2014 - vanessa marx (org) - democracia participativa, sociedade civil e território –ufrgs:cegov

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DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, SOCIEDADE CIVIL E TERRITÓRIO VANESSA MARX ORGANIZADORA EDITORA [ CAPACIDADE ESTATAL E DEMOCRACIA ]

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Vanessa Marx (Org) - Democracia Participativa, Sociedade Civil e Território –UFRGS:CEGOV, 2014.

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  • DEMOCRACIA PARTICIPATIVA,

    SOCIEDADE CIVIL E TERRITRIO

    VANESSA MARX ORGANIZADORA

    EDITORA

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    MO

    CRA

    CIA]

  • DEMOCRACIA PARTICIPATIVA,

    SOCIEDADE CIVIL E TERRITRIO

  • Centro de Estudos Internacionais

    sobre Governo (CEGOV)

    Diretor

    Marco Cepik

    Vice Diretor

    Luis Gustavo Mello Grohmann

    Conselho Superior CEGOV

    Ana Maria Pellini, Ario Zimmermann,

    Andr Luiz Marenco dos Santos, Ivan

    Antnio Pinheiro, Luis Incio Lucena

    Adams, Paulo Gilberto Fagundes

    Visentini, Tarson Nuez

    Conselho Cientico CEGOV

    Carlos Schmidt Arturi, Cssio da Silva

    Calvete, Diogo Joel Demarco, Fabiano

    Engelmann, Hlio Henkin, Leandro

    Valiati, Jurema Gorski Brites, Ligia

    Mori Moreira, Luis Gustavo Mello

    Grohmann, Marcelo Soares Pimenta,

    Vanessa Marx

  • DEMOCRACIA PARTICIPATIVA,

    SOCIEDADE CIVIL E TERRITRIO

    VANESSA MARX ORGANIZADORA

    [C

    APA

    CID

    AD

    E E

    ST

    ATA

    L E

    DE

    MO

    CRA

    CIA]

    PORTO ALEGRE

    2014

    EDITORA

  • DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP)

    D383 Democracia Participativa, Sociedade Civil e Territrio / Vanessa Marx, organizao Porto Alegre : UFRGS/CEGOV, 2014. 202p. ; il. (Capacidade Estatal e Democracia) ISBN 978-85-386-0255-2

    1.Democracia participativa Oramento participativo Brasil. 2. Sociedade civil Mobilizao social Movimentos sociais Brasil. 3. Universidade pblica Participao Polticas pblicas Brasil. I. Marx, Vanessa. II. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Centro de Estudos Internacionais sobre Governo. III. Srie CDU 323.2(81)

    Bibliotecria Maria Amazilia Penna de Moraes Ferlini CRB-10/449

    dos autores1 edio: 2014

    Direitos reservados desta edio:Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    Coleo CEGOV Capacidade Estatal e Democracia

    Reviso: Fernando Preusser de Mattos, Fernanda Lopes Silva, Ricardo Fagundes Lees

    Projeto Grico: Joana Oliveira de Oliveira, Liza Bastos Bischof, Henrique Pigozzo da Silva

    Capa: Joana Oliveira de Oliveira

    Foto da Capa: Cristiana Maglia

    Impresso: Grica UFRGS

    Apoio: Reitoria UFRGS e Editora UFRGS

    Os materiais publicados na Coleo CEGOV Capacidade Estatal e Democracia so de exclusiva responsabilidade dos autores. permitida a reproduo parcial e total dos trabalhos, desde que citada a fonte.

  • 13

    2

    4

    GOVERNANA DEMOCRTICA NO BRASIL: OS CONSELHOS NACIONAIS DE POLTICAS SOCIAIS

    APRESENTAOO BRASIL DA PARTICIPAO E DA MOBILIZAO SOCIAL

    PREFCIO

    AS RELAES ENTRE OS FRUNS DE ECONOMIA SOLIDRIA E AS POLTICAS PBLICAS

    79

    AVALIAO DAS PRTICAS DE CONSTRUO DOS ORAMENTOS PARTICIPATIVOS

    AS ORGANIZAES SOCIAIS E O PROGRAMA DE AQUISIODE ALIMENTOS NO RIO GRANDE DO SUL

    Soraya Vargas Cortes

    Vanessa Marx

    Yves Sintomer

    Luciano Fedozzi

    Marcelo Kunrath Silva, Claudia Job Schmitt

    SUMRIO

    Ana Mercedes Sarria Icaza

    25

    11

    7

    49

    5Fabio Meira

    114

    [DEMOCRACIA PARTICIPATIVA]

    [SOCIEDADE CIVIL]

    92

    ORGANIZAO LIMINAR E SOCIEDADE CIVIL: ANLISE DO MOVIMENTO OCUPAR

  • 6Pedro Costa

    132

    7INTERFACES, TRANSESCALARIDADE E MULTINATURALISMO: UMA ABORDAGEM PROJETUAL

    Eber Marzulo, Leandro Marino Vieira Andrade, Marcelo Arioli Heck

    SUMRIO

    Roberto Rocha Coelho Pires

    154

    [TERRITRIO]

    [REFLEXES FINAIS]

    181

    PARTICIPAO E ALTA VULNERABILIDADE SOCIAL: UM ESTUDO DE CASO EM PORTO ALEGRE RS

    DA SOCIEDADE PARA O ESTADO:DESAFIOS DA PARTICIPAO NO BRASIL8

  • DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, SOCIEDADE CIVIL E TERRITRIO

    7

    PREFCIO

    YVES SINTOMERProfessor de Cincia Poltica, Universit Paris 8 e pesquisador do Centro

    de Estudos Sociolgicos e Polticos de Paris (CRESPA, CNRS). Pesqui-sador associado do Instituto de Sociologia da Universit de Neuchtel,

    Sua. Pesquisador visitante, Ash Center for Democratic Governance and Innovation, Harvard Kennedy School, Harvard University.

    O breve sculo XX, como Eric Hobsbawm o chamou, terminou h mais de duas dcadas. Ns entramos em um novo sculo. O futuro est aberto, mas uma coisa parece clara: o novo sculo provavelmente vai durar mais do que o anterior, mas no vai se parecer com ele. As sociedades mudaram muito para que a poltica permanea a mesma. Ns entramos em uma nova era. Precisamos de novos pais fundadores e de novas mes fundadoras desta vez, ou mais precisamente, de novos experimentos fundadores para criar uma nova ordem constitucional. No apenas um documento legal redigido, mas tambm uma constituio material no sentido Gramsciano do termo, um novo modo de se estabelecer a estrutura bsica da sociedade.

    Na Europa e no Norte Global, vivemos a terceira idade da democracia re-presentativa. Esse sistema pode ser muito atraente para pessoas que no dispem dele, e ele no enfrenta mais reais competidores globais, porm, na velha Europa, h um ntido declnio da coniana no sistema poltico institucional. Esta no a primeira vez em que pases europeus enfrentam uma crise de legitimidade, e algumas das crises passadas levaram a eventos dramticos. No entanto, ao longo do sculo passado, o advento do sufrgio universal, a criao de partidos de massa, o desenvolvimento de sindicatos fortes e reconhecidos sustentando dispositivos neo-corporativistas, e a inveno de Estados de bem-estar social produziram, por im, resultados signiicativos. A tenso entre capitalismo e democracia fora ate-

  • CEGOVCAPACIDADE ESTATAL E DEMOCRACIA[ ]

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    nuada; geraes de ativistas oriundos dos movimentos sociais foram incorporadas ao aparato estatal; diversos canais de comunicao entre o povo e os governantes foram estabelecidos. O saldo total de legitimidade da democracia representativa parecia estar no seu pice poca da queda do muro de Berlim. Isso acabou. A la-cuna entre o sistema poltico e os cidados tem se ampliado. O movimento Occupy Wall Street e movimento dos Indignados testemunhados nos ltimos anos so sintomas dessa situao, e um protesto contra ela.

    Contudo, para alm da Europa e do Norte Global, o mundo se move seguin-do outras trajetrias. A evoluo da Amrica Latina especialmente vlida de se analisar, e o Brasil, particularmente, um dos pases mais interessantes para a inovao democrtica atualmente. Os desenvolvimentos que tm ocorrido nesse pas revelam uma sobreposio de distintas temporalidades. Por um lado, a consti-tuio de um verdadeiro Estado de bem-estar social recupera o que ocorreu na Eu-ropa e nos EUA h algumas dcadas; a trajetria do Partido dos Trabalhadores, da oposio em movimentos cidados espontneos ao poder em nvel federal, pode ser vista como o mais recente exemplo de partidos esquerdistas de massa que se multiplicaram na Europa no sculo XX; a luta para reduzir a corrupo generaliza-da ou o clientelismo poltico tambm lembra o que havia sido feito anteriormente no Norte Global.

    Por outro lado, as inovaes democrticas que vm ocorrendo no Brasil com frequncia parecem avanadas com relao ao que se experimenta na Europa ou nos EUA: elas pertencem integralmente ao sculo XXI, e no remetem a uma tra-jetria anterior da Europa nem da Amrica do Norte. A airmao do Brasil e de outros pases emergentes na cena internacional no contribuiu apenas para uma governana global menos desigual e menos semelhante a uma segregao como a do regime do apartheid (Titus Alexander). Processos de democratizao que tm se desenvolvido em diversos pases latino-americanos, e especialmente no Brasil, muito provavelmente sero considerados, no futuro, como momentos fundadores e modelos inspiradores. O novo constitucionalismo latino-americano, que tanto uma nova escola de pensamento quanto uma prtica real do desenho de uma nova ordem constitucional (e que provavelmente teve incio com a nova Constituio Brasileira em 1988), pode ser considerado como uma grande contribuio pol-tica e teoria constitucionais. A airmao plebeia que se percebe na poltica lati-no-americana, trazendo primeira linha pessoas oriundas de meios sociais e de origens tnicas que haviam sido, anteriormente, marginais poltica institucional, contrasta nitidamente em relao ao declnio da participao da classe trabalha-dora na maioria dos pases europeus mas encontra alguns paralelos na poltica da ndia, onde cotas para as castas inferiores e mdias tm alterado a origem so-cial dos polticos. A democracia participativa desenvolveu-se em grande medida no Brasil, e o renascimento da noo de democracia participativa desde os anos

  • DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, SOCIEDADE CIVIL E TERRITRIO

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    1990 , ao menos em parte, consequncia da difuso do Oramento Participativo, conhecido mundialmente. Outras dinmicas so menos conhecidas fora do Brasil, mas so igualmente muito signiicativas: os conselhos participativos e as confe-rncias sobre temas especicos da ao pblica (sobretudo em questes sociais e culturais), do nvel local aos nveis estadual e federal; formas de economia solid-ria; e uma diversidade de outros tipos de interao entre a sociedade e o Estado. O Brasil tornou-se um lder mundial em democracia participativa e a maior pea em um complexo quebra-cabeas em que a Amrica Latina a igura central.

    Os desenvolvimentos que ocorrem nesse pas podem ser considerados ex-perimentos cruciais para o futuro da democracia no sculo XXI, muito alm do Bra-sil. Por essa razo to decisivo que eles sejam estudados de forma muito precisa, e que se v alm do discurso ideolgico (seja de enaltecimento ou de repdio). Pre-cisamos realmente de anlises crticas, no sentido nobre do termo. Precisamos de conceitos antigos e novos, descries densas, dados empricos, estudos comparati-vos, anlises de transferncias. Uma das principais qualidades deste livro que ele representa uma preciosa contribuio nesse sentido. Ele examina um amplo con-junto de dinmicas participativas, ora mais ora menos institucionalizadas, recorre a diferentes aportes tericos, combina estudos de caso e panoramas comparativos e no tem a pretenso de ordenar todas as anlises sob a mesma explicao, mas sim busca obter um sentido a partir de uma espcie de mosaico. A maior parte do raciocnio convincente, e quando h crticas ou dvidas na leitura dos captulos, os dados fornecidos e a coerncia da discusso tornam possvel um dilogo crtico e construtivo. Mais estudos dessa qualidade so bem-vindos.

    Em geral, a imagem que passada a de o Brasil entrou, atualmente, na meia-idade da poltica participativa (Roberto Rocha C. Pires). A participao no tem sido apenas um processo interessante per se, ela tem contribudo profunda-mente s enormes mudanas pelas quais o Brasil passou e continua a passar, no nvel poltico e tambm no nvel material, na medida em que a participao teve inluncia em um processo que, em parte, inverte as prioridades em favor de gru-pos subalternos. precisamente por essa razo que a dinmica participatria en-frenta novos desaios: ao se alterarem as relaes de poder entre grupos sociais e se reformarem a ao pblica e as interaes entre o povo, os polticos e os servidores pblicos, ela tambm foi transformada. Dinmicas participatrias multiplicam-se de tal forma que se pode ter a impresso de que elas levariam a uma situao cati-ca, ou ao menos no ideal, sem a criao de um verdadeiro sistema de participa-o; todavia, ainda falta esse sistema, muito embora o estado do Rio Grande do Sul tenha popularizado a ideia. Quando governantes eram considerados adversrios, ou pelo menos distantes do povo, os movimentos sociais e, particularmente, os movimentos mais radiciais no viam problemas em sustentar a sua autonomia. Uma vez inseridos na dinmica de cooperao com o Estado, ou at de integrao

  • CEGOVCAPACIDADE ESTATAL E DEMOCRACIA[ ]

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    parcial a ele (por meio da migrao de muitos ativistas a cargos oiciais, ou atravs da participao em programas implementados para o bem comum ou dirigidos a populaes carentes em especico), os movimentos sociais trazem algo valioso e inovador, mas enfrentam o risco de perderem suas capacidades de crtica e sua habilidade de incluir novos problemas na agenda ou de inventar novas solues.

    As chamadas jornadas de junho, que sacudiram o pas em junho de 2013, mostraram que o conjunto altamente desenvolvido e soisticado de mecanismos de participao no previne a apario de movimentos de protesto muito simila-res aos movimentos Occupy do Norte Global em seu modo de organizao e ao. Aps a meia-idade da participao, o que vir em seguida? A terceira idade e um rpido declnio? Um Renascimento pujante aps uma atroia? Felizmente, este livro no pretende oferecer respostas deinitivas a essa pergunta: o futuro ainda no est decidido e no est claro qual ser o caminho. No entanto, os autores fornecem diversos insights crticos para lidarmos com esse assunto. A maioria de-les no so apenas analistas que abordam seu objeto de maneira pretensamente imparcial, mas sim esto eticamente engajados em defender a democratizao da democracia que, em determinada porm signiicativa medida, vem ocorrendo. Os autores no so imparciais, mas so objetivos: eles oferecem explicaes coerentes, no subestimam a fragilidade dos experimentos e examinam o material emprico. Isso denota capacidade de autocrtica e de aprendizado. por isso tambm que este livro uma contribuio estimulante tanto para pesquisadores quanto para um pblico mais amplo. No Brasil e muito alm dele.

    Cambridge, Massachusetts, 22 de maio de 2014.

  • DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, SOCIEDADE CIVIL E TERRITRIO

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    APRESENTAOO BRASIL DA PARTICIPAO E DA MOBILIZAO SOCIAL

    VANESSA MARXProfessora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio

    Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora e Coordenadora do Grupo de Trabalho de Democracia Participativa, Sociedade Civil e Territrio do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo (CEGOV) da UFRGS.

    INTRODUO

    O livro Democracia Participativa, Sociedade Civil e Territrio, que compe a coleo Capacidade Estatal e Democracia do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo (CEGOV), busca descrever por meio dos textos dos pesquisadores que fazem parte do Grupo de Trabalho Democracia Participativa, Sociedade Civil e Ter-ritrio, e atravs do texto inal do convidado do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA), questes sobre a participao e a mobilizao social no Brasil. Este livro, como resultado de pesquisas desenvolvidas pelos pesquisadores do Gru-po de Trabalho, poder nos ajudar a organizar a relexo no interior desse grupo e ao mesmo tempo contribuir para as pesquisas que vm sendo desenvolvidas no Brasil e no mundo sobre essas temticas.

    Os canais de participao e de interlocuo entre Estado e sociedade, a pres-so das mobilizaes sociais para que as agendas dos atores sociais sejam incorpo-radas pelos governos, e a importncia do territrio e da incluso dos atores sociais nos debates sobre as transformaes urbanas so temas aqui retratados.

    Os atores sociais so, em muitos textos aqui apresentados, o foco das abor-dagens, pois atuam no interior das instituies participativas, como fruns, con-selhos, o Oramento Participativo e as ruas, tensionando e pressionando os gover-nos por meio das mobilizaes sociais.

  • CEGOVCAPACIDADE ESTATAL E DEMOCRACIA[ ]

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    O surgimento de novas formas de participao cidad para exercer inlun-cia nas polticas pblicas representa um importante desaio para a teoria democr-tica, que se baseava na representao eleitoral como nico meio de expresso dos cidados frente ao governo, principalmente no sculo XX. As experincias partici-pativas estimularam o debate entre participao e representao poltica, principal-mente depois da incorporao de desenhos participativos nas instituies pblicas que estabeleciam canais de interlocuo entre Estado e sociedade. Os fruns pol-ticos de participao direta, que enriqueceram o debate pblico e a deliberao de diretrizes polticas, foram associados a espaos de representao, geralmente vin-culados ao controle social das polticas deinidas, algo que ocorre em diversas expe-rincias de oramentos participativos em nvel internacional (LUCHMAN, 2007)1.

    Os primeiros captulos buscam descrever a relao entre Estado e sociedade por meio das instituies participativas em dois perodos histricos: a partir da dcada de 1990, no ps-Constituio de 1998, e a partir do ano 2000, principal-mente com a mudana de governo no ano 2003. Dois perodos histricos com dois modelos de Estado diferenciados, mas regidos pela mesma Constituio Federal. Percebe-se tambm uma mudana da relao entre Estado e sociedade na dcada de 1990 com a reforma do Estado e a reduo de suas funes com programas de privatizao, terceirizao e publicizao, nos quais as organizaes sociais assumi-ram um papel protagonista, assumindo algumas funes que antes eram do Estado (BRESSER PEREIRA, 2004)2. A partir dos anos 2000 houve um crescimento e uma retomada das instituies participativas, a criao de novos conselhos e confern-cias, e a estruturao do Conselho de Desenvolvimento Econmico e Social (CDES), instrumento de democracia deliberativa que, ao estar posicionado de forma estra-tgica no centro do governo, teria a funo de articular consensos ou resolver con-litos em temas que so poltica e economicamente relevantes para o governo nacio-nal ou estadual, como no caso do Rio Grande do Sul. O surgimento dos Conselhos Econmicos e Sociais poderia estar relacionado a um ciclo crescente da economia, gerando as condies materiais necessrias para o consenso sobre como melhor distribuir o excedente na sociedade; ou a um contexto em que h um acordo sobre a necessidade da consolidao dos valores democrticos (FLEURY, 2003)3.

    As instituies participativas ganharam um novo flego a partir dos anos 2000, principalmente por meio das Conferncias Nacionais, principal forma de

    (1) LCHMANN, Lgia Helena H. A representao no interior das experincias de parti-cipao. Lua Nova, n. 70, p. 139-170, 2007. Disponvel em: . Acesso em: 21 jun. 2014.

    (2) BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. A reforma do Estado nos anos 90: lgica e mecanis-mos de controle. In: SALVO, M.; PORTO JUNIOR, S. (orgs.). Uma nova relao entre Estado, sociedade e economia. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004. p. 82-136.

    (3) FLEURY, Sonia. Concertao e efetividade da ao poltica: o Conselho de Desenvolvimen-to Econmico e Social do governo Lula. In: Congresso Internacional del CLAD, Panam. Anais, n. 8, 2003, Disponvel em: . Acesso em: 18 jun. 2009.

  • DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, SOCIEDADE CIVIL E TERRITRIO

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    participao em nvel federal (AVRITZER, 2012)4. No mesmo perodo houve um crescimento dos conselhos setoriais na esfera local de 2001 a 2008, e o surgimento de novos conselhos em temticas como habitao, transporte, meio ambiente e poltica urbana (PIRES; VAZ, 2010)5.

    Dentro desse contexto de participao mais institucionalizada, o papel dos movimentos sociais no Brasil foi fundamental para exercer inluncia e presso para que houvesse uma maior interlocuo com o Estado, e para a criao das ins-tituies participativas e de sistemas de polticas pblicas. Os movimentos sociais vm demonstrando que sua histria est pautada na luta por novos direitos de cidadania, os quais contemplariam tanto o direito igualdade como o direito di-ferena (DAGNINO, 1994)6, e tm lutado tanto para transformar comportamentos sociais como para inluenciar as polticas pblicas (ABERS; VON BULLOW, 2011)7.

    Os movimentos de luta pela moradia e pela reforma urbana tambm se destacam no Brasil, e, principalmente, nas grandes cidades eles levantaram a ban-deira, na dcada de 1990, pelo direito participao nos espaos pblicos e pelo direito cidade. Mas pareceria ser que o corao da agenda da reforma urbana, a reforma fundiria/imobiliria, foi esquecido. Os movimentos sociais ligados causa se acomodaram no espao institucional onde muitas das lideranas foram alocadas (MARICATO, 2013)8. A luta pela questo urbana retomada nas chama-das jornadas de junho de 2013, durante as quais a mobilidade urbana se torna o centro da pauta de muitos dos movimentos (entre eles o Bloco de Lutas pelo Transporte Pblico e o Movimento Passe Livre) que convergem suas agendas para a discusso aberta e transparente sobre as tarifas do transporte pblico no Bra-sil. Alm da discusso sobre o transporte pblico, em relao questo urbana os Comits Populares da Copa, articulados em rede nas doze cidades-sede da Copa do Mundo de 2014 no Brasil, vm se mobilizando, desde 2010, pela proteo das comunidades afetadas pelas remoes e violaes de direitos humanos e, no caso especico, do direito moradia. Essas mobilizaes vm sendo articuladas e con-

    (4) AVRITZER, Leonardo. Conferncias Nacionais: ampliando e redeinindo os padres de participao social no Brasil. Rio de Janeiro: IPEA, 2012 (texto para discusso, n. 1739).

    (5) PIRES, Roberto R.;VAZ, Alexander C. A Efetividade das Instituies Participati-vas no Brasil: perspectivas, estratgias metodolgicas e resultados. Texto-base preparado para a oicina. IPEA, mimeo, 2010.

    (6) DAGNINO, Evelina (Org.). Anos 90. Poltica e Sociedade no Brasil. So Paulo, Ed. Brasiliense, 1994.

    (7) ABERS, Rebecca; VON BULLOW, Marisa. Movimentos Sociais na teoria e na prtica: como estudar o ativismo atravs da fronteira entre Estado e sociedade? Sociologias, Porto Alegre, ano 13 n28, set/dez 2011, p.52-84. Disponvel em: < http://seer.ufrgs.br/sociolo-gias/article/view/24518>. Acesso em: 21 jun. 2014.

    (8) MARICATO, Ermnia. a questo urbana, estpido!. In MARICATO, Ermnia et al.. Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestaes que tomaram as ruas do Brasil. So Pau-lo: Boitempo: Carta Maior, 2013, 259 p.

  • CEGOVCAPACIDADE ESTATAL E DEMOCRACIA[ ]

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    vocadas nas principais cidades ao longo do territrio brasileiro.

    Por ltimo, caberia ainda ressaltar a convergncia dos temas aqui estuda-dos com os fenmenos de mobilizao e participao que esto acontecendo no mundo, como bem destaca Yves Sintomer em seu prefcio. O autor enfatiza a necessidade de se criar uma nova ordem constitucional no mundo frente cri-se de legitimidade e do sistema poltico institucional presente, principalmente, na Europa e no Norte Global. As tenses entre o capitalismo e a democracia, e o aumento da distncia entre sistema poltico e os cidados, vm sendo demonstra-das nas bandeiras de diversos movimentos, entre eles o Occuppy Wall Street e os Indignados, que vm se mobilizando em diversas partes do mundo. Alm dessas relexes, Sintomer destaca ainda que o mundo est evoluindo fora da Europa e do Norte Global, que a Amrica Latina vem tendo uma posio importante nessa nova conjuntura e que o Brasil vem se constituindo como uma liderana mundial na questo da democracia participativa e da renovao democrtica.

    A contribuio de carter mais internacional junto com os captulos desen-volvidos nos permitir ter mais elementos para analisar como vm sendo consti-tudos os espaos de participao no Brasil, j que as mobilizaes ocorridas em junho de 2013, as chamadas jornadas de junho, sinalizam que esses espaos ne-cessitam ser repensados.

    DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

    Os primeiros trs captulos, que constituem o eixo Democracia Participa-tiva, descrevem como os Conselhos Nacionais, os Oramentos Participativos e os Fruns Nacionais foram sendo constitudos, estruturados e reformados para dar resposta a demandas da sociedade civil e do Estado. Nesses captulos, podemos ver como esses instrumentos foram construdos e se desenvolveram na dcada de 1990, e como vm se consolidando e contribuindo para o aprofundamento da democracia no Brasil.

    O primeiro captulo Governana Democrtica no Brasil: os conselhos nacionais de polticas sociais, de Soraya Cortes, mostra como os Conselhos Nacionais de Sa-de e de Assistncia Social foram criados, e desenvolve quadros de comparao en-tre esses dois conselhos demonstrando diferenas em sua composio por tipo de representante estatal ou societal. Analisa o percentual de conselheiros de acordo com o tipo de entidade a que pertencem mercado, Estado e sociedade civil , e dentro dessas entidades quem participa. Ressalta a autora que a presena de repre-sentantes do Estado mais relevante no Conselho Nacional de Assistncia Social

  • DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, SOCIEDADE CIVIL E TERRITRIO

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    (CNAS), enquanto que no Conselho Nacional de Sade (CNS) predominam os con-selheiros provenientes de organizaes da sociedade civil. O captulo traz elemen-tos histricos importantes, anteriores a 1990, acerca da construo institucional das reas de sade e de assistncia social, bem como das principais caractersticas dessas reas a partir de 1990. Essa trajetria histrica vem sendo construda ao longo do captulo para demonstrar que as regras institucionais, procedimentos e convenes moldam as preferncias e comportamentos individuais e de grupos. A combinao dos processos histricos que formam as instituies no caso em questo, a formao de dois conselhos nacionais de polticas sociais com as aes estatgicas das policy communities, que se formam atravs da relao entre os ato-res na defesa da sade e da assistncia social como um direito, so contribuies importantes desenvolvidas no captulo. Por ltimo, as relexes inais atentam para o papel dos conselhos, argumentando que o CNS funcionou com uma arena poltica cuja tarefa mais importante foi a defesa do SUS, enquanto o CNAS trans-formou-se em um dispositivo de gesto cuja principal funo foi disseminar as regras estruturantes do SUAS na federao brasileira.

    No segundo captulo, Avaliao das prticas de construo dos Oramentos Participativos, Luciano Fedozzi descreve a importncia dos Oramentos Participa-tivos (OPs), ressaltando que estes foram se constituindo como um novo paradigma das formas de democracia participativa contemporneas, especialmente em nvel local. Explica que depois de 25 anos consecutivos houve uma expanso da ideia em vrios pases do mundo. Apesar dessa expanso, o autor destaca que o OP no pode ser entendido como um modelo passvel de ser replicado, tampouco como uma tecnologia social isenta de contedo poltico-ideolgico. No incio do cap-tulo, destaca-se a abordagem sobre a questo histrica, e o autor faz uma anlise de trs fases do processo de surgimento e expanso dos OPs . primeira fase refe-re-se o autor como sendo a de construo, consolidao, descentralizao poltico--administrativa e vitalizao da sociedade civil brasileira, ambientada no processo de redemocratizao aps 21 anos de ditadura militar. A segunda fase refere-se expanso nacional dos OPs, e o autor demonstra atravs de pesquisa o aumento do nmero de OPs em cidades e estados, juntamente com a valorizao do discurso participacionista nas eleies locais. A terceira fase corresponde globalizao dos OPs, ocorrendo a expanso dos OPs primeiro em pases sul-americanos e da Am-rica Central e, posteriormente, em decorrncia de redes criadas no Frum Social Mundial e outras redes e agncias (OIDP e URB-AL). Alm da evoluo histrica e de fases do OP, o autor refere-se a um elemento importante em seu trabalho, o lugar da participao no sistema decisrio, se perifrico ou nuclear, e problematiza duas questes importantes ao tratar sobre participao, o poder real de deciso e o poder de controle social dos participantes. Nesse contexto, aprofunda conceitos como os de democracia direta, democracia representativa e democracia deliberati-va. Por im, o autor nos leva a reletir acerca da necessidade de relacionar o OP com

  • CEGOVCAPACIDADE ESTATAL E DEMOCRACIA[ ]

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    outros canais de participao e de planejamento, e argumenta que seus potenciais democrticos podem efetivamente auxiliar o processo de qualiicao da democra-cia, de ampliao do espao pblico e de promoo da equidade social no acesso cidade e cidadania.

    O terceiro e ltimo captulo deste eixo trata sobre As relaes entre os fruns de economia solidria e as polticas pblicas, no qual Ana Mercedes Sarria Icaza tambm escreve sobre a trajetria de espaos de participao, neste caso, especiicamente os fruns de economia solidria. A autora descreve o surgimento e a expanso da eco-nomia solidria no Brasil nos ltimos 25 anos, e aponta que, nesse processo, houve uma crescente institucionalizao da economia solidria ancorada entre os espaos de articulao e representao nos fruns e nos espaos governamentais. Este lti-mo proporcionou uma maior incidncia do movimento no Estado e a necessidade de continuar as anlises da relao entre Estado e movimentos sociais, ressaltando que a institucionalizao uma pauta central para os atores da economia solidria, su-pondo uma relao contraditria e no conciliatria com o Estado. A autora descreve que a economia solidria, no caso brasileiro, se integra no processo de lutas sociais por cidadania, um termo altamente simblico e mobilizador.

    O conjunto de atores que conluem e se identiicam com um discurso e com uma proposta de organizao formam o Frum Brasileiro de Economia Solidria (FBES), espao este que tem sido fundamental na interlocuo com o governo, mas que explicita diversas contradies. A partir da formao dos espaos de partici-pao da economia solidria, e para analisar a incidncia nas polticas pblicas, a autora analisa trs municpios do Rio Grande do Sul: Canoas, So Leopoldo e Novo Hamburgo. Destaca que nesses municpios veriicaram-se importantes processos de mobilizao e de organizao social, cujos atores fazem parte das primeiras ex-perincias de economia solidria a partir de seus ncleos indutores. A autora destaca, por im, que as organizaes de economia solidria tm conseguido espa-os importantes de maior legitimidade e interlocuo com o poder pblico.

    Caberia ressaltar que nesse primeiro eixo, denominado Democracia Partici-pativa, os autores trabalham sobre os espaos de aprofundamento da democracia, nos quais podemos destacar alguns pontos a partir de suas contribuies: a) os mecanismos de participao so vistos de dentro, ou seja, por meio de seu dese-nho institucional, como no caso dos Conselhos Nacionais, dos Oramentos Parti-cipativos e dos Fruns Nacionais de Economia Solidria; b) apresentam as formas de articulao dos atores sociais dentro desses espaos; c) no caso especico dos Conselhos Nacionais, o captulo destaca que uma tarefa importante desses conse-lhos tenha sido dar suporte e ajudar na construo e na organizao dos sistemas nacionais, no caso em questo o SUS e o SUAS; e, por ltimo, d) em relao au-tonomia dos mecanismos de participao, o Oramento Participativo ganha um destaque especial, talvez por ser mais complexo, menos institucionalizado, e por

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    apresentar maior grau de resistncia por parte do poder pblico, o qual deve abrir o oramento pblico e expor gastos e investimentos, gerando maior controle social e maior transparncia sobre os recursos pblicos.

    Finalizando essa primeira parte do livro que trata sobre Democracia Par-ticipativa, passaremos ao segundo eixo, que trata sobre Sociedade Civil, no qual veremos especiicamente a participao poltica dos atores sociais.

    SOCIEDADE CIVIL

    O segundo eixo trata sobre o tema da Sociedade Civil e busca analisar a atuao dos atores sociais e como estes se organizam para tratar sobre as questes de Estado e criar suas prprias agendas e dinmicas organizacionais.

    No primeiro captulo, As organizaes sociais e o Programa de Aquisio de Ali-mentos no Rio Grande do Sul, Marcelo Kunrath Silva e Claudia Job Schmitt tratam sobre as relaes entre as organizaes sociais e as polticas pblicas a partir da pesquisa emprica sobre o Programa de Aquisio de Alimentos (PAA) no Rio Gran-de do Sul. Os autores introduzem o tema a partir da redemocratizao brasileira, que trouxe consigo um intenso processo de institucionalizao das organizaes sociais e de diversos tipos de instituies participativas, e enfatizam a necessidade de pesquisar a crescente incorporao das organizaes sociais na implementao de polticas e programas governamentais. Em primeiro lugar, descrevem o PAA e o seu desenho de implementao, mostrando as interdependncias entre os pro-cessos organizativos e as polticas pblicas, e demonstram como se realiza o pro-cesso de implantao do PAA no Rio Grande do Sul. Ressaltam que no caso do Rio Grande do Sul, no que tange ao formato jurdico das organizaes de agricultores envolvidos no programa, h uma preponderncia de cooperativas.

    Em segundo lugar, em relao s interdependncias entre os processos or-ganizativos e as polticas pblicas, os autores analisam a histria, a literatura e os estudos sobre os movimentos sociais, que na dcada de 1980 versavam sobre a contraposio entre autonomia e institucionalizao e que nos anos 1990 partem da defesa normativa da independncia da sociedade civil e do risco de colonizao pelo sistema poltico-administrativo. Destaca-se a construo, a partir da pesqui-sa, de novos referenciais tericos que expliquem as interdependncias e intersec-es que caracterizam as relaes entre organizaes sociais e Estado, e para isso partem da literatura sobre sociedade civil, associativismo, movimentos sociais e organizaes que analisam os processos organizativos.

    Em relao, especiicamente, implantao do PAA no Rio Grande do Sul,

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    os autores demonstram que ele se baseia em uma rede bem articulada de atores na sociedade civil e no Estado, vinculados direta ou indiretamente agricultura familiar. Por ltimo, ressaltam que, atravs da pesquisa, foi possvel prospectar as interdependncias estabelecidas entre o Estado e as organizaes da sociedade civil na implementao das polticas pblicas, e tambm veriicar a ampliao de reper-trios e quadros de ao das organizaes envolvidas na implementao do PAA.

    O segundo captulo intitula-se Organizao Liminar e sociedade civil: anlise do movimento Ocupar. Nele Fabio Meira faz uma anlise dos conceitos antropo-lgicos de liminaridade e communitas para explicar ritos de passagem e discutir a emergncia das organizaes contra-hegemnicas na sociedade contempornea. Destaca que o movimento Ocupar o mais importante processo de emergncia social da contemporaneidade, mas que sua organicidade tende a escapar s expec-tativas da normalidade, sendo apresentado como incompreensvel ou ilegtimo.

    O captulo problematiza a emergncia das organizaes anti-hegemnicas no contexto capitalista contemporneo, e para isso usa dois conceitos antropo-lgicos que explicam a transio em ritos de passagem o de liminariedade e o de communitas , procurando construir um elo com os estudos organizacionais, especiicamente o signiicado de organizao liminar. O autor parte da compreen-so do signiicado dos conceitos de liminaridade e communitas e relaciona ambos aos seus signiicados nos estudos organizacionais, como no caso da liminaridade, usado para designar instabilidade, ambiguidade, impreciso e indeinio. Descre-ve, ainda, que em contextos e perodos de transformao social e de crise que surgem os grupos liminares, e ressalta que a liminaridade contempornea con-dio social produzida pela espoliao em uma sociedade centrada no mercado, na existncia de excludos.

    Partindo dessa ideia, a organizao liminar poderia explicar o processo de or-ganizao na antiestrutura, ou seja, na ausncia de mecanismos de integrao es-trutura social. Por ltimo, o captulo relaciona os conceitos com o caso do movimen-to Ocupar, especiicamente o movimento Ocuppy Wall Street, e destaca que nesse tipo de movimento a inexistncia de lideranas, porta-vozes ou discursos uniicado-res percebida como ambiguidade, o que produz a desordem das categorias sociais habituais, em uma aparente violao da lgica. Por outro lado, airma que a forma coordenada desse movimento precisa ainda ser construda, mas que o fundamental a possibilidade aberta para esses grupos debaterem e pensarem alternativas para a cidade, o sistema poltico, a organizao da produo, distribuio e consumo.

    No terceiro captulo, Participao e alta vulnerabilidade social: estudo de caso em Porto Alegre RS, Pedro Costa trata da problemtica da participao poltica nos contextos de alta vulnerabilidade social, principalmente da questo do empo-deramento dos cidados nos processos participativos. O autor desenvolve o cap-tulo a partir da ideia de que em contextos de alta vulnerabilidade social existe uma

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    condio de subcidadania e uma diiculdade de cognio das estruturas do campo poltico, entre elas os mecanismos de participao. Alm disso, aprofunda concei-tos como empoderamento, subcidadania, modernidade perifrica, hermenutica do espao social, habitus e campo. Esses conceitos so relacionados com a realidade brasileira, principalmente no que tange questo da desigualdade.

    A comunidade estudada a do bairro Marclio Dias, denominado Entrada da Cidade de Porto Alegre. Nesse local, existem amplas extenses de bolses de misria combinados com programas de construo de moradia e de desenvolvi-mento urbano, j que o bairro a principal via de entrada da cidade. Seus princi-pais problemas so as precrias condies de moradia, falta de saneamento bsi-co, higiene e infraestrutura, analfabetismo da populao, evaso escolar e pouca qualiicao da fora de trabalho, em que prevalece o trabalho precrio e informal vindo, principalmente, da catao e venda de lixo seco, existindo, portanto, um contexto de subemprego generalizado e de vulnerabilidade social. Por ltimo, o captulo problematiza os limites da participao poltica em comunidades de alta vulnerabilidade social atravs da noo de subcidadania e pautando a necessidade de mudana das instituies.

    Nesse eixo sobre Sociedade Civil, importante destacar que os captulos partem da organizao dos atores: organizaes e movimentos sociais e de como estes se relacionam com o Estado para exercer inluncia e para construir conjun-tamente uma poltica pblica. Os captulos chamam ateno sobre a importncia de como se constituem as organizaes e os movimentos sociais e de como, a par-tir disso, estes podem exercer inluncia ou obter uma maior interlocuo com o Estado. Eles problematizam como os programas especicos de polticas pblicas inluenciam e complexiicam a maneira como as organizaes sociais se organi-zam, como demonstrado no caso do PAA, ou ainda ressaltam a necessidade de con-siderar os processos de organizao na antiestrutura, como no caso do movimento Ocupar, cuja organicidade foge da normalidade, sendo apresentado como incom-preensvel ou ilegtima. O estudo de caso sobre Porto Alegre, no terceiro captulo, chama ateno questo da participao poltica, iluminando a necessidade de compreender como esta pode ser exercida em contextos de alta vulnerabilidade social e de subcidadania.

    Esse segundo eixo parte de elementos importantes para compreender como atuam e se organizam os atores sociais na contemporaneidade, o que pode ocorrer por meio de programas especicos de polticas pblicas induzidos pelos governos federal, estadual ou municipal, por movimentos que se caracterizam como organiza-es contra-hegemnicas, ou atravs de comunidades que se organizam para sobre-viver com atividades prprias, onde, mesmo em um contexto de alta vulnerabilidade social, conseguem estabelecer laos solidrios para tentar superar essa condio.

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    Finalizando essa parte com o estudo mais aprofundado dos atores sociais, passaremos a tratar sobre a importncia do territrio e de como relacion-lo com os demais eixos anteriormente tratados.

    TERRITRIO

    O terceiro eixo, que trata sobre a questo do territrio, parte de uma pes-quisa aplicada desenvolvida no interior deste grupo de trabalho nos anos de 2011 e 2012. O captulo Interfaces, Transescalaridade e Multinaturalismo: uma abordagem projetual, elaborado por Eber Marzulo, Leandro Marino Vieira Andrade e Marce-lo Arioli Heck, faz uma relexo acerca do projeto urbano-ambiental realizado na Praia de Paquet, no entorno do municpio de Canoas, Rio Grande do Sul, Brasil. O captulo faz uma abordagem especica sobre a questo da paisagem urbana e de como esta se relaciona com as comunidades e a populao em uma rea de do-mnio pblico (rea de proteo ambiental) e que ao mesmo tempo de interesse de setores econmicos, como os setores empresarial e de turismo. Constitui-se a partir de seis pontos: a) apresentao do projeto urbano-ambiental; b) projeto como produo coletiva e transdisciplinar; c) dos megaequipamentos urgncia socioambiental; d) sistema de interfaces: abordagem metodolgica-projetual; e) do analtico ao projetual: a aplicao da noo de transescalaridade; e f) da susten-tabilidade ao multinaturalismo: teoria social aplicada.

    A importncia do estudo, como descrito no captulo, reside no enfoque das questes metodolgico-projetuais, com o aprofundamento dos conceitos de inter-face, transescalaridade e multinaturalismo, alm de promover uma discusso sobre a relavncia dos estudos urbanos sob a perspectiva da relao entre megaempren-dimentos e as urgncias sociais, principalmente a regularizao fundiria e a urba-nizao de comunidades. Ressalta-se ainda a necessidade de aprofundar conceitos como o de interface urbana, transescalaridade, sustentabilidade e multinaturalismo. No caso da interface urbana a deinio de limites foi pensada e aplicada no projeto a partir de alguns princpios como: reconhecimento da condio urbana, program-tico e setorizao em quadrantes. Alm disso, foram criadas estratgias de projeto tais como de conservao, regenerao, recuperao, inovao, manejo ambiental e educao ambiental. No que tange ao conceito de transescalaridade, a questo de escalas aparece com mais destaque na contemporaneidade em virtude da globaliza-o, na qual a centralidade analtica repousa na categoria pensamento espao. Por ltimo, chama a ateno sobre a necessidade de aprofundar as anlises sobre a noo de sustentabilidade, ecologia, concepes da natureza e sobre o multinaturalismo. A discusso terica se relaciona com o projeto desenvolvido, j que a rea onde o proje-

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    to urbano-ambiental desenvolvido se constitui como rea de Proteo Permanente (APP), Parque Delta do Jacu e rea de Proteo Ambiental (APA).

    O captulo que representa o eixo Territrio neste livro mostra como, desde a pesquisa aplicada, a universidade pblica pode ser capaz de equilibrar os inte-resses pblicos e privados abordando questes que atingem a populao, o desen-volvimento sustentvel e os interesses privados, e ao mesmo tempo estabelecer a relao entre conhecimento, produo aplicada e relexo sobre aplicao, para que haja uma dimenso cognitiva no conhecimento acadmico aplicado.

    REFLEXES FINAIS

    As relexes inais do livro foram pensadas a partir de um artigo de pesqui-sador convidado que pudesse reunir e fazer um balano dos temas que constituem o Grupo de Trabalho Democracia Participativa, Sociedade Civil e Territrio. O livro inaliza com a contribuio do pesquisador Roberto Rocha Coelho Pires, da Direto-ria de Estado, Instituies e Democracia do Instituto de Pesquisa Econmica Apli-cada (IPEA). Atravs do captulo Da Sociedade para o Estado: desaios da participao no Brasil, o autor prope uma evoluo histrica dos mecanismos de participao social no Brasil nas trs esferas da federao, municipal, estadual e nacional, junto com o adensamento e a diversiicao dos mecanismos de interao entre os atores estatais e sociais. O captulo se centra na crise de meia idade da participao social no Brasil. A busca por analisar essa crise permeia o captulo, que, de forma clara, nos leva a pensar como depois de quase trs dcadas de existncia se encontram as instituies participativas no Brasil, quais so seus avanos, quais seus desaios e quais seus obstculos.

    O captulo ao inal do livro nos faz pensar sobre as vrias anlises em como lidar e superar a crise de meia idade da participao social no Brasil. Para isso, o autor resgata pesquisas realizadas ao longo dessas dcadas sobre a participao no Brasil e traz elementos novos, como pesquisas ainda em desenvolvimento que bus-cam elementos inovadores para avanar na temtica. O captulo dividido em trs pontos: a) da inovao institucionalidade democrtica: a disseminao de formas institucionais de participao social no Brasil; b) da institucionalizao efetivi-dade: os avanos conquistados e os desaios pendentes; e c) por uma perspectiva estatal da participao: agenda de pesquisa e caminhos para reforma. Do desen-volvimento do captulo, que nos traz um recorrido histrico da participao social no Brasil a partir destes trs pontos, destacamos algumas relexes importantes. A primeira delas que se constata que, passadas trs dcadas, possvel dizer que as instituies participativas se tornaram uma realidade inegvel da atuao go-

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    vernamental no Brasil, um trao caracterstico da institucionalidade democrtica brasileira. A segunda relexo a de que a dcada de 2000 marca a ascendncia de mecanismos de participao social em nvel federal. A terceira relexo mostra a ne-cessidade de se veriicar se as instituies participativas so efetivas, melhoram as polticas e servios pblicos, contribuem para organizao e atividade da sociedade civil e, inalmente, se trazem bem-estar aos cidados. A quarta relexo reside na constatao de que mecanismos de participao esto ligados mais rea de polti-cas pblicas de proteo e promoo social do que de desenvolvimento econmi-co. A quinta relexo descreve que os canais de participao esto desarticulados, ou seja, existem de forma desuniforme, e inexistem mecanismos ou processos de articulao entre as instncias de participao existentes, e, por ltimo, na sexta relexo o autor chama ateno ao fato de que o debate acadmico sobre as insti-tuies participativas no Brasil ter sido marcado pela perspectiva societal-associa-tiva ou institucional, deixando em segundo plano uma anlise sobre a atuao dos atores estatais e suas percepes sobre os sentidos, funes e usos da participao social. A partir dessa ltima relexo, o autor descreve trs perspectivas que so desenvolvidas nas agendas de pesquisa nacional sobre participao, a societal-asso-ciativa, a institucional e a estatal da participao, e enfatiza que o desaio estaria em desenvolver mais pesquisas sobre a perspectiva estatal da participao.

    Finalizando, os captulos que compem este livro contribuem para pensar sobre o Brasil da participao e da mobilizao social nas prximas dcadas. Os desaios que se apresentam daqui para frente e o quanto a pesquisa aplicada pode contribuir para superar limites e lacunas nas diversas temticas so aqui trata-dos. Faz-se necessrio reletir sobre a temtica da participao social no Brasil e pensar nas diiculdades que as organizaes e movimentos sociais enfrentam para que suas agendas sejam contempladas pela ao governamental. Por outro lado, o desaio por parte da esfera estatal residiria em uma melhora da gesto e da ar-ticulao das polticas pblicas participativas no interior do Estado. Em relao esfera acadmica, a relexo sobre o conhecimento transformado em aplicao, e voltando esfera da relexo, uma contribuio importante para a dimenso cognitiva no conhecimento acadmico aplicado.

    A problemtica dos processos participativos e de sua efetividade deveria ser pensada de forma conjunta em todas as esferas da federao, para que a parti-cipao possa resultar em polticas de bem-estar social com distribuio de renda e para que a aposta da cidadania pelas instituies participativas e por um Estado profundamente democrtico possa resultar em mais justia social no Brasil das prximas dcadas.

  • [DEMOCRACIA PARTICIPATIVA ]

  • 1SORAYA VARGAS CORTESProfessora do Departamento e do Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisadora do CNPq. Coordenadora adjunta do Comit de Avaliao da Ps-Graduao da Capes, na Sub-rea de Sociologia e Presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia.

    [CAPTULO]

    GOVERNANA DEMOCRTICA NO BRASIL: OS CONSELHOS NACIONAIS DE POLTICAS SOCIAIS

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    INTRODUO

    Nos ltimos vinte anos, no Brasil, foram criados fruns com participao societal tais como oramentos participativos e conselhos e conferncias de po-lticas pblicas em praticamente todas as reas governamentais (DAGNINO, 2002; SANTOS; AVRITZER, 2002). Entre eles, os conselhos de polticas pblicas se destacam pelo alto nvel de disseminao pelo pas. Eles esto presentes nos municpios e nos estados da federao. Tambm esto presentes no nvel federal de gesto: exemplo disso eram os 32 conselhos e as duas comisses nacionais em pleno funcionamento em 2010 (IPEA, 2013). Eles promovem a democratizao do Estado e a governana democrtica nos diferentes nveis da administrao pblica (BOSCHI, 1999; CORTES, 2006; DAGNINO, 2002; SANTOS; AVRITZER, 2002). Entretanto, a trajetria institucional da rea de poltica pblica em que se inserem, e a ao de policy communities setoriais, conferem-lhes outras funes alm daque-las habitualmente destacadas na literatura.

    As communities formam-se a partir de relaes que se estabelecem entre atores, no interior de redes existentes em reas especicas de polticas pblicas (HECLO, 1978). Elas referem-se a um nmero limitado e relativamente estvel de membros que compartilham crenas, valores, e uma determinada viso sobre quais devem ser os resultados da poltica (RHODES, 1986). A anlise aqui realizada fo-caliza as estratgias adotadas por duas communities, uma na rea de sade e outra na de assistncia social. A primeira defendia a sade como um direito universal, a ser garantido por meio de um sistema de sade descentralizado, que oferecesse atendimento integral a todos os cidados brasileiros, organizado sob o rigoroso controle do setor pblico. A segunda advogava a criao de um sistema descentrali-zado e abrangente de assistncia social, acessvel a todos os cidados necessitados, organizado sob o rigoroso controle do setor pblico. As aes da primeira leva-ram ampliao de sua inluncia nas burocracias governamentais e nos fruns de gesto federativa da rea criados na dcada de 1990, e relegaram o Conselho Nacional de Sade (CNS) a um papel menos relevante na arena poltica setorial. A segunda liderou os processos de estruturao do Sistema nico de Assistncia Social (SUAS) e de redeinio das funes institucionais do Conselho Nacional de Assistncia Social (CNAS), ao inal da dcada de 2000, bem como posicionou o CNAS no centro da articulao federativa e de atores societais e governamentais que viabilizaram a constituio do SUAS.

    As regras institucionais, procedimentos e convenes moldam as prefern-cias e comportamentos individuais e de grupos, enquanto os incentivos ou sanes produzem, estimulam, ou adicionam custos a escolhas a serem feitas por indivduos e grupos (HALL; TAYLOR, 1996; IMMERGUT, 1998; OSTROM, 2007; SCHARPF,

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    1997). Essa a principal hiptese do neoinstitucionalismo, uma corrente de pen-samento muito inluente nos estudos que se dedicam a analisar polticas pblicas. Embora existam vrios neoinstitucionalismos (HALL; TAYLOR, 1996, 1998), a presente investigao utiliza principalmente o pressuposto defendido pela a ver-tente histrica: a histria importa, pois onde estamos hoje um resultado do que aconteceu no passado (MARGOLIS; LIEBOWITZ, sd, p. 1). Decises tomadas no passado afetam o presente, produzindo no apenas um arcabouo institucional que molda a forma de indivduos e de atores coletivos reletirem e tomarem deci-ses, mas criando campos dentro dos quais indivduos e atores coletivos apresen-tam-se hierarquicamente distribudos (FLIGSTEIN; MCADAM, 2012). A partir de suas posies nesses campos, agem seguindo prescries culturais, mas tambm, havendo possibilidade de relexo, analisam as posies em que se encontram, e tendo em vista seus objetivos, constroem estratgias de ao.

    Dentre os atores aqui examinados, destacam-se as policy communities (HE-CLO, 1978; JORDAN; RICHARDSON, 1979; RHODES, 1986), pois a noo au-xilia na compreenso de como se processam as decises sobre polticas pblicas. Formadas por atores estatais e societais, defendem uma determinada viso sobre os resultados desejveis das polticas. Atores estatais so indivduos ou grupos que ocupam cargos de direo em rgos governamentais, enquanto o conceito de atores societais se refere tanto aos atores sociais, associados noo de socie-dade civil, como aos de mercado, relacionados com a noo de economia de mer-cado (COHEN, 2003). As communities so formadas por indivduos e grupos que ocupam posies no mbito estatal e societal, participando de redes de polticas, tentando afetar processos decisrios que se tornaram muito segmentados, na me-dida em que as polticas so elaboradas por uma mirade de organizaes governa-mentais e societais interconectadas e interpenetradas (JORDAN; RICHARDSON, 1979). Suas estratgias so construdas em processos fechados a outras communi-ties e para o pblico em geral (RHODES, 1986). Elas podem ser denominadas como nichos temticos, subsistemas polticos, redes temticas, advocacy coalitions mas

    qualquer que seja a denominao adotada, ela se refere a uma comunidade de especialistas operando fora do processo poltico visvel, em contextos nos quais a maior parte das questes relacionadas a cada poltica setorial especica tratada no interior de uma comunidade de experts (TRUE et al., 2007, p. 157-8).

    Integrantes de uma community, ao tornarem-se tomadores de deciso polti-cos, agem para que as alternativas de soluo dadas aos problemas que se apresentam na agenda governamental sejam adequadas aos seus valores e viso sobre as policies.

    Assim como a maioria dos estudos sobre o tema, este artigo argumenta que os dois conselhos em anlise favorecem melhorias na governana democrtica, pois atores sociais participam nos seus processos de tomada de deciso. Argumen-

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    ta-se, tambm, que os fruns cumprem ainda outras funes no subsetor de polti-ca pblica a que pertencem, tendo em vista as caractersticas institucionais da rea e, nos dois casos examinados, as estratgias desenvolvidas por duas importantes policy communities setoriais. Para a realizao da anlise aqui empreendida, foram realizadas, em 2012, seis entrevistas semiestruturadas com participantes de cada um dos conselhos. Foram ainda entrevistados um integrante do Ministrio da Sade e um servidor dirigente do Ministrio do Desenvolvimento Social e Com-bate Fome. As entrevistas foram transcritas e analisadas, utilizando o Programa de anlise de dados qualitativos N*Vivo. Foram ainda examinadas: (a) atas de 23 reunies plenrias, onze do CNAS e doze do CNS, que correspondiam a todas as reunies realizadas em 2010; (b) informaes disponveis nos sites dos Conselhos e dos Ministrios da Sade e do Desenvolvimento Social e Combate Fome, (c) documentos obtidos nos Conselhos.

    O captulo est estruturado em duas sees. A primeira mostra como esto organizados os fruns e qual a sua composio. A segunda compara (1) as caracte-rsticas institucionais fundamentais das reas de assistncia social e de sade, no incio de 1990, quando os Conselhos Nacionais foram criados e (2) as estratgias desenvolvidas pelas as policy communities em foco, nas duas reas, apresentando, ao inal, o papel nelas desempenhado pelos Conselhos.

    CONSELHOS NACIONAIS DE ASSISTNCIA SOCIAL (CNAS) E DE SADE (CNS) E GOVERNANA DEMOCRTICA

    A Constituio brasileira estabelece que deve haver participao da comu-nidade nos sistemas de sade1 e de assistncia social2. Duas Leis Federais, a 8.142, de 19903, referente participao da comunidade na rea da sade e das trans-

    (1) BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988. Ttulo VIII, Captu-lo II, Seo II, Art. 198, 3; Disponvel em . Acesso em 13 de jul. de 2014.

    (2) BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988. Ttulo VIII, Captulo II, Seo IV, Art. 204, 2; Disponvel em . Acesso em 13 de jul. de 2014.

    (3) BRASIL. Lei 8.142 de 28 de Dezembro de 1990. Dispe sobre a participao da co-munidade na gesto do Sistema nico de Sade - SUS e sobre as transferncias intergo-vernamentais de recursos inanceiros na rea de sade e d outras providncias. Dirio Oicial [da] Repblica Federativa do Brasil. Braslia, DF, 31 de dez. 1990a. Disponvel em: . Acesso em: 13 de jul.2014.

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    ferncias intergovernamentais, e a 8.742, de 19934, que trata da organizao da assistncia social no pas, regulam o modo como essa participao deve se proces-sar. Com base nesse arcabouo legal, foram criados o CNS, em 1991, e o CNAS, em 1994. Os fruns so aqui tratados como organizaes neocorporativistas in-termedirias (STREECK; KENWORTHY, 2005), que esto no topo de uma cadeia de conselhos estaduais e municipais, e de processos peridicos de organizao de conferncias nacionais.

    Para se entender o funcionamento dos Conselhos, necessrio examinar sua estrutura administrativa e de apoio, a dinmica de preparao e o funciona-mento das reunies plenrias, e identiicar seus conselheiros. Eles possuem estru-turas administrativas similares: o plenrio, as comisses permanentes, os grupos de trabalho, a secretaria executiva e um ncleo dirigente5. A instncia mais impor-tante o plenrio, integrado por dezoito membros titulares e respectivos suplen-tes, no CNAS, e 48 conselheiros, cada um com dois suplentes, no CNS (Tabelas 1 e 2). Tanto em um conselho como no outro, os plenrios realizam reunies que se estendem por dois ou trs dias, nas quais so apresentadas propostas de aes, po-lticas e programas e so discutidos temas diversos sobre os quais os conselheiros deliberam, votam e produzem resolues.

    As comisses permanentes, quatro no CNAS e 26 no CNS, em 2013, so com-postas e coordenadas por conselheiros. Sua principal inalidade discutir de forma aprofundada os temas tratados para oferecer aos plenrios os subsdios necessrios tomada de deciso. Os grupos de trabalho, tambm formados por conselheiros, so institudos pelo plenrio, tm carter transitrio, com vigncia predetermina-da para cumprir inalidade especica. Nos dois fruns, cabe secretaria executiva, diretamente subordinada presidncia dos conselhos e funcionalmente vinculada aos Ministrios do Desenvolvimento Social e Combate Fome, e da Sade, a res-ponsabilidade de administrar a estrutura de apoio aos trabalhos dos fruns.

    O ncleo dirigente Presidncia Ampliada, no CNAS, e Mesa Diretora, no CNS eleito pelo plenrio dentre os conselheiros. Ele responsvel pela elabo-rao das pautas das reunies a serem enviadas com antecedncia para os con-selheiros. Em ambos os casos, a presidncia concentra boa parte das atribuies de direo, representao e coordenao das reunies plenrias, embora, tendo em vista a dinmica das reunies a inluncia direta da presidncia seja maior no CNAS do que no CNS. Naquele, as reunies so abertas pela Presidncia; neste,

    (4) BRASIL Lei 8.742 de 7 de Dezembro de 1993. Dispe sobre a organizao da assistn-cia social e d outras providncias. Dirio Oicial [da] Repblica Federativa do Brasil. Braslia, DF, 8 dez. 1993. Disponvel em: . Acesso em: 14 jun. 2014.

    (5) O CNAS e o CNS localizavam-se em um complexo de salas de apoio de reunies no Anexo A, do Ministrio do Trabalho, e no Anexo B, do Ministrio da Sade, respectivamente.

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    stat

    ais

    Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome (MDS) (cinco representantes)

    Ministrio do Planejamento

    Ministrios da Previdncia Social

    Frum Nacional de Secretrios Estaduais de Assistncia Social

    Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistncia Social

    Rep

    rese

    nta

    nte

    s so

    ciet

    ais

    Mer

    cado Provedores

    Privados na rea

    Associao Antnio Vieira

    Soci

    al

    Professionais e Trabalhadores

    na rea

    Confederao Nacional dos Trabalhadores em Segurida-de Social

    Federao Nacional dos Assistentes Sociais

    Federao Nacional dos Empregados em Instituies Beneicentes, Religiosas e Filantrpicas

    Pessoas com Patologias ou Deicincias

    Unio Brasileira de Cegos

    Pessoas em Situao de

    Vulnerabilidade Social

    Movimento Nacional de Populao de Rua

    Confederao Nacional das Associaes de Moradores

    Advocacia e Promoo de direitos

    Fundao ORSA*

    Igrejas Caritas do Brasil (Catlica)* Organizao ilantrpica pertencente ao grupo que rene a Jari Celulose, a Papel e Emba-lagens S.A, a Orsa Florestal e a Ouro Verde Amaznia.

    pela Secretaria Executiva. No CNAS, a Presidncia coordena a reunio; no CNS, a Secretaria Executiva insta os conselheiros a escolher, dentre eles, os coordenado-res das discusses sobre cada ponto de pauta, levando em conta a familiaridade ou envolvimento que tenham com o assunto em debate.

    Nos dois conselhos, muitas das questes que integram a pauta passam por discusso prvia nas comisses ou nos grupos de trabalho antes de serem aprecia-das no plenrio. Nesses casos, no incio da discusso de um assunto especico, as comisses ou os grupos de trabalho apresentam os resultados de seu trabalho e

    Tabela 1 - CNAS Composio por Tipo de Representante Estatal ou Societal 2013

    Fonte: CNAS (2013).

  • CEGOVCAPACIDADE ESTATAL E DEMOCRACIA[ ]

    30

    Tabela 2 - CNS Composio por Tipo de Representante Estatal ou Societal 2013(continua)

    Rep

    rese

    nta

    nte

    s E

    stat

    ais

    Conselho Nacional de Secretrios de Sade Conselho Nacional de Secretrios Municipais de Sade Ministrio da Educao Ministrio da Previdncia Social Ministrio da Sade (trs representantes) Ministrio do Trabalho e Emprego

    Rep

    rese

    nta

    nte

    s so

    ciet

    ais

    Mer

    cado

    Provedores Privados na

    rea

    Confederao Nacional de Sade Federao Nacional de Sade Suplementar

    Empres-rios de Ou-tras reas

    Confederao Nacional da Indstria Confederao Nacional do Comrcio de Bens, Servios e

    Turismo

    Soci

    al

    Professio-nais e Tra-balhadores

    na rea

    Conselho Federal de Odontologia Associao Brasileira de Enfermagem Conselho Federal de Medicina Conselho Federal de Nutricionistas Conselho Federal de Psicologia Conselho Federal de Fonoaudiologia Confederao Nacional dos Trabalhadores na Sade Confederao Nacional dos Trabalhadores em Seguridade

    Social Federao Nacional dos Farmacuticos Federao Nacional dos Assistentes Sociais

    Professio-nais e Tra-balhadores em Geral

    Fora Sindical Central nica dos Trabalhadores Central Geral dos Trabalhadores Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

    Pessoas com Pato-logias ou

    Deicincias

    Unio Brasileira de Cegos Associao Brasileira de Alzheimer Associao Brasileira de Autismo Associao Brasileira de Ostomizados Movimento de Reintegrao das Pessoas Atingidas pela

    Hansenase Federao Nacional das Associaes de Celacos do Brasil Federao Brasileira das Associaes de Sndrome de

    Down Federao Nacional das Associaes de Doenas Falcifor-

    mes Movimento Nacional de Luta Contra a Aids

  • DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, SOCIEDADE CIVIL E TERRITRIO

    31

    Rep

    rese

    nta

    nte

    s so

    ciet

    ais

    Soci

    alPessoas em Situao de Vulnerabili-dade Social

    Central de Movimentos Populares Confederao Nacional das Associaes de Moradores

    Advocacia e Promoo de direitos

    Unio Nacional dos Estudantes Liga Brasileira de Lsbicas Rede Nacional Feminista de Sade, Direitos Sexuais e

    Direitos Reprodutivos Centro Brasileiro de Estudos de Sade Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia

    Brasileira Confederao Brasileira de Pensionistas e Aposentados Frum de Presidentes de Conselhos Distritais de Sade

    Indgena Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia Unio de Negros pela Igualdade

    Igrejas Associao de Delegados e Amigos da Confederao Esp-

    rita Pan-Americana Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil (Ctlica)

    Tabela 2 - CNS Composio por Tipo de Representante Estatal ou Societal 2013(concluso)

    Fonte: CNAS (2013).

    respondem a perguntas. Quando os conselheiros julgam necessrio, so convida-dos especialistas para participar das reunies das comisses, dos grupos de traba-lho ou da plenria. Paralelamente, h os encontros dos segmentos (trabalhado-res, usurios, pessoas com patologias ou deicincias, gestores, por exemplo) que preparam as posies a serem defendidas pelos integrantes no plenrio. Uma vez apresentado o assunto, iniciam-se os debates e so feitas propostas de encaminha-mento, que a seguir so votadas quando no houver consenso.

    Os Gricos 1 e 2 apresentam a distribuio dos conselheiros titulares no plenrio dos dois conselhos de acordo com o tipo de entidade a que pertencem.

    O Grico 1 mostra que a presena de representantes do Estado mais re-levante no CNAS, enquanto no CNS predominam os conselheiros provenientes de organizaes da sociedade civil. Chama a ateno a participao inexpressiva de representantes de entidades de mercado, embora isso no signiique uma diminui-o de sua capacidade de inluenciar o processo de tomada de deciso setorial. Cer-tamente existem canais de relacionamento direto entre essas entidades e decisores governamentais, que no esto abertos ao escrutnio pblico.

  • CEGOVCAPACIDADE ESTATAL E DEMOCRACIA[ ]

    32

    Grico 1 Percentual de Conselheiros por tipo: mercado, estado e sociedade civil CNAS, CNS 2013

    Fonte: CNAS(2013) e CNS (2013).

    O Grico 2 mostra contrastes entre o tipo de representao da sociedade civil predominante nos dois conselhos. A proporo de representantes de prois-sionais e trabalhadores, sejam eles da rea ou no, maior no CNS. Nesse conse-lho, mais expressiva a percentagem de conselheiros provenientes de entidades de pessoas com patologias e deicincias, enquanto no CNAS h uma pequena di-ferena para mais na proporo de representantes de associaes de pessoas em situao de vulnerabilidade social. No CNAS tambm h uma presena relativa maior de representantes de organizaes religiosas, mais especiicamente da Igre-ja Catlica, ainda mais se considerarmos que a entidade de mercado com represen-tante no Conselho pertence Igreja Catlica. Outro estudo sugeriu que, em 2010, se forem contabilizados conselheiros titulares e suplentes presentes s reunies plenrias, os representantes de organizaes religiosas foram os mais frequentes as reunies (CORTES, 2010).

    Observe-se que a Igreja Catlica participou na proviso de assistncia so-cial, nas decises sobre as aes de assistncias nos trs nveis federativos de ges-to, e recebeu isenes iscais governamentais desde que as primeiras aes de assistncia foram registradas no pas (SILVA, 2006). Por isso, seus representantes, no CNAS e fora dele, foram muito resistentes s propostas de retirar do Conselho e, principalmente, da rea de assistncia social, a funo de certiicar beneicncia de entidades ilantrpicas que foram apresentadas pelo Governo Federal, em 2008 (CORTES, 2013). Os representantes das entidades religiosas conheciam muito bem os caminhos para obteno da certiicao, e do benefcio iscal dela decor-rente. Somente foi possvel vencer as resistncias quando a Operao Fariseu da Polcia Federal, no ano de 2008, mostrou os meios corruptos atravs dos quais eram concedidos os certiicados de beneicncia.

  • DEM

    OC

    RAC

    IA PA

    RTIC

    IPAT

    IVA

    , SOC

    IEDA

    DE C

    IVIL E T

    ERRIT

    RIO

    33

    Grico 2 Percentual de Participantes por tipo: estatais, provedores privados na rea, empresrios em geral, proissionais e trabalhadores na rea, proissionais e trabalhadores em geral, pessoas com patologias ou deicincias, pessoas em situao de vulnerabilidade social, organizaes de advocacia e promoo de direitos, igrejas CNAS, CNS 2013

    Fonte: CNAS(2013) e CNS (2013).

    CONSELHO NACIONAL DE ASSISTNCIA SOCIAL

    CONSELHO NACIONAL DE SADE

    Estatais

    ESTADO

    Proved

    ores

    privad

    os n

    a rea

    Emprstim

    os

    em geral

    MERCADO

    Profissio

    nais e

    trabalh

    adores n

    a rea

    Profissio

    nais e

    trabalh

    adores em

    geral

    Pesso

    as com pato

    logias

    ou deficin

    cias

    Pesso

    as em situ

    ao de

    vulnerab

    ilidad

    e social

    Orgs d

    e advo

    cacia e

    promoo

    de d

    ireitos

    Igrejas

    50% (9)

    17% (8)

    6% (1) 4% (2) 4% (2)

    17% (3)

    21% (1)

    8% (4)6% (1)

    19% (9)

    11% (2)

    4% (2) 6% (1)

    19% (9)

    6% (1)4% (2)0 0

    SOCIAL

  • CEGOVCAPACIDADE ESTATAL E DEMOCRACIA[ ]

    34

    ARCABOUO INSTITUCIONAL, A AO DAS POLICY COMMUNITIES E O PAPEL INSTITUCIONAL DO CNAS E DO CNS

    A diferena no nvel de estruturao das duas reas se expressa no fato de um sistema nacional de sade iniciar a sua organizao em 1930 (BRAGA et al., 1981), enquanto na rea de assistncia social o mesmo somente aconteceria 65 anos mais tarde (Quadro 1). Em 1930, foi criado o Ministrio de Educao e Sade que, aps 1938, capitaneou um processo de padronizao nacional dos servios oferecidos e da estrutura organizacional de departamentos e secretarias estaduais de sade pblica nos estados da federao brasileira. Na mesma dcada, foram criadas autarquias de mbito nacional vinculadas ao Ministrio do Trabalho, In-dstria e Comrcio, os Institutos de Aposentadorias e Penses, rgos destinados a atender diferentes categorias de trabalhadores urbanos. Os institutos no ape-nas deram origem a um sistema nacional de previdncia social, mas tambm ofere-ceram servios de sade aos seus segurados. Formava-se o embrio de um sistema de oferta de cuidados de sade, principalmente curativos, contratados de prove-dores privados, atravs do qual, nos anos 1970, se expandiria dramaticamente a cobertura de ateno em sade aos brasileiros. A rea da assistncia, em contraste, at a dcada de 1990, permaneceu como o territrio da caridade privada, estimula-da por isenes iscais, e da ao das primeiras-damas, no mbito governamental. Observe-se que, desde a sua criao em 1938, o Conselho Nacional de Servio So-cial, precursor do CNAS, tinha como uma de suas principais funes a concesso de certiicao de beneicncia.

    CARACTERSTICAREA DE POLTICA

    Sade Assistncia Social

    Criao de um sistema nacional de ateno / assistncia

    1930 1995

    Legado institu-cional dos anos

    1970/1980

    Anos 1970: expanso ex-pressiva de cobertura de ser-vios de ateno individual

    na sua maior parte contrata-dos de provedores privados, inanciados com recursos da

    Previdncia Social;

    Alguns estados e municpios (os maiores e capitais): ofereciam algumas aes ou subsidiavam

    organizaes de caridade;

    Quadro 1 Principais Caractersticas das reas de Sade e de Assistncia Social - Brasil, antes dos anos 1990

    (continua)

  • DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, SOCIEDADE CIVIL E TERRITRIO

    35

    Fonte: Elaborao prpria.

    Em 1987, o Governo Federal lanou o Programa de Sistemas Uniicados e Decentralizados de Sade (SUDS). O Programa, precursor do que seria estabele-cido na Constituio Federal de 1988, dava continuidade ao processo de integra-o dos servios de sade pblica e de assistncia sade previdenciria, iniciado na primeira metade daquela dcada. Alm disso, estendeu o direito a cuidados de sade a todos os cidados, fossem eles oferecidos por rgos pbicos ou contrata-dos pela previdncia social, independentemente do pagamento de contribuies previdencirias. O Programa ainda transferiu funes, patrimnio e a gesto de pessoal para as Secretarias Estaduais de Sade, e, nos anos 1990, a transferncia seria direcionada aos municpios. As Secretarias Estaduais e, depois de 1993, os gestores municipais de sade passaram a ser responsveis pelo cuidado oferecido diretamente por unidades prprias ou contratados no seu territrio.

    A Constituio e as Leis Federais de 1990 (BRASIL, 1990a, 1990b) estabe-leceram as bases jurdicas para as mudanas j em curso no sistema de sade. De acordo com a legislao, todos os cidados tm direito sade e cabe ao Estado o dever de garanti-la. O Sistema nico de Sade (SUS) est organizado de forma descentralizada, com participao da comunidade, com atribuio de recursos e funes aos governos estaduais e municipais. Os cuidados oferecidos devem ser integrais, isto , desde os cuidados bsicos e de sade pblica at os de nvel de complexidade mais alta, atravs de uma rede hierarquizada de servios, controlada e regulada pelo setor pblico. O programa SUDS, a seo sobre sade na Consti-tuio, as leis federais de 1990, que regulamentam o SUS, e as normas ministeriais

    CARACTERSTICAREA DE POLTICA

    Sade Assistncia Social

    Legado institu-cional dos anos

    1970/1980

    1987: (a) uniicao dos subsetores de ateno

    sade da Previdncia Social e de sade pblica; (b)

    transferncia da gesto do sistema, ento uniicado, para os estados e munic-

    pios; (c) extenso de cober-tura a todos os cidados.

    A rea era composta por um conjunto relativamente desor-ganizado de aes promovidas

    por indivduos e organizaes de caritativas (ilantrpicas);

    Governo Federal oferecia isen-es iscais para organizaes

    ilantrpicas;

    Deciso sobre que organizao rece-beria isenes iscais era do Conse-

    lho Nacional de Servio Social.

    Quadro 1 Principais Caractersticas das reas de Sade e de Assistncia Social - Brasil, antes dos anos 1990

    (concluso)

  • CEGOVCAPACIDADE ESTATAL E DEMOCRACIA[ ]

    36

    que orientaram a implementao do sistema foram, em grande parte, o resultado das aes articuladas pela policy community reformista, chamada movimento sa-nitrio (PAIM, 1989; TEIXEIRA, 1989).

    Na rea de assistncia, uma policy community que defendia o im do pri-meiro damismo e criao de um sistema nacional de assistncia social tambm foi vitoriosa, tanto durante o processo constitucional, quanto na elaborao da Lei Orgnica da Assistncia Social, em 1993. A assistncia social tambm mereceu seo especica na Constituio Federal: embora esta no atribua ao Estado obri-gao de oferec-la, estabeleceu que a assistncia social deve ser prestada a quem dela necessitar e que as aes de assistncia devem realizar-se de modo descentra-lizado, com participao da populao.

    Entretanto, os arcabouos institucionais e os contextos polticos das duas reas eram muito diferentes. Um sistema nacional de sade se formara na dcada de 1930, oferecendo servios de sade pblica a toda a populao, mas cuidados ambulatoriais e hospitalares apenas aos segurados da previdncia social. Na rea de assistncia social, as aes governamentais eram muito limitadas e as organi-zaes e os indivduos caritativos eram os principais responsveis pela oferta de cuidados assistenciais. Ao inal dos anos 1980, discutia-se a reforma do sistema de sade e, em contraste, a constituio de um sistema de assistncia social. Os integrantes da community reformista na rea de assistncia social buscavam cons-truir um sistema a partir de um conjunto desorganizado de aes, coordenados por estruturas governamentais secundrias, quando existentes, enquanto na rea de sade a proposta era reformar um sistema em pleno funcionamento. Nas dca-das de 1990 e 2000, foram formadas estruturas de gesto estaduais e municipais na rea de assistncia social. Ainda que em 2012 existissem mais municpios com secretarias de sade do que de assistncia social, impressionante que 72,6% das cidades j tivessem estruturas administrativas encarregadas das questes assis-tenciais.

    As caractersticas do tipo de cuidados oferecidos e dos usurios dos servi-os das duas reas tambm demarcam as diferenas. As demandas de potenciais beneicirios de cuidados assistenciais, os desamparados, tm menor capacida-de de mobilizar apoio poltico do que aquelas apresentadas por quem reivindica ateno sade, todos os cidados. Os primeiros tm menores possibilidades de mobilizao de recursos, e sua imagem poltica, no sentido deinido por Ingram et al. (2007), nem sempre positiva. Especialmente para defensores de propostas liberais de organizao da proviso de bem estar, uma parcela muito pequena dos necessitados seria merecedora de cuidado assistencial.

    Os limitados interesses de mercado na rea de assistncia social, se compa-rados aos vultosos investimentos e oportunidades de lucro na rea de sade, esto

  • DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, SOCIEDADE CIVIL E TERRITRIO

    37

    CARACTERSTICAREA DE POLTICA

    Sade Assistncia Social

    Criao de um sistema nico

    nacional

    1990: Sistema nico de Sade SUS

    2005: Sistema nico de Assistncia Social SUAS

    Organizao federativa

    Implementao descentraliza-da, principalmente a cargo do

    municpio;

    Implementao descentrali-zada, principalmente a cargo

    do municpio;

    Deciso poltica principalmen-te no nvel federal de gesto.

    Deciso poltica principal-mente no nvel federal de

    gesto.

    Gesto pblica no nvel municipal e

    estadual de gesto

    Todos os estados a grande maioria dos municpios [2011: 86,7%] * apresentava secreta-

    ria de sade exclusiva.

    Todos os estados a grande maioria dos municpios

    [2012: 72,6%]* apresentava secretaria de assistncia

    social exclusiva.

    Financiamento

    Principalmente privado Principalmente pblico

    Gasto governamental [2010]: Unio: 45%; Estados: 27%;

    Municipal: 28% (CARVALHO, 2010)

    Gasto governamental [2010]: Unio: 14.4%; Esta-dos: 7.2%; Municipal: 78.4%

    (MDS, 2011)

    Pessoas com direi-to ao cuidado

    Todos os cidados Pessoas desamparadas

    Quadro 2 Principais Caractersticas das reas de Sade e de Assistncia Social Brasil, anos 1990 e 2000

    (continua)

    associados ao fato do inanciamento ser predominantemente pblico naquela e privado nesta. Os interesses envolvidos na rea de sade e sua capacidade de in-luenciar as decises governamentais so superiores. Hospitais, sejam eles ilan-trpicos, privados, governamentais e/ou universitrios, e clnicas mdicas, labora-trios, empresas farmacuticas e de equipamentos mdicos, sejam elas produtoras ou distribuidoras de medicamentos, seguradoras de sade, entre outros tipos de organizaes, tm maior capacidade de inluenciar as decises governamentais do que organizaes ilantrpicas, que oferecem cuidados a desamparados. A oferta de cuidados assistenciais, mesmo que crescente, no se equipara ao complexo i-nanceiro, industrial, e de servios da rea de sade. Alm disso, maior a repercus-so poltica de manifestaes de proissionais de sade, marcadamente mdicos, em comparao ao impacto de demandas apresentadas por assistentes sociais.

  • CEGOVCAPACIDADE ESTATAL E DEMOCRACIA[ ]

    38

    CARACTERSTICAREA DE POLTICA

    Sade Assistncia Social

    Proviso pblica

    Cuidados hospitalares de maior complexidade [principalmente universitrios]; cuidados hospi-talares de menor complexidade [principalmente municipais];

    servios de apoio diagnstico e teraputico; servios de emer-gncia; medicao; cuidados

    primrios; sade pblica.

    Cuidados oferecidos por uni-dades, em geral, municipais.

    Proviso privada

    Cuidados hospitalares e ambulatoriais; medicao;

    servios de apoio diagnstico e teraputico [92% dos estabe-lecimentos em 2002 (MENI-

    CUCCI, 2009)]

    Cuidados oferecidos por unidades, em geral, ilantr-

    picas.

    Grupos de interesse

    Organizaes hospitalares [ilantrpicas, privadas, go-

    vernamentais; universitrias]; clnicas; laboratrios; empre-sas farmacuticas e de equi-

    pamentos mdicos [indstria e distribuio]; seguradoras;

    trabalhadores e proissionais; gestores municipais estaduais e municipais; organizaes de

    segmentos de usurios.

    Organizaes ilantrpicas, em geral, religiosas, a maio-ria catlica; trabalhadores e proissionais; gestores municipais estaduais e

    municipais; organizaes de segmentos de usurios.

    Grupo proissional mais inluente

    Mdicos Assistentes Sociais

    * A Pesquisa Peril dos Municpios Brasileiros MUNIC de 2011 no apresenta informa-es sobre a rea de assistncia social e Pesquisa, de 2012, no oferece dados sobre a rea de sade (IBGE, 2011; IBGE, 2012).

    Quadro 2 Principais Caractersticas das reas de Sade e de Assistncia Social Brasil, anos 1990 e 2000

    (concluso)

    Fonte: Elaborao prpria.

    O Quadro 3 apresenta as principais caratersticas das duas policy communi-ties analisadas. O movimento sanitrio era formado por acadmicos, pesquisado-res, lideranas de sindicatos e associaes de trabalhadores, em aliana com os ati-vistas dos movimentos sociais urbanos e rurais. Defendiam um sistema de sade descentralizado, com servios acessveis a todos os cidados, que oferecesse aten-

  • DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, SOCIEDADE CIVIL E TERRITRIO

    39

    dimento integral, organizado sob o rigoroso controle do setor pblico. Para atingir seus objetivos, sua estratgia contemplou: participar diretamente na implantao do Sistema nico de Sade (SUS); para isso, boa parte de seus integrantes assumiu cargos superiores de gesto no Ministrio da Sade, nas Secretarias Estaduais e Municipais de Sade, ou at mesmo a titularidade do Ministrio e das Secretarias; propuseram, com sucesso, a criao de instncias federativas de negociao entre gestores de sade dos trs nveis federativos, de gesto e de deciso sobre plane-jamento e alocao de recursos inanceiros. Seus integrantes tornaram-se impor-tantes lideranas nos Conselhos Nacionais de Secretrios e Dirigentes de Sade Estaduais (CONASS) e Municipais (CONASEMS) e assumiram cargos de direo no Ministrio da Sade. Nesse contexto, o Conselho Nacional de Sade no se conigurava como uma arena poltica a ser fortalecida (SILVA et al., 2009).

    A community que defendia a assistncia social como direito dos cidados era integrada por acadmicos, pesquisadores, funcionrios pblicos e lderes de sindi-catos e associaes de assistentes sociais, em aliana com assistentes sociais e diri-gentes do setor pblico e de organizaes ilantrpicas. Eles advogavam a criao de um sistema descentralizado e abrangente de assistncia social para todos os ci-dados necessitados, organizado sob o rigoroso controle do setor pblico (CORTES, 2013). Durante os anos 2000, consolidaram a proposta de um Sistema nico de Assistncia Social (SUAS) similar ao SUS. Defendiam ainda a mudana do papel ins-titucional do CNAS. Gradativamente o transformaram, de uma entidade notarial responsvel pela oferta de certiicados de beneicncia, na principal fonte de pro-duo dos regramentos que permitiram acelerar a estruturao nacional do SUAS.

    POLICY

    COMMUNITIES

    REA DE POLTICA

    Sade Assistncia Social

    A mais inluente Reformistas do sistema

    brasileiro de sade, conhecida como Movimento Sanitrio.

    Defensores da assistncia social como direito.

    Composio

    Acadmicos, pesquisado-res, proissionais de sade, servidores e dirigentes do setor pblico, lderes de

    organizaes de proissionais e trabalhadores de sade em

    aliana como movimentos sociais urbanos e rurais.

    Acadmicos, pesquisadores, servidores e dirigentes do setor pblico, proissionais da rea de assistncia social, marcadamen-te assistentes sociais, em aliana com alguns integrantes de orga-nizaes ilantrpicas, principal-

    mente assistentes sociais.

    Quadro 3 Policy Communities Reformistas nas reas de Sade e de Assistncia So-cial: Caractersticas e Principais Estratgias Brasil, anos 1990 e 2000

    (continua)

  • CEGOVCAPACIDADE ESTATAL E DEMOCRACIA[ ]

    40

    Fonte: Elaborao prpria.

    POLICY

    COMMUNITIES

    REA DE POLTICA

    Sade Assistncia Social

    Principais pro-postas

    Defendiam um sistema de sade de acesso universal,

    descentralizado, hierarquiza-do, que oferecesse cuidados integrais, organizado sob o

    estrito controle pblico.

    Defendiam a criao de um sistema descentralizado e

    hierarquizado, que oferecesse cuidados assistenciais a todos os cidados necessitados, organiza-do sob o estrito controle pblico.

    Principal estra-tgia durante

    os anos 1990 e 2000

    Consolidar e organizar a gesto do SUS.

    Organizar a gesto federa-tiva: criao de fruns ao nvel nacional, estadual e

    regional para o planejamento, negociao e deciso sobre

    alocao de recursos.Assumir o controle direto

    (com os membros da commu-nity) sobre o Ministrio da

    Sade e secretarias estaduais e municipais de sade e suas organizaes representati-vas (Conselho Nacional dos Secretrios de Sade - CO-NASS e Conselho Nacional

    de Secretarias Municipais de Sade - CONASEMS, respec-

    tivamente).

    Criar e organizar o SUAS tendo como modelo o SUS.

    Alterar o papel do CNAS: Acabar com sua funo tradicional de conferir

    certiicados de beneicn-cia herdada do Conselho

    Nacional de Servio Social. Transform-lo na prin-cipal fonte de produo

    de decises e normativas para acelerar o processo de estruturao nacional do

    novo sistema.

    No incio da dcada de 1990, as diiculdades de gesto de um sistema de sa-de em um estado federativo, como o caso brasileiro, desaiavam a policy commu-nity reformista a encontrar mecanismos que viabilizassem a coordenao vertical e horizontal das aes implementadas de forma descentralizada. Em 1991, repre-sentantes dos gestores municipais e estaduais, muitos deles integrantes do movi-mento sanitrio, propuseram a criao de instncias colegiadas de pactuao entre os gestores nos nveis de governo correspondentes (CORTES, 2009): as comisses bipartites nos estados, compostas por gestores estaduais e municipais, e tripartite na Unio, integradas por gestores de sade das trs esferas de governo.

    Quadro 3 Policy Communities Reformistas nas reas de Sade e de Assistncia So-cial: Caractersticas e Principais Estratgias Brasil, anos 1990 e 2000

    (continua)

  • DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, SOCIEDADE CIVIL E TERRITRIO

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    A Norma Operacional Bsica do Ministrio da Sade de 1993 (NOB/93) viabilizou de fato o processo de municipalizao, ao estabelecer critrios e me-canismos claros para que municpios assumissem a gesto dos servios de sade inanciados com recursos pblicos (BRASIL, 1993a). A NOB formalizou ainda a criao das comisses intergestores. Elaborada no incio do Governo do Presidente Itamar Franco, logo aps o processo poltico que levara ao impeachment do Presi-dente Fernando Collor, em 1992, foi construda em um ambiente poltico favor-vel, pois os novos dirigentes federais na rea eram claramente identiicados com o movimento sanitrio, sendo mais permeveis s propostas de aprofundamento da municipalizao e da descentralizao do sistema, se comparados aos gestores da administrao Collor (LEVCOVITZ; LIMA; MACHADO, 2001, p. 274). Estabele-ceu-se assim o desenho institucional de planejamento e de gesto do SUS at hoje vigente, caracterizado pela descentralizao e pela existncia de fruns permanen-tes de coordenao vertical e horizontal.

    As comisses intergestores passaram a ser os principais espaos institucio-nais de tomada de decises sobre inanciamento, coordenao da estrutura gestora descentralizada e funcionamento geral do SUS (LEVCOVITZ; LIMA; MACHADO, 2001; SANTOS; GERSCHMAN, 2006). As comisses respondiam necessidade de coordenao das aes em sade nos trs nveis de governo, para possibilitar a implementao de polticas nacionais de forma articulada e organizada. Enquanto os representantes da sociedade civil concentraram sua atuao nos conselhos de sade municipais, estaduais, e nacional os atores governamentais, a maior par-te deles integrantes da policy community reformista, participavam nas comisses intergestores. Os atores de mercado optaram por exercer inluncia direta sobre os decisores governamentais e por estratgias de mercado que lhes garantissem posio privilegiada como provedores de servios no mbito do SUS e fora dele.

    Na rea de assistncia, os anos 2000 so os mais marcantes. O governo do Presidente Lus Incio Lula da Silva, iniciado em 2002, colocara no centro da agenda governamental a questo das desigualdades sociais e da pobreza no pas. Entretanto, somente quando Patrus Ananias assumiu o comando do MDS, em 2004, que as propostas da policy community defensora da assistncia social como direito tornaram-se de fato polticas de governo, e seus integrantes passaram a ocupar cargos de direo na gesto federal. Aberta a janela de oportunidades e estabelecido o problema na agenda governamental, as alternativas de soluo de-fendidas pela policy community reformista foram as escolhidas pelos governantes. A partir de ento, acelerou-se o processo de constit