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A PARTICIPAÇÃO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE REASSENTAMENTO EM BELO HORIZONTE 1 Políticas públicas no meio urbano e rururbano O artigo divulga resultados parciais da pesquisa desenvolvida no âmbito do projeto Cidade e Alteridade: convivência multicultural e justiça urbana, sobre os processos participativos no planejamento e execução de políticas públicas de assentamento e reassentamento de Belo Horizonte. Far-se-á uma breve contextualização sobre a temática da participação em políticas públicas no Brasil, para em seguida referir-se ao cenário de Belo Horizonte, mais especificamente, ao programa de urbanização de vilas e favelas Vila Viva, executado pela Prefeitura Municipal por meio da URBEL. Serão problematizados alguns pontos referentes à participação no programa com base na análise documental e nos relatos colhidos com moradores de territórios abrangidos pelo Vila Viva Serra. Palavras-chave: participação popular; urbanização; reassentamento; regularização fundiária; Vila Viva. 1 Aline R. B. Pereira. Bacharel e Mestre em Direito pela UFMG. Advogada. Ananda M. Carvalho. Graduanda em Psicologia, UFMG, extensionista do Programa Pólos de Cidadania. Bárbara M. Rezende. Graduanda em Direito, UFMG. Isabella G. Miranda. Extensionista do Pólos de Cidadania. Licencianda em Ciências Sociais, UFMG. Fábio A. D. Merladet. Extensionista do Pólos de Cidadania. Licenciando em Ciências Sociais, UFMG. Luana X. P. Coelho. Mestre em Cooperação Internacional e Desenvolvimento Urbano pelo Instituto de Urbanismo de Grenoble e TUDarmstadt. Professora de Direito Municipal e Urbanístico. Luisa C. Oliveira. Graduanda em Direito, UFMG. Ricardo A. P. de Oliveira. Graduando em Antropologia, UFMG. Bolsista de IC do CNPq. Thaís L. S. Isaías. Graduanda em Direito, UFMG. Todos os autores são pesquisadores do Projeto Cidade e Alteridade.

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A PARTICIPAÇÃO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE REASSENTAMENTO EM BELO

HORIZONTE1

Políticas públicas no meio urbano e rururbano

O artigo divulga resultados parciais da pesquisa desenvolvida no âmbito do projeto

Cidade e Alteridade: convivência multicultural e justiça urbana, sobre os processos

participativos no planejamento e execução de políticas públicas de assentamento e

reassentamento de Belo Horizonte. Far-se-á uma breve contextualização sobre a

temática da participação em políticas públicas no Brasil, para em seguida referir-se

ao cenário de Belo Horizonte, mais especificamente, ao programa de urbanização

de vilas e favelas Vila Viva, executado pela Prefeitura Municipal por meio da URBEL.

Serão problematizados alguns pontos referentes à participação no programa com

base na análise documental e nos relatos colhidos com moradores de territórios

abrangidos pelo Vila Viva Serra.

Palavras-chave: participação popular; urbanização; reassentamento; regularização

fundiária; Vila Viva.

1. Introdução. 2. Participação nas políticas públicas em Belo Horizonte 3. A

participação no Vila Viva 4. Considerações finais 5. Referências

1. Introdução

A pesquisa que dá origem ao presente trabalho parte de um esforço para

compreender o processo de intervenção em assentamentos precários por meio da

análise da metodologia de participação empregada pela prefeitura nas etapas de

planejamento e execução dos projetos de urbanização e regularização fundiária.

Focou-se a análise no Programa Vila Viva executado no Aglomerado da Serra,

especificamente no estudo do instrumento participativo baseado nos grupos de

referência, apontado como modelo pela Prefeitura de Belo Horizonte.

1 Aline R. B. Pereira. Bacharel e Mestre em Direito pela UFMG. Advogada.Ananda M. Carvalho. Graduanda em Psicologia, UFMG, extensionista do Programa Pólos de Cidadania.Bárbara M. Rezende. Graduanda em Direito, UFMG.Isabella G. Miranda. Extensionista do Pólos de Cidadania. Licencianda em Ciências Sociais, UFMG. Fábio A. D. Merladet. Extensionista do Pólos de Cidadania. Licenciando em Ciências Sociais, UFMG.Luana X. P. Coelho. Mestre em Cooperação Internacional e Desenvolvimento Urbano pelo Instituto de Urbanismo de Grenoble e TUDarmstadt. Professora de Direito Municipal e Urbanístico.Luisa C. Oliveira. Graduanda em Direito, UFMG.Ricardo A. P. de Oliveira. Graduando em Antropologia, UFMG. Bolsista de IC do CNPq.Thaís L. S. Isaías. Graduanda em Direito, UFMG.Todos os autores são pesquisadores do Projeto Cidade e Alteridade.

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O processo participativo é um componente central para a efetividade das

políticas públicas, entendendo por efetividade a correlação entre objetivos sociais,

políticos e jurídicos, com as demandas e necessidades de determinados grupos

sociais ou populacionais em situação de exclusão e de risco. Partiu-se dos

pressupostos de que esse processo participativo tende a ser mais intenso quando

há um maior nível de mobilização, politização, associativismo e laços fortes na

comunidade; quando existe vontade política do poder público, traduzida em

investimentos e abertura para o processo de tomada conjunta de decisões; e

quando o desenho participativo leva em conta a necessária articulação entre

informação, comunicação e deliberação, existindo uma disposição e abertura por

parte dos técnicos do poder público à negociação dos termos da prática participativa

com a comunidade (Avritzer, 2003).

2. Participação nas políticas públicas em Belo Horizonte

O processo de democratização do Brasil e o revigoramento da sociedade

civil a partir dos anos 80, com o fim do período ditatorial, fizeram reemergir no

cenário político a pauta pelo adensamento da democratização do Estado. Foram

formuladas políticas públicas participativas e criados novos poderes e instituições

que prevêm ampla participação e representação da sociedade civil. Também nessa

época assistiu-se à ascensão do neoliberalismo no país, o qual levou à progressiva

retração das funções do Estado.

No âmbito das cidades, viu-se ressurgir a pauta pela reforma urbana, que

desencadeou mudanças constitucionais a partir da elaboração, pelo Movimento

Nacional pela Reforma Urbana (MNRU), de uma emenda popular à Assembléia

Constituínte de 1987-1988, que se baseava nos princípios do direito à cidade, na

subordinação da propriedade privada aos objetivos da política urbana e na gestão

democrártica das cidades (AVRITZER, 2010).

Embora as proposições da sociedade civil tenham sido parcialmente

incorporadas à Constituição, somente após treze anos de luta e reivindicações dos

movimentos sociais pela reforma urbana, em 2003, foi aprovado o Estatuto da

Cidade e criado o Ministério das Cidades. Cada municipalidade respondeu de uma

forma diversa a esse novo escopo legislativo, o que se relaciona às dinâmicas da

sociedade civil, às orientações partidárias e aos interesses imobiliários locais

(Avritzer, 2010).

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No contexto de Belo Horizonte, a aposta na ação conjunta entre sociedade

civil e Estado teve como alguns de seus resultados a criação de Conselhos Gestores

de Políticas Públicas, Orçamentos Participativos (OP) e a elaboração do primeiro

Plano Diretor Municipal, aprovado com significativa participação da sociedade civil

em várias audiências públicas regionais (AVRITZER, 2010). Desde então, a

participação passou a ser quase um imperativo das políticas públicas urbanas na

capital mineira. Se por um lado esse fenômeno foi responsável por criar um canal de

diálogo mais aberto entre governo e cidadãos, por outro lado, o discurso da

participação parece ter sido em grande medida trivializado por setores do Estado e

da sociedade civil, que não apresentam uma real vontade política de deliberar nos

espaços públicos de uma maneira horizontal e compartilhada.

O Vila Viva, programa sobre o qual esse texto se debruça, é definido pela

Prefeitura de Belo Horizonte como uma política pública que abarca os três eixos de

ação principais para uma regularização fundiária sustentável: a urbanização e

instalação de infraestruturas, a regularização fundiária e o desenvolvimento

socioeconômico com participação direta da comunidade2.

Na concepção do programa, a participação deve se dar nas fases de

planejamento e execução das intervenções. O planejamento se dá pela construção

do Plano Global Específico (PGE), que consideraria o problema das favelas em sua

forma integral e entenderia que a participação dos moradores é essencial para que a

regularização das favelas fosse feita de uma forma mais inclusiva. Durante a

implementação do programa seria rediscutida com os moradores a elaboração de

um projeto executivo; além disso, seriam mobilizados grupos de referência e

promovidas reuniões e assembleias com toda a comunidade.

Embora o desenho da política pareça muito bem estruturado, os

depoimentos de moradores das áreas abrangidas pelo Vila Viva colhidos nessa

pesquisa evidenciam falhas no desenho e na aplicação do programa, além de um

alto grau de insatisfação com a política e descrédito nos processos participativos

que ela abarca.

Os recursos para a execução do Vila Viva proveem, majoritariamente, do

PAC das Favelas – um programa do Governo Federal. Ao contrário de outras

políticas habitacionais e urbanas que vinham sendo constituídas até então, as

decisões sobre a alocação de recursos no programa não passam pelas instituições

2 Mais informações na página da URBEL no portal BH: http://migre.me/bgkSj

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participativas e de controle social criadas ao longo de anos, mas pelos interlocutores

desse novo desenho: as instâncias administrativas federal, estadual e municipal e

pelos setores imobiliários e da construção civil (ROLNIK, 2012).

Questiona-se, portanto, se a política representa uma ruptura de um virtuoso

ciclo da tradição participativa nas cidades em prol de um modelo que coloca no

centro dos seus objetivos o crescimento econômico via geração de empregos,

aquecimento do setor imobiliário e da construção civil.

Rolnik (2012) ressalta as implicações desse modelo que, por ser em grande

medida determinado por dinâmicas econômicas e imobiliárias, acaba por substituir a

dimensão da moradia como um direito, um ponto de acesso a uma vida digna, para

reforçar a dimensão da moradia como uma mercadoria a ser produzida e possuída

como um capital no mercado imobiliário. Nesse caso, a perversidade não reside no

encolhimento das funções do Estado, mas na concepção das políticas públicas

habitacionais e urbanas sob uma lógica privatista.

Questiona-se não apenas as falhas na aplicação do modelo participativo no

Vila Viva, mas também o desenho institucional de participação adotado, com o

intuito de esboçar respostas a algumas inquietações suscitadas na pesquisa: Como

se dá o processo participativo no Vila Viva? Quais critérios o definem? Quem pode

participar e como se dá essa participação? A participação abre espaços para a

deliberação de projetos sugeridos pela comunidade ou restringe-se à seleção de

projetos pré-definidos pelas esferas técnicas? Afinal, de que participação se está

falando?

3. A participação no Vila Viva

A discussão sobre as condições para a implantação bem sucedida de

políticas públicas participativas tem suscitado amplos debates. Avritzer (2003)

aborda alguns elementos que afetam os processos participativos, entre os quais: a

pré-existência de estruturas associativas, a administração dos recursos disponíveis

e a vontade política.

A pré-existência de estruturas associativas é a articulação da sociedade civil,

que influenciaria diretamente o grau de democracia local. Considerando a

mobilização popular prévia e o potencial reivindicativo dessas organizações – como

demonstram os movimentos sociais – as estruturas associativas pré-existentes

teriam papel decisivo no que diz respeito à efetiva distribuição de recursos de forma

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generalista e imparcial. Além disso, a experiência associativa prévia da população

induziria formas de estruturação organizacional e práticas deliberativas

institucionalizadas semelhantes às dos espaços civis, o que tornaria o desenho

institucional adaptado e familiarizado em relação aos diferentes atores envolvidos.

No caso da Serra observou-se, durante o Vila Viva, a existência de uma

estrutura associativa prévia, porém enfraquecida. Outra questão problemática se

refere à atuação das lideranças comunitárias que, em alguns casos, deixaram a

desejar na representatividade segundo a população entrevistada. Cabe questionar

se o problema não seria uma falha do desenho institucional do modelo de

participação implementado pela URBEL, o qual deu margem para que as lideranças

comunitárias sacrificassem as demandas gerais em prol de seus interesses

pessoais.

Na prática, os grupos de referência, compostos em sua maioria por essas

lideranças, não atuaram efetivamente como canal de diálogo entre a URBEL e a

população; pelo contrário, serviram como espaço de barganha política. Isso

influenciou diretamente a mobilização dos moradores. Por um lado, esta não foi de

fato fomentada pela URBEL ou pelas lideranças. Por outro lado, e de certa forma em

consequência disso, o poder reivindicativo da população não foi estimulado. Esta,

em razão da falta de representatividade das lideranças, acabou perdendo força e até

a crença na efetividade de sua atuação política.

Consequentemente, o Vila Viva, que se propunha participativo, não teve

impacto democratizante significativo na cultura política. A capacidade e a vontade de

mobilização social por parte do poder público, a qual deveria ser materializada, entre

outros, por meio do modelo normativo da participação, foi muito limitada. Afinal, se é

inegável a necessidade de elementos participativos na construção de um espaço

democrático, a concretização desses elementos exige uma estrutura deliberativa, e

não hierárquica, no nível da sociedade civil.

Em que pese o associativismo prévio, os processos participativos tornam-se

ineficazes quando não há vontade política real de que os cidadãos atuem

ativamente nos processos deliberativos. Por essa razão, a começar por uma ampla

reforma financeira, o Estado deve esforçar-se para criar políticas de geração de

recursos a serem investidos na própria estrutura participativa dos programas e não

somente na fase executiva dos mesmos. Faz-se necessária ainda uma reforma

administrativa para que as prerrogativas de privilégios, infelizmente comuns à

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política brasileira, sejam de fato abandonadas, bem como sejam implementadas, de

maneira articulada, as regras da democracia direta e da representativa.

Em outras palavras, os processos de participação, no plano ideal,

combinariam o desenho institucional e as variadas formas de representação

associativa dos moradores. Caso não se busque a rearticulação entre participação e

representação, as formas de deliberação serão prejudicadas, não sendo produtos de

debates decorrentes da inclusão de novos atores sociais, nem visando fomentá-la. O

que se tem, então, é a legitimação de políticas sob o discurso da participação, o que

pode levar, também, à apropriação de programas captadores de recursos públicos e

à administração desvirtuada desses. Se essa rearticulação é necessária, ela

demonstra também a dependência que os processos participativos mantêm com

relação à vontade política que, por meio dos cargos públicos, determina as

iniciativas a serem propostas e adotadas pelo poder do Estado.

Como já mencionado, não houve vontade política na implantação do Vila

Viva Serra. Os espaços de participação social, além de não terem sido fomentados,

foram ocupados por lideranças comunitárias não representativas, o que fez deles

instrumentos de troca de favores políticos. A integração da multiplicidade de atores

legítimos, os moradores diretamente afetados, foi, portanto, dificultada.

Outra questão importante diz respeito à administração dos recursos

disponíveis. Apesar da ausência de investimentos significativos no processo

participativo, o que seria essencial, o programa gastou parte considerável de seus

recursos na construção de uma via: a avenida do Cardoso. Segundo os próprios

moradores essa avenida não é por eles utilizada de forma expressiva e fora

construída para beneficiar outros bairros. A via, construída com recursos que

deveriam beneficiar o aglomerado, não interliga de maneira satisfatória suas vilas,

sendo um atalho entre as regiões leste e centro-sul de Belo Horizonte.

A construção da Avenida do Cardoso caracteriza o chamado “desvio de

finalidade”, vez que se utilizou de recurso financeiro destinado à concretização de

melhorias no aglomerado para investir em benfeitorias em prol da mobilidade de

outros bairros. Verificou-se, ademais, um problema político, dada a desarticulação

entre as demandas prioritárias dos moradores e a obra. Finalmente, o grande

número de remoções necessárias à execução da obra acarretou um problema

social.

A dependência da participação no âmbito do Vila Viva com relação à

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vontade política reforça a ideia de que a possibilidade de as pessoas participarem

como coautoras na elaboração das diretivas do programa, bem como em sua

execução, é elemento essencial para que seja possível relativa autonomia e

adaptabilidade dos programas participativos aos mais diversos contextos.

Estes, contudo, embora sejam necessários, não são o suficiente para

assegurar a plena participação em sociedades marcadas pela forte injustiça social,

em que as desigualdades não só econômicas, mas também em termos de acesso à

educação, acesso à justiça e aos demais órgãos do poder público, fazem-se sentir

diuturnamente.

Por essa razão, para se pensar uma democracia que conjugue

concretamente procedimentos deliberativos e representativos em prol das demandas

sociais mais prementes, ou seja, um modelo participativo bem sucedido, devem-se

ter em conta as diferenças existentes entre os atores envolvidos nos planos

econômico, cultural e político (FRAISER, 2009).

No primeiro deles, há que se considerar os obstáculos econômicos que

impedem que as pessoas participem em condições de paridade na discussão

política. Coloca-se, pois, em questão, em que medida isso ocorre ou ocorreu nos

casos pesquisados. Há aspectos singelos que podem influenciar a possibilidade de

participação. Uma mãe de família que trabalha oito horas por dia, por exemplo,

situação que não é incomum nas áreas de intervenção do Vila Viva, provavelmente

não terá condições de participar de reuniões marcadas no período do dia. Também é

importante atentar para a possibilidade de acesso aos locais das reuniões, vez que

entre os atingidos pode haver aqueles que sequer teriam condições de arcar com o

deslocamento.

No plano cultural questiona-se a maneira como as pessoas que tomam parte

nos procedimentos participativos pesquisados influenciam estas discussões e as

decisões delas resultantes. Quem pode participar e como o pode fazer? Como

ouvinte, receptor de informações ou como interlocutor a ser informado, o qual pode,

quando muito, esclarecer suas dúvidas ativamente; ou como sujeito autônomo

reconhecido como parte legítima para apresentar sugestões a serem tidas em conta

pelo poder público na elaboração de seus planos interventivos e, inclusive, para

criticar as propostas deste, tendo suas manifestações seriamente consideradas?

(VAN DIJK, 2003)

Também aqui se insere o problema do reconhecimento das autoridades. No

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campo cultural, deve-se observar possíveis influências, ou “obstáculos” à

participação, relacionados ao status de quem fala num determinado momento. Em

algumas audiências públicas acompanhadas no Aglomerado da Serra, constatou-se

que há pessoas que falam mais e, quando falam, são ouvidas e aplaudidas pela

comunidade (como lideranças, autoridades religiosas). Há aqueles que participam

como meros ouvintes, havendo a possibilidade de que eles sequer compreendam o

que é dito, ocasiões em que servem apenas para legitimar o procedimento. Há ainda

atores que, ao intervir, são ignorados pelos demais, não recebem a mesma atenção

conferida por seus pares às lideranças.

Isso se relaciona em alguma medida ao que Fraser denomina desigualdade

de status ou falso reconhecimento (FRAISER, 2009:18). A esse status adquirido

pelas lideranças comunitárias, por exemplo, se relaciona o fato de elas, em alguns

casos, se converterem, posteriormente, em mandatários de interesses alheios aos

da comunidade atingida que deveriam representar, em virtude da posição de poder

que ocupam e das negociações que essa posição lhes permite entabular com

autoridades políticas e outros interessados em influenciar a condução das

intervenções.

Também ao se falar em hierarquias e valorações culturais, convém pensar a

relação existente entre a URBEL e as comunidades. Entre os primeiros encontram-

se técnicos, em geral altamente qualificados: engenheiros, geólogos, arquitetos.

Pessoas “com estudo”, diferente de grande parte dos moradores de uma

comunidade. O domínio de saberes especializados garante a estes atores uma

posição de poder com relação aos leigos que não detêm tanto conhecimento.

Questiona-se, pois, em que medida a afirmação de que “não dá pra fazer” a

intervenção de outro jeito “por razões técnicas”, não rara nas reuniões

acompanhadas e nas entrevistas realizadas junto a empregados da URBEL, não

funciona como um mecanismo de reafirmação de autoridade assegurado pelo status

daqueles que pretensamente detêm mais conhecimento (BOURDIEU, 2007).

No plano do reconhecimento se insere, por fim, a reflexão a respeito do

vocabulário e dos usos linguísticos empregados pelos representantes do poder

público durante as reuniões. O uso de um vocabulário não necessariamente

compreendido por todos também pode funcionar como um mecanismo de

estabelecimento e manutenção de relações de poder em detrimento da efetiva

participação da comunidade interessada. A partir do momento em que um

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representante do Estado, o qual, como visto, ocupa uma posição de poder, reafirma

essa posição ao falar que “tem que ser assim por razões técnicas”, sem explicar

quais as razões técnicas de maneira acessível aos envolvidos, está encerrada, ou

consideravelmente diminuída, a possibilidade de participação.

E esta afetará, por sua vez, a distribuição dos recursos públicos e como

serão eles investidos na cidade, podendo contribuir para a melhoria da situação de

vida de alguns grupos, ou para a exacerbação das diferenças entre os cidadãos ao

se pensar estes três planos, o que diz respeito diretamente à concretização da

democracia:

[...] a capacidade de influenciar o debate público e os processos autoritativos de tomada de decisão depende não apenas das regras formais de decisão, mas também das relações de poder enraizadas na estrutura econômica e na ordem de status. [...] a má distribuição e o falso reconhecimento agem conjuntamente na subversão do princípio da igual capacidade de expressão política de todo cidadão, mesmo em comunidades políticas que se afirmam democráticas. [...] Aqueles que sofrem da má representação estão vulneráveis às injustiças de status e de classe. Ausente a possibilidade de expressão política, eles se tornam incapazes de articular e defender seus interesses com respeito à distribuição e ao reconhecimento, o que, por sua vez, exacerba a sua má representação. (FRASER, 2009:26).

Percebe-se que no Vila Viva Serra não houve uma participação plena dos

moradores. A alocação de recursos foi feita de maneira vertical e obscura, pré-

determinada pelo poder público, sem diálogo efetivo com a população: alegou-se

que as obras eram questão de necessidade. Nas palavras Žižek, “quando medidas

de austeridade se impõem, dizem-nos vezes sem fim que isso é simplesmente o que

deve ser feito” (ŽIŽEK,2011:13).

4. Considerações Finais

Nas incursões realizadas constatou-se que o que os representantes do poder

público no âmbito do Vila Viva entendem por participação limita-se à organização de

reuniões de caráter informativo junto à população afetada. Têm-se diagnósticos

feitos por técnicos nas áreas de intervenção, os quais elaboram o plano de ação a

ser seguido, sendo as comunidades informadas acerca das conclusões dos expert.

Além da patente carência de elementos que autorizem caracterizar a

participação no Vila Viva Serra como deliberativa, questiona-se se é possível falar

até mesmo no fornecimento adequado de informações. Afinal, não há clareza quanto

aos critérios que definem quem é chamado a participar (como se dá a convocação),

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além de o uso linguístico dos empregados da URBEL nessas reuniões nem sempre

ser adequado à compreensão de muitos dos presentes.

Para ações futuras é, portanto, primordial, a realização de investimentos no

processo participativo tendo em vista, por exemplo, a capacitação dos profissionais

que atuarão diretamente junto à população para que desenvolvam a sensibilidade e

as habilidades necessárias a compreenderem seus interlocutores, suas dúvidas, e a

esclarecê-los efetivamente. A compreensão adequada por parte dos envolvidos é o

primeiro passo para que eles possam se situar no contexto de discussões e se

posicionar com relação a ele.

Mas, mais que ser informados, a efetiva participação envolve a abertura do

poder público às ideias trazidas à discussão pelos atores das comunidades

afetadas, o que, por sua vez, demanda uma mudança na cultura institucional no

âmbito da URBEL, e uma mudança cultural ao se pensar a população, que algumas

vezes parece acomodada ao atual modelo meramente informativo.

Finalmente, ressalta-se que ao se falar em efetiva participação, para além da

mera informação, tem-se em mente não apenas a possibilidade de discussão de

alternativas elaboradas pelos técnicos, mas o envolvimento das comunidades

interessadas desde o início da discussão acerca das intervenções e a construção

conjunta de estratégias de ação, reunindo os grupos sociais afetados e o poder

público em debates de fato dialógicos, que incorporem ao processo decisório a

riqueza advinda da diversidade.

5. Referências

AVRITZER, L. O orçamento participativo e a teoria democrática: um balanço crítico.

In: Avritzer, L.; NAVARRO, Z. (orgs.). A Inovação Democrática do Brasil. São Paulo:

Cortez, 2003

AVRITZER, L. O Estatuto da Cidade e a democratização das políticas urbanas no

Brasil. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 91. Coimbra: 2010

BOURDIEU, P. O poder simbólico. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007

DAGNINO, E. ¿Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando?

In: MATO, D. (coord.). Políticas de ciudadania y sociedad civil em tiempos de

globalización. Caracas: FaCES-UCV, 2004, p. 95-110

Page 11: 2012.2 A PARTICIPAÇÃO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE REASSENTAMENTO EM BELO HORIZONTE

FRASER, N. Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado. Lua Nova. Vol. 77,

pp. 11-39. São Paulo, 2009

ROLNIK, R. Remoções forçadas em tempos de novo ciclo econômico. Carta Maior,

29 de Agosto, 2012

VAN DIJK, T. A. Discourse, Power and Access. In: COULTHARD, M. et. al. Texts and

Practices: Readings in Critical Discourse Analysis. London: Routledge, 2003. p. 83-

104

ŽIŽEK, S. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo: Boitempo, 2011