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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LINGUSTICA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SEMITICA E LINGUSTICA GERAL

    Da inteno ao gesto interpretativo:anlise semitica do canto popular brasileiro

    Verso corrigida

    REGINAMACHADO

    Tese apresentada rea de Semitica e LingusticaGeral do Departamento de Lingustica da Faculdade deFilosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidadede So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor.

    SO PAULO2012

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    REGINAMACHADO

    Da inteno ao gesto interpretativo:anlise semitica do canto popular brasileiro

    Verso corrigida

    Tese apresentada rea de Semitica e LingusticaGeral da Faculdade de Filosofia, Letras e CinciasHumanas da Universidade de So Paulo (USP),para obteno do ttulo de Doutor em Lingustica.

    Orientador: Prof. Dr. Luiz Augusto de Moraes Tatit

    SO PAULO2012

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    FICHA CATALOGRFICA

    Dados internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    DIVISO DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAO ESALQ/USP

    Machado, ReginaDa inteno ao gesto interpretativo: anlise semitica do canto

    popular brasileiro-- So Paulo, 2012.

    00 p.

    Tese (doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, 2012.

    Bibliografia

    1.CDD

    Permitida a cpia total ou parcial deste documento desde que citada a fonte. A autora

    Ttulo em ingls: From intention to interpretative gesture: semiotics analysis of the Brazilian

    popular singing

    Keywords: popular singing, semiotics, song, Brazilian music, singing voice.

    Titulao: Doutorado em Lingustica

    rea de concentrao: Semitica e Lingustica Geral

    Banca examinadora:

    Prof. Dr. Iv Carlos LopesProfa. Dra. Beatriz Raposo de MedeirosProf. Dr. Mrcio Luiz Gusmo CoelhoProf. Dr. Jos Roberto Zan

    Data da defesa: 16 de maro de 2012.

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    BANCAEXAMINADORA DATESE DE DOUTORADO

    Aluna: Regina Machado

    Orientador: Prof. Dr. Luiz Augusto de Moraes Tatit

    Membros:

    ________________________Prof. Dr.

    ________________________Prof. Dr.

    ________________________Prof. Dr.

    ________________________Prof. Dr.

    ________________________Prof. Dr.

    Ps-Graduao em Semitica e Lingustica Geral do Departamento de Lingustica daFaculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo

    Data: 16 de maro de 2012.

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    DEDICATRIA

    Aos cantores do Brasil, presentes ou no neste trabalho,os verdadeiros conhecedores do

    sentido emotivo do cantar.

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    AGRADECIMENTOS

    Ao meu orientador, Luiz Augusto de Moraes Tatit,

    pela pacincia, pelo cuidado e pela disposio sempre presentes.

    Aos professores Beatriz Raposo e Iv Carlos Lopes,

    pelos comentrios feitos durante a banca de qualificao deste trabalho.

    Aos professores Diana Luz Pessoa de Barros, Jos Roberto do Carmo Jr. e Iv Carlos Lopes,

    pelas valiosas aulas, cujos contedos aparecem, de um modo ou de outro, neste trabalho.

    Aos meus alunos da graduao em Msica Popular da Unicamp, que souberam

    entender a delicadeza do momento vivido durante a elaborao desta tese.

    Aos meus colegas do Grupo de Estudos de Canto Popular, do Canto do Brasil,

    pelas discusses sempre enriquecedoras sobre a cano e o comportamento vocal.

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    amiga Tereza Loureno, pelo trabalho realizado, que foi muito alm da simples

    reviso desta tese, contribuindo de maneira sensvel para a qualidade da pesquisa.

    Silvia Regina Ferreira, pelo afeto, pela presena sempre constante

    e pelo amplo apoio, que me possibilitaram dedicar horas realizao

    deste trabalho enquanto a vida real continuava seguindo seu curso.

    Aos alunos, amigos e funcionrios do Canto do Brasil Atividade e

    Ensino Musical, que tambm me apoiaram nesta realizao.

    Aos amigos e parceiros de jornada musical, Italo Peron e Norberto Vinhas,

    pelas conversas, pelos trabalhos e pelas realizaes musicais sempre prazerosas.

    Aos meus padrinhos Dyonisio e Sylvia, pelo apoio sempre

    incondicional s minhas escolhas e realizaes.

    minha me, Margarida, s minhas irms, Rita e Rosana,ao meu cunhado Jorge e, especialmente,

    ao meu sobrinho Guilherme.

    Agradeo especialmente aos Profs. Drs. Beatriz Raposo, Iv Carlos Lopes,

    Jos Roberto Zan e Mrcio Coelho pelos valiosos comentrios realizados

    durante a defesa desta tese.

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    EPGRAFE

    "Todo conhecimento um reconhecimento algo que a tragdia nos havia prevenido, quer esse reconhecimento se d na desgraa ou na alegria.

    Diremos, apenas de passagem, que todo pensamento em seu curso retoma acadeia das pressuposies que o ordena, livra-se das propostas que se

    revelaram no-indispensveis e esse reconhecimento , alm do mais ou,talvez, acima de tudo , como que uma fonte de juventude, pois que ele

    corresponde, enfim! a um acesso ao que j estava l todo o tempo e, de certomodo assim como em A Carta Roubada de Poe escondido porque ofertado."

    (Claude Zilberberg)

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    RESUMO

    A cano popular brasileira, principal produto da nossa cultura miditica, vem obtendoreconhecimento nos meios acadmicos nesses ltimos anos, justificando odesenvolvimento de uma prtica descritiva que se dedica a analis-la: a Semitica daCano, desenvolvida por Luiz Tatit. Curiosamente, no entanto, o canto popular,principal veculo de manifestao dessa cano, s agora comea a despertar ointeresse de pesquisadores. Este trabalho pretende, partindo da aplicao da Semiticada Cano e a ela acrescentando uma terminologia adequada percepo descritivado comportamento vocal, analisar algumas das principais vozes do Brasil, com base naescuta de fonogramas. Procuramos, assim, traduzir o que denominamos QualidadeEmotiva das vozes, na tentativa de desenvolver uma descrio analtica que superasseo juzo de valor ou a mera adjetivao.

    Palavras-chave: canto popular, semitica, cano, msica brasileira, voz cantada.

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    ABSTRACT

    During the last years, Brazilian popular song, which are the main product of our mediaculture, is obtaining recognition among the academic environment, justifying thedevelopment of a descriptive practice that is dedicated to analyze it: The Song Semioticsdeveloped by Luiz Tatit. However, it wasnt until now, that popular singing, which is themain means of these songs manifestation, started to awake researchers interest.Starting on The Song Semiotics and adding to it an appropriate term for the descriptiveperception of the vocal behavior, this work intend to analyze some of the main Brazilianvoices, based on phonograms listening. We will try this way to express what we call

    Voices Emotive Quality, in an effort to develop an analytic description that overcomesany judgment or mere qualification.

    Key Words: popular singing, semiotics, song, Brazilian music, singing voice.

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    SUMRIO

    p.RESUMO.................................................................................................................................. ixABSTRACT.............................................................................................................................. x

    INTRODUO......................................................................................................................... 13

    1 Canto popular e significao ................................................................................................................ 14

    1 A VOZ NA CANO POPULAR BRASILEIRA URBANA.................................................. 19

    1.1 A tradio inventada .......................................................................................................................... 201.2 As vozes da cano popular brasileira urbana ............................................................................... 221.3 A intuio e a inteleco no canto popular do Brasil ...................................................................... 36

    2 A SEMITICA DA CANO E SUA APLICAO NA ANLISE DOCOMPORTAMENTO DA VOZ CANTADA........................................................................... 412.1 Para alm das adjetivaes ............................................................................................................. 422.2 Voz e tensividade ............................................................................................................................. 43

    2.2.1 Passionalizao, tematizao e figurativizao ............................................................ 462.3 Nveis da voz: elementos de fisiologia e tcnica vocal ................................................................... 48

    2.3.1 Nvel fsico .................................................................................................................... 492.3.1.1 Extenso e tessitura .......................................................................................... 492.3.1.2 Registros vocais ................................................................................................ 502.3.1.3 Timbre e significao ........................................................................................ 51

    2.3.2 Nvel tcnico ................................................................................................................. 512.3.2.1 Emisso ............................................................................................................. 51

    2.3.3 Nvel interpretativo ......................................................................................................... 522.3.2.1 Articulao rtmica .............................................................................................. 522.3.3.2 Timbre manipulado ............................................................................................. 532.3.3.3 Gesto interpretativo ............................................................................................ 53

    3 A ESCOLHA DAS CANES E A METODOLOGIA DAS ANLISES............................... 553.1 A escolha das canes ..................................................................................................................... 56

    3.1.1 A escolha dos fonogramas............................................................................................. 583.2 A metodologia das anlises .............................................................................................................. 59

    3.2.1 O protocolo .................................................................................................................... 593.2.2 A anlise da cano ...................................................................................................... 603.2.3 A anlise do comportamento vocal................................................................................ 61

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    4 AS ANLISES...................................................................................................................... 634.1 Ave Maria no Morro (Herivelto Martins) ............................................................................................ 64

    Dalva de Oliveira (1942) ......................................................................................................... 69

    Joo Gilberto (1991) ............................................................................................................... 714.2 Beatriz (Edu Lobo e Chico Buarque de Holanda) ............................................................................ 75

    Milton Nascimento (1983)....................................................................................................... 80 Ana Carolina (1999) ................................................................................................................ 84

    4.3 o Amor (Zez di Camargo) ............................................................................................................ 87Zez di Camargo & Luciano (1991) ........................................................................................ 91Maria Bethnia (1999) ............................................................................................................ 94

    4.4 Falsa Baiana (Geraldo Pereira) ........................................................................................................ 97Ciro Monteiro (1944) ............................................................................................................... 101Gal Costa (1971) .................................................................................................................... 103

    4.5 Lbios que Beijei (J. Cascata e Leonel Azavedo) ........................................................................... 109Orlando Silva (1937) ............................................................................................................... 113Caetano Veloso (1995) ........................................................................................................... 114

    4.6 Linda Flor Yay (Henrique Vogeler, Marques Porto e Luiz Peixoto) ........................................... 117 Araci Cortes (1929) ................................................................................................................ 122Zez Motta (1979) .................................................................................................................. 123

    4.7 Na Batucada da Vida (Ari Barroso e Luiz Peixoto) .......................................................................... 127Carmen Miranda (1934) ..........................................................................................................

    132Elis Regina (1974) .................................................................................................................. 136N Ozzetti (2009) .................................................................................................................... 139

    4.8 Samba do Avio (Tom Jobim) .......................................................................................................... 143Tom Jobim (1965) ................................................................................................................... 149Gilberto Gil (1977) .................................................................................................................. 151

    5 GESTO VOCAL E SIGNIFICAO UM INVENTRIO DAS VOZES ANALISADAS....... 1555.1 Algumas consideraes .................................................................................................................... 156

    5.1.1 Passionalizao, tematizao e figurativizao vocais ................................................. 1585.1.2 Tensividade e construo de sentidos pela voz ............................................................ 161

    5.2 Quadro descritivo das vozes ............................................................................................................. 1646 CONSIDERAES FINAIS.................................................................................................. 165REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS....................................................................................... 168ANEXO..................................................................................................................................... 175 Anexo 1: Discos contendo as faixas analisadas .................................................................................... 176

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    INTRODUO

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    1 CANTO POPULAR E SIGNIFICAO

    No Brasil, a importncia da cano popular comea a ser reconhecida nos

    meios acadmicos, justificando a presena de um nmero j significativo de

    trabalhos desenvolvidos nesta rea.

    A longa histria escrita pelos compositores e intrpretes mostra-se, ano aps

    ano, capaz de se manter viva e em constante renovao, atingindo sempre um

    nmero expressivo de pessoas, fato bastante raro em outras manifestaes

    artsticas brasileiras, exceo talvez feita telenovela.

    A elaborao da Teoria Semitica da Cano por Luiz Tatit , at agora, a mais

    expressiva comprovao do reconhecimento dos meios acadmicos importncia

    dessa manifestao. Assim, a fundao de uma prtica descritiva que pudesse

    atender s demandas dos pesquisadores, no sentido de compreender mais

    profundamente as articulaes engendradas na composio, vem satisfazer a

    expectativa de muitos que desejam tratar de maneira mais minuciosa esse assunto.

    Contraditoriamente, se a cano popular j alcanou relevncia para se

    tornar assunto de teses e dissertaes, o canto popular, principal veculo dessa

    realizao, s agora comea a ganhar alguns poucos estudos, entre os quais se

    inclui este trabalho que apresentamos.

    Durante anos, o canto popular no Brasil foi tratado nos meios de produo

    como uma manifestao de talento puro, na qual no se admitia a interferncia de

    processos racionais que pudessem descaracteriz-lo.

    Como refere Tatit (1995) sobre o compositor popular, dizendo que ningum

    sabe exatamente quando nem como surgiu sua habilidade para realizar canes, da

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    mesma forma o cantor popular seria fruto exclusivo do talento e do acaso, dotado

    naturalmente de uma capacidade especial de, com sua voz, emocionar a audincia.

    Sem negar esse fato, visto que, com efeito, o talento de muitos intrpretesrevelou-se de maneira absolutamente espontnea, consideramos necessrio

    encontrar um instrumento de anlise que pudesse observar a realizao vocal

    considerando a tcnica do canto, ainda que adquirida pelo exerccio da profisso e

    no pelo desenvolvimento de um estudo formal, mas reconhecendo a

    intencionalidade emocional como geradora dessa competncia.

    Ao entrarmos em contato com a Semitica da Cano, enxergamos apossibilidade de tratar a questo sobre o Gesto Interpretativo de maneira a revelar

    significados que extrapolassem a mera adjetivao ou que incorressem em juzo de

    valor. Assim, vislumbramos ser possvel realizar uma descrio tcnica apoiada por

    uma elucidao de sentido que pudesse resultar numa prtica descritiva

    complementar Semitica da Cano, no sentido de acrescentar a esta as

    categorias e as referncias tcnicas especficas do canto.

    Iniciamos a pesquisa de repertrio considerando um recorte amplo sobre a

    chamada MPB, que hoje engloba a obra de compositores e intrpretes variados,

    indo de Chico Buarque e Edu Lobo a Zez di Camargo e Luciano, passando de Gal

    Costa a Ana Carolina. Intencionalmente, destacamos agora os nomes nesta ordem,

    para tornar claro que hoje o termo MPB utilizado de modo amplo, dispondo-se a

    identificar os diversos atores da cano. Atualmente, no mais possvel

    compreender essa terminologia como referncia especfica a uma produo

    comprometida com certo tipo de engajamento poltico ou mesmo com uma nica

    referncia esttica cancional.

    Com o intuito de demonstrar o papel decisivo do intrprete na realizao,

    escolhemos duas gravaes de cada cano, feitas em pocas diferentes por

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    cantores cujas carreiras tiveram (ou tm) uma grande representatividade no universo

    da msica popular, demonstrando que nem sempre os processos de estandartizao

    da msica midiatizada impediram o surgimento de expresses diferenciadas nocampo do canto e da cano popular. Desta forma, pudemos percorrer, ao longo das

    anlises, um nmero considervel de composies e gestos vocais diferenciados

    que se tornaram referncia para a msica popular brasileira, extrapolando, e muito,

    o fato de terem sido criadas e registradas no eixo Rio So Paulo, recorte que

    norteou a pesquisa de repertrio e a escolha de fonogramas.

    No Captulo 1 A voz na cano popular brasileira urbana , procuramosdescrever uma trajetria das vozes na cano midiatizada, seguindo a ideia da

    constituio de uma genealogia que consolidou no Brasil, ao longo do sculo XX,

    uma slida tradio vocal. Por essa linha de raciocnio, foi possvel identificar as

    principais vozes da cano popular e a maneira como cada uma produziu influncias

    nas geraes seguintes, fazendo ouvir o passado no presente e, a partir da, lanar

    matrizes para um futuro do canto popular.

    No Captulo 2 A semitica da cano e sua aplicao na anlise do

    comportamento vocal , partindo da inquietao manifestada por pensadores como

    Paul Zumthor e Roland Barthes, procuramos explicar de que maneira a Semitica da

    Cano desenvolvida por Luiz Tatit, na qualidade de prtica descritiva, poderia

    explicar o comportamento vocal de modo a revelar os sentidos inscritos no gesto

    interpretativo. Ao lidar com elementos tais como a emisso (timbre), o andamento, a

    tessitura, a articulao rtmica e a entoao, por exemplo, passamos a faz-lo no

    mais exclusivamente por um vis tcnico, como seria recorrente numa abordagem

    sobre canto, mas buscando compreender como esses recursos seriam utilizados, no

    plano local ou global, para expressar os estados fricos e os estados juntivos

    inscritos na composio.

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    No Captulo 3 A escolha das canes e a metodologia das anlises ,

    detivemo-nos em explicar os critrios para a escolha das canes e dos fonogramas

    que seriam analisados. Alm disso, procuramos detalhar, progressivamente, comose daria o processo de construo das anlises e a metodologia adotada.

    No Captulo 4 As anlises encontra-se o corpus do presente trabalho.

    Nessas anlises, como j foi dito, buscamos demonstrar a inteno por trs do gesto

    interpretativo. Sendo assim, procuramos tornar possvel observar a existncia de

    uma inteligncia emocional norteando a ao dos intrpretes.

    A partir da, tornou-se possvel, no Captulo 5 Gesto vocal e significao: uminventrio das vozes analisadas , organizar uma descrio sistemtica dos

    comportamentos vocais detectados nas anlises, demonstrando no apenas os traos

    de particularizao delineados por cada intrprete, mas tambm como cada um desses

    elementos atuou na constituio daquilo que denominamos Qualidade Emotiva.

    Chegamos, ento, elaborao de um quadro descritivo, no qual so

    referidos os componentes tensivos do canto de cada intrprete. Nesse quadro,elencamos o campo global como aquele em que se articulam o Andamento e a

    Emisso, enquanto no plano local estariam a Articulao Rtmica e o Vibrato. Quanto

    Entoao, outra subcategoria elencada, entendemos que ela poderia refletir uma

    ao local, isolada, que desta forma no se refletiria na totalidade da interpretao,

    ou, ainda, poderia configurar uma ao vocal duradoura, produzindo efeito de

    sentido no plano global da interpretao.

    A percepo e a compreenso dos gestos presentes em cada subcategoria

    levaram constituio daquilo que denominamos Qualidade Emotiva e que pretende

    identificar na voz os elementos da passionalizao, da tematizao ou da

    figurativizao. Conclumos, por fim, que essas caractersticas se faziam presentes

    nas vozes de maneira complementar, o que nos levou a elaborao de seis

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    categorias diferentes: Passional, Passional Figurativizada, Passional Tematizada,

    Tematizada, Tematizada Figurativizada, Tematizada Passional.

    Pretendemos, assim, dar incio estruturao de um processo analticoque possa traduzir a inteno por trs do comportamento tcnico, musical e

    interpretativo, desenvolvendo uma terminologia que revele, mesmo que

    parcialmente, o componente emotivo presente no canto.

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    1A VOZ NA CANO POPULAR

    BRASILEIRA URBANA

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    1.1 A TRADIO INVENTADA Ns somos apenas vozes

    Ns somos apenas nsPor exemplo, Apenas vozes da voz

    Somos ns, por exemplo Apenas vozes da voz.

    (GILBERTO GIL, Ns, por exemplo)

    A cano popular brasileira urbana, como produto de uma sociedade de

    consumo e destinada ao entretenimento, nasce no incio do sculo passado, com aimplantao dos meios de gravao fonomecnicos. Ali comeam a ser documentadasmaneiras de cantar e de compor que se consolidariam ao longo do sculo XX. No quetange ao canto, duas tendncias estticas diferenciadas seriam passveis deobservao desde aquele momento: uma ligada tradio do belcanto1 e, porconsequncia, cultura branca das elites, e outra resultante do modo de falar do povonas ruas, possivelmente em virtude da presena negra e indgena na sociedademiscigenada que ento se consolidava.

    Ao longo de nossa histria, essas duas maneiras de cantar continuariampresentes, ainda que a primeira, ou seja, aquela ligada tradio do belcanto, passassea ser denominada, principalmente aps a Bossa Nova, de estilo antigo. Cada vez maisganharia espao o estilo vocal que equilibrava a fala e o canto, evidenciando-se, estaestabilizao, como o principal elemento da atitude vocal na cano popular brasileira.

    Embora muito se tenha dito sobre a passagem de um canto operstico para um

    canto mais coloquial a partir da implantao das gravaes eltricas (1927), possvelobservar que, desde os primeiros registros realizados pela Casa Edison (com os cantoresBaiano, Cadete e Eduardo das Neves, por exemplo), j predominava uma esttica vocalbaseada na fala. De fato, nesse modo de cantar a utilizao de vibrato no perceptvel

    1 A arte do canto de tradio operstica italiana dos sculos XVII e XVIII, que enfatiza pureza e homogeneidadede notas, agilidade e preciso da tcnica vocal (HOUAISS, 2001).

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    escuta, e a emisso apresenta-se bastante aberta, de modo diverso das referncias vocaisligadas ao belcanto e que esto claramente presentes em gravaes de outros cantores damesma poca, como Vicente Celestino e outros seguidores de uma tradio que, no Brasil,

    se consolidou por meio da seresta 2.

    Embora o sistema de gravao mecnico exigisse potncia vocal do cantor caso contrrio o sulco no se fincava no disco de cera e, portanto, o registro noacontecia , vemos que os cantores citados, Baiano, Cadete e Eduardo das Neves,utilizavam o volume sem, no entanto, alterar o tipo de emisso vocal, que tinha na falasua principal referncia sonora e estilstica.

    Desta forma, parece-nos que ao longo do sculo XX a atitude vocal na cano

    popular brasileira, partindo dessas duas abordagens sonoras diferenciadas, seguiumantendo a primeira tendncia praticamente inalterada, mas levando a segundaabordagem a experimentos cada vez mais radicais, seja com a atitude adotada na BossaNova, seja sobretudo com o canto que se desenvolveu durante a Vanguarda Paulista.

    Com base nessa percepo de que as tendncias da voz na cano popularurbana brasileira, partindo de um comportamento matricial, oferecem fontes tanto paraa conservao quanto para mudana de padro esttico , tambm possvel afirmar

    que a consolidao de uma tradio no modo de cantar foi sendo transmitida degerao a gerao pela prtica da escuta e, at certo ponto, da imitao.

    Foi dessa maneira que muitas geraes de cantores populares, at o incio dosanos 1990, aprenderam seu ofcio. E sempre movidos pelo desejo de consolidar suaprpria marca interpretativa, alm de se espelhar em seus dolos, cada cantor buscoutransformar esse canto imprimindo algum detalhe de sua marca pessoal.

    Essa genealogia da voz 3 facilmente percebida por meio de estudos de relatosdos prprios cantores, que revelam em depoimentos recorrentes as vozes que foramreferncia para sua formao e mesmo aquelas que imitavam no incio de suas carreiras.Por exemplo, o caso de Elis Regina com relao ngela Maria, de Gal Costa com2 Gnero de cano sentimental trazida de Portugal no incio do sculo XVIII cujo nome foi criado no Rio

    de Janeiro na tradio da serenata (DOURADO, 2004). 3 Termo empregado por Jlio Diniz em Sentimental demais: a voz como rasura, inDo samba-cano

    tropiclia (2003, p. 99).

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    relao Dalva de Oliveira e a Joo Gilberto, de Marisa Monte com relao Gal Costa,de Roberto Carlos com relao a Joo Gilberto e Orlando Silva, de Maria Bethnia comrelao Dalva de Oliveira, isto para ficar em alguns poucos e notrios exemplos.

    Outro dado importante a ser apontado na formao do cantor popular o fato deque, durante anos, e mesmo ainda nos dias de hoje, o culto ao talento inato sempre foireforado. Temia-se que a interferncia de um estudo vocal formal pudesse destruir umaspecto sublime que sempre se estabeleceu como uma aura geradora e protetora dasgrandes vozes.

    Desta forma, essa tradio foi se inventando e reinventando ao longo dosculo XX, consolidando uma esttica vocal para a nossa cano urbana e

    possibilitando que os cantores desenvolvessem, ainda que intuitivamente, umcaminho de aprimoramento tcnico e interpretativo ligado tradio oral, escuta e percepo, e no ao estudo formal.

    Talvez ainda pelo mesmo motivo tenhamos levado tanto tempo at iniciar umametodologia de estudo da voz cantada especfica para a cano popular, baseada emsua prpria tradio sonora, fato esse que s ocorreu no Brasil no incio dos anos 1990 eprovocou uma mudana significativa, produzindo, a partir da, uma gerao de cantores

    populares com formao tcnica e musical, como o caso da cantora Mnica Salmaso,por exemplo.

    1.2 AS VOZES DA CANO POPULAR BRASILEIRA URBANA

    Partindo da periodizao estabelecida por Zuza Homem de Mello e JairoSeveriano em seu livro A cano no tempo (1998), aceitamos que a cano popular

    pode ser dividida em seis grandes momentos. Descrevem os autores no volume 1 dareferida obra um momento inicial, de 1901 a 1916, que preambula o surgimento dasgravaes fonogrficas para, em seguida, entrar naquele que seria um segundoperodo, de 1917 a 1928. Destacam ainda um terceiro perodo, de 1929 a 1945, e,finalmente, um quarto, de 1946 a 1957, antecessor da primeira grande revoluomusical, que foi a Bossa Nova.

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    De acordo com os autores, no segundo momento que ocorrem osurgimento e a consolidao do samba. A data inaugural seria o ano de 1917, coma gravao de Pelo Telefone,4 de Donga e Mauro de Almeida, feita pelo cantor

    Baiano para a Casa Edison. O gnero sofreria uma mudana significativa a partir do finalda dcada de 1920 com o samba produzido pelos compositores do Estcio de S(SANDRONI, 2001, p. 131), como Bide e Maral e atingiria o pice por volta de 1945.Todo esse perodo, conhecido como poca de Ouro, teria ento dado origem matrizda msica popular brasileira produzida no eixo Rio So Paulo, j que as refernciasdeixadas por seus compositores e cantores influenciariam de modo significativo asgeraes seguintes at o final dos anos 1980.

    nesse momento que surgem e se consolidam as vozes-modelo da nossacano, cabendo destacar os cantores que j se revelavam, ento, como luzeiros docaminho que comeava a ser delineado e percorrido. So eles: Francisco Alves, AraciCortes, Carmen Miranda, Araci de Almeida, Mrio Reis, Luiz Barbosa e Orlando Silva.

    Francisco Alves e Orlando Silva associados efetivamente a um comportamentovocal referenciado na seresta ligam-se tambm ao universo musical do samba,atenuando em suas vozes o uso de vibrato, embora ainda mantendo a predominncia da

    voz cantada sobre a falada, exaltando o componente musical de seus fraseadosmeldicos. importante destacar que Orlando Silva, ainda muito jovem, tinha uma nooclarssima de dinmica musical, fraseado rtmico, afinao, revelando uma conscinciatcnica que possivelmente se desenvolveu pela percepo musical e desejo deexpresso interpretativa, visto que o cantor nunca estudou canto de modo formal.

    Araci Cortes era atriz do teatro de revista e pode ser considerada a matriarca davoz na cano popular brasileira, dado que foi a primeira mulher a se consolidar

    profissionalmente como cantora. Sua emisso vocal dava-se, pelo menos nos anosiniciais de sua carreira, em regio muito aguda da voz; no entanto, ela produzia umagrande variedade de padres vocais, ora acentuando a presena da voz cantada e autilizao de vibratos, ora trazendo para o primeiro plano as finalizaes entoativas que

    4 Registrado como o primeiro samba gravado da histria da msica popular brasileira, cuja autoria discutida at hoje, visto que nasceu nas rodas de partido alto que aconteciam na casa de Tia Ceata, noRio de Janeiro.

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    enfatizavam a presena da fala. Influenciou diretamente a cantora Carmen Miranda,fato observvel em suas primeiras gravaes, que junto com Mrio Reis e Luiz Barbosatornaram-se as principais referncias da poca para a elucidao da voz que fala na

    voz que canta, fazendo da entonao 5 o principal veculo da construo de sentidospara a voz cantada.

    Cabe destacar tambm que Carmen Miranda, em razo de sua insero nocinema norte-americano a partir dos anos 1940 fato que projetou mundialmente suaimagem e tambm uma vertente da msica brasileira , ir consolidar a performance cnica atrelada expresso vocal. Anos mais tarde, aquela atitude artstica seriareferncia para a criao cnica dos artistas ligados Tropiclia.

    Entre 1946 e 1957, o samba-cano ( antes conhecido como samba de meio deano, j que no era produzido para o Carnaval e tratava predominantemente da temticada perda amorosa) sofreria algumas modificaes significativas do ponto de vistamusical, pois as harmonias se sofisticariam com os acrscimos de tenses aos acordes.Isso, de certa maneira, pode-se reconhecer como incio das mudanas que seaprofundariam na Bossa Nova a partir de 1958. Naquele perodo, ocorreria nas vozes,tanto femininas quanto masculinas, um rebaixamento das tessituras, resultando numa

    aproximao da fala, que expressava por meio dessas canes um forte contedopassional. nesse momento que, at certo ponto, a voz abre mo do atributo dapotncia da emisso para dar vazo expresso dramtica, traduzindo tambm noplano da expresso, ou seja, no seu componente sonoro, os contedos dos textosmusicais e lingusticos. No entanto, mantm-se ainda a utilizao acentuada de vibratoe os prolongamentos de finais de frases como componentes de uma fora expressiva,embora j fosse possvel notar fraseados nos quais o padro entoativo se pronunciassecom mais nfase, como, por exemplo, em interpretaes das cantoras Nora Ney eDolores Duran, e tambm em gravaes do cantor Lcio Alves.

    importante observar que esse tipo de abordagem vocal que revela umcomponente de intimidade no era comum at ento, mesmo nas canes cujocontedo potico predominante era a perda amorosa. Ao acrescentar expresso vocal

    5 Modulao na emisso de uma sentena, que indica se se trata de uma afirmao, pergunta, pedido ouordem, ou se o falante est contente, surpreso etc (HOUAISS, 2001).

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    um componente intimista, o intrprete aproximava o ouvinte da narrativa, e este poderiasentir-se, ento, protagonista do drama apresentado.

    Essa msica e suas vozes vo povoar as noites de cidades como So Paulo eRio de Janeiro, possibilitando que os bares e as boates se tornassem o espao fsicopblico da expresso da dor amorosa, como bem ilustra a letra da cano Bar daNoite (Bidu Reis/Haroldo Barbosa):bar tristonho, sindicato de scios da mesma dor/bar que o refgio barato dos fracassados do amor . Era a poca da chamada msicade fossa, que exigia dos cantores um discurso vocal mais denso e ntimo. A cantoraNora Ney destaca-se no perodo, sobretudo por uma caracterstica fsica, pois sua voz,extremamente grave, mostrava-se natural e adequada para essa expresso dramtica,

    alm do que ela construir, em sua expresso vocal, um gesto que faz uso de padresentoativos que equilibram canto e fala.

    As duas tendncias vocais apontadas no incio deste trabalho continuamsurgindo concomitantemente nesse perodo da cano. Assim, temos os cantores que,mesmo com os contedos passionalizados das msicas, fazem uso de um canto maisentoativo (falado) como a j citada Nora Ney, Lcio Alves, Dick Farney e Dolores Duran,alm de outros, como Elizeth Cardoso, ngela Maria e Cauby Peixoto. Eles continuam

    a tradio de um canto em que o atributo musical das vozes explorado ao mximona construo de uma expresso dramtica. Os trs comearam a cantar ainda nainfncia, ngela e Cauby nos coros das igrejas que frequentavam com as famlias eElizeth no rancho Kananga do Japo.

    Vale ressaltar aqui que ngela Maria, em sua primeira gravao da msicaBabalu, em 1958, fazia uso diferenciado da voz, que alternava entre registros eemisses, demonstrando que a cano popular comportaria uma voz carregada de

    inovaes e comportamentos diferentes daqueles j estandartizados pela indstriafonogrfica. No entanto, a cantora abandonou as atitudes portadoras de uma novasignificao vocal em prol de uma conduta identificada com as canes romnticas queprivilegiavam a potncia e a dramaticidade, caractersticas que a consagraram desde agravao de No Tenho Voc , em 1951.

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    chamados vozeires, abrindo possibilidades para outros tipos de intrpretes quecomeariam a surgir a partir da Bossa Nova.

    Com a entrada nos anos 1960, graas s transformaes vocais ocorridasdurante a Bossa Nova, muitos compositores tornam-se intrpretes de sua prpria obra,trazendo o componente da dico autoral para esse canto desprovido, no incio, de umcomponente vocal de destaque. Surgem tambm como cantores Chico Buarque, EduLobo, Jorge Ben e Geraldo Vandr, entre outros.

    O universo da cano popular passa a viver uma fase de grande ebulio criativa ediversidade musical, cuja divulgao ocorre pelo veculo mais expressivo da poca: ateleviso. nesse perodo que se observar uma grande variedade de comportamentos e

    estticas vocais que, mais do que nunca, tornaro as vozes e os intrpretes portadores de umcomponente ideolgico. A transmisso da imagem redimensionar a atitude dos cantores, quepassaro a ser, mais que uma voz, um corpo que se expressa e constri significaes.

    Podemos apontar trs vertentes produtivas nesse perodo, distribudas entre osnichos dos Festivais, da Jovem Guarda e da Tropiclia. Em cada uma dessas vertentes possvel observar os comportamentos vocais que se tornaram refletores das ideologiassubjacentes aos diversos grupos. Por exemplo, embora os Festivais fossem um espao

    natural para a diversidade musical e vocal, a consagrao do gnero msica de protesto dominou a imagem que se lanou depois sobre esse ambiente. Sendo assim, essachamada MPB6 que discutia os direitos civis por meio da cano popular fixa o espaodo Festival como seu principal ponto de permanncia.

    As vozes identificadas com esse gnero musical cuja revoluo poltica nopropunha necessariamente transformaes estticas do produto artstico soaquelas que se apresentam na regio mdia da tessitura, fato que confere veracidade

    fonte sonora, por se aproximarem da sobriedade na referncia falada. Ao mesmotempo, conseguem impactar o ouvinte pela conclamao reflexo e ao coletivas.Sendo assim, a atitude vocal dos cantores que melhor representaram o gnerorepercutia imediatamente no mbito do pblico, que reconhecia na simplicidade, na

    6 Ver N APOLITANo, M. Seguindo a cano: engajamento poltico e indstria cultural na MPB (1959-1969).So Paulo: Annablume/Fapesp, 2001.

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    objetividade e na carga emotiva do intrprete um convite participao ativa, como sese tratasse de um coro em unssono.

    No cabia nesse espao de identificao atitudes vocais que buscassem romperos padres estticos da poca, pois, de certa forma, um fator de inovaoimpossibilitaria a participao coletiva. Ou seja, embora o espao do Festival permitissea presena de comportamentos vocais de vanguarda, as atitudes vocais imediatamentereconhecidas pelo pblico que ganhavam notoriedade e eco popular. Por esta viaconsagram-se os intrpretes Jair Rodrigues e Marlia Medalha, bem como oscompositores/cantores Edu Lobo, Geraldo Vandr, Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre outros.

    Sobre a necessidade da expresso vocal no apresentar comportamentos

    inusitados, Caetano Veloso nos parece um excelente exemplo, daquele momento, ailustrar essa questo. Embora Alegria, Alegria fosse um cone pr-tropicalista no quese refere cano com sua letra cheia de imagens aparentemente desconexas, comonuma colagem, e seu arranjo comprometido com a fora dos versos , a maneira decantar do intrprete mantinha-se conectada tradio da Bossa Nova, sem nenhumaproposta de ruptura com um canto popular reconhecvel. Esse fator contribuiu paraatenuar os elementos pouco compreensveis da letra, chamando o pblico para o

    refro que naquele momento tambm ganhava uma conotao poltica Por que no? Por que no? , conclamando a plateia a discutir os comportamentos padronizados eas imposies tanto da direita conservadora como da esquerda revolucionria.

    exatamente nesse instante que se d o principal embate entre aquelescompositores e intrpretes ligados a uma atuao poltica dentro da msica popular e oschamados tropicalistas. Os primeiros preconizavam a revoluo social e poltica por meioexclusivo do contedo das obras, enquanto os segundos pretendiam uma ruptura

    esttica no mbito da criao da letra e da concepo sonora dos arranjos dascanes, o que se estenderia para alm da composio, penetrando no universo docanto e da performance cnica.

    A Jovem Guarda, por sua vez, vai expressar os anseios da poro da sociedadeconsiderada alienada dos debates polticos do perodo. Trazendo para o universo dacano brasileira elementos do rock anglo-americano, o movimento provocar

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    transformaes significativas no s no canto, mas nas composies e nainstrumentao, mostrando certa irreverncia como trao bsico da juventude dos anos1960, mas sem esconder suas boas relaes com a ideologia do consumo j totalmente

    implantada nos Estados Unidos.

    Essa produo musical dirigida a um pblico especfico encontrar na figuraerigida por Roberto Carlos seu cone mximo. Tendo como referncias vocais iniciaisJoo Gilberto e Orlando Silva, Roberto Carlos ir conjugar duas imagensaparentemente opostas, seja no aspecto da performance cnica, seja nocomportamento vocal. Ele ser um dos primeiros a introduzir na voz certo grau deestridncia do rock , alternando-se entre esse gesto e uma expresso vocal mais

    contida, ligada cano romntica, como possvel constatar ao ouvirmos asgravaes de Proibido Fumar e Canzone per Te .

    Com o advento do Tropicalismo, podemos considerar que ocorreu a sntese dastransformaes dos anos 1960. Assumir o Brasil em todas as suas facetas implicava,paradoxalmente, rompimentos de toda natureza, at mesmo com a noo de estticavigente poca. A Tropiclia resgata algumas das propostas apresentadas pelosmodernistas na Semana de Arte Moderna de 1922 e traz, para o universo da cano

    popular, elementos da vanguarda que iro atingir as composies, o cantar e a performance cnico-interpretativa dos artistas. Todos esses elementos associadoslevaro, para o mbito da cano popular, uma atitude de profunda reflexo crtica eintelectual, como possvel notar na obra de seus principais intrpretes e compositores:Tom Z, Caetano Veloso e Gilberto Gil.

    A cantora Gal Costa torna-se a principal representante dessa expresso vocalaliada ideia de transformao esttica, migrando de uma atitude completamente

    bossa-novista presente em seu disco de estreia, dividido com Caetano Veloso,intitulado Domingo para uma atitude radicalizada no campo da estridncia vocal,como possvel notar em sua interpretao de Divino Maravilhoso, cuja expressomxima acontecer no disco gravado ao vivo durante o show Fa-Tal (Gal a todo vapor),de 1971, com direo de Wally Salomo.

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    Ainda sobre as mudanas vocais ocorridas na cano brasileira nos anos 1960,pode-se afirmar que foi nessa dcada que surgiram as trs principais referncias vocaisfemininas, que se tornariam matrizes para as vozes das geraes seguintes at os dias

    de hoje: a j citada Gal Costa, Maria Bethnia e Elis Regina. A primeira, como j vimos,ligada s ideias do movimento tropicalista, ir explorar e trazer para o universo dacano popular recursos como o grito presente no rock . Maria Bethnia, queinicialmente cria uma imagem de artista politizada pelo trabalho que realizou noespetculo Opinio, consolidar no canto popular um lugar especial para a voz grave,de expresso direta e articulao rtmica capaz de particularizar suas interpretaes,porque totalmente baseada na valorizao expressiva da palavra e na construo de

    um fraseado rtmico dramatizado. Ao longo de sua carreira, Bethnia deixar cada vezmais clara a presena da fala teatralizada como elemento norteador de seu canto econsagrar a criao de uma dramaturgia para a realizao do espetculo musical.Seus shows, mais do que apresentar uma sequncia de canes, viriam sempreestruturados por uma narrativa subjacente que orientava a construo do roteiro e paraa qual estavam voltados todos os elementos, dos arranjos iluminao, dos figurinos direo. Elis Regina, por fim, far uso de todos os recursos vocais possveis para quesua expressividade, bastante passional, possa se projetar sobre a cano.

    Todas essas cantoras fizeram uso constante da performance como elementocomplementar da interpretao. Indiscutivelmente, a cada uma dessas vozes estassociada uma imagem muito marcante, que pode ter sofrido alteraes ao longo de suascarreiras, mas que sempre foi um elemento fundamental na construo interpretativa.Definitivamente, a partir de ento a voz se tornou tambm um corpo em cena.

    Ainda no final dessa mesma dcada surgiria o cantor Milton Nascimento, cujavoz resgatava uma aura de divinizao, tanto no nvel fsico, pelos atributos naturais dotimbre e da potncia, quanto no interpretativo, pela carga expressiva. Ele ser oprimeiro a trazer para o universo da cano popular no Brasil a utilizao da voz comoinstrumento, que apresentar mais uma dimenso da possibilidade interpretativa,conferindo sentido expresso sonora. Embora aparea como intrprete e compositorno ambiente dos Festivais, ser durante os anos 1970 com trabalhos como Clube daEsquina, Milagre dos Peixes, Minas e Geraes , que Milton revelar novas

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    possibilidades para a voz no universo da cano popular, libertando-a de formas econvenes que o mercado tanto insiste em impor aos cantores.

    Entre o final dos anos 1960 e o incio dos 1970, surgem trs outras cantorastambm modelares, embora no faam parte de nosso atual objeto de estudo: ClaraNunes, Beth Carvalho e Alcione. nesse momento que o samba volta a conquistar umespao na mdia e nos meios de produo fonogrfica, com o ressurgimento doscompositores Cartola e Nelson Cavaquinho, alm do aparecimento de figuras que setornariam fundamentais para a msica popular brasileira, tais como Elton Medeiros,Paulinho da Viola, Hermnio Bello de Carvalho e Clementina de Jesus (cantora sobre aqual seria possvel dedicar um estudo, dada a peculiaridade de seu gesto vocal, alm

    de sua performance cnica).Como pudemos observar at aqui, os anos 1960 so importantssimos para o

    desenvolvimento da voz na cano popular. As referncias ali surgidas figuram at hojecomo modelos para a nossa produo artstica, s tendo ocorrido novas ideias para ouso da voz nesse ambiente musical durante a chamada Vanguarda Paulista, sobre aqual falaremos mais frente.

    A dcada de 1970 foi, predominantemente, dos compositores/cantores: Paulinho

    da Viola, surgido no final dos anos 1960 no movimento de resgate do samba, Tim Maia,Joo Bosco, Gonzaguinha, Luiz Melodia, Ivan Lins e Djavan. Intrpretes de suas obras,com marcas vocais particularizadas, mas avanando pouco na obra de outroscompositores (exceo talvez feita a Paulinho da Viola), eles tornaram sua atitude vocalmuito presa dico autoral, fato que no ocorreu com os compositores CaetanoVeloso e Gilberto Gil, por exemplo, que construram um gesto interpretativo vocalampliado.

    Pudemos observar, ainda, que o espao aberto pela Bossa Nova para que oscompositores fossem tambm intrpretes de sua prpria obra possibilitou uma grandeexpanso nessa rea e praticamente paralisou o surgimento de intrpretes masculinos.

    A no ser pelo aparecimento do grupo Secos e Molhados que trazia Ney Matogrossocomo um intrprete que inaugurava na cano popular a presena de uma voz poucocomum, denominada contratenor no mbito da msica erudita , aquela teria sido, para

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    tipo de vibrato rpido, que se manifesta no apenas na regio aguda da voz, mas portoda a sua extenso, particularizando de modo significativo o seu cantar. No entanto,olhando para os anos subsequentes, parece que essa peculiaridade vocal no teve

    continuidade, ao menos no universo da cano midiatizada.

    Da mesma maneira, a cantora e compositora Ftima Guedes apresentava umcomponente vocal bastante diferenciado, que percorria uma grande extenso vocal,com um timbre que evidenciava os harmnicos agudos, conferindo um corpo estreito voz, a qual produzia na escuta uma sensao de agudizao. Suas canes, sempretendendo passionalizao, estabeleciam um certo contraste entre a fragilidade da voze a contundncia das composies, chamando a ateno para o trabalho da intrprete.

    J com respeito Marina Lima, cuja expresso vocal mesclava elementos da fala auma abordagem pop, pode-se considerar que ela tenha levado sua dico autoral tambmpara o universo interpretativo, tornando-se, por sua conduta vocal e performance cnica,modelo para a gerao de Cssia Eller e Zlia Duncan, por exemplo.

    Ainda nos anos 1980, o surgimento da Vanguarda Paulista, como ficouconhecida mais tarde, injetaria novos elementos transformadores no comportamentovocal dentro do universo da cano popular. Primeiro, em decorrncia da obra dos

    prprios compositores, como Arrigo Barnab, Luiz Tatit e Itamar Assumpo; depois,pela singularidade das vozes e da gestualidade vocal da tambm compositora TetEspndola, assim como de Vnia Bastos, Neusa Pinheiro, Suzana Salles e, sobretudo,N Ozzetti. Por se tratar de um ncleo de acontecimentos musicais que ficou margemda grande mdia, somente hoje, cerca de trinta anos depois, que essa produomusical ganhou alguma notoriedade, tendo j produzido uma nova gerao decompositores e intrpretes que sofreram influncia direta de suas realizaes, como

    Tulipa Ruiz, Yara Renn e Andrea Dias, por exemplo.No final dos anos 1980, mais precisamente em 1988, o lanamento do primeiro

    disco solo da cantora N Ozzetti, at ento integrante do Grupo Rumo, voltaria aradicalizar o comportamento vocal na cano popular brasileira, depois de um hiato devinte anos. Levando para seu trabalho solo toda a experincia adquirida no grupo, NOzzetti enfatizou a presena da fala no canto, experimentou alteraes microtonais no

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    padro de afinao, fazendo uso de todas as suas habilidades vocais e interpretativaspara fazer a cano falar e expor todos os componentes resultantes desse enlace entremelodia e letra. Dona de uma personalidade cnica bastante introvertida, N esteve (e

    est) sempre a servio da cano, fazendo de sua voz a continuadora de uma tradioe, ao mesmo tempo, inauguradora de uma nova vertente que explora comedidamente oespao cnico, radicaliza na construo do gesto interpretativo, criando um novoespao sensvel com essa oposio performanc e cnica/ performance vocal.

    interessante notar que o acontecimento mais inovador para a voz na canodesse perodo tenha ocorrido margem dos grandes veculos de comunicao e, porconsequncia, do acesso ao grande pblico. Diferentemente do que se observou nos

    anos 1960, quando todos os acontecimentos musicais estavam ocupando os principaisespaos da televiso, a partir da dcada de 1980 a padronizao que assolou os meiosde comunicao tornou praticamente inexistente o espao para a msica popular,sobretudo para a msica que propunha transformaes, quer no campo autoral, quernos aspectos interpretativos e performticos.

    Em 1990, Marisa Monte reinou absoluta. Herdeira da tradio vocal inauguradapor Gal Costa, Marisa trouxe para o universo das cantoras a habilidade de produtora e

    gerenciadora de sua prpria carreira. Com um disco inaugural que mostrava suaversatilidade como cantora, tornou aquilo que todas j faziam uma marca particularizada.O ecletismo no repertrio, que sempre foi uma caracterstica de Dolores Duran, Elis Regina eGal Costa, entre outras, sem nunca ter sido anunciado como um diferencial pois afinal, noo era , tornou-se um selo de garantia do cantar de Marisa Monte. Todos os intrpretes, amenos que estivessem vinculados exclusivamente a um universo musical (como, porexemplo, as j citadas Clara Nunes, Alcione e Beth Carvalho), faziam uso de uma amplagama de variedade musical em seus repertrios. No entanto, quando do lanamento doprimeiro LP de Marisa Monte,Marisa Monte, a marca da publicidade anunciava esse mesmoecletismo como sua caracterstica principal e diferenciadora. A mdia comprou e veiculouessa ideia como uma grande inovao, tornando a cantora, de talento indiscutvel, ogrande acontecimento miditico dos anos 1990.

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    Em meados dessa mesma dcada, mais trs cantoras/compositoras viriam dividir omercado com Marisa: Zlia Duncan, Cssia Eller e Adriana Calcanhoto. As duas primeirasseguidoras, como j dito, de uma tradio mais ligada ao pop rock , lanariam matrizes

    para o predomnio de vozes graves com um componente masculino que se traduziatambm na performance cnica.

    Surgida no final da dcada de 1990, importante destacar a presena da cantoraMnica Salmaso, que construiu sua carreira longe dos grandes veculos de mdia, masdesfrutando de grande respeitabilidade no meio musical. De certa forma, podemos dizer queela resgatou a tradio de cantores como Milton Nascimento, fazendo da voz um instrumentono apenas das palavras, mas sobretudo da msica. Tambm possvel detectar em sua

    descendncia musical a presena de Nana Caymmi, sobre quem falaremos mais frente,como modelo no que concerne ao timbre e mesmo a uma melancolia subjacente que pareceorientar toda a emotividade do canto de Mnica. No entanto, a intrprete conduziu suaexpressividade por meio da busca do equilbrio na realizao dos fraseados musicais,utilizando o componente timbrstico natural como um importante elemento na complementaodessa mesma expressividade, mas priorizando a msica como elemento vital da cano.

    E o que dizer das vozes masculinas desde Ney Matogrosso? Em trinta anos nosurgiram novos cantores? Podemos citar, na esteira da proposta de Ney, o cantor EdsonCordeiro e, no seguimento de uma tradio miltondjavaniana, o cantor Renato Brs.

    De certa forma, o mercado fonogrfico parece lidar permanentemente comelementos paradoxais: embora insista em padronizar, a premissa da inovao seriacada vez mais indispensvel para a projeo em um ambiente saturado e ao mesmotempo carente de novas propostas tanto vocais quanto musicais.

    Por fim, rompendo a cronologia para ressaltar a particularidade da voz, destaque-sea presena vocal de Dorival Caymmi. Surgido tambm como intrprete nos anos 1930, nummomento em que no era comum a presena dos compositores frente dos microfones,Caymmi possua uma voz muito peculiar, de timbre escuro e denso, capaz de se estenderpelo tempo ou mesmo de realizar recortes rtmicos particulares. De certa forma, seu cantose tornou uma espcie de significante sonoro da Bahia, pois sua voz se notabilizou aonarrar as histrias de mar, que deram origem a um gnero denominado canes praieiras equelas que descrevem personagens tpicos da terra ( O que que a baiana tem , A preta

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    do acaraj, Acontece que eu sou baiano , A lenda do Abaet, etc.). Muitas dessascaractersticas vocais esto presentes nas vozes de seus filhos, Dori, Danilo e Nana,intrprete cuja marca vocal a intensidade dramtica que se expressa no apenas pelotimbre, mas tambm pela particularidade de seus fraseados e articulao rtmica. Assim,as vozes cayminianas constituem uma genealogia dentro da genealogia.

    Neste breve percurso da voz no sculo da cano, tentamos deixar claro oprocesso de inveno de uma tradio que se deu no mbito do canto popularurbano, mostrando que essa dinmica est viva, no cessa de se transformar eproduzir frutos. A manuteno de uma tradio depende da presena de seusseguidores, o que torna perfeitamente compreensvel que transformaes radicais

    no campo do canto popular, e mesmo da composio, ocorram em grandesintervalos de tempo, pois, caso contrrio, seria quase impossvel permanecer umanova referncia vocal. Esse fato revela a importncia da presena de tantosintrpretes e, sem dvida, destaca aqueles que mais raramente apontam novoscaminhos e permitem que, por influncia de seus gnios criadores, surjam tantosseguidores que se torne possvel estabilizar uma nova tradio, at que outraproposta de ruptura se apresente.

    1.3 A INTUIO E A INTELECO NO CANTO POPULAR DO BRASIL

    (...)tudo o que a razo possui passou primeiro pelos sentidos,no sendo a razo, em sentido amplo, algo simples ou primrio,

    seno o fruto do entrosamento de todas as demais faculdadesdo homem, que se processa numa passagem das idias simples

    s idias complexas, isto , da razo sensitiva ou pueril razointelectual ou humana.

    (J.-J,. ROUSSEAU,Ensaio sobre a origem das lnguas )

    Embora a interveno da razo esteja presente em toda ao humana, no cantopopular a habitual mitificao dos cantores acabou por inibir, durante anos, todo tipo dereflexo ou mesmo toda proposta de descrio dos procedimentos vocais adotados pormuitos intrpretes ao longo desses quase cem anos da indstria fonogrfica. No entanto,

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    se apenas com Joo Gilberto, no final dos anos 1950, que se viu um artista assumindo amanipulao de sua voz na construo de uma inteno interpretativa, esse tipo demanipulao j era observvel, em graus diferentes, desde Araci Cortes e, pouco depois,em Mrio Reis, Luiz Barbosa e Carmen Miranda. Para os cantores que trabalhavam suasvozes apenas pelo vis do padro de beleza vocal, a naturalidade do gesto, de certamaneira, impedia a presena viva de uma atitude mental sobre a construo de umasignificao, embora, mesmo assim, ela estivesse presente. No entanto, em cantores comoos que mencionamos, a conexo com a lngua falada e a expresso dessa sonoridade nocanto demandavam uma interferncia produzida pelo desejo expressivo de ir alm dacondio natural do timbre. Esses intrpretes fizeram uso de entoaes faladas queproduziram efeito de sentido no campo rtmico-meldico e expandiram o gestointerpretativo para alm da beleza natural da voz.

    Voltando a Joo Gilberto, podemos considerar que ele foi o primeiro a tornar pblicasua obstinao pelo acabamento da realizao vocal/instrumental. Aquilo que sempre foi vistocomo uma excentricidade do artista por exemplo, o fato de se recolher durante dois anoslonge do Rio de Janeiro para reformular o seu canto 7 , na verdade revela uma disciplina euma preocupao com o acabamento na execuo, posturas pouco adotadas no mbito damsica popular. Revela tambm o sentimento de desconforto do artista ante a atitude vocal dapoca em que inicia sua carreira, bem como o desejo de transformao dessa estticamediante um rduo exerccio vocal articulado com a prtica violonstica.

    Eu estava ento [dcada de 50] muito descontente com aquelesvibratos dos cantores Mariiiina moreeeena Mariiiina voc sepintoooou e achava que no era nada disso. (...) Sentia que aqueleprolongamento de som que os cantores davam prejudicava o balanonatural da msica. Encurtando o som das frases, a letra cabia certadentro dos compassos e ficava flutuando. Eu podia mexer com toda a

    estrutura da msica, sem precisar alterar nada. Outra coisa com que euno concordava era as mudanas que os cantores faziam em algumaspalavras, fazendo o acento do ritmo cair em cima delas para criar umbalano maior. Eu acho que as palavras devem ser pronunciadas daforma mais natural possvel, como se estivesse conversando. (JooGilberto apud GARCIA, 1999, p. 127-128)

    7 Esse e outros fatos ligados mtica de Joo Gilberto fazem parte da narrativa expressa em Chega desaudade: a histria e as histrias da bossa nova (Ruy Castro, 2008).

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    Esse depoimento nos mostra que Joo Gilberto foi movido inicialmente por umapercepo de incompatibilidade entre o que a cano dizia e a maneira como estavasendo cantada. Ele no reconhecia naquela maneira de cantar uma expresso adequada

    aos contedos da cano, mas sim uma sobreposio da personalidade do cantor obra.Desta maneira, passou a elaborar o seu canto refazendo esse caminho, na busca deexpressar pela voz (e pelo violo) os contedos inscritos na cano. Esse novo gestovocal, delineado com base em uma inquietao esttica, repercutiu de maneira significativaentre seus contemporneos e, com mais nfase, na gerao imediatamente posterior.

    J de praxe considerar que esse esprito investigativo de Joo Gilbertoinfluenciou intensamente seus sucessores, como o caso dos tropicalistas, que

    reconhecem no baiano um agente transformador de seus olhares sobre a cano popular.Partiremos dos prprios compositores Caetano Veloso, Tom Z e Gilberto Gil,

    alm de Gal Costa e dos Mutantes, que passam a reconhecer no canto um instrumentode expresso no apenas de beleza, mas agora sobretudo de significao. Vislumbram,a partir da, utilizar a voz para que, sonoramente, ela faa sentido e se compatibilizecom os textos, tanto musicais quanto lingusticos.

    O disco Panis et Circensis , lanado em 1968 pelo grupo tropicalista, talvez o mais

    radical exemplo de uma utilizao intencional de padres vocais diferenciados para produzirsentido no somente em cada uma das canes, mas no disco como um todo. As msicasno se sucedem como peas isoladas, e sim como etapas de um mesmo projeto, que se faznotar em cada uma das faixas, seja na composio, seja nos arranjos ou nos efeitossonoros, reportando-se a uma espcie de narrativa subjacente. Mesclam-se, nesse trabalho,comportamentos vocais que se vinculam tradio com outros que a abandonamtotalmente, como podemos ouvir em Parque Industrial, composio de Tom Z. As vozes

    de Gilberto Gil, Gal Costa e Caetano Veloso se sucedem de maneira clara e, at mesmo,previsvel. Porm, esse equilbrio rompido pela entrada da voz de Tom Z, que adota umtimbre metlico/nasal, com nfase nos Rs rolados, imprimindo um tom crtico e um humorsarcstico ao cantar: a revista moralista traz uma lista dos pecados da vedete/ e tem jornalpopular/ que nunca se espreme porque pode derramar .

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    Da mesma maneira, as intervenes vocais dos Mutantes em outras canes,como a prpria Panis et Circensis, produzem um efeito de estranhamento que atua comoelemento de atrao para o ouvinte, visto que as vozes adotam modos de emisso que

    resultam em timbragens pouco comuns ao universo da cano popular da poca. De certaforma, as inovaes vocais presentes nesse trabalho, bem como os arranjos que lhesdo sustentao instrumental, causam estranhamento at hoje, como pudemosobservar a cada nova utilizao desse material em aula. 8

    O desfolhar dessa bandeira, parafraseando a letra de Torquato Neto, imprimirno pensamento desses intrpretes novas atitudes vocais, que se tornarocomplementares no apenas s suas composies, mas tambm s muitas releiturasde canes consagradas, inaugurando uma nova maneira de olhar o nosso passadomusical, em todas as suas fases. a partir desse momento que os cantores incluiroem seus trabalhos, com certa frequncia, as chamadas releituras de canes, muitasdas quais com significativa alterao no campo do andamento, justamente paraexporem suas competncias interpretativas.

    Os discos de Gal Costa lanados nos anos seguintes Gal (1969), Fa-tal (1971) trazem um material riqussimo do ponto de vista do canto. A cantora mescla o gestovocal bossanovista com a estridncia tropicalista, adotando procedimentos vocais quese compatibilizam com as canes e ampliam o campo de significao da obra gravada.Isto porque a percepo do significado passa a existir no apenas na relaomelodia/letra, mas sobretudo na presena do componente vocal, que traduz esse eixocentral com gestos diversos e que extrapola a natureza pura da voz. Em vriosaspectos, podemos considerar que os tropicalistas abriram os caminhos que anos maistarde seriam percorridos e ampliados pela gerao da Vanguarda Paulista.

    Com Arrigo Barnab, Itamar Assumpo, Luiz Tatit, N Ozzetti, Tet Espndolae Suzana Salles, a ao do intelecto sobre a interpretao ganhar dimenses ainda

    mais profundas, visto que as aes vocais sobre as questes timbrsticas, por exemplo,sero exploradas de maneira mais intensa, propondo novos elos de ligao estticapara a cano popular. Alm disso, podemos destacar as inseres de quase fala emesmo as variaes microtonais de entoao, como possvel observar na verso de

    8 Na disciplina que ministro no curso de Msica Popular da Unicamp, sempre notrio o impacto que o discoPanis et Circenses provoca na plateia de alunos. Tanto esse material quanto os trabalhos da vanguardapaulista ainda so bastante desconhecidos das novas geraes e produzem um grande impacto.

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    Sua Estupidez (Roberto e Erasmo Carlos), realizada pela cantora N Ozzetti em seudisco de estreia (1988) fora do Grupo Rumo, ou ainda a verso de Mulata Assanhada,realizada por Itamar Assumpo em seu disco Pra sempre agora , no qual interpreta

    somente canes de Ataulfo Alves.Talvez o ponto mais importante desta ao intelectual por trs da emisso vocal

    resida no fato de que essas mudanas surgiram, na maioria das vezes, no como fruto deum exerccio vazio da inovao pela inovao, mas sim pelo desejo de construir umainterpretao que fizesse a diferena; e de produzir uma voz que elucidasse elementos porvezes ocultos primeira vista, ainda que j inscritos na cano, atingindo afetivamente oouvinte e abrindo novas possibilidades de escuta no universo cancional midiatizado.

    Tambm pelo vis das inovaes, possvel detectar uma linha de descendnciana cano brasileira de consumo. Podemos considerar que os cantores Mrio Reis, LuizBarbosa e Carmen Miranda foram verdadeiros paradigmas para Joo Gilberto, cantor queredefiniu todo seu gesto vocal no sentido de valorizar aspectos minimais do canto. De certaforma, podemos dizer que Joo Gilberto intensificou esses aspectos de quase fala, jpresentes na gerao da poca de Ouro, somando a isso a afinao precisa, umaarticulao rtmica que destaca o componente sonoro da palavra, relacionando o cantocom a levada do violo, numa interao entre gesto rtmico e harmnico. Essa realizaoimpactou profundamente a gerao seguinte, na qual surgiram Roberto Carlos, CaetanoVeloso, Gilberto Gil, Tom Z e Gal Costa, entre outros.

    O grupo tropicalista, por sua vez, somou a essa dico joogilbertiana a estridnciado rock que invadia as cabeas da juventude dos anos 60, bem como os contedos deimprovisao que chegavam at ns pelo caminho do jazz , que aqui eram digeridos etransformados. Ao realizar esta fuso, seus integrantes chegaram a uma nova sonoridadeno universo da cano brasileira, responsvel pelas matrizes que geraram, anos maistarde, a gerao da Vanguarda Paulista, que, por sua vez, radicalizou o gesto vocal na

    cano popular. Desta maneira, foram necessrios quase trinta anos para que o efeitodessa expanso pudesse ser assimilado pelas novas geraes de artistas.

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    2A SEMITICA DA CANO E SUA

    APLICAO NA ANLISE DO COMPORTAMENTO DA VOZ CANTADA

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    2.1 PARA ALM DAS ADJETIVAES Uma cincia da voz deveria abarcar tanto uma fontica

    quanto uma fonologia, chegar at uma psicologia daprofundidade, uma antropologia e uma histria. Deveriaultrapassar amplamente o domnio vocal propriamente dito.

    Com efeito, antes da voz h o silncio. (...) A voz jaz nosilncio; s vezes ela sai dele e como um nascimento.

    Ela emerge de seu silncio matricial. Ora, neste silncio elaamarra os laos com uma poro de realidades que escapam

    nossa ateno despertada; ela assume os valoresprofundos que vo em seguida, em todas as suas atividades,

    dar cor quilo que, por seu intermdio, dito ou cantado.

    (ZUMTHOR, 1990)

    possvel observar na argumentao acima expressa por Paul Zumthor, emseu livro Escritura e nomadismo, o desejo de desenvolvimento de uma cincia quefosse capaz de descrever a riqueza de elementos da voz, alm de fazer umaenumerao exclusivamente tcnica uma cincia que pudesse traduzi-la de maneirato intensa e profunda quanto ela, a voz, capaz de traduzir os contedos de uma obramusical ou mesmo literria. E, de certa forma, quando Zumthor aponta o fato de a vozemergir do silncio no qual amarra laos e assume valores profundos, ele estsugerindo a existncia de uma tensividade geradora, cuja percepo nos leva a umacompreenso sensorial e intelectiva do fenmeno vocal.

    De maneira similar, em seu ensaio intitulado O gro da voz (1971), Roland Bartheslamenta o fato de que, para se descrev-la, s lanssemos mo de incontveisadjetivaes, argumentando que a pobreza descritiva no faria jus a todo contedosimblico que uma voz capaz de produzir. Ao apresentar o conceito de gro da voz ,Barthes nos leva a pensar que essa no uma elaborao associada a um domniopuramente esttico, mas sim carga expressiva do encontro de uma voz com uma lngua,como ele mesmo define, e das experincias de sentido que resultam desse encontro.

    Ambos os autores argumentam sobre as significaes construdas peloselementos fsicos da voz. E Zumthor (1990) menciona o poder significante em termos

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    de tom, timbre, alcance, altura, registro, e dos valores atribudos pelas diversassociedades a cada um desses elementos.

    Em O cancionista, Luiz Tatit (1995) refere-se composio de canes comoum exerccio no qual se elimina a fronteira entre o falar e o cantar, apontando ainda quecaberia ao cantor obter um permanente equilbrio entre os elementos meldicos,lingsticos, os parmetros musicais e a entoao coloquial.

    Sendo a voz, por excelncia, um sistema semitico portador de sentido no s noplano da expresso, mas tambm do contedo, vislumbramos a possibilidade de contribuirpara a complementao desse novo campo terico (Semitica da Cano) identificando ossignificados produzidos pelo canto, com seus recursos tcnicos e suas expresses

    emocionais. Para isso, propomos a observao e o estudo dos nveis que compem ofenmeno vocal pelo vis da existncia semitica, levando em conta que a presena davoz, em qualquer que seja a natureza do discurso, j em si portadora de sentido.

    Desta forma, nas anlises aqui desenvolvidas, destrinamos o componentevocal numa tentativa de elucidar o sentido do gesto interpretativo com base nacompreenso dos estados fricos, do tempo, da velocidade, dos estados juntivos,enfim, do sentido profundo da voz que canta.

    2.2 VOZ E TENSIVIDADE

    Em junho de 1994, Luiz Tatit apresentou como tese para obteno do titulo delivre-docente o trabalho que resultou no livroSemitica da cano: melodia e letra (1994),cuja teoria posteriormente desenvolvida, aprofundada e atualizada em outros trabalhoscomo O cancionista (1995) e Elos de melodia e letra (2008) ns nos propomos a utilizar

    aqui, estendendo sua aplicabilidade tambm para o campo de anlise do comportamentovocal na cano popular. Pretendemos, assim, observar o componente vocal pelo vis daSemitica da Cano, incorporando a esta os elementos particulares da descriotcnica-vocal, agora vistos pela inteno do gesto interpretativo que comportam,garantindo a expresso do sentido dos textos musical e lingustico.

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    Da fala ao canto h um processo geral de corporificao: da formafonolgica passa-se substncia fontica. A primeira cristalizada nasegunda. As relaes in absentia materializam-se in praesentia . A gramtica

    lingstica cede espao gramtica de recorrncia musical. A voz articulada dointelecto converte-se em expresso do corpo que sente. As inflexes caticasdas entoaes, dependentes da sintaxe do texto, ganham periodicidade,sentido prprio e se perpetuam em movimento cclico como um ritual. aestabilizao da freqncia e da durao por leis musicais que passam ainteragir com as leis lingsticas. Aquelas fixam e ordenam todo o perfilmeldico e ainda estabelecem uma regularidade para o texto, metrificandoseus acentos, e aliterando sua sonoridade. Como extenso do corpo do

    cancionista, surge o timbre de voz. Como parmetro de dosagem do afetoinvestido, a intensidade. (TATIT, 1995, p. 15)

    Segundo Tatit, o ncleo de identidade de uma cano se constitui pelaexistncia e pela relao de melodia e letra. Ou seja, num estgio ainda virtual, ocompositor prope o entrosamento desses dois componentes (melodia e letra), nosquais ainda inscreve contedos que podero (ou no) ser manifestados em seusestgios posteriores. Nessa etapa virtualizada, estabelecem-se o tempo e o espao noqual se dar a enunciao, que s existe, segundo Tatit, pela presena de um sujeito.Considerando que a voz humana o nico instrumento capaz de realizarsimultaneamente o texto lingustico e o texto musical, e sendo o ncleo de identidadeda cano a relao entre esses dois componentes, compete interpretao vocal odesenvolvimento das duas etapas existenciais subsequentes: a atualizao e a realizao.O sujeito configurado pelo compositor ganha, ento, existncia material alm da letra, naprpria melodia estabilizada pela voz do intrprete. Ou seja, a presena viva da voz

    atualiza o sujeito, corporificando sua existncia numa outra dimenso. Ainda por intermdio da ao vocal, a produo de sentido extrapola os limites

    da letra e se reconfigura no gesto interpretativo, podendo mesmo trazer luzsignificaes expressas no plano de expresso lingustica, bem como no plano decontedo do discurso musical.

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    Desta forma, o intrprete inicia esse processo ao realizar a escolha da prpriatonalidade, configurando um campo de tessitura para a atuao de sua voz ou mesmotranscendendo esse campo quando a execuo ocupa toda a sua extenso vocal.

    A escolha da tonalidade uma etapa inicial de extrema importncia, pois, nessemomento, ser definido um campo de atuao, levando em conta no apenas se ocampo de extenso meldica comportado pela voz do intrprete, mas tambm se asonoridade obtida pela voz na regio definida compatibiliza-se com os contedosprevistos pela composio. Muitas canes apresentam extenso meldica adaptvel avrias tonalidades, o que facilita, em princpio, o trabalho do intrprete. No entanto,sempre h uma tonalidade na qual o corpo sonoro da voz se compatibiliza de maneira

    mais profunda com os textos (musical e lingustico) da cano e que, portanto, exige dointrprete uma ateno extrema na escolha e na definio desse campo.

    Definida a tonalidade, entra em pauta o aspecto timbrstico da voz, que podedecorrer tanto da regio de tessitura selecionada pelo intrprete quanto de suainterveno tcnica voluntria. A escolha timbrstica pode compatibilizar-se com otempo interno da cano ou, ainda, reconfigur-lo, acelerando-o ou desacelerando-osegundo o ndice de informao ou redundncia presente no canto.

    A proposta de andamento tambm pode influir no nvel de integrao entremelodia e letra presente na composio ou, de outra maneira, revelar um novo tipo deintegrao conforme o andamento seja mais ou menos acelerado. Essa escolha aindater efeitos na articulao rtmica, com valorizao maior ou menor dos componentessilbicos consonantais ou das duraes voclicas. A ao do intrprete nacompatibilizao de todos esses elementos o que completa e realiza o ciclo semiticode uma cano.

    Considerando que a execuo em foco envolve a presena de instrumentosacompanhadores, o desenvolvimento do arranjo completo seria uma etapa posterior oumesmo simultnea, ocorrendo em consonncia com os gestos delineados pela voz e pelainterpretao nela configurada, a ela acrescentando os componentes da harmonia e dastexturas instrumentais, que, no entanto, no sero examinadas neste trabalho.

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    2.2.1 Passionalizao, tematizao e figurativizao

    No sistema da Semitica da Cano, Tatit aponta a presena de trs tipos

    diferentes de integrao entre melodia e letra: passionalizao, tematizao efigurativizao.

    O componente passional da cano se manifesta sobretudo pela disjuno entresujeito e objeto, que se expressa na melodia pela distncia entre seus motivos idnticos epelo andamento lento, configurando um percurso de busca que nem sempre resulta emencontro. A presena do elemento passional na cano sugere, ao intrprete, espaosamplos para expor as possibilidades de sua tessitura vocal, bem como o trabalho sobre

    aspectos timbrsticos e musicais, pelos quais a voz configurar as oscilaes tensivas eos contedos emotivos da obra. Ainda em uma cano passionalizada, osalongamentos das notas e frases musicais podem ser revigorados pela presena devibratos, que enfatizam o componente dramtico do canto e que foram bastanteutilizados na cano brasileira nos estilos reconhecidos como samba-cano e seresta,sendo ainda empregados na msica sertaneja .

    No campo da emisso vocal, a escolha de registros outro elemento importantena construo dessa expressividade. Por exemplo, a conduo da voz em sub-registro 9 de peito a regies agudas confere uma percepo de tensionamento fsico que muitasvezes refora, na prpria percepo do ouvinte, o componente dramtico dainterpretao. Da mesma maneira, a emisso em sub-registro de cabea em regiomdio-grave pode atenuar a tenso e revelar um sujeito tambm submetido paixo,por isso mesmo incapaz de ser dinamizado pelo /fazer/, deixando antever pelo aspectovocal a instncia do /ser/.

    J nos casos em que ocorre o predomnio da tematizao, a voz trabalha compouca expanso no campo da tessitura e a predominncia da repetio de motivosmeldicos, que muitas vezes se caracterizam como refros. Esse processo exige umaao contnua do intrprete, no sentido de no alterar drasticamente seu canto. Em geralso canes de celebrao do encontro, nas quais o conflito ou a disjuno, se ocorreu, j

    9 No item 3 deste captulo explicamos a utilizao dos ajustes fonatrios para produo dos registros esub-registros da voz.

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    foi resolvida. A identidade dos motivos meldicos, nesse caso, no permite surpresas (saltosintervalares, transposies de tessitura, criao de novas partes, mudanas timbristicas) quealterem o gesto vocal do intrprete e que suspendam sua cumplicidade com os ouvintes.

    Desta forma, o espao para atuao vocal expande-se pouco e o gesto dointrprete configura-se de maneira menos enftica, privilegiando aspectos dacontinuidade. No entanto, quanto articulao rtmica, a tematizao pode favorecer ainterveno do intrprete, que encontra espaos para criao de novos recortesrtmicos e, portanto, nova configurao do plano da expresso. O cantor Joo Gilberto,por exemplo, realizou ao longo de sua carreira inmeras interpretaes nas quais possvel observar esse tipo de comportamento rtmico da voz. Em sua gravao da

    msica Tin Tin por Tin Tin, de Haroldo Barbosa e Geraldo Jaques, ele alternaarticulaes rpidas e sem prolongamentos de notas, como em Voc tem que dar, temque dar/ o que prometeu meu bem..., ou ainda em que eu lhe mando outra explicandotin tin por tin tin, com frases nas quais os prolongamentos se alinham em significaocom todos os planos de linguagem: o amor no tem fim.

    Nas canes menos vinculadas produo de massa, esse espao parainterveno do intrprete apresenta-se mais ampliado que naquelas de grande apelo

    popular, exatamente por contarem menos com a participao ativa do pblico. No casoda Bossa Nova, e mais especificamente em Joo Gilberto, a relao construda com aplateia prev sempre uma etapa em que esta se dedica a ouvir e aprender. A nfase narepetio permite, desta maneira, que o pblico assimile a transformao rtmica,passando a repeti-la junto com o intrprete.

    Por fim, com o predomnio da figurativizao, o intrprete v ampliado o espaopara as entoaes mais prximas fala, conferindo veracidade e atualidade ao canto. Essa

    fala, de alguma maneira, j est inscrita na cano de modo mais ou menos perceptvel, e ointrprete apenas atenua o elemento musical para fazer falar a voz que canta.

    Embora ocorra, na maioria das canes, o predomnio de um dos processoscitados, h, de modo geral, como aponta Tatit, uma alternncia de procedimentos, oque torna possvel detectar em uma cano passional, por exemplo, momentos em queela se tematiza ou mesmo se figurativiza. Esse fato possibilita ao intrprete elaborar o

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    seu canto em funo do efeito de sentido desejado. Desta forma, aquilo que se dizorienta a maneira como se vai dizer. Assim, possvel detectar que, se o intrpretepermite que a cano se mostre, ela prpria apontar caminhos para a interpretao,

    cabendo a ele, como interlocutor, fazer as escolhas que produzam maior eficcia nacomunicao com o ouvinte e que, ao mesmo tempo, particularizem sua viso da obra. possvel, ainda, pelas escolhas realizadas na interpretao, revelar contedos poucoaparentes na obra, ou mesmo ressignificar alguns enunciados que jamais foramalterados nas interpretaes pregressas. Deste modo, as escolhas realizadas paraconfigurar o canto podem ejetar novos sentidos de dentro das canes.

    Ainda que essas escolhas tenham sido feitas de modo intuitivo ao longo de toda a

    histria da cano brasileira, pudemos observar que os grandes intrpretes atuaram nessecampo, demonstrando suas competncias na percepo dos elementos inscritos na cano.Da mesma maneira, tambm pudemos perceber que, a partir dos tropicalistas, esta aopassou a ocorrer com mais frequncia por uma apreenso consciente das possibilidades designificao da voz, sem no entanto perder o elo com o seu princpio emotivo.

    O cantor apega-se fora do canto, e o cantar faz nascer uma outra vozdentro da voz. Essa, com que falamos, muitas vezes a emisso de uma srie

    de palavras sem desejo, omisses foscas e abafadas de um corpo retrado,voz recortada pela presso do princpio de realidade. (...) No entanto, o cantopotencia tudo aquilo que h na linguagem, no de diferena, mas de presena.E presena o corpo vivo: no as distines abstratas dos fonemas, mas asubstncia viva do som, fora do corpo que respira. Perante a voz da lngua, avoz que canta liberao (...). (WISNIK apud TATIT, 1995, p. 15)

    2.3 NVEIS DA VOZ: ELEMENTOS DE FISIOLOGIA E TCNICA VOCAL

    Por meio da escuta de fonogramas, possvel detectar que, desde o incio dacano midiatizada no Brasil, os cantores j reconheciam a importncia de elucidar nocanto a significao do texto lingstico, bem como do componente meldico. Com maiorou menor presena da fala, intuitivamente os cantores populares aprenderam amanipular aspectos da voz para conferir credibilidade ao canto, produzindo no ouvinte a

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    crena na veracidade do discurso. Desta forma, muitos aprenderam naturalmente aatuar sobre aspectos fsicos, como o timbre e a tessitura, desenvolvendo uma tcnicaespecfica que colocasse a voz a servio de um componente esttico compatvel comos diversos gneros da cano popular. Tudo movido pelo desejo de criar umainterpretao singular que ressoasse no ouvinte, materializando por meio da voz apresena do cantor.

    Visto que a escuta dos fonogramas permite observar uma inteligncia tcnica portrs das execues nas quais o intrprete manipula a voz para produzir reaes emocionais,torna-se indispensvel que realizemos um detalhamento dos aspectos tcnicos e fisiolgicosda voz cantada para que, tendo compreenso desses elementos, possamos mergulhar no

    universo de sentidos construdos pela voz na cano popular do Brasil.Em nossa dissertao de mestrado, fizemos uma exposio detalhada sobre

    esses aspectos, que denominamos nveis da voz , o que reelaboramos aqui a fim depossibilitar uma compreenso do gesto vocal, relacionando-o a uma existnciasemitica da interpretao.

    2.3.1 Nvel fsico

    Consideramos pertinentes ao nvel fsico todos os componentes inerentes natureza da voz, ou seja, todos os elementos que compem a voz, independentementedo grau de desenvolvimento tcnico obtido pelo intrprete.

    2.3.1.1 Ext en so e tes si tu ra

    Embora sejam comumente compreendidas como sinnimas, essas noesprecisam ser devidamente diferenciadas. A extenso implica toda a gama de notasmusicais que uma voz capaz de produzir, do extremo grave ao extremo agudo. J atessitura relaciona-se gama de notas produzidas com o menor esforo fsico,resultando em grande qualidade vocal e naturalidade, no apenas na realizao dointrprete, mas tambm na recepo do ouvinte.

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    2.3.1.2 Regis tros v ocais

    A variedade de alturas percorridas no discurso cantado leva o cantor a utilizar

    diferentes registros de sua voz. Esses registros, que so os ajustes produzidos pelamusculatura, possibilitam que a voz atue no s no campo de tessitura prximo fala, mas

    por um campo vocal bem mais amplo, que muitas vezes envolve toda a extenso.

    Embora haja alguma divergncia de nomenclatura entre os diversos autores que

    abordaram o assunto, os registros vocais so reconhecidamente trs: basal ou fry , modal e elevado.

    Basal

    O registro basal ou fry aquele no qual as pregas vocais encontram-se bastanteencurtadas e a mucosa que as recobre, bem soltas (BEHLAU & REHDER, 1997). O som

    produzido pela voz atinge uma frequncia extremamente grave ( strothbass ). Em virtude

    de um ndice de crepitao percebido auditivamente na produo desse tipo de som,

    ele tambm recebeu o nome de fry (frito).

    Modal

    O registro modal, no qual se opera grande parte das vozes falada e cantada,

    est dividido em trs sub-registros, nominados segundo as sensaes corporais

    produzidas pela ressonncia: baixo (peito), mdio (gltico) e alto (cabea). Na cano

    popular, trabalha-se tecnicamente para que o cantor seja capaz de utilizar toda sua

    extenso vocal, atenuando as quebras naturais entre um sub-registro e outro, ou

    fazendo uso dessas mesmas quebras caso deseje imprimir uma inteno

    interpretativa. Ou seja, diferentemente daquilo que pregado no estudo do canto

    lrico, a quebra pode ser utilizada como um recurso interpretativo. Do ponto de vista

    fisiolgico, medida que se encaminha para a produo de notas agudas, a ao

    fsica transfere-se do msculo interno (tiroaritenideo10) da laringe para o msculo

    externo (cricotireideo11).

    10 Msculo interno laringe responsvel pelo relaxamento das pregas vocais.11 Msculo externo laringe responsvel pelo estiramento e tensionamento das pregas vocais.

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    Elevado

    O registro elevado apresenta dois sub-registros: falsete e flauta (assovio). O falsete produzido por ao indireta das pregas vocais; a laringe tensionada pelo msculo

    cricotireideo e, por consequncia, as pregas vocais so