2010 uma odisseia no espaço 2 - arthur c. clark

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  • 2010: UMA ODISSIA2010: UMA ODISSIA

    NO ESPAO IINO ESPAO IIArthur C. Clarke

    Ttulo original: 2010: Odissey TwoTraduo de: Jos Eduardo Ribeiro Moretzohn2 EdioEditora Nova Fronteira

  • Nota do Autor

    O romance 2001: uma odissia no espao foi escrito durante os anos de 1964 a 1968 e publicado em julho de 1968, logo depois do lanamento do filme. Segundo narrei em Os mundos perdidos de 2001, os dois projetos se processaram simultaneamente, alimentando-se das duas fontes. Passei, assim, muitas vezes, pela estranha experincia de rever o manuscrito depois de assistir a copies baseados em verso anterior da estria - uma maneira estimulante, mas muito custosa, de se escrever um romance.

    Por conseguinte, existe, entre o livro e o filme, um paralelo bem mais prximo do que o que costuma existir, embora existam diferenas de peso. No romance, o destino da espaonave Discovery era Japetus, a mais enigmtica das muitas luas de Saturno. O sistema saturnino foi alcanado via Jpiter: o Discovery aproximou-se bastante do planeta gigante, valendo-se de seu enorme campo gravitacional para produzir um efeito ''estilingue" e para aceler-lo ao longo da segunda volta do trajeto. As sondagens espaciais do Voyager, em 1979, ao fazerem o primeiro reconhecimento detalhado dos gigantes mais afastados, usaram exatamente a mesma manobra.

    No filme, entretanto, Stanley Kubrick sabiamente evitou confuso ao colocar o terceiro confronto do Homem com o monolito entre as duas luas de Jpiter. Saturno ficou inteiramente de fora no roteiro, embora Douglas Trumbull tenha usado a percia ento adquirida para filmar o planeta anelado em sua prpria produo, Silent running.

    Ningum teria imaginado, remontando aos meados da dcada de 1960, que a explorao das luas de Jpiter fosse situar-se, no no sculo seguinte, mas somente quinze anos depois. Nem algum jamais sonhou com as maravilhas que nelas seriam encontradas - temos certeza quase absoluta, entretanto, de que as descobertas dos Voyager gmeos sero um dia ultrapassadas por achados ainda mais inesperados. Quando 2001 foi escrito, Io, Europa, Ganimedes e Calisto eram meros alfinetes de luz mesmo no telescpio mais poderoso; hoje so mundos, cada um nico, e um deles, Io, o corpo vulcanicamente mais ativo no Sistema Solar.

    Mesmo assim, considerando-se tudo isso, tanto o filme quanto o livro, luz destas descobertas, resistem razoavelmente bem, e fascinante se compararem as sequncias de Jpiter, no filme, com as filmagens reais das cmeras do Voyager. Mas, claro, tudo o que for escrito hoje tem que incorporar os resultados das exploraes de 1979: as luas de Jpiter j no so mais territrio no-cartografado.

    E h um outro fator psicolgico, mais sutil, a ser levado em conta. 2001 foi escrito numa era que est hoje alm de uma das Grandes Divises na histria humana; ns nos separamos dela para sempre no instante em que Neil Armstrong

  • ps o p na Lua. O dia 20 de julho de 1969 ainda se situava meia dcada no futuro quando Stanley Kubrick e eu comeamos a pensar no "proverbialssimo filme de fico cientfica" (frase dele). Hoje, histria e fico esto inextricavelmente entrelaadas.

    Os astronautas da Apolo j haviam visto o filme quando partiram para a Lua. Os tripulantes da Apolo 8, que, no Natal de 1968, vieram a ser os primeiros homens a pr olhos na Face Oculta da Lua, contaram-me que ficaram tentados a mandar de l uma mensagem informando a descoberta de um imenso monolito negro... que pena, a discrio prevaleceu.

    E houve, depois, casos quase misteriosos em que a natureza imita a arte. De todos, o mais estranho foi a saga da Apolo 13 em 1970.

    J como uma boa abertura, o Mdulo de Comando, que abriga a tripulao, fora batizado Odissia. Pouco antes da exploso do tanque de oxignio, que fez abortar a misso, os tripulantes ouviam o tema de Zaratustra, de Richard Strauss, hoje universalmente identificado com o filme. Logo em seguida perda de fora, Jack Swigert mandou mensagem ao Controle da Misso: "Houston, tivemos um problema". As palavras que HAL utilizou dirigindo-se ao astronauta Frank Poole, em ocasio semelhante, foram: "Desculpe interromper as festividades, mas estamos com um problema".

    Quando publicado o relatrio da misso Apolo 13, o Administrador da NASA, Tom Paine, mandou-me dele uma cpia e, abaixo das palavras de Swigert, observou: "Exatamente como voc disse que iria acontecer, Arthur". Sensao muito estranha ainda se apodera de mim quando contemplo toda essa srie de acontecimentos - quase como se, de fato, pesasse sobre mim uma certa responsabilidade.

    H uma outra repercusso menos sria, porm igualmente contundente. Uma das sequncias mais brilhantes, no plano tcnico, no filme foi aquela que mostra Frank Poole correndo em volta da pista circular da centrfuga gigante, cujo giro, produzindo a "gravidade artificial", mantinha-a no lugar.

    Quase uma dcada depois, os tripulantes do Skylab - soberbo, de to exitoso - perceberam que os projetistas lhes haviam proporcionado geometria semelhante: o anel de armrios de armazenagem formava uma faixa circular, uniforme, volta do interior da estao espacial. O Skylab, entretanto, no girava, o que no deteve, porm, seus engenhosos ocupantes. Descobriram eles que poderiam correr em volta da pista, feito camundongos numa jaula de esquilos, produzindo um resultado visualmente indistinguvel do exibido no 2001. E para a Terra televisaram todo o exerccio (preciso dar o nome da msica de acompanhamento?) com o comentrio: "Stanley Kubrick deveria ver isso." Como o viu na ocasio devida, pois mandei-lhe uma gravao em telecine. (No a recebi de volta; Stanley usa, para sistema de arquivamento, um Buraco Negro domesticado.)

    Ainda, outro elo entre filme e realidade a pintura "Perto da lua", do Comandante da Apolo - Soyuz, Cosmonauta Alexei Leonov. Vi-a pela primeira vez em 1968, quando 2001 foi apresentado Conferncia das Naes Unidas sobre Usos Pacficos do Espao Exterior. Logo aps a projeo, Alexei mostrou-me que seu conceito ( pgina 32 do livro de Leonov e Sokolov, As estrelas esto nossa espera, Moscou, 1967) exibe precisamente a mesma disposio que a da abertura do filme: a Terra elevando-se por trs da Lua, e o Sol elevando-se por trs de ambos. O esboo autografado est hoje na parede de meu escritrio; para maiores detalhes, ver Captulo 12.

    Talvez seja esta a hora apropriada de identificar um outro nome, no to conhecido, que aparece nestas pginas, o de Hsue-shen Tsien. Em 1936, com os

  • grandes Theodore von Karman e Frank J. Mallina, o Dr. Tsien fundou o Laboratrio Aeronutico Guggenheim do Instituto de Tecnologia da Califrnia (GALCIT), ancestral imediato do famoso Laboratrio de Propulso a Jato, de Pasadena. Foi tambm o primeiro Catedrtico "Goddard" em Caltetch, e, durante o decnio de 1940, muito contribuiu para a pesquisa de msseis norte-americanos. Mais tarde, num dos episdios mais infelizes do perodo macarthista, sob alegadas acusaes contra a segurana, foi preso quando quis regressar ao pas natal. Tem sido, durante os dois ltimos decnios, um dos lderes do programa de msseis chins.

    H, por fim, o estranho caso do "Olho de Japetus" - Captulo 35 do 2001. Ali narro a descoberta do astronauta Bowman, na lua de Saturno, de uma coisa curiosa: "uma oval branca, brilhante, de cerca de seiscentos e cinquenta quilmetros de comprimento e trezentos e vinte quilmetros de largura... perfeitamente simtrica... e de borda to ntida que quase parecia... pintada sobre a face da pequena lua". Ao aproximar-se, Bowman convenceu-se de que "a elipse brilhosa, impressa no fundo escuro do satlite, era um olho enorme e oco que o fitava medida que ele se aproximava..." Mais tarde, notou "a manchinha pequenina bem no centro", que vem a ser o Monolito (ou um de seus avatares).

    Bem, quando o Voyager 1 transmitiu as primeiras fotografias de Japetus, evidenciou-se nelas de fato uma oval branca, grande, bem definida, com uma pequenina mancha preta no centro. Do Laboratrio de Propulso a Jato, Carl Sagan logo mandou-me uma cpia, com o comentrio crptico: "Pensando em voc..." No sei se me sinto aliviado ou desapontado que o Voyager 2 tenha deixado a questo ainda em aberto.

    Inevitavelmente, portanto, a estria que vocs esto em vias de ler algo bem mais complexo que uma continuao direta do romance anterior - ou do filme. Nos pontos onde os dois diferem, segui a verso cinematogrfica; preocupei-me mais, entretanto, em tornar este livro consequente, e o mais acurado possvel luz do conhecimento atual.

    Que, claro, estar mais uma vez desatualizado por volta de 2001...

    Arthur C. Clarke

    Colombo, Sri Lanka

    Janeiro de 1982

  • I. LeonovI. Leonov

    1. No Local de Encontro

    Mesmo nesta era mtrica, era ainda o telescpio de mil ps e no o de trezentos metros. O grande disco, fixado entre as montanhas, j se sombreava pela metade com o cair lpido do sol rumo ao repouso, mas o suporte triangular, em cujo centro se erguia, bem alto, o complexo da antena, ainda refulgia de luz. Do cho, bem l embaixo, olhos aguados seriam necessrios para reparar nas duas figuras humanas naquele labirinto areo de longarinas, cabos de sustentao, direciona-dores de ondas.

    - Chegou a hora - dizia o Dr. Dimitri Moisevitch ao velho amigo Heywood Floyd - de conversarmos sobre muita coisa. Sobre botas, espaonaves e lacres, mas principalmente de monolitos e computadores com defeito.

    - Ento foi por isso que voc me tirou da conferncia! No que eu me importe; j ouvi o Carl tantas vezes fazer aquela palestra sobre o SETI que sei repeti-la eu mesmo. E a vista mesmo fantstica; sabe, das vezes em que vim a Arecibo, nunca estive aqui na alimentao da antena.

    - Que pena, eu j estive aqui trs vezes. Imagine, estamos ouvindo o universo inteiro, mas ns dois ningum conseguir entreouvir. Vamos, ento, conversar sobre o seu problema.

    - Que problema?

    - Para comear, por que voc teve que renunciar ao cargo de Presidente do Conselho Nacional de Astronutica?

    - Eu no renunciei. A Universidade do Hava paga muito melhor.

    - Est bem, voc no renunciou; voc estava um passo frente deles. Voc no consegue me tapear, Woody, depois de tantos anos, e devia parar de tentar. Se lhe oferecessem o CNA de volta nesse instante, voc hesitaria?

    - Muito bem, seu velho cossaco! O que voc quer agora?

    - Primeiro, naquele relatrio que voc finalmente fez, depois de tanta insistncia, muitas coisas no fecham. Isto sem falar no sigilo ridculo e, para sermos francos, ilegal, com que seu pessoal escavou o monolito de Tycho.

    - A idia no foi minha.

    - Folgo em sab-lo, e acredito em voc. E gostamos do fato de voc agora deixar que todos examinem a coisa... o que, claro, voc deveria ter feito em primeiro lugar. No que tenha tido alguma utilidade...

  • Houve um silncio desalentador enquanto os dois contemplaram o enigma negro l no alto, na Lua, ainda desafiando, sobranceiro, todas as armas que a engenhosidade humana seria capaz de usar contra ele. Em seguida, continuou o cientista russo:

    - Bem, seja o que for o monolito de Tycho, h algo mais importante l em Jpiter. Foi para l que ele mandou sinais, afinal. E foi l que seu pessoal se meteu em apuros. Sinto por isso, alis... embora Frank Poole fosse o nico que eu conhecesse pessoalmente. Eu o conheci no Congresso de 1998 da FAI... me pareceu um bom homem.

    - Obrigado; todos eram bons. Eu gostaria de saber o que aconteceu a eles.

    - Seja o que for, agora voc tem que admitir que uma preocupao de toda a raa humana, e no s dos Estados Unidos. Voc j no pode mais usar o seu conhecimento para benefcio meramente nacional.

    - Dimitri, voc sabe muito bem que o seu lado teria feito exatamente a mesma coisa. E com sua ajuda.

    - Voc tem toda razo. Mas isso histria antiga, assim como o aquele seu governo recm-sado, responsvel por toda a confuso. Com um novo Presidente, talvez prevaleam conselhos mais sbios.

    - possvel. Voc tem sugesto a fazer, e seriam oficiais ou simples esperanas pessoais?

    - Tudo extra-oficial no momento. o que os polticos sanguinrios chamam conversas de sondagem. E que eu negarei, terminantemente, que tenham ocorrido.

    - justo. Continue.

    - Bem, essa a situao. Vocs esto montando o Discovery II com toda a pressa possvel, na rbita do estacionamento, mas no tm esperanas de complet-lo em menos de trs anos, o que significa que iro perder o prximo corredor de lanamento...

    - No nego, nem confirmo. Lembre-se de que eu no passo de um humilde reitor de universidade, o outro lado do mundo perante o Conselho de Astronutica.

    - E a sua ltima viagem a Washington no passou de um feriadozinho, acho eu, para ver velhos amigos. Continuando: o nosso prprio Alexei Leonov...

    - Pensei que vocs fossem cham-lo de Gherman Titov.

    - Errado, Reitor. A velha CIA os derrubou de novo. Leonov, at janeiro era. E no diga a ningum que eu lhe contei que ele vai chegar a Jpiter no mnimo com um ano de dianteira sobre o Discovery.

    - E que ningum saiba que eu lhe contei que estamos com medo disso. Mas, vamos, prossiga.

    - Meus chefes so to imbecis e mopes quanto os seus, e por isso querem fazer a coisa sozinhos. O que significa que o que quer que saia de errado com vocs pode acontecer conosco, e ns estaremos de volta estaca zero... ou pior.

    - O que voc julga que tenha sado errado? Estamos to frustrados quanto vocs. E no me diga que vocs no tm todas as transmisses de Dave Bowman.

    - Claro que temos. At a ltima "Meu Deus, est cheio de estrelas!" Chegamos mesmo a fazer, do comportamento da voz dele, uma anlise de intensidade. No cremos que ele estivesse com alucinaes; ele tentava era narrar o que realmente via.

  • - E quanto ao desvio Doppler verificado, o que voc depreende?

    - Inteiramente impossvel, claro. Quando perdemos o sinal dele, ele se afastava a um dcimo da velocidade da luz. E em menos de dois minutos a atingiria. Um quarto de milho de gravidades!

    - Ento ele deve ter morrido instantaneamente.

    - No queira se fazer de ingnuo, Woody. Os rdios de suas cpsulas espaciais no so construdos para suportar nem mesmo um centsimo dessa acelerao. Se os rdios conseguiram sobreviver, Bowman tambm o conseguiria... ao menos at perdermos contato.

    - Estou apenas verificando, por minha conta, as suas dedues. Dali em diante, tanto quanto vocs, estamos no escuro. Se que vocs esto mesmo no escuro!

    - S estamos jogando com muitas adivinhaes, to malucas que eu teria at vergonha de cont-las a voc. Mas, mesmo assim, eu desconfio que a verdade ainda ser bem mais maluca do que qualquer uma delas.

    Em pequenas exploses, cor carmim, as luzes de alerta aos navegantes piscavam ao redor dos dois, e as trs torres delgadas, que suportavam o complexo da antena, comearam a refulgir, como boias de sinalizao, contra o cu escuro. O ltimo estilhao vermelho do sol esvaiu-se por trs das colinas circunjacentes; Heywood Floyd esperou pelo Claro Verde, que nunca vira. Mais uma vez, ficou desapontado.

    - Bem, Dimitri - disse ele -, vamos ao ponto principal. Onde que voc quer chegar?

    - Deve haver uma quantidade enorme de informaes inestimveis armazenadas nos bancos de dados do Discovery; e de se presumir que ainda estejam sendo acumuladas, mesmo que a nave tenha interrompido suas transmisses. Gostaramos de ter acesso a elas.

    - Muito justo. Mas, quando vocs estiverem l em cima, e o Leonov estabelecer o contato, o que os impede de abordar o Discovery e copiar tudo o que quiserem?

    - Nunca pensei que eu tivesse de lembrar-lhe que o Discovery territrio dos Estados Unidos, e que o ingresso no autorizado seria pirataria.

    - Salvo no caso de uma emergncia de vida ou morte, o que no seria difcil de arranjar. Seria difcil para ns, afinal, fiscalizarmos as suas intenes daqui, a um bilho de quilmetros de distncia.

    - Agradeo a sugesto. Das mais interessantes; vou pass-la adiante. Mas, mesmo que fssemos a bordo, levaramos semanas para aprender todos os seus sistemas e ler todos os seus bancos de memria. O que eu proponho cooperao. Estou convencido de que essa a melhor idia... mas creio que teremos muito trabalho para vend-la aos nossos respectivos chefes.

    - Voc quer que um de nossos astronautas viaje com o Leonov?

    - Quero... de preferncia um engenheiro especializado nos sistemas do Discovery. Como esses que vocs esto treinando em Houston para trazer a nave de volta.

    - Como foi que voc soube disso?

    - Meu Deus, Woody! Saiu no videotexto do Semanrio da Aviao j, no mnimo, h mais de um ms.

    - Eu perdi o contato. Ningum me conta o que foi dispensado do sigilo.

  • - O que motivo ainda melhor para se passar uma temporada em Washington. Voc vai me apoiar?

    - Inteiramente. Concordo cem por cento com voc, mas...

    - Mas o qu?

    - Ns dois vamos ter que lidar com dinossauros que tm o crebro na cauda. Alguns dos meus vo argumentar: deixem que os russos arrisquem o pescoo, correndo para chegar a Jpiter. Ns, de qualquer maneira, chegaremos l uns dois anos depois. E, afinal, por que a pressa?

    Por um instante houve silncio na base da antena, no fosse por um leve rangido dos imensos cabos de sustentao que a mantinham suspensa a cem metros nos cus. Depois, to baixinho que Floyd teve que se esforar para ouvi-lo, Moisevitch prosseguiu:

    - Algum verificou a rbita do Discovery ultimamente?

    - Na verdade, no sei, mas creio que sim. De um jeito ou de outro, por que se incomodar? uma rbita perfeitamente estvel.

    - mesmo. Ento, com todo o tato, devo lembr-lo de um incidente constrangedor, dos velhos dias da NASA: a sua primeira estao espacial, o Skylab, que deveria ficar l em cima no mnimo uma dcada. Mas vocs no fizeram os clculos certos, subestimaram em muito a resistncia do ar na ionosfera, e ele caiu alguns anos antes do prazo. Tenho certeza de que voc se lembra desse percalo, embora na poca voc ainda fosse um menino.

    - Foi no ano em que me formei, e voc sabe disso. Mas o Discovery nunca se aproxima de Jpiter. Mesmo no perigeu... quer dizer, no perijove, ele est muito alto para ser afetado pela resistncia do ar.

    - Eu j disse o bastante para me exilarem de novo para o meu dacha; e da prxima vez voc talvez no obtenha permisso para ir me visitar. Portanto trate de pedir ao seu pessoal do rastreamento para trabalhar com cuidado, est bem? E lembre a eles que Jpiter tem a maior magnetosfera do Sistema Solar.

    - Compreendo aonde voc quer chegar. Obrigado. Mais alguma coisa antes de descermos? Estou comeando a ficar congelado.

    - No se preocupe, amigo velho. Assim que voc deixar isto vazar em Washington... espere uma semana para me resguardar... as coisas vo esquentar, e muito.

    2. A Casa dos Golfinhos

    Os golfinhos entravam nadando, todas as tardes, na sala de jantar, imediatamente antes do pr-do-sol. Somente por uma vez, desde que Floyd veio ocupar a residncia do Reitor, quebraram a rotina. Foi no dia do tsunami de 2005, que, felizmente, perdera quase toda a fora antes de alcanar Hilo. Da prxima vez que os amigos no chegassem na hora, Floyd jogaria a famlia no carro e rumaria para terras altas na direo genrica de Mauna Ki.

    Embora encantadores, ele tinha que admitir que aquele espalhafato era s vezes um aborrecimento. Molhar-se no incomodava o gelogo marinho que projetara a

  • casa, pois ele usava cales... ou menos. Houve, porm, uma ocasio inesquecvel, quando todo o Quadro de Regentes, vestindo traje noturno a rigor, estava a sorver coquetis ao redor do lago, enquanto aguardava a chegada de distinto conviva vindo do continente. Os golfinhos deduziram, corretamente, que teriam direito a repetio, e o visitante, ento, muito se surpreendeu ao ser saudado por uma comitiva de recepo toda enlameada, em roupes folgados ou apertados... e o buf ficou muito salgado.

    Floyd costumava imaginar o que Marion pensaria desta casa linda e estranha beira do Pacfico. Ela jamais gostara do mar, mas o mar, enfim, vencera.

    Embora a imagem esvaecesse lentamente, ele ainda se lembrava da tela cintilante onde vira, pela primeira vez, as palavras "DR. FLOYD - URGENTE E PESSOAL", e, em seguida, as linhas de impresso fluorescente se desenrolarem numa mensagem que rapidamente ardeu-lhe no esprito: SENTIMOS INFORMAR FOMOS NOTIFICADOS VO 452 LONDRES -WASHINGTON CAIU PRXIMO NEWFOUND-LAND. TURMA DE SOCORRO RUMA LOCAL MAS TEME NO HAVER SOBREVIVENTES.

    No fosse um acidente do destino, ele estaria naquele vo. Por alguns dias, quase se ressentiu daquele assunto da Administrao Espacial Europeia que o retivera em Paris; aquela discusso sobre a carga til do Solaris lhe salvara a vida.

    E agora, tinha novo emprego, casa nova... e nova esposa. Aqui tambm o destino desempenhara papel irnico. Mesmo que as recriminaes, os inquritos sobre a misso Jpiter, lhe houvessem destrudo a carreira em Washington, um homem com sua capacidade no ficava desempregado por muito tempo. A cadncia da vida universitria, to mais lazerosa, sempre o apetecera, e quando combinada a uma das mais belas locaes do mundo, mostrara ser irresistvel. A mulher que viria ser sua segunda esposa, encontrara-a apenas um ms depois de ser nomeado, quando olhava as fontes de fogo do Kilauea com um grupo de turistas.

    Com Caroline ele encontrara o contentamento, to importante quanto a felicidade, e mais duradouro. Era uma boa madrasta para as duas filhas de Marion, e a ele dera Christopher. Apesar da diferena de vinte anos entre eles, ela lhe compreendia os estados de esprito e conseguia levant-lo das eventuais depresses. Graas a ela, ele agora conseguia contemplar sem dor a memria de Marion, no sem, porm, uma tristeza nostlgica que com ele ficaria para o resto da vida.

    Caroline atirava peixes para o golfinho maior - o enorme macho ao qual chamavam Scarback - quando um leve comicho no pulso de Floyd anunciou uma chamada externa. Com um leve tapinha na fita de metal, fina, ele calou o alarma silencioso, para evitar o audvel, e em seguida caminhou at a mesa de comunicao mais prxima, dentre as espalhadas pela sala.

    - Aqui o Reitor. Quem fala?

    - Heywood? Aqui o Vitor. Como vai?

    Numa frao de segundo, todo um caleidoscpio de emoes lampejou na mente de Floyd. Primeiro foi o mal-estar: seu sucessor - e, ele tinha certeza, o principal maquinador de sua queda - nem por uma nica vez tentara contat-lo desde sua sada de Washington. Depois veio a curiosidade: o que teriam eles que conversar? Em seguida uma determinao obstinada de ser o menos prestativo possvel, em seguida a vergonha de sua prpria infantilidade, e, por fim, uma onda de alvoroo. O motivo por que Vitor Millson o chamava s poderia ser um.

  • Na voz mais neutra que conseguiu encontrar, Floyd respondeu:

    - No posso me queixar, Vitor. Qual o problema?

    - Esse circuito vedado?

    - No, graas a Deus. Eu no preciso mais disso.

    - Ah... bem, ento vejamos: voc se lembra do ltimo projeto que voc administrou?

    - improvvel que eu me esquea, principalmente porque o Subcomit de Astronutica me chamou de novo h apenas um ms para apresentar provas adicionais.

    - Claro, claro. Eu na verdade tenho que dar um jeito de ler a sua declarao, assim que tiver uma folga. Mas tenho andado muito ocupado com o acompanhamento, e esse o problema.

    - Pensei que tudo estivesse em dia com a programao.

    - Est... infelizmente. No h nada que possamos fazer para adiant-la; mesmo num esquema de altssima prioridade, a diferena seria apenas de umas poucas semanas. E isso significa que nos atrasaremos demais.

    - No compreendo - Floyd disse, ingenuamente. - Mesmo que no queiramos, claro, desperdiar tempo, no h prazo fixado.

    - Agora h. E dois!

    - Voc est me assustando.

    Se Vitor percebeu qualquer ironia, ignorou-a.

    - , so dois prazos: um que ns estipulamos, o outro no. Acaba que j no seremos os primeiros a voltar ... quer dizer, cena da ao. Nossos velhos rivais vo nos derrotar por no mnimo um ano.

    - uma pena.

    - E isso no o pior. Mesmo que no houvesse concorrncia, chegaramos tarde demais. No haveria nada por l quando chegssemos.

    - Isso bobagem. Eu com certeza saberia se o Congresso por acaso tivesse rejeitado a lei da gravitao.

    - Estou falando srio. A situao no estvel... agora no posso dar detalhes. Voc vai ficar em casa o resto da noite?

    - Vou - respondeu Floyd, constatando, com um certo prazer, que naquele momento, em Washington, j passava da meia-noite.

    - timo. Dentro de uma hora lhe mando um dossi. Me telefone de volta assim que terminar de estud-lo.

    - Mas no vai ficar muito tarde?

    - Vai, vai sim, mas j desperdiamos muito tempo. No quero desperdiar mais.

    Millson cumpriu a palavra. Uma hora depois, exatamente, um envelope grande, lacrado, era entregue a ele por nada menos que um coronel da Fora Area, que se sentou, paciente, conversando com Caroline enquanto Floyd lia o contedo.

    - Receio que tenha que lev-lo de volta quando o senhor terminar - disse, desculpando-se, o mensageiro de alta patente.

    - bom saber disso - respondeu Floyd, acomodando-se em sua rede de leitura

  • predileta.

    Havia dois documentos. O primeiro bem curto; exibia o carimbo SIGILO ABSOLUTO, embora o ABSOLUTO estivesse riscado, e a modificao, endossada por trs assinaturas, todas absolutamente ilegveis. Extrato, obviamente, de um relatrio muito maior, estava bastante censurado e cheio de lacunas, o que o tornava muito incmodo de se ler. As concluses, felizmente, poderiam ser resumidas em uma frase: os russos chegariam ao Discovery bem antes que seus proprietrios de direito pudessem faz-lo. Como Floyd j soubesse disso, passou rapidamente ao segundo documento, no sem antes reparar, porm, com satisfao, que desta vez haviam acertado o nome. Como de costume, Dimitri fora absolutamente preciso. A prxima expedio tripulada a Jpiter viajaria a bordo da espaonave Cosmonauta Alexei Leonov.

    O segundo documento era muito maior, e meramente "confidencial"; estava, na verdade, na forma de uma minuta de carta revista Science, aguardando aprovao final antes de ser publicada, e o ttulo, oportuno, era "Veculo Espacial Discovery: Comportamento Orbital Anmalo".

    Seguiam-se, depois, umas doze tbuas matemticas e astronmicas. Floyd folheou-as, tirando a letra da msica, e tentando detectar alguma nota de desculpa ou mesmo de constrangimento. Ningum poderia adivinhar que as estaes de rastreamento e os calculadores

    de efemrides tinham sido tomados de surpresa, e que uma cobertura frentica estava em processo. Cabeas rolariam, sem dvida, e ele sabia que Vtor Millson teria prazer em faz-las rolar - isto se a dele no fosse a primeira. Mas, fazendo-se justia a ele, quando o Congresso cortara as verbas para a rede de rastreamento, Vitor reclamara, e isto, talvez, lhe evitasse a degola.

    - Obrigado, Coronel - disse Floyd, ao terminar de folhear os documentos. - Parece os velhos tempos, ter que ler documentos sigilosos. Se existe uma coisa da qual eu no sinto saudades, disso.

    O Coronel, com cuidado, colocou o envelope de volta na pasta, e ativou os cadeados.

    - O Dr. Millson gostaria que o senhor lhe telefonasse de volta o mais breve possvel.

    - Eu sei, mas meu circuito no vedado, e daqui a pouco eu vou receber umas visitas, e no vou ser eu que vou pegar o carro e ir at o seu escritrio em Hilo s para dizer que li dois documentos. Diga a ele que eu os estudei meticulosamente e espero com interesse qualquer comunicao adicional.

    Pareceu, por um instante, que o Coronel ia discutir. Pensando melhor, porm, com uma despedida formal, partiu irritado, noite adentro.

    - Que histria foi aquela} - perguntou Caroline. - Ns no vamos receber visita alguma hoje, importante ou no.

    - Detesto que me pressionem, principalmente o Vitor Millson.

    - Mas ele vai telefonar de volta assim que o Coronel prestar contas.

    - Ento temos que desligar o vdeo e fazer uns rudos de festa. Mas, para ser franco, eu por enquanto no tenho mesmo nada a dizer.

    - A respeito de qu, se que tenho permisso de perguntar.

    - Sinto muito, meu bem. Parece que o Discovery est nos pregando umas peas. Ns pensvamos que a nave estava numa rbita estvel, mas ela talvez esteja

  • beira de uma coliso.

    - Com Jpiter?

    - No, no. Isso quase impossvel. Bowman deixou-a estacionada no ponto Lagrange interno, na linha entre Jpiter e Io. E ela deveria ter permanecido l, mais ou menos, mesmo que as perturbaes das luas externas a fizessem vagar para frente e para trs. Mas o que est acontecendo agora algo muito estranho, para o que no temos explicaes completas. O Discovery est deslizando com rapidez cada vez maior na direo de Io, s vezes acelerando, verdade, s vezes at mesmo andando de marcha r. Se isso perdurar, vai colidir dentro de dois ou trs anos.

    - Pensei que isso no pudesse ocorrer em astronomia. No acham que a mecnica celeste uma cincia exata? o que sempre nos diziam, a ns, infelizes bilogos.

    - uma cincia exata, quando tudo considerado. Mas h coisas muito estranhas acontecendo em Io. Sem contar os vulces, h descargas eltricas tremendas... e o campo magntico de Jpiter gira a cada dez horas. Portanto no a gravitao a nica fora agindo contra o Discovery; devamos ter pensado nisso antes... muito antes.

    - Bem, mas isso no mais seu problema, e voc deveria agradecer por isso.

    "Seu problema", a mesma expresso que Dimitri usara. E Dimitri - velha raposa esperta! - o conhecia h muito mais tempo que Caroline.

    Talvez no fosse seu problema, mas ainda era sua responsabilidade. Embora muita gente estivesse envolvida, no fim das contas fora ele quem aprovara os planos para a Misso Jpiter, cuja execuo supervisionara.

    Mesmo na poca, tivera apreenses; seus pontos de vista de cientista haviam-se chocado com seus deveres de burocrata. Ele poderia ter falado abertamente, e se oposto s diretrizes tacanhas da antiga administrao, embora ainda no se tivesse certeza sobre at que ponto elas teriam contribudo para o desastre.

    Talvez melhor fosse encerrar esse captulo de sua vida, e centrar todos os seus pensamentos e energias na nova carreira. No seu ntimo, porm, sabia que isto era impossvel; mesmo que Dimitri no tivesse feito reviverem velhas culpas, elas teriam vindo tona por conta prpria.

    Quatro homens haviam morrido, e um desaparecido, l entre as luas de Jpiter. Ele tinha sangue nas mos, e no sabia como limp-las.

    3. SAL 9000

    O Dr. Sivasubramanian Chandrasegarampillai, Catedrtico de Cincia dos Computadores na Universidade de Illinois, Urbana, tambm carregava uma sensao permanente de culpa, muito diferente, porm, da de Heywood Floyd. J aqueles alunos e colegas que amide se punham a pensar se aquele cientista baixinho era mesmo humano no se surpreenderiam em saber que ele jamais pensava nos astronautas mortos. O Dr. Chandra lamentava apenas a perda do filho, o HAL 9000.

  • Mesmo depois de todos esses anos, de todas as infindveis revises dos dados transmitidos pelo Discovery, ele no tinha certeza do que sara errado. Poderia somente formular teorias; os dados de que precisava estavam congelados nos circuitos de Hal, l em cima entre Jpiter e Io.

    A sequncia de acontecimentos fora claramente estabelecida, at o momento da tragdia; dali em diante o Comandante Bowman preenchera alguns detalhes a mais nas rpidas ocasies em que restabelecera contato. Saber, porm, o que aconteceu, no explicava o porqu.

    O primeiro sinal de apuro ocorrera em estgio avanado da misso, quando Hal informara a falha iminente da unidade que mantinha a antena principal do Discovery alinhada com a Terra. Se aquela faixa direcional, de meio bilho de quilmetros, perdesse o alvo, a nave ficaria cega, surda e muda.

    O prprio Bowman sara para restabelecer a unidade sob suspeita, que, quando testada, para surpresa geral, apresentou-se em perfeitas condies. Os circuitos automticos de verificao no conseguiram descobrir nada de errado com ela. Tampouco o conseguiu o gmeo de Hal, o SAL 9000, aqui na Terra, quando a informao foi transmitida para Urbana.

    E Hal insistira na preciso de seu diagnstico, fazendo observaes insistentes sobre "erro humano". E fora de opinio que a unidade de controle fosse recolocada na antena at que finalmente apresentasse defeito, de modo a permitir a perfeita localizao da falha. No houve quem levantasse objees, pois a unidade, caso pifasse, poderia ser substituda em questo de minutos.

    Bowman e Poole, entretanto, no foram felizes; os dois sentiam que algo estava errado, embora nem um nem outro conseguissem apontar o erro. Durante meses, aceitaram Hal como o terceiro membro daquele pequeno mundo, e dele conheciam todos os estados de esprito. De repente, a bordo da nave, a atmosfera sofrer uma alterao sutil; pairou no ar uma sensao de tenso.

    Sentindo-se um tanto traidores - segundo informou, mais tarde, ao Controle da Misso, um Bowman perturbado -, os dois teros humanos da tripulao haviam discutido o que fazer caso o colega estivesse de fato com defeito. Na pior das hipteses Hal teria que ser liberado de todas as suas responsabilidades maiores: o que importaria o desligamento, equivalente, para um computador, morte.

    Apesar das dvidas, levaram adiante o programa combinado. Poole sara do Discovery, numa das pequeninas cpsulas espaciais que serviam de transporte e de oficinas mveis durante as atividades extraveiculares. J que o trabalho, algo intrincado, de remover a unidade da antena no poderia ser realizado pelos manipuladores da cpsula, Poole comeara a realiz-lo ele mesmo.

    O que aconteceu ento as cmeras externas no captaram, um pormenor por si s suspeitoso. O primeiro sinal de desastre foi, para Bowman, o grito de Poole... depois, o silncio. Um instante depois, ele viu Poole girando de ponta-cabea, afastando-se no espao. A prpria cpsula o atropelara, e tambm se deslocava, afastando-se, incontrolvel.

    Segundo Bowman admitira posteriormente, ele cometera, naquele momento, erros srios... de todos, apenas um justificvel. Na esperana de salvar Poole, caso ainda estivesse vivo, lanara-se ao espao em outra cpsula espacial, deixando Hal com o controle total da nave.

    A sada foi em vo; quando Bowman o alcanou, Poole estava morto. Entorpecido de desespero, levou o corpo de volta nave... s que Hal recusara-lhe a entrada.

    Hal, porm, subestimara a engenhosidade e determinao humanas. Embora

  • tenha deixado o capacete na nave, e tivesse assim que arriscar-se a uma exposio direta ao espao, Bowman forou a passagem por uma escotilha fora do controle do computador. Em seguida, comeou a lobotomizar Hal, desligando nele, um a um, os mdulos cerebrais.

    Ao recuperar o controle da nave, Bowman descobrira algo aterrador. Durante sua ausncia, Hal desligara os sistemas de proteo vital dos trs astronautas em hibernao. Bowman estava s, como jamais outro homem, em toda a histria humana, estivera.

    Outros se teriam abandonado ao desespero, impotentes, mas Bowman, na ocasio, provara que os que o haviam escolhido o haviam escolhido bem. Ele conseguira manter o Discovery em funcionamento, e at mesmo restabelecera um contato intermitente com o Controle da Misso, orientando toda a nave de modo a que a antena, emperrada, continuasse apontando para a Terra.

    O Discovery, continuando a trajetria previamente traada, chegara enfim a Jpiter, onde Bowman encontrou, em rbita, entre as luas do planeta gigante, uma placa negra exatamente da mesma forma que o monolito escavado na cratera lunar Tycho... porm centenas de vezes maior. E numa cpsula espacial, sara para investigar, e desaparecera, deixando aquela mensagem derradeira, desconcertante: "Meu Deus, est cheio de estrelas!"

    Com aquele mistrio, outros que se preocupassem; a inquietao avassaladora do Dr. Chandra era para com Hal. Se havia alguma coisa que sua mente no-emocional detestava, era a incerteza. Jamais se satisfaria antes de conhecer a causa do comportamento de Hal. Recusava-se, mesmo agora, a cham-la de defeito; era, no mximo, uma "anomalia".

    O pequeno cubculo que usava como aposento privado, ntimo, estava equipado apenas com uma cadeira giratria, um console de escrivaninha e um quadro-negro flanqueado por duas fotografias. Dentre o pblico em geral, poucos seriam os capazes de identificar os retratos; os que tinham permisso, entretanto, para tamanha aproximao os teriam reconhecido imediatamente como John von Neumann e Alan Turing, os deuses gmeos do panteo dos computadores.

    No havia livros, nem mesmo papel e lpis sobre a escrivaninha. Todos os volumes de todas as bibliotecas do mundo logo estariam, ao simples toque dos seus dedos, disposio de Chandra; o visor lhe servia de caderno de esboos e de blocos de anotaes. At mesmo o quadro-negro era usado somente para os visitantes; sobre ele, o ltimo grupo de diagramas, meio apagado, estava datado de trs semanas no passado.

    Dr. Chandra acendeu um dos charutos pestilentos que importava de Madrasta, os quais, dizia a crena geral, e correta, eram seu nico vcio. O console jamais era desligado; depois de ver que nenhuma mensagem lampejava importante na tela, Dr. Chandra falou ao microfone:

    - Bom dia, Sal. Quer dizer que voc no tem nada de novo para mim?

    - No tenho, Dr. Chandra. O senhor tem alguma coisa para mim?

    A voz bem poderia ser a de uma senhora indiana, culta, educada tanto nos Estados Unidos quanto em sua prpria terra natal. O sotaque de Sal no era assim no incio, mas, com o correr dos anos, pegara muitas das entonaes de Chandra.

    Com um ligeiro toque, o cientista acionou um cdigo no teclado, ligando as entradas da memria de Sal num nvel de segurana absoluta. Ningum sabia que ele conversava com o computador neste circuito, como jamais o conseguiria com qualquer ser humano. No importa que Sal na verdade no entendesse alm de

  • uma frao do que ele dizia; Sal tinha respostas to convincentes que at mesmo seu criador s vezes se iludia. Pois assim ele queria que fosse: estas comunicaes secretas ajudavam a preservar-lhe o equilbrio mental... talvez at mesmo a sanidade.

    - Voc sempre me disse, Sal, que ns no vamos conseguir resolver o problema do comportamento anmalo de Hal sem maiores informaes. Mas, como conseguir estas informaes?

    - Isso bvio. Algum tem que voltar ao Discovery.

    - Exatamente. E isso agora parece que vai acontecer, mais cedo do que espervamos.

    - Folgo em sab-lo.

    - Eu sabia que sim - respondeu Chandra, com sinceridade. H muito ele cortara relaes com aquele grupo definhante de filsofos que argumentava que os computadores na verdade no sentiam emoes, que apenas fingiam senti-las.

    (- Se o senhor me provar que no est fingindo estar aborrecido - rebatera ele certa vez, com sarcasmo, a um desses crticos, - eu o levo a srio. - quela altura, o oponente vestira uma imitao de raiva, das mais convincentes.)

    - Agora eu quero explorar uma outra possibilidade - continuou Chandra. - O diagnstico apenas o primeiro passo. O processo est incompleto se no conduzir cura.

    - O senhor acredita que o funcionamento normal de Hal pode ser restaurado?

    - Espero que sim. No sei. possvel que tenha havido dano irreversvel, e com certeza uma perda considervel de memria.

    Pensativo, fez uma pausa, tirou vrias baforadas, depois exalou um hbil anel de fumaa, um tiro certeiro na lente grande angular de Sal, gesto que nenhum ser humano teria considerado amistoso: mais uma das muitas vantagens dos computadores.

    - Preciso de sua cooperao, Sal.

    - Claro, Dr. Chandra.

    - Talvez haja alguns riscos.

    - Como assim?

    - O que eu proponho desligar alguns circuitos seus, principalmente os que tm a ver com as suas funes maiores. Isto o incomoda?

    - No posso responder sem informaes mais especficas.

    - Muito bem. Vamos ficar assim: voc tem operado continuamente, no ?, desde que foi ligado pela primeira vez?

    - Est correto.

    - Mas voc sabe que ns seres humanos no o conseguimos. Ns precisamos de sono... uma interrupo quase completa no nosso funcionamento mental, ao menos no nvel consciente.

    - Sei disso, mas no compreendo.

    - Bem, talvez voc esteja em vias de experimentar algo parecido com o sono. O que provavelmente vai acontecer que o tempo vai passar sem voc saber. Quando voc verificar o seu relgio interno, vai descobrir que existem lacunas no seu monitor. Eis tudo.

  • - Mas o senhor disse que talvez haja riscos. Quais so?

    - H uma pequenssima chance, impossvel de computar, de que, quando eu desligar os seus circuitos, talvez haja algumas mudanas na sua personalidade, nos seus padres de comportamento futuro. Talvez voc se sinta diferente. No necessariamente melhor, nem pior.

    - No sei o que isso quer dizer.

    - Desculpe-me, talvez no queira dizer nada. Portanto, no se preocupe. Agora abra, por favor, um novo registro... eis o nome. - No teclado de entrada, Chandra datilografou FNIX.

    - Voc sabe o que isso? - perguntou a Sal. Sem qualquer pausa discernvel, o computador respondeu:

    - Existem vinte e cinco referncias na enciclopdia corrente.

    - Qual delas voc julga pertinente?

    - O preceptor de Aquiles?

    - Interessante. Essa eu no conhecia. Tente outra.

    - Um pssaro fabuloso, renascido das cinzas de sua vida anterior.

    - Excelente. Voc compreende agora por que escolhi esse nome?

    - Porque o senhor espera que Hal possa ser reativado.

    - Isso... e com a sua assistncia. Voc est pronto?

    - Ainda no. Eu gostaria de fazer uma pergunta.

    - Qual?

    - Eu vou sonhar?

    Claro que vai. Todas as criaturas inteligentes sonham... mas ningum sabe por qu. - Chandra, por um instante, fez uma pausa, exalou outro anel de fumaa do charuto, e acrescentou algo que, perante um ser humano, jamais admitiria: - Talvez sonhe com Hal, como costuma acontecer comigo.

    4. Perfil da Misso

    Verso Inglesa

    Para: Capit Tanya Orlov, Comandante, Espaonave Cosmonauta Alexei Leonov (Registro COENU 08/342)

    De: Conselho Nacional de Astronutica, Pennsylvania Avenue, Washington

    Comisso do Espao Exterior, Academia de Cincias da URSS, Prospeto Korolyev, Moscou

    Objetivos da Misso

    Os objetivos de sua misso so, em ordem de prioridade:

    1. Seguir para o sistema joviano e chegar Espaonave Discovery, dos Estados Unidos (COENU 01/283).

  • 2. Abordar esta espaonave, e obter toda informao possvel relacionada com sua misso anterior.

    3. Reativar os sistemas de bordo da Espaonave Discovery e, caso os estoques para propulso sejam suficientes, introduzir a nave numa trajetria de retorno Terra.

    4. Localizar o artefato estranho encontrado pelo Discovery, e investig-lo ao mximo possvel por meio de sensores remotos.

    5. Caso parea aconselhvel, e o Controle da Misso concorde, ir ao encontro deste objeto para inspeo mais minuciosa.

    6. Desenvolver uma pesquisa de Jpiter e seus satlites, se isto for compatvel com os objetivos acima.

    Est claro que circunstncias imprevisveis talvez requeiram uma mudana de prioridades, ou talvez at mesmo impossibilitem a consecuo de alguns destes objetivos. Deve ser entendido, com clareza, que o encontro com a Espaonave Discovery para o propsito expresso de obter informao sobre o artefato; isto deve ter precedncia sobre todos os outros objetivos, inclusive sobre as tentativas de salvamento.

    Tripulao

    A tripulao da Espaonave Alexei Leonov consistir em:

    Capit Tanya Orlov (Engenharia de Propulso) Dr. Vasili Orlov (Astronomia de Navegao) Dr. Maxim Brailovski (Engenharia de Estruturas) Dr. Alexander Kovalev (Engenharia de Comunicaes) Dr. Nikolai Ternovski (Engenharia de Controle de

    Sistemas) Mdica-Comandante Katerina Rudenko (Proteo

    Mdica Vital) Dra. Irina Yakunin (Nutricionista)

    Alm destes, o Conselho Nacional de Astronutica dos Estados Unidos fornecer os trs especialistas seguintes: ...

    O Dr. Heywood Floyd deixou cair o memorando e recostou-se na cadeira. Estava tudo providenciado; o ponto sem retorno fora ultrapassado. Mesmo que desejasse faz-lo, no havia meios de atrasar o relgio.

    Do outro lado, fitou Caroline, sentada com Chris, de dois anos, na beira da piscina. O guri sentia-se muito mais vontade n'gua do que em terra; e conseguia permanecer submerso por perodos que freqentemente aterrorizavam as visitas. E embora ainda no falasse muito o humano, j parecia fluente em golfinho.

    Um dos amigos de Christopher acabara de chegar, nadando, do Pacfico, e agora apresentava as costas para serem acariciadas. Voc tambm um vagamundos, pensou Floyd, num oceano vasto e sem pistas; mas como parece pequenino o seu Pacfico diante da imensido com que me deparo!

    Caroline percebeu o olhar, e levantou-se. Fitou-o soturna, mas sem raiva; toda a ira j fora queimada nos ltimos dias. Aproximando-se, ainda deu um sorriso ansiado.

    - Encontrei aquele poema que eu estava procurando - disse ela. - Comea assim:

  • "O que a mulher que abandonais,

    E a lareira, as terras de vossa casa,

    Para trilhardes o velho Viuveiro cinzento?"

    ("What is a woman that you forsake her,

    And the hearth-fire and the home acre,

    To go with the old grey Widow-maker?")

    - Sinto muito, mas no compreendi bem. Quem o Viuveiro?

    - No quem, o qu. O mar. O poema o lamento de uma mulher viking. Foi escrito por Rudyard Kipling, h cem anos.

    Floyd segurou a mo da esposa; ela no correspondeu, mas tampouco resistiu.

    - Bem, no me sinto em nada parecido com um viking. No estou procurando despojos e a ltima coisa que quero aventura.

    - Ento por que... no, no quero comear outra briga. Mas iria ajudar-nos a ambos se voc conhecesse exatamente os seus motivos.

    - Eu gostaria de poder oferecer-lhe um bom motivo. Mas tenho vrios, e todos menores, e que se somam numa resposta definitiva que no consigo contrariar... acredite-me.

    - Eu acredito em voc, mas voc tem certeza de que no est enganando a si mesmo?

    - Se eu estiver me enganando, ento muita gente tambm est. Inclusive, devo lembrar-lhe, o Presidente dos Estados Unidos.

    - improvvel que eu me esquea disso. Mas suponha... s por suposio... que ele no o tivesse pedido a voc. Voc teria se oferecido como voluntrio?

    - Isso eu posso responder com franqueza: no. Jamais me ocorreria faz-lo. O telefonema do Presidente Mordecai foi o maior susto da minha vida. Mas, quando refleti, percebi que ele tinha toda razo. Voc sabe que eu no sou de falsa modstia. Sou o mais apto para esta tarefa,... quando vier a aprovao final dos mdicos espaciais. Voc deveria saber que eu ainda estou em tima forma.

    Aquilo trouxe o sorriso que ele procurava.

    - s vezes eu fico pensando se no foi voc mesmo quem se insinuou.

    O pensamento de fato ocorrera a ele; mesmo assim, respondeu com franqueza:

    - Eu no o teria feito sem consult-la.

    - E fez bem em no me consultar. Eu no sei o que eu teria dito.

    - Eu ainda posso desistir.

    - Ora, agora voc est falando bobagens, e sabe disso. Se desistisse, me odiaria para o resto da vida, e jamais se perdoaria. O seu sentido do dever muito forte, e talvez seja esse um dos motivos por que me casei com voc.

    Dever! Claro, era essa a palavra-chave, e que profuso continha. Ele tinha um dever para consigo mesmo, com a famlia, a Universidade, o antigo emprego

  • (embora o tivesse deixado num clima nebuloso), o pas... e a raa humana. No era fcil estabelecer as prioridades, que s vezes se chocavam umas com as outras.

    Havia motivos perfeitamente lgicos para ele seguir na misso - e motivos tambm lgicos, segundo j haviam apontado muitos de seus colegas, para no ir. Talvez, no fim das contas, porm, o corao, e no o crebro, tenha feito a escolha. E mesmo ento a emoo o lanara em duas direes opostas.

    A curiosidade, a culpa, a determinao de terminar uma tarefa mal concluda - todos se combinaram para impulsion-lo rumo a Jpiter e ao que quer que l estivesse esperando por ele. De outro lado, o medo - ele era bastante franco para admiti-lo - uniu-se ao amor pela famlia para mant-lo na Terra. Mas em momento algum ele fora tomado por dvidas concretas; a deciso, tomara-a quase instantaneamente, e dobrara todos os argumentos de Caroline com a maior brandura possvel.

    E havia um outro pensamento reconfortante que ele ainda no arriscara compartilhar com a esposa. Embora ele fosse ficar fora dois anos e meio, todos os dias, exceto os cinquenta dias em Jpiter, ele os passaria em hibernao atemporal. Quando regressasse, a diferena de idades entre ele e ela se teria estreitado em mais de dois anos.

    Ele teria sacrificado o presente para que os dois pudessem gozar um futuro mais longo juntos.

    5. Leonov

    Os meses contraram-se em semanas, as semanas minguaram em dias, os dias definharam em horas, e Heywood Floyd estava de novo, de repente, no Cabo, rumo ao espao, pela primeira vez desde aquela viagem Base Clavius e ao monolito de Tycho, h tantos anos.

    Desta vez, porm, no estava s, e no havia sigilo sobre a misso. Alguns assentos frente viajava o Dr. Chandra, j engajado em um dilogo com seu computador-valise, e bastante ausente das circunjacncias.

    Uma das diverses secretas de Floyd. que jamais confidenciara a algum, era identificar semelhanas entre os seres humanos e os animais, semelhanas mais freqentemente lisonjeiras que insultuosas; um passatempo inocente que servia ainda de auxlio til memria.

    Dr. Chandra foi fcil: o adjetivo "passarinhesco" logo saltou-lhe mente; era pequeno, delicado, e os movimentos eram lpidos e precisos. Mas que pssaro? Um pssaro, obviamente, muito inteligente. Gralha? Muito empertigada e rapace. Coruja? No, muito lenta no andar. Talvez pardal casse bem.

    Walter Curnow, o especialista de sistemas cuja rdua tarefa seria a de colocar o Discovery de novo em funcionamento, era questo mais difcil. Era um homem grande, corpulento, com certeza nada passarinhesco, e para quem, normalmente, se poderia encontrar um equivalente nalgum ponto do vasto espectro dos ces. Mas nenhum canino parecia ajustar-se, pois Curnow, claro!, era um urso; no do gnero mal-encarado, perigoso, mas sim do tipo dcil e amistoso, e que vinha a calhar, pois lembrava a Floyd dos colegas russos aos quais em breve iria juntar-se, e que j h dias, engajados nas verificaes finais, estavam em rbita.

  • este o grande momento de minha vida, Floyd disse consigo mesmo. Parto agora numa misso que talvez determine o futuro da raa humana. Sem sentir, porm, qualquer sentimento de exultao, tudo o que ele conseguia pensar, nos ltimos minutos da contagem regressiva, eram as palavras que sussurrara pouco antes de sair de casa: "Adeus, meu querido filhinho; voc vai se lembrar de mim quando eu voltar?" E ainda se sentia magoado com Caroline, por ela no ter acordado o filho, adormecido, para um ltimo beijo; mas ele sabia, apesar disso, que ela agira com sabedoria, e que fora melhor assim.

    Aquele estado de esprito, abalou-o uma gargalhada explosiva e sbita. O Dr. Curnow compartilhava uma piada com os companheiros, bem como uma garrafa enorme que manuseava com a mesma delicadeza devida a uma massa de plutnio quando abaixo do ponto crtico.

    - Ei, Heywood - chamou ele -, esto me dizendo que a Capita Orlov guardou todas as bebidas, portanto esta a sua ltima chance. Chteau Thierry 1995. Quanto aos copos plsticos, peo desculpas.

    Enquanto sorvia a champanha, realmente soberba, Floyd descobriu-se mentalmente acuado s em pensar na gargalhada de Curnow reverberando por toda a travessia do Sistema Solar. Por mais que admirasse a capacidade do engenheiro, Curnow, como companheiro de viagem, talvez se comprovasse um certo incmodo. Pelo menos o Dr. Chandra no apresentaria tais problemas; Floyd mal conseguia imagin-lo sorrindo, muito menos rindo. E, claro, ele recusara a champanha com um arrepio quase imperceptvel. Curnow teve a educao, ou a alegria de no insistir.

    O engenheiro, ao que parecia, estava decidido a ser o corpo e a alma da festa. Produziu, minutos depois, um teclado eletrnico, de duas oitavas, e ofereceu rpidas apresentaes de "Voc conhece John Peel", imitando interpretaes sucessivas de piano, trombone, violino, flauta e rgo, com acompanhamento vocal. Ele tocava bem, e Floyd logo percebeu-se cantando com os demais. Mas tambm no seria nada mau, pensou, que Curnow passasse a maior parte da viagem em silenciosa hibernao.

    A msica feneceu com uma dissonncia sbita, desesperadora, quando os motores foram ligados e a nave lanou-se aos cus. Floyd foi tomado de uma alegria sua conhecida, mas sempre nova: a sensao de poder ilimitado, levando-o para o alto, para longe dos cuidados e dos deveres da Terra. Os homens estavam mais certos do que pensavam quando imaginaram a moradia dos deuses fora do alcance da gravidade. Ele agora voava rumo quele domnio de ausncia de peso; por ora ignoraria o fato de que l fora no estava a liberdade, mas a maior responsabilidade de sua carreira.

    Com o aumento do empuxo, sentiu sobre os ombros o peso dos mundos; mas acolheu-o de bom grado, qual um Atlas ainda no cansado de seu fardo. No tentou pensar; estava, sim, contente em saborear a experincia. Mesmo que estivesse deixando a Terra pela ltima vez, dizendo adeus a todos que sempre amara, no sentia tristeza. O rugido que o circundava era um pe de triunfo, levando embora todas as emoes menores.

    Cessado o rudo, quase entristeceu, mas auspicioso acolheu a respirao mais leve e a sensao sbita de liberdade. A maior parte dos passageiros comeou a soltar os cintos de segurana, preparando-se para gozar os trinta minutos de gravidade zero na rbita de transferncia; os poucos, porm, que obviamente faziam a viagem pela primeira vez permaneceram nos assentos, procurando ansiosos, ao redor, os assistentes da cabine.

  • - Fala a Capita. Estamos agora a uma altitude de trezentos quilmetros, nos aproximando da costa ocidental da frica. Vocs no vo ver muita coisa, pois noite l embaixo... aquele brilho ali adiante Sierra Leone... e h uma forte tempestade tropical desabando sobre o Golfo de Guin. Olhem os relmpagos!... Em quinze minutos teremos o nascente. Enquanto isso vou manobrando a nave para vocs poderem ver bem o cinturo equatorial de satlites. O mais brilhante, praticamente em cima de ns, o Posto de Antenas Atlantic-1, do Intelsat. Depois, a oeste, o Intercosmos-2... aquela estrela mais apagada Jpiter. E embaixo dela, quem olhar ver uma luz intermitente, movendo-se contra o fundo estrelado: a nova estao espacial chinesa. Passaremos a cem quilmetros dela, uma proximidade que no nos permite ver qualquer coisa a olho nu...

    O que pretendiam eles?, pensou Floyd, indolente. Ele examinara os closes daquela estrutura cilndrica achaparrada, com aqueles curiosos bojos de proteo, e no vira motivos para acreditar nos boatos alarmistas de que se tratava de uma fortaleza equipada com laser. Mas j que a Academia de Cincias de Beijing ignorava os insistentes pedidos da Comisso Espacial das Naes Unidas para uma visita de inspeo, os chineses eram os nicos culpados por essa propaganda hostil.

    O Cosmonauta Alexei Leonov no era uma pea de beleza; mas poucas naves espaciais o eram. Um dia talvez a raa humana desenvolvesse uma nova esttica; talvez nascessem geraes de artistas cujos ideais no se baseassem nas formas naturais da Terra, moldadas pelo vento e pela gua. O espao era, por si s, um domnio de uma beleza amide irresistvel, com o qual, infelizmente, as ferramentas do Homem ainda no conviviam.

    Sem contar os quatro tanques de propulso, imensos, que seriam ejetados assim que se alcanasse a rbita de transferncia, o Leonov era surpreendentemente pequeno. Desde a couraa anti-calor at as unidades de propulso havia menos de cinquenta metros; era difcil de se acreditar que veculo to modesto, menor que muitas aeronaves comerciais, fosse capaz de transportar dez homens e mulheres at o meio do Sistema Solar.

    A gravidade zero, porm, que fazia paredes, teto e soalho permutarem-se entre si, reescrevia todas as leis da vida. Havia muito espao a bordo do Leonov mesmo quando estavam acordados ao mesmo tempo, com certeza o caso no momento. E a lotao normal da nave estava no mnimo duplicada, na verdade, com os mais variados homens de imprensa, com engenheiros fazendo ajustes finais e funcionrios ansiosos.

    Assim que a nave atracou, Floyd tentou encontrar a cabine que iria compartilhar - da a um ano, quando acordasse - com Curnow e Chandra. Quando a localizou, por fim, descobriu-a to abarrotada, to comprimida com caixas de equipamentos e provises, cujos rtulos estavam muito bem feitos, que entrar ali seria quase impossvel. Mal-humorado, estava a pensar em como inserir um p porta adentro quando um dos tripulantes, deslizando com habilidade de pega em pega, percebeu o dilema de Floyd e freou, parando.

    - Dr. Floyd, bem-vindo a bordo. Eu sou Max Brailovski, engenheiro-assistente.

    O jovem russo falava aquele ingls lento e cuidadoso de um aluno que tivera muito mais aulas com um

    preceptor eletrnico do que com um professor humano. Ao trocarem um aperto de mos, Floyd identificou aquele rosto, aquele nome, com o conjunto, que j estudara, das biografias dos tripulantes: Maxim Andrei Brailovski, trinta e um anos de idade, nascido em Leningrado, especializando-se em estruturas; passatempos:

  • esgrima, asa delta, xadrez.

    - Estou contente em conhec-lo - disse Floyd. - Como consigo entrar a?

    - No se preocupe - disse Max, alentador. - Tudo isso j no estar mais a quando voc acordar. So... como que vocs dizem... para consumo. Quando precisar de seu quarto, ns j teremos comido tudo o que est a dentro. Prometo. - E acariciou o estmago.

    - timo; mas, enquanto isso, onde ponho minhas coisas? - Floyd apontou para as trs malas pequenas, massa total cinquenta quilos, contendo, ele assim esperava, tudo o que precisava para os prximos dois bilhes de quilmetros. No fora tarefa fcil guiar aquele volume sem peso, mas nada inerte, atravs dos corredores da nave com apenas umas poucas colises.

    Max apanhou duas das malas, deslizou suave pelo tringulo formado por trs longarinas entrecruzadas, e mergulhou num pequeno alapo, desafiando, ao que parecia, no processo, a Primeira Lei de Newton. Floyd conseguiu, acompanhando-o, uns hematomas a mais; depois de um certo tempo, considervel - o Leonov parecia muito maior por dentro do que por fora -, chegaram a uma porta rotulada CAPITO, tanto em cirlico como em romano. Embora lesse russo muito melhor do que o falasse, Floyd apreciou o gesto; j reparara que todos os avisos na nave eram bilngues

    Com a batida de Max, uma luz verde piscou, acendendo, e Floyd deslizou, entrando, com toda a graciosidade que conseguiu. Embora j tivesse conversado com a Capit Orlov diversas vezes, jamais haviam sido apresentados um ao outro. Teve, portanto, duas surpresas.

    Impossvel julgar o tamanho real de uma pessoa atravs do fone visual; a cmera, de algum modo, convertia todos mesma escala. A Capita Orlov, de p - da melhor maneira que algum consegue ficar de p na gravidade zero -, mal chegava aos ombros de Floyd. O fone visual tambm no conseguiu de modo algum transmitir a qualidade penetrante daqueles olhos azuis, ofuscantes, a caracterstica mais marcante daquele rosto que, no momento, quanto ao aspecto beleza, no poderia ser julgado com justia.

    - Ol, Tanya - falou Floyd. - Que bom conhec-la enfim! Mas os seus cabelos... que pena!

    Os dois apertaram-se as duas mos, como velhos amigos.

    - E um prazer t-lo a bordo, Heywood! - respondeu a capit, num ingls, ao contrrio do de Brailovski, bem fluente, embora com forte sotaque. - , eu senti muito perd-los; mas cabelos so um incmodo em misses longas, e eu quero me afastar o mximo possvel dos barbeiros locais. E peo desculpas por sua cabine; como Max j deve ter explicado, ns descobrimos subitamente que precisvamos de mais uns dez metros cbicos para armazenagem. Vasili e eu no vamos passar muito tempo aqui nas prximas horas; por favor sinta-se vontade, use os nossos aposentos.

    - Obrigado. E quanto a Curnow e Chandra?

    - Tomei providncias semelhantes junto tripulao. Pode parecer que estamos tratando vocs como bagagem...

    - Desnecessria durante a viagem.

    - Como?

    - um rtulo que costumavam colocar na bagagem, nos velhos dias das viagens ocenicas.

  • Tanya sorriu:

    - Pois parece isso mesmo. Mas vocs sero necessrios sem dvida, no fim da viagem. Ns j estamos planejando sua festa de renascimento.

    - Isso me parece religioso demais. Chame-a... no, ressurreio seria muito pior!... chame-a festa do despertar. Mas estou vendo que voc est muito ocupada; vou deixar minhas coisas aqui e continuar minha excurso.

    - Max vai lhe mostrar as instalaes... leve o Dr. Floyd ao encontro de Vasili, est bem? Ele est na unidade de propulso.

    Ao deixarem, deslizando, os aposentos da capit, Floyd, mentalmente, atribuiu boas notas comisso de seleo da tripulao. Se Tanya Orlov j era impressionante no papel, em carne e osso quase intimidava, apesar do charme. Fico a pensar como ser ela, Floyd perguntou a si mesmo, quando perde a calma. Seria fogo? Seria gelo? No geral, melhor no querer descobrir.

    Floyd ia, com rapidez, conquistando suas pernas espaciais; quando encontraram Vasili Orlov, j manobrava quase com a mesma confiana que seu guia. O cientista-chefe saudou Floyd com o mesmo calor com que o fizera a esposa.

    - Bem-vindo a bordo, Heywood. Como voc est se sentindo?

    - Bem, s que estou morrendo aos poucos de fome.

    Por um instante, Orlov pareceu intrigado, mas o rosto, em seguida, fendeu-se num sorriso largo.

    - Ah, eu havia me esquecido. Bem, no ser por muito tempo. Daqui a dez meses, voc vai poder comer o quanto quiser.

    Com uma semana de antecedncia, quem fosse hibernar se submetia a uma dieta de baixos resduos; nas ltimas vinte e quatro horas, s tomavam lquidos. Floyd comeava a imaginar o quanto da leveza que sentia na cabea era devido fome, champanha de Curnow e gravidade zero.

    Para concentrar a mente, esquadrinhou a massa multicor do encanamento circunjacente.

    - Ento esta a famosa Propulso Sakharov. a primeira vez que vejo uma unidade completa.

    - E s a quarta unidade j construda.

    - Espero que funcione.

    - melhor que funcione mesmo. Seno, a Cmara de Gorki vai mais uma vez mudar o nome da Praa Sakharov.

    Sinal dos tempos um russo pilheriar, mesmo que indiretamente, sobre o tratamento que o pas concedera ao seu maior cientista. Floyd mais uma vez lembrou-se do eloquente discurso de Sakharov perante a Academia quando foi, to tardiamente, declarado Heri da Unio Sovitica. A priso e o exlio, ele dissera aos ouvintes, eram esplndidos auxlios criatividade; no foram poucas as obras-primas nascidas entre paredes de celas, fora do alcance das distraes mundanas. Alis, a maior conquista individual do intelecto humano, os prprios Principia, foi um produto do exlio auto-imposto por Newton para fugir de Londres, tomada de epidemias.

    A comparao no era imodesta; daqueles anos em Gorki haviam surgido novos vislumbres sobre a estrutura da matria e a origem do Universo, e tambm sobre os conceitos de controle de plasma que conduziram energia termonuclear prtica.

  • A propulso em si, embora o resultado mais conhecido e mais divulgado daquele trabalho, no passou de um subproduto de uma surpreendente exploso intelectual. A tragdia era que tais avanos haviam sido detonados pela injustia; quem sabe um dia a humanidade no descobriria meios mais civilizados de gerir suas questes?

    Quando deixaram a cmara, Floyd havia aprendido mais sobre a Propulso Sakharov do que desejava saber, ou do que esperava lembrar-se. Quanto aos princpios bsicos, estava bem familiarizado com eles - o uso de uma reao termonuclear, sob a forma de impulsos, para aquecer e expelir, por assim dizer, qualquer material propelente. Os melhores resultados foram obtidos com o hidrognio puro, como fluido de trabalho, embora fosse excessivamente volumoso e difcil de ser armazenado por longos perodos. O metano e a amnia eram alternativas aceitveis; at mesmo a gua poderia ser usada, embora com eficincia consideravelmente reduzida.

    O Leonov dava uma soluo intermediria; os enormes tanques de hidrognio lquido que supriam o mpeto inicial seriam descartados quando a nave atingisse a velocidade necessria para chegar a Jpiter. No destino, seria usada a amnia para as manobras de freamento e abordagem, e para o eventual regresso Terra.

    Era esta a teoria, verificada e reverificada em testes infindveis e em simulaes computadorizadas. Mas, como o malfadado Discovery mostrara to bem, todos os planos humanos estavam sujeitos impiedosa reviso da Natureza, ou do Destino, ou como quer que se preferissem chamar as foras ocultas do Universo.

    - Ento, ei-lo finalmente, Dr. Floyd - disse uma voz feminina, autoritria, interrompendo a explicao entusiasmada de Vasili sobre a alimentao magneto-hidrodinmica. - Por que o senhor no se apresentou a mim?

    Floyd, devagar, girou sobre seu eixo, contorcendo-se suavemente com o auxlio de uma das mos. Viu uma figura macia, maternal, trajando um curioso uniforme adornado com dezenas de bolsos e algibeiras; o efeito no era dessemelhante ao de um soldado cossaco colgado com cartucheiras.

    - Prazer em rev-la, Doutora. Ainda estou sondando... espero que a senhora tenha recebido meu relatrio mdico de Houston.

    - Ora, naqueles veterinrios do Teague eu no confiaria nem para identificar uma febre aftosa!

    Floyd conhecia muito bem o respeito mtuo entre Katerina Rudenko e o Centro Mdico Olin Teague, mesmo que o sorriso largo no lhe tivesse descontado as palavras. Ela viu nele o olhar de franca curiosidade, e com orgulho dedilhou a malha ao redor da vasta cintura.

    - A sacolinha preta convencional no muito prtica na gravidade zero; ela deixa escapar os objetos, que saem flutuando, e, quando voc precisa deles, no esto no lugar. Eu mesma desenhei isto. uma minicirurgia completa. Com isso posso extrair um apndice, ou fazer um parto.

    - Eu espero que esse ltimo problema no acontea por aqui.

    - Ora, um bom mdico tem que estar preparado para tudo.

    Que contraste, Floyd pensou, entre a Capita Orlov e a Dra. ... ou seria melhor cham-la pela patente correta, Mdica-Comandante?... Rudenko. A capit tinha a graa e a intensidade de uma primeira bailarina; a doutora bem poderia ser o prottipo da Me Rssia - constituio robusta, rosto campons, achatado, carente apenas de um xale para completar o quadro. No se iluda com isso, Floyd disse

  • consigo mesmo. Foi essa mulher que salvou no mnimo umas dez vidas durante o acidente de atracao do Komarov; e que, nas horas de folga, dava um jeito de editar os Anais da Medicina Espacial. Considere-se com muita sorte por t-la a bordo.

    - Bem, Dr. Floyd, mais tarde o senhor vai ter muito tempo para sondar a nossa navezinha. Meus colegas, por educao, no querem diz-lo, mas eles tm o que fazer e o senhor os est atrapalhando. Eu gostaria de deix-los vontade e tranquilos, o mais rpido possvel, para termos menos com que nos preocupar.

    - o que eu receava, mas compreendo bem o seu ponto de vista. Estou s ordens, assim que a senhora estiver preparada.

    - Eu estou sempre preparada. Venha comigo... por favor.

    O hospital da nave tinha a justa dimenso para abrigar uma mesa de operaes, duas bicicletas ergomtricas, alguns armrios com equipamentos, e um aparelho de raios X. Submetendo Floyd a um exame rpido, mas completo, a Dra. Rudenko, inesperadamente, perguntou:

    - O que aquele cilindrozinho dourado que o Dr. Chandra tem no cordo do pescoo... algum apetrecho para fins de comunicao? Ele no quis tir-lo; alis, para falar a verdade, ele muito tmido... no quis tirar nada.

    Floyd no pde conter o sorriso; era fcil imaginar as reaes daquele modesto indiano a essa senhora bastante avassaladora.

    - um linga.

    - Um qu?

    - A senhora a mdica, deveria reconhec-lo: o smbolo da fertilidade masculina.

    - Claro... como sou boba! Ele um hindu praticante? um pouco tarde para nos pedir que arrumemos uma dieta vegetariana rigorosa.

    - No se preocupe. No faramos isso com a senhora sem a justa antecedncia. Embora ele no toque em lcool, Chandra no fantico por nada, exceto por computadores. Certa vez ele me disse que o pai era sacerdote em Benares, e deu a ele o tal linga... j faz geraes que est com a famlia.

    E Floyd surpreendeu-se, pois a Dra. Rudenko no teve a reao negativa que ele esperava; a expresso tornou-se, de maneira nada caracterstica, nostlgica.

    - Eu compreendo esse sentimento; minha av me deu um belssimo cone... do sculo XVI. Eu queria traz-lo... mas ele pesa cinco quilos.

    A doutora, retomando abruptamente o aspecto profissional, aplicou em Floyd uma injeo indolor, subcutnea, com uma pistola a gs, e disse a ele que voltasse assim que se sentisse sonolento. O que, assegurou ela, aconteceria em menos de duas horas.

    - Enquanto isso, relaxe completamente - ordenou. - H uma escotilha de observao nesta plataforma, a Estao D-6. Por que o senhor no vai at l?

    A idia pareceu boa, e Floyd saiu, deslizando com tal docilidade que seus amigos se teriam surpreendido. A Dra. Rudenko olhou o relgio, ditou um apontamento para a secretria automtica, e nela ajustou o alarme para trinta minutos depois.

    Ao chegar ao mirante D-6, Floyd encontrou Chandra e Curnow. Os dois fitaram-no sem qualquer demonstrao de reconhecimento, e viraram-se de novo para o medonho espetculo exposto l fora. Ocorreu a Floyd, e ele congratulou-se pela

  • brilhante observao, que Chandra no poderia estar gostando daquela vista, pois tinha os olhos fechados, apertados.

    Ali fora estava um planeta inteiramente desconhecido, reluzindo em azuis gloriosos e brancos ofuscantes. Que estranho, disse Floyd consigo mesmo. O que aconteceu Terra? Ora, claro, no foi toa que ele no a reconheceu: estava de cabea para baixo! Que desastre... por instantes, ele chorou por aquelas infelizes criaturas, caindo no espao...

    Ele mal notou quando dois membros da tripulao retiraram a forma irresistente de Chandra. Quando eles voltaram para Curnow, os prprios olhos de Floyd estavam cerrados, mas ele ainda estava respirando. Quando vieram busc-lo, at sua respirao tinha cessado.

  • II. TsienII. Tsien

    6. O Despertar

    E nos disseram que no iramos sonhar, pensou Heywood Floyd, mais surpreso do que aborrecido. O claro rseo, glorioso, que o circundava era muito reconfortante; lembrava-o dos churrascos e da lenha estalando nas lareiras do Natal. Mas no havia calor; ele sentia, na verdade, um frio inconfundvel, porm nada desconfortvel.

    Vozes murmuravam, brandas demais para que compreendesse o que diziam. Elevando-se agora, mesmo assim no conseguiu identific-las.

    - Claro - disse ele, em sbito espanto -, eu no posso estar sonhando em russo.

    - No, Heywood - respondeu uma voz feminina. - Voc no est sonhando. hora de se levantar.

    O adorvel claro desvaneceu; ele abriu os olhos e notou a luz enevoada de uma lanterna desviar-se de seu rosto. Estava deitado num div, preso a ele por uma faixa elstica; ao redor, havia figuras de p, inidentificveis de to fora de foco.

    Dedos suaves cerraram-lhe as plpebras e massagearam-lhe a testa.

    - No se mexa. Respire fundo... mais uma vez... assim... como se sente agora?

    - No sei... estranho... com a cabea leve... e faminto.

    - Bom sinal. Voc sabe onde est? Agora pode abrir os olhos.

    As figuras entraram em foco; primeiro a Dra. Rudenko, depois a Capita Orlov. Mas algo acontecera a Tanya desde que a vira, h apenas uma hora atrs. Quando identificou a causa, Floyd quase sofreu um choque fsico.

    - Os seus cabelos cresceram de novo!

    - Espero que voc ache que ficou melhor assim. J eu no posso dizer o mesmo de sua barba.

    Floyd levou a mo ao rosto, e descobriu que, para planejar cada estgio do movimento, era forado a um esforo consciente. O queixo estava coberto de pelos espetados, rentes... barba de dois ou trs dias. Os cabelos, durante a hibernao, cresciam a apenas um dcimo da taxa normal.

    - Quer dizer que eu consegui - disse ele. - Chegamos a Jpiter!

    Sria, Tanya olhou para ele, fitou em seguida a doutora, que lhe fez um aceno de cabea, quase imperceptvel.

    - No, Heywood - respondeu ela. - Ainda estamos a um ms de distncia. No se sobressalte. Est tudo em ordem com a nave, e est tudo correndo normalmente. que os seus amigos em Washington nos pediram para acord-lo antes. Aconteceu

  • alguma coisa muito inesperada. Estamos numa corrida rumo ao Discovery, e eu receio que vamos perder.

    7. Tsien

    Quando a voz de Heywood Floyd saiu no alto-falante da mesa de comunicao, os dois golfinhos interromperam imediatamente a volta da piscina e nadaram at a borda, onde pousaram a cabea e, concentrados, olharam estatelados a fonte do som.

    Quer dizer que eles reconhecem Heywood, pensou Caroline, com uma ponta de amargura. Pois Christopher, engatinhando em volta do seu cercadinho, nem parou de brincar com os controles coloridos do livro de desenhos quando a voz do pai emergia em alto e bom som atravessando meio bilho de quilmetros de espao.

    - ... Meu bem, sei que voc no vai se surpreender em ouvir minha voz um ms antes do programado; que voc j deve saber, h semanas, que temos companhia por aqui... Ainda acho difcil de acreditar; chega, por um lado, a nem fazer sentido. impossvel que eles tenham combustvel suficiente para regressar em segurana Terra; nem sabemos de que maneira vo fazer a abordagem... Em momento algum ns os vimos, claro. Mesmo no ponto mais prximo, o Tsien estava a mais de cinquenta milhes de quilmetros de distncia. Tiveram tempo suficiente para, se quisessem, responder aos nossos sinais, mas nos ignoraram inteiramente. Agora devem estar muito ocupados para travar qualquer bate-papo amistoso. Em poucas horas vo chegar atmosfera de Jpiter, e ento veremos se o sistema de aerofreamento deles funciona. Se funcionar, ser bom para o nosso moral, mas, se falhar... bem, melhor nem falar nisso... Os russos, levando em conta a situao, esto suportando muito bem a coisa. Esto, claro, zangados e decepcionados, mas tenho escutado expresses de franca admirao. Foi um truque brilhante, com certeza, construir aquela nave vista de todos e deixar que todos pensassem que fosse uma estao espacial at encaixarem os propulsores... Bem, no h nada que possamos fazer, a no ser observar. E, distncia que estamos, nossa viso no ser muito melhor do que os melhores telescpios da. Impossvel no desejar que tenham sorte, embora, claro, eu espere que deixem o Discovery em paz. propriedade nossa, e aposto que o Departamento de Estado, a cada hora que passa, no para de lembr-los disso... Os ventos esto desfavorveis; se os nossos amigos chineses no nos tivessem apontado a arma, voc s teria notcias minhas daqui a um ms. Mas agora que a Dra. Rudenko me acordou, vou falar com voc a cada dois dias... Depois do choque inicial, estou me adaptando bem, conhecendo a nave, a tripulao, conquistando minhas pernas espaciais. E aprimorando o russo bem ruim que falo, embora no tenha muita oportunidade de us-lo; todos insistem em falar ingls. Ns norte-americanos somos mesmo uns linguistas horrveis! s vezes sinto vergonha do nosso chauvinismo, ou de nossa preguia... O nvel do ingls de bordo varia do perfeito absoluto - o Engenheiro-Chefe, Sacha Kovalev poderia ganhar a vida como locutor da BBC - quela variedade do tipo "falando bem depressa os erros no importam". O nico que no fala fluentemente Zenia Martchenko, que substituiu Irina Yakunin ltima hora. Ficou contente, alis, em saber que Irina se recuperou. Deve ter sido uma grande decepo. Ser que ela ainda vai querer continuar voando com aquelas asas? ... E, por falar em acidentes, bvio que o de Zenia deve ter sido tambm muito grave. Os cirurgies plsticos fizeram um trabalho

  • notvel, mas pode-se perceber que ela j esteve bastante queimada. Ela a caula da tripulao, e todos a tratam, eu ia dizer com pena, mas no. Pena muito condescendente; digamos, com uma generosidade especial... Talvez voc esteja pensando como estou me dando com a Capit Tanya. Bem, gosto muito dela, mas se a irritar vou me arrepender. No resta qualquer dvida sobre quem comanda esta nave... E quanto Mdica-Comandante Rudenko, voc a conheceu h dois anos, na Conveno Aeroespacial de Honolulu, e tenho certeza de que voc jamais vai se esquecer daquela ltima festa, e vai compreender por que a chamamos de Catarina a Grande; por trs, claro... Mas chega de brincadeiras. Se eu ultrapassar meu tempo, no vou gostar nada da sobretaxa. E, alis, essas chamadas pessoais, supe-se, so absolutamente particulares. Mas como h muitos elos na cadeia de comunicaes, no se surpreenda se receber mensagens de, quer dizer, de outra rota... Fico esperando notcias suas; diga s meninas que converso com elas depois. Saudades de vocs todos. Muitas saudades de voc e Chris. E quando eu voltar, prometo nunca mais viajar de novo.

    Houve uma pausa curta, sibilada, e, depois, uma voz manifestamente sinttica disse: "Isto encerra a Transmisso Quatrocentos e Trinta e Dois Barra Sete da Espaonave Leonov". Quando Caroline Floyd desligou o alto-falante, os dois golfinhos deslizaram por baixo da superfcie do lago, saindo para o Pacfico, quase sem deixar na gua uma nica ondulao.

    Ao perceber que os amigos se haviam ido, Christopher comeou a chorar. A me apanhou-o no colo e tentou consol-lo; mas muito tempo se passou antes de lograr xito.

    8. O Trnsito de Jpiter

    A imagem de Jpiter, com aquelas cintas de nuvem branca, aquelas tiras salpicadas de rosa-salmo, e com a Grande Mancha Vermelha a escancarar aquele olho funesto, imobilizava-se na tela de projeo do convs de vo. Estava cheia, em trs quartos, mas ningum olhava o disco iluminado; todos os olhos focalizavam o crescente de escurido na borda. Ali, na face escura do planeta, a nave chinesa estava prestes a encontrar seu momento de verdade.

    Isto absurdo, pensou Floyd. impossvel ver-se qualquer coisa a quarenta milhes de quilmetros. E, no importa, o rdio nos dir tudo o que quisermos saber.

    O Tsien cerrara, h duas horas atrs, os circuitos de voz, de vdeo e de dados, quando as antenas de longo alcance recolheram-se sombra protetora do escudo de calor. Somente o radiofarol, multidirecional, ainda transmitia, assinalando com preciso a posio da nave chinesa medida que ela mergulhava rumo quele oceano de nuvens de dimenses continentais. O bip... bip... bip agudo era o nico som na sala de controle do Leonov. Jpiter ficava dois minutos mais prximo a cada batida dessas, cuja fonte, a essa altura, talvez j fosse uma nuvem de gs incandescente, dispersando-se na estratosfera joviana.

    O sinal se apagava, envolto em rudo. Os bips distorciam-se; alguns desapareciam completamente, e em seguida a sequncia retomava. Um envoltrio de plasma crescia em torno do Tsien, e em breve cortaria todas as comunicaes at que a nave reemergisse. Se reemergisse.

    - Posmotri! - exclamou Max. - L est ele!

  • A princpio Floyd no viu nada. Depois, bem ao lado da ponta do disco iluminado, descortinou uma estrela pequenina, reluzindo onde seria impossvel existir qualquer estrela, contra a face escura de Jpiter.

    Parecia quase imvel, embora Floyd soubesse que deveria estar movendo-se a cem quilmetros por segundo. Em brilho, crescia lentamente. E em seguida j no era um ponto sem dimenses; alongava-se. Um cometa, feito pelo homem, riscava o cu noturno de Jpiter, deixando uma cauda de incandescncia de milhares de quilmetros de comprimento.

    Um ltimo bip, bastante distorcido, e curiosamente discernido, ressoou do radiofarol de rastreamento, e em seguida apenas o sibilo sem significado da prpria radiao de Jpiter, uma daquelas muitas vozes csmicas que nada tinha a ver com o Homem ou com suas obras.

    O Tsien estava inaudvel, mas j no mais invisvel. Pois todos viam que aquela fagulha pequenina, alongada, afastava-se em muito da face ensolarada do planeta e em breve desapareceria no lado noturno. quela altura, se tudo corresse dentro dos planos, Jpiter iria capturar a nave, neutralizando-lhe o excesso de velocidade. Quando emergisse por trs do mundo gigante, seria mais um satlite joviano.

    A fagulha bruxuleou, apagando-se. O Tsien contornava a curva do planeta e dirigia-se para o lado noturno. Nada haveria para ver, nem ouvir, at que emergisse da sombra; se tudo corresse bem, em menos de uma hora. Seria uma hora muito longa para os chineses.

    Para o Cientista-Chefe Vasili Orlov e o engenheiro de comunicaes Sacha Kovalev, a hora passou com muita rapidez. Muito havia para aprender observando aquela estrelinha: as horas de aparecimento e desaparecimento, e, sobretudo, o desvio Doppler do radio-farol daria informao vital sobre a nova rbita do Tsien. Os computadores do Leonov j digeriam os nmeros, j cuspiam a projeo das horas de re-emergncia, baseados em vrias suposies sobre as taxas de desacelerao na atmosfera joviana.

    Vasili desligou o visor do computador, girou na cadeira, afrouxou o cinto de segurana, e dirigiu-se platia, que, paciente, esperava.

    - O novo reaparecimento ser em quarenta e dois minutos. Por que vocs, espectadores, no vo dar um passeio, para que ns possamos nos concentrar em deixar tudo isso em ordem? Eu os vejo em trinta e cinco minutos. X! Nuukhodi!

    Os corpos indesejveis deixaram, relutantes, a ponte; mas, para dissabor de Vasili, regressaram todos em pouco mais de trinta minutos. Ele ainda os repreendia, por no terem acreditado em seus clculos, quando o conhecido bip... bip... bip do radiofarol de rastreamento do Tsien explodiu nos alto-falantes.

    Vasili pareceu perplexo, mortificado, mas logo aderiu roda espontnea de aplausos; Floyd no viu quem bateu palmas primeiro. Mesmo que fossem rivais, eram todos, no conjunto, astronautas, to distantes de casa quanto qualquer homem j viajara: os "Embaixadores da Humanidade", no dizer nobre do Tratado Espacial das Naes Unidas. Mesmo que no desejassem o xito dos chineses, tampouco queriam que se deparassem com o desastre.

    Havia tambm um forte elemento de interesse prprio, Floyd no pde deixar de pensar. Agora as chances a favor do Leonov haviam aumentado significativamente; o Tsien demonstrara que a manobra de aero-freamento era na verdade possvel. Os dados sobre Jpiter estavam corretos; a atmosfera ali no continha surpresas inesperadas, talvez fatais.

    - Bem - disse Tanya -, acho que devemos lhes mandar uma mensagem de

  • congratulaes. Mas, mesmo que a mandssemos, eles no tomariam conhecimento dela.

    Alguns colegas ainda pilheriavam com Vasili, que encarava os resultados do computador em descrdito absoluto.

    - Eu no entendo - ele exclamava. - Eles ainda deveriam estar atrs de Jpiter! Sacha, me faa uma leitura de velocidade do radiofarol!

    Outro dilogo silencioso passou-se com o computador; Vasili, em seguida, assoviou longo e baixinho.

    - Alguma coisa est errada. Eles esto em rbita de captura, est certo; mas essa rbita no vai permitir a eles a abordagem do Discovery. A rbita em que esto agora ir lev-los para alm de Io. Terei dados mais precisos depois de rastre-los por mais uns cinco minutos.

    - Seja como for - disse Tanya -, eles devem estar numa rbita segura. As correes, podem faz-las depois.

    - Talvez. Mas isso poderia custar dias, mesmo que tivessem o combustvel. O que eu duvido.

    - Quer dizer que ainda poderemos derrot-los!

    - No seja to otimista. Ainda estamos a trs semanas de Jpiter. Eles podem girar doze rbitas antes de chegarmos l, e escolher a mais favorvel para a abordagem.

    - Supondo-se, mais uma vez, que eles tenham suficiente propulsor.

    - Claro. E quanto a isso, podemos no mximo fazer adivinhaes bem informadas.

    Esta conversa se deu num russo to rpido e agitado que Floyd no acompanhou. Quando Tanya apiedou-se dele e explicou que o Tsien exagerara, e se dirigia para os satlites externos, a primeira reao foi:

    - Ento eles talvez estejam em srios apuros. O que voc far se eles pedirem ajuda?

    - Voc deve estar brincando. Voc consegue imagin-los pedindo ajuda? Eles so muito orgulhosos. De um jeito ou de outro, seria impossvel; no podemos mudar o perfil de nossa misso, como voc sabe muito bem. Mesmo que tivssemos combustvel...

    - Voc tem razo, claro; mas talvez seja difcil explicar isso aos noventa e nove por cento da raa humana que no entendem de mecnica orbital. E devamos comear a pensar em algumas das implicaes polticas; ficaria mal, para todos ns, se no pudermos ajudar. Vasili, me d a ltima rbita deles, assim que a calcular. Vou para a minha cabine fazer uns deveres de casa.

    A cabine de Floyd, ou melhor, um tero de cabine, ainda estava em parte repleta de embalagens, muitas empilhadas nos leitos a serem ocupados por Chandra e Curnow quando emergissem da longa inatividade. Ele dera um jeito de abrir um pequeno espao de trabalho, para fins pessoais, e recebera a promessa de contar com o luxo de dois metros cbicos adicionais, assim que algum sobrasse para ajudar na retirada da moblia.

    Floyd abriu sua pequena mesa de comunicaes, apertou as teclas de decriptografia, solicitando as informaes sobre o Tsien que lhe haviam sido transmitidas de Washington. E ps-se a pensar se seus anfitries teriam conseguido decodific-las; a cifra se baseava no produto de nmeros primos de duzentos

  • dgitos, cuja qualidade a Agncia de Segurana Nacional garantia alegando que nem mesmo o computador mais rpido conseguiria descobri-la antes do Grande Esfarelamento do fim do Universo. Uma alegao que jamais poderia ser provada, ou desmentida.

    Fitou mais uma vez, concentrado, as excelentes fotografias da nave chinesa, tiradas quando ainda exibia suas cores reais, e pouco antes de deixar a rbita da Terra. Havia fotos posteriores - no to ntidas, pois na ocasio a nave j se distanciara das cmeras indiscretas - do estgio final, quando zunia rumo a Jpiter. Eram estas as que mais lhe interessavam; mais teis ainda eram os desenhos em corte e as estimativas de desempenho.

    Admitidas as hipteses mais otimistas, era difcil prognosticar o que os chineses contavam fazer. J deviam ter queimado no mnimo noventa por cento do propelente naquela investida louca atravs do Sistema Solar. A menos que se tratasse literalmente de uma misso suicida - coisa perfeitamente possvel -, somente um plano que compreendesse hibernao e posterior salvamento faria algum sentido. E o Servio de Inteligncia no acreditava que a tecnologia chinesa de hibernao estivesse to avanada a ponto de viabilizar a opo.

    Mas o Servio de Inteligncia costumava errar com frequncia, e co