunto, registro em

especial a formidável obra de Albertino Daniel de Melo, professor titular da Faculdade de Direito

da Universidade Federal de Minas Gerais, denominado A responsabilidade civil pelo fato de

outrem, nos direitos francês e brasileiro, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1972. E, ainda, como ponto

de partida para a visualização desta divergência qualificatória da responsabilidade indireta dos pais

pelos danos causados por seus filhos menores, recomendo a leitura das singulares 18 linhas de

comentários ao art. 1523 do Código Civil em vigor que a Professora Maria Helena Diniz registra em

seu Código Civil Anotado, Editora Saraiva, São Paulo (minha edição é a de 1995, gentilmente

dedicada pela autora).

3.Respectivamente, fragmentos 110 e 111 dos ditos de Demócrito.

4.A expressão masculista, em lugar de machista, se deve a Marilena Chauí, em Repressão sexual, essa

nossa (des)conhecida.

5. A. Dufour, "Autorité maritale et autorité paternelle dans l'école du droit naturel moderne", Archives

de philosophie du droit, t. 20, Paris, 1975.

6. A este respeito, leia-se os bem talhados capítulos Poder Familiar, de Paulo Luiz Netto Lobo, e

Parentesco e Filiação, de Rosana Fachin, ambos contidos na obra coletiva coordenada por Rodrigo da

Cunha Pereira e Maria Berenice Dias, denominada Direito de Família e o novo Código Civil, Editora Del

Rey, Belo Horizonte: 2001.

7. F.D. Andrade, "Sobre ética e ética jurídica", http://sites.uol.com.br/grus/eej.htm

8. Análise do assunto se encontra em F.D. Andrade, Filosofia do direito, parte IV ("Direito e justiça"),

previsto para 2002.

9. Locke, Segundo tratado sobre o governo, cap. VI, § 55.

10. A. Dufour, p. 124.

11. A propósito, é devidamente inovadora a contribuição de Silvana Maria Carbonera, em seu estudo

sobre "O papel jurídico do afeto nas relações de família", em L.E. Fachin (org.) Repensando fundamentos

do Direito Civil brasileiro contemporâneo, Rio de Janeiro, Renovar, pp. 273-315.

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka é diretora do IBDFAM - Região

Sudeste, professora, Doutora e livre-docente pela USP

7. Fique por Dentro

MOMENTO PROPÍCIO

STJ vai uniformizar jurisprudência sobre abandono afetivo

08 de abril de 2014, 10:15h

Por Luis Felipe Salomão

Abandono afetivo é termo hoje encontrado com relativa frequência no âmbito forense e nos mais

variados manuais de direito de família.

Em resumo, consiste na indiferença afetiva dispensada por um genitor a sua prole, um desajuste

familiar que sempre existiu na sociedade e, decerto, continuará a existir, desafiando soluções de

terapeutas e especialistas.

O que é relativamente recente, contudo, é a transferência dessa contenda própria do ambiente

familiar para as salas de audiências e tribunais país afora, essencialmente sob a forma de

indenizações pecuniárias buscadas pelo filho em face do pai, ao qual se imputa o ilícito de não

comparecer aos atos da vida relacionados ao desenvolvimento social e psíquico de seu

descendente.

O Superior Tribunal de Justiça terá a inédita oportunidade de uniformizar o entendimento acerca

do tema por ocasião do julgamento dos EREsp 1.159.242/SP, de relatoria do eminente ministro

Marco Buzzi, previsto para esta quarta-feira (9/4), na 2ª Seção - Direito Privado.

A primeira vez em que a corte deliberou sobre o tema foi no julgamento do REsp 757.411/MG,

relatado pelo ministro Fernando Gonçalves. O caso foi julgado pela 4ª Turma, no dia 29 de

novembro de 2005, tendo aquele Colegiado, por maioria de votos, sufragado a tese de ser

incabível a indenização por abandono afetivo.

O voto condutor apoiou-se em dois fundamentos: a) a consequência jurídica do abandono e do

descumprimento dos deveres de sustento, guarda e educação é a destituição do poder familiar

(artigo 24 do Estatuto da Criança e Adolescente e artigo 1.638, inciso II, do Código Civil), não

havendo espaço para a compensação pecuniária pela desafeição; b) a condenação ao pagamento

de indenização, na contramão dos mais nobres propósitos imagináveis, consubstanciaria

exatamente o sepultamento da mínima chance de aproximação entre pai e filho, seja no presente

ou futuro.

Essa tese foi reafirmada por ocasião do julgamento do REsp 514.350/SP, relatado pelo ministro

Aldir Passarinho Junior, na 4ª Turma, em 28 de abril de 2009.

Porém, no primeiro semestre de 2012, a 3ª Turma abraçou entendimento contrário, tendo sido

acolhida a possibilidade de indenização do abandono afetivo (REsp 1.159.242/SP, relatado pela

ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 24 de abril de 2012). A ilustrada relatora, no que foi

acompanhada pela maioria dos demais integrantes do colegiado, consignou que o chamado

abandono afetivo constitui descumprimento do dever legal de cuidado, criação, educação e

companhia, presente, implicitamente, no artigo 227 da Constituição Federal, omissão que

caracteriza ato ilícito passível de compensação pecuniária. Utilizando-se de fundamentos

psicanalíticos, a eminente relatora afirmou a tese de que tal sofrimento imposto a prole deve ser

compensado financeiramente.

Diante do dissídio jurisprudencial entre as 3ª e 4ª Turma do mesmo Tribunal, a Segunda Seção do

STJ apreciará os embargos de divergência (EREsp 1.159.242/SP).

O julgamento é importante e realça o papel do Tribunal da Cidadania, no sentido de uniformizar a

jurisprudência nacional como último intérprete da lei federal. Certamente, ambas as posições têm

seus pontos virtuosos e merecem detida reflexão.

A professora Maria Berenice Dias foi no cerne da questão: “os grande desafio dos dias de hoje é

descobrir o toque diferenciador das estruturas interpessoais que permita inseri-las em um

conceito mais amplo de família. Esse ponto de identificação é encontrado no vínculo afetivo”.

A posição quanto a não indenização tangencia pontos sensíveis acerca do tema, notadamente a

indesejável intervenção do Estado na família e a desjudicialização das relações sociais.

Em outras palavras, o direito de família deve observar uma principiologia de intervenção mínima

neste campo — pois envolvem bens especialmente protegidos pela Constituição, como a

intimidade e a vida privada —, erguidos como elementos constitutivos do refúgio impenetrável da

pessoa e que, por isso mesmo, podem ser opostos à coletividade e ao próprio Estado.

Finalmente, a migração para os tribunais de temas antes circunscritos ao ambiente familiar

merece mesmo reflexão não somente de juristas, mas de terapeutas e cientistas sociais, como

forma de análise da família no contexto do novo milênio.

Assim, realizada essa breve abordagem acerca das posições contrária e favorável da

indenizabilidade do abandono afetivo, é mesmo hora propícia para que o Superior Tribunal de

Justiça uniformize a jurisprudência sobre esse delicado tema.

De toda sorte, independentemente da conclusão a ser obtida no julgamento dos EREsp

1.159.242/SP, o debate ora estabelecido parece, de fato, confirmar que a chamada “modernidade

líquida”, segundo Bauman, promove uma progressiva eliminação da "divisão, antes sacrossanta,

entre as esferas do 'privado' e do 'público' no que se refere à vida humana”.

Luis Felipe Salomão é ministro do Superior Tribunal de Justiça.

Revista Consultor Jurídico, 08 de abril de 2014, 10:15h

Fonte: http://www.conjur.com.br/2014-abr-08/luis-felipe-salomaostj-uniformizar-entendimento-

abandono-efetivo?imprimir=1 acessado em 24 de junho de 2014.

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Um abraço!

Fiquem com Deus, sempre!

O amigo,

Pablo.

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