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 CONTROLE DO APETITE: MECANISMOS METABÓLICOS E COGNITIVOS 211 Controle do apetite: mecanismos metabólicos e cognitivos  Appetite control: metabolic and cognitive mec hanisms Durval Damiani¹, Daniel Damiani², Hamilton Cabral de Menezes Filho³ 1  Professor Livre-Docente, chefe da Unidade d e Endocrinologia Pediátrica do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. 2  Biomédico, Professor de Neurociências da Faculdade Santa Marina e Interno do Curso de Medicina da Faculdade Nove de Julho. 3  Mestre, assistente da Unidade d e Endocrinologia Pediátrica do Instituto da Criança do Hospital d as Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. n  ARTIGO DE REVISÃO Resumo Os mecanismos de controle do apetite têm sido estudados focando principalmente as funções hipotalâmicas, regulando o aspecto metabólico da alimentação. A principal preocupação do organismo é manter um equilíbrio energético e, dentro dessa proposta, genes foram selecionados que condicio- navam um armazenamento energético, para fazer frente às situações de carência alimentar. Poucos estudos se dedicaram, nos últimos 10 anos, às inte- grações do hipotálamo com outros centros supe- riores. Quando os períodos de fome e de carência alimentar cessam em um estilo de vida moderna, este organismo se vê frente a sistemas poupadores, que passam a propiciar um grande armazenamento energético, sob a forma de depósitos de gordura, e explode uma verdadeira “pandemia” de obesidade. Os sistemas de controle do apetite estão muito mais  voltados para o armazenamento energético do que para a perda de peso. odos sabemos das dicul- dades de perder peso e como o “cérebro cognitivo”  vence o “cérebr o metabólico”. O desejo de comer, os estímulos olfatórios, visuais, de lembrança e de recompensa passam por centros superiores, em regiões de córtex órbito-frontal, núcleo acum- bens, pálido ventral, dentre numerosas outras estruturas. Um pouco desta integração será discu- tida nesta revisão. Descritores : Apetite. Leptina. Hipotálamo. Neuropeptídeo Y. Grelina. Obesidade. Abstract Te mechanisms that control the appetite have been studied mainly focusing on the hypothalamic func- tions, which regulates the metabolic aspects of feeding. Te main goal of the organism is to keep the energetic balance and, on this purpose, genes have been selected to allow storage of fuel to face food deprivation. In the last 10 years, few studies have focused the integration between the hypothalamus and cortical centers. In a modern era where food deprivation does not occur unless for economic reasons, the organism with its thrifty genes and phenotypes, accumulate energy in the  form of fat and an explosion of obesity ensues. W e all know the diculties to lose weight and ho w the “cogni- tive brain” surpasses the “metabolic brain”. Te desire to eat, the olfactory, visual, and reward stimulus travel through superior regions of the central nervous system, such as accumbens, ventral pallidus nuclei, among others. A little bit of this integration will be discussed in this review. Keywords:  Appetite. Leptin. Hypothalamus.  Neuropeptide Y . Ghrelin. Obes ity. Introdução O ser humano sempre lutou pela sobrevivência, procurando garantir para si próprio e para sua família o sustento necessário para se manter vivo. A manutenção do equilíbrio energético é um deter- minante maior da sobrevida de organismos supe- riores, incluindo-se o homem. Nesse contexto de

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  • Controle do apetite: meCanismos metabliCos e Cognitivos

    211

    Controle do apetite: mecanismos metablicos e cognitivos

    Appetite control: metabolic and cognitive mechanisms

    Durval Damiani, Daniel Damiani, Hamilton Cabral de Menezes Filho

    1 Professor Livre-Docente, chefe da Unidade de Endocrinologia Peditrica do Instituto da Criana do Hospital das Clnicas da Universidade de So Paulo.

    2 Biomdico, Professor de Neurocincias da Faculdade Santa Marina e Interno do Curso de Medicina daFaculdade Nove de Julho.

    3 Mestre, assistente da Unidade de Endocrinologia Peditrica do Instituto da Criana do Hospital das Clnicas da Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo.

    n ARTIGO DE REVISO

    Resumo

    Os mecanismos de controle do apetite tm sido estudados focando principalmente as funes hipotalmicas, regulando o aspecto metablico da alimentao. A principal preocupao do organismo manter um equilbrio energtico e, dentro dessa proposta, genes foram selecionados que condicio-navam um armazenamento energtico, para fazer frente s situaes de carncia alimentar. Poucos estudos se dedicaram, nos ltimos 10 anos, s inte-graes do hipotlamo com outros centros supe-riores. Quando os perodos de fome e de carncia alimentar cessam em um estilo de vida moderna, este organismo se v frente a sistemas poupadores, que passam a propiciar um grande armazenamento energtico, sob a forma de depsitos de gordura, e explode uma verdadeira pandemia de obesidade. Os sistemas de controle do apetite esto muito mais voltados para o armazenamento energtico do que para a perda de peso. Todos sabemos das dificul-dades de perder peso e como o crebro cognitivo vence o crebro metablico. O desejo de comer, os estmulos olfatrios, visuais, de lembrana e de recompensa passam por centros superiores, em regies de crtex rbito-frontal, ncleo acum-bens, plido ventral, dentre numerosas outras estruturas. Um pouco desta integrao ser discu-tida nesta reviso.

    Descritores: Apetite. Leptina. Hipotlamo. Neuropeptdeo Y. Grelina. Obesidade.

    Abstract

    The mechanisms that control the appetite have been studied mainly focusing on the hypothalamic func-tions, which regulates the metabolic aspects of feeding. The main goal of the organism is to keep the energetic balance and, on this purpose, genes have been selected to allow storage of fuel to face food deprivation. In the last 10 years, few studies have focused the integration between the hypothalamus and cortical centers. In a modern era where food deprivation does not occur unless for economic reasons, the organism with its thrifty genes and phenotypes, accumulate energy in the form of fat and an explosion of obesity ensues. We all know the difficulties to lose weight and how the cogni-tive brain surpasses the metabolic brain. The desire to eat, the olfactory, visual, and reward stimulus travel through superior regions of the central nervous system, such as accumbens, ventral pallidus nuclei, among others. A little bit of this integration will be discussed in this review.

    Keywords: Appetite. Leptin. Hypothalamus. Neuropeptide Y. Ghrelin. Obesity.

    Introduo

    O ser humano sempre lutou pela sobrevivncia, procurando garantir para si prprio e para sua famlia o sustento necessrio para se manter vivo. A manuteno do equilbrio energtico um deter-minante maior da sobrevida de organismos supe-riores, incluindo-se o homem. Nesse contexto de

  • pediatria (so paUlo) 2010;32(3):211-22

    212 equilbrio energtico, contam-se as calorias inge-ridas versus as calorias gastas nos vrios processos metablicos necessrios homeostase.

    Nosso homem primitivo, a cada dia, lutava para conseguir alimento e, uma vez que no dispunha de utenslios de armazenamento, guardava os excessos alimentares eventuais em seu prprio corpo, na forma de gordura, para mobiliz-los em poca de falta de alimento. Ao lado disso, os alimentos de que dispunha exigiam um grande esforo digestivo, j que os ingeria crus (carnes de animais caados, razes, frutas, etc). Isto criou um sistema digestivo adaptado a grandes digestes e, como vantagem de sobrevivncia, os que conseguiam guardar no seu corpo mais nutrientes estariam mais aptos a enfrentar perodos de escassez alimentar. Desen-volve-se o fentipo poupador, comandado por genes poupadores, que tendem a fazer com que o balano energtico penda para o lado positivo, o que significa armazenamento energtico para as necessidades dirias.

    A vida moderna traz consigo uma verdadeira exploso de obesidade, acometendo praticamente todas as regies do mundo e todas as classes sociais. Com a obesidade, que muitas vezes j se inicia na infncia, vem uma srie de consequncias meta-blicas deletrias para o organismo, reduzindo a qualidade de vida e a longevidade. A mudana ambiental e do estilo de vida, associada a padres de respostas fisiolgicas que so trazidas desse fentipo poupador acabam por ser a resposta mais provvel para essa verdadeira exploso na prevalncia de obesidade1,2. Os genes no causam diretamente a obesidade, mas predispem o indi-vduo a se tornar obeso. Assim, podemos dizer que uma frao da populao geneticamente predis-posta aos estmulos ambientais para a obesidade, enquanto outra frao resistente3.

    Podemos dizer que a obesidade exgena ocorre quando a predisposio individual para lidar com um ambiente restritivo, marcada pela gentica, epigentica e/ou experincias do incio da vida, confrontada com um ambiente de plenitude e abundncia alimentar. Dessa forma, a aumentada adiposidade em indivduos predis-postos deve ser vista como uma resposta fisiol-gica normal a um ambiente modificado e no uma doena do sistema regulador4.

    O controle do peso: um grande desafio!

    A ingesto alimentar e o gasto de energia so controlados por sistemas neurais complexos e redundantes, verdadeiros sistemas integradores, recebendo sinais aferentes desde o sistema diges-trio passando pelo tecido adiposo e chegando s estruturas centrais. Tem havido muito progresso na identificao do papel do hipotlamo e do tronco enceflico (poro caudal) nos vrios meca-nismos hormonais e neurais pelos quais o crebro informado sobre a disponibilidade dos nutrientes ingeridos e estocados. Em resposta, vias eferentes determinam uma resposta comportamental, auto-nmica e endcrina, levando reduo da ingesto alimentar e ao aumento do gasto energtico. Pouca ateno, no entanto, tem sido dada aos sistemas corticais que, em muitas situaes, vencem os sistemas de controle metablico, exercidos pelo hipotlamo.

    No crebro, os trs maiores componentes desse sistema parecem ser: o tronco enceflico, hipotlamo (centro integrador) e o crtex (orbi-tofrontal, ncleos da base, insula, lmbico, ncleo acumbens e complexo amigdaloide).

    A primeira estao de controle para a inter-pretao nutricional est na poro caudal do tronco enceflico, que recebe informao das papilas gustativas, do aparelho olfativo e do trato gastrointestinal, este ltimo, por meio de afern-cias vagais. Com esta informao, a maquinaria oromotora (presente nos ncleos do tronco ence-flico, bem como nos ncleos da base) ativada para a ingesto do alimento e sua evoluo pelo trato gastrointestinal.

    O hipotlamo, especialmente no ncleo arqueado (ARC), o local de integrao nutri-cional, recebendo informaes que se originam em rgos perifricos e mediadas por hormnios circulantes e metablitos, bem como por vias neurais procedentes do tronco cerebral. O ARC influenciado tambm por sinais provenientes dos ncleos laterais e paraventriculares do hipotlamo. Os ncleos laterais recebem diversas aferncias: sistema de recompensa, informaes relacionadas memria, sistemas motivacionais e de aprendizado, sinais vagais, do ncleo acumbens, do complexo amigdaloide, plido ventral; todos sendo inte-grados nestes ncleos e correlacionando-se direta-mente (via produo de histamina, neurotensina, hipocretina, orexina e melanina) com o ARC.

  • Controle do apetite: meCanismos metabliCos e Cognitivos

    213O sistema crtico-lmbico permite-nos inte-ragir com o ambiente que oferece o alimento, incluindo a procura do alimento e seu armazena-mento, levando em conta experincia, disponibili-dade e custo. A viso, o sabor, a palatabilidade de alimentos j familiares contam nessas escolhas. O contexto social e hbitos e regras religiosas tambm determinam as escolhas alimentares. A influncia lmbica maior que a necessidade metablica do alimento.

    O controle da ingesto alimentar

    Diante das necessidades energticas de todo ser vivo, a obteno de nutrientes um passo extre-mamente importante para a sobrevida e no de se estranhar que seu controle seja extremamente complexo e confivel. O sistema funciona como recepo de sinal integrao sada do sinal (Figura 1).

    Informao sobre os nutrientes

    Uma vez diante do alimento, o odor, o aspecto e o paladar so essenciais para a ingesto. As papilas gustativas discriminam o tipo de sabor que o alimento apresenta: doce e para aminocidos (considerados alimentos benficos), amargo (que pode incluir vrias toxinas potencialmente

    danosas), transmitidos por meio de receptores acoplados protena G. O sabor salgado mediado por meio de canais de Na, sensveis amilorida e o sabor azedo mediado por um transportador de canal inico (TRP). Ainda h dvidas se h um receptor especfico para gordura, como ocorre em roedores1. Dessa forma, informaes sobre glicose, aminocidos e lpides so levadas ao crebro para o processo de integrao.

    Piruvato e lactato inibem a ingesto alimentar diferentemente em animais que se tornam obesos, comparados aos magros. Durante a hidrlise da casena, produz-se um heptapeptdeo que estimula a ingesto alimentar em animais de experimentao a beta-casomorfina. Os outros peptdeos desse grupo inibem a ingesto alimentar, incluindo calci-tonina, apolipoprotena A-IV, a forma cclica da histidil-prolina, vrias citocinas e TRH (hormnio liberador de tireotrofina). Vrios desses peptdeos agem em receptores gastrointestinais ou hepticos e encaminham seus sinais via aferente vagal5.

    Os sinalizadores intestinais

    No tubo digestivo, quimio e mecano receptores do informao sobre a quantidade de nutrientes que est estocada temporariamente no trato gastrointestinal. Estabelece-se, a, uma importante comunicao intestino-crebro6. No estmago, os

    Figura 1 Sistema simplificado de recepo de sinal (input) proveniente dos vrios sensores perifricos, integrao do sinal, analisando as aes adequadas quele input e comando para alguma ao frente aos sinais recebidos. SNA sistema nervoso autnomo.

    rgos do

    Sentido

    Hormnios

    Nutrientes

    Aferncias Vagas

    Ncleos Laterais

    Ncleos Paraventriculares

    SNA Tronco

    Respostas Endcrinas

    Crtex Lmbico

    Tlamo e Tronco

    Insula e Hipocampo

    Ncleos da Base

    NPY AgRP

    POMC CART

    Ncleo Arqueado

    Hipotlamo

    Stria Terminalis

    Sinais de EntradaSinais de Sada

  • pediatria (so paUlo) 2010;32(3):211-22

    214 nutrientes so percebidos por estiramento vagal e sensores presentes na mucosa gstrica. Fatores neurotrficos (como o BDNF brain-derived neurotrophic factor e Neurotrofina-3) so essen-ciais para a aferncia vagal da parede do estmago. A Ghrelina, secretada no fundo gstrico quando o estmago est vazio, d um poderoso sinal de fome para o crebro e sua secreo inibida com a ingesto alimentar.

    Na poro alta do intestino delgado, a colecis-tocinina (CCK), atuando via receptor CCK-A no trato gastrointestinal, d um sinal de saciedade via vagal, motivado principalmente pela presena de lpides e protenas (no glicose!)7. Esses sinais so transmitidos ao ncleo do trato solitrio (NTS) e, da, a centros superiores, incluindo o ncleo para-braquial e complexo amigdaloide, dentre outros.

    Nas pores mais baixas do intestino delgado e colo, o peptdeo YY (PYY) e o peptdeo semelhante ao glucagon (GLP-1) so secretados pela estimu-lao direta dos nutrientes na parede intestinal, bem como por reflexos originados na poro mais alta do intestino. Tanto PYY(3-36) quanto GLP-1 so anorxicos. O PYY(3-36) alm de suprimir a ingesto alimentar, modula a atividade da rea tegmentar ventral (VTA) e o striatum ventral8.

    Sinais advindos do fgado, pncreas e msculos tambm so enviados ao crebro, informando sobre a disponibilidade de nutrientes. A enterostatina, um pentapeptdeo produzido da clivagem da coli-pase pancretica, reduz a ingesto alimentar. Este peptdeo difere da CCK, reduzindo seletivamente a ingesto de gorduras. A bombesina e seu anlogo humano GIP (peptdeo inibidor de gastrina ou peptdeo insulina-gastrina) reduzem a ingesto alimentar em indivduos obesos e em magros. Hormnios pancreticos, incluindo glucagon, amilina e polipeptdeo pancretico, tambm reduzem a ingesto alimentar5.

    Sinalizadores do tecido adiposo

    De especial importncia so os sinais advindos do tecido adiposo, o maior stio de estoque energ-tico do nosso organismo e nosso mais importante rgo endcrino.

    A leptina, uma protena de 16Kda, produzida principalmente pelo tecido adiposo subcutneo, informa o crebro da presena de excesso de tecido adiposo, induzindo bloqueio do neuropeptdeo Y (NPY), um potente orexgeno e suprimindo o apetite. Quando as reservas de gordura esto

    baixas, a queda de leptina estimula a produo de NPY, com aumento de apetite. Alm disso, a redu-zida secreo de leptina diminui o gasto energtico, reduz a secreo de hormnios tireoidianos e de gonadotrofinas e aumenta a secreo de cortisol9.

    O tecido adiposo secreta uma srie de subs-tncias, chamadas em conjunto de adipocitocinas, que so marcadores inflamatrios: IL-6, leptina, TNF, resistina, adiponectina, PAI-1 (inibidor do ativador de plasminognio 1), angiotensinognio, visfatina, IL-1.

    A obesidade marcada pelo aumento das adipocitocinas sricas, com exceo da adiponec-tina. A resistina uma protena de 12kD, sendo tambm uma molcula de sinalizao durante o processo inflamatrio: produzida por macrfagos, tecido adiposo, pncreas e placenta. Sua funo aumentar a sntese heptica de glicose e reduzir a utilizao de glicose no tecido muscular; sua ativi-dade anti-insulnica levando hiperglicemia. Os nveis de resistina so diretamente relacionados aos nveis de tecido adiposo presentes no organismo. O PAI-1 inibe a fibrinlise, sendo, ento, pr-trom-btico. O PAI-1 aumenta seus nveis na vigncia de hipertrigliceridemia e hiperinsulinemia. A visfatina (visceral fat), produzida no tecido adiposo visceral, tem um papel ainda controvertido em relao obesidade e resistncia insulina10. Em alguns estudos, ela aumenta conforme aumenta o ganho de peso e a resistncia insulina e, em outros, parece haver reduo.

    A apelina, descrita em 200511, produzida no tecido adiposo e aumenta sob estmulo de insu-lina e de TNF alfa (fator de necrose tumoral alfa), estando envolvida na resistncia insulina. A omentina, descrita em 200612, tem grande produo no tecido adiposo omental e relao inversa com a obesidade, parecendo ser, da mesma forma que a adiponectina, uma adipocitocina protetora da resistncia insulina e da sndrome metablica. Apresenta correlao negativa com o HOMA (homeostasis model assessment um ndice de resis-tncia insulina) e positiva com a adiponectina e com o HDL colesterol. Como podemos perceber, o tecido adiposo produz uma srie de substncia pr-inflamatrias, havendo, de certa forma, uma importante integrao entre o tecido adiposo e o sistema imunolgico (por exemplo: enquanto que a leptina induz uma maior resposta Th1, a adiponectina suprime a fagocitose papel anti-inflamatrio), no sendo exagero dizer que quando estamos subnutridos ou mesmo desnutridos, h

  • Controle do apetite: meCanismos metabliCos e Cognitivos

    215um estado de imunossupresso, enquanto que, quando estamos obesos, h um estado de infla-mao crnica.

    Hipotlamo: um controlador maior do apetite

    O ncleo arqueado (ARC) constitui-se, dentro do hipotlamo, num stio maior de integrao entre os diversos sinais oriundos da periferia e do tronco cerebral, determinando aes que visam adequar o balano energtico do organismo. A leptina um dos sinais que provm do tecido adiposo, infor-mando o crebro sobre os estoques de gordura do corpo. A leptina inibe, no ARC, a produo de dois potentes orexgenos: Neuropeptdeo Y (NPY) e a protena relacionada ao Agouti (AgRP). Os neur-nios NPY/AgRP so estimuladores da ingesto alimentar mas, curiosamente, em animais knock-out para os genes NPY e AgRP havia pouca inter-ferncia na ingesto alimentar, enquanto que a ablao aguda desses neurnios no animal adulto leva a profunda perda de peso e inibio do apetite. Isto indica que outras vias podem compensar a perda de NPY/AgRP no incio do desenvolvi-mento, mas no em fase posterior da vida13.

    Outra subpopulao neuronal expressa pro-pio-melanocortina (POMC) e transcritos relacionados anfetamina e cocana (CART), com papel anor-tico. A POMC precursora de vrios produtos, especialmente o alfa-MSH ou seu anlogo estvel melanotan II (MTII), que atuam em receptores melanocortina (especialmente o tipo 4 MC4R) induzindo perda de apetite. Esses dois grupos de neurnios presentes no ARC, NPY/AgRP de um lado e POMC/CART de outro, funcionariam como um sistema de acelerador freio para a ingesto alimentar e h colaterais axonais (GABArgicas) locais, ligando esses grupos de neurnios14. Como os neurnios NPY produzem cido gama amino butrico (GABA), eles inibem os neurnios POMC atravs tanto de receptores Y1 como de receptores GABA. Na ausncia de inibio recproca de NPY pelos neurnios POMC, este arranjo pode ser visto como um sistema que privilegia a ingesto alimentar (Figura 2).

    Integrao entre os sinais emitidos pelos nutrientes e a secreo hormonal

    Tanto os neurnios NPY/AgRP quanto os POMC expressam receptores de leptina e so

    regulados diretamente pela leptina. Dessa forma, baixas concentraes de leptina resultam em aumento de apetite e supresso do gasto energ-tico, enquanto altas concentraes levam inibio do apetite e aumento do gasto energtico. Alm de sua ao por meio dos receptores da classe das citocinas, ativando Jannus quinase ( JAK2) e STATs, especialmente o STAT 3, a leptina atua em outras vias intracelulares, incluindo ERK (quinase sensvel a estmulos externos), PI3K (fosfatidil inositol 3 quinase) e cAMP/PDE3B (AMP cclico e fosfodiesterase 3B). A perda do sinal de PI3K atenua a inibio do apetite induzida pela leptina e a estimulao do sistema nervoso simptico (que leva a aumento do gasto energtico).

    A insulina atua no crebro, suprimindo a ativi-dade dos neurnios NPY e aumentando a ativi-dade dos neurnios POMC, sendo, portanto, no SNC, um potente anortico. As aes superpostas de insulina e leptina so explicadas porque ambas ativam PI3K no interior dos neurnios hipotal-micos e o PI3K requerido para a supresso do apetite. Um dado a ser lembrado que a hipo-glicemia motivada pela insulina um poderoso estmulo ingesto alimentar: a concentrao de glicose sofre queda antes do incio da maioria das refeies, tanto em humanos quanto em roedores. Quando se evita esta queda glicmica, a prxima refeio retardada.

    A ghrelina estimula os neurnios NPY por meio de um receptor secretagogo de GH (GHS-R), pertencente famlia da rodopsina, enquanto o PYY(3-36) inibe os neurnios NPY via receptores Y2. A clivagem dos dois primeiros aminocidos transforma um peptdeo oregneno que atua em receptores Y1 e Y5 em um anorex-geno, que atua em receptor Y2. GLP-1, produ-zido nas clulas L do leo, tambm funciona como inibidor de apetite. Alm disso, sinais intestinais chegam ao ncleo arqueado via projees ascen-dentes do complexo vagal dorsal. Curioso notar que alguns neurnios so sensveis a variaes de concentraes de glicose, atuando de modo muito semelhante clula beta pancretica. Tambm sinais originados de cidos graxos e de aminocidos suprimem o apetite, atuando nesses neurnios hipotalmicos do ARC6. Em contraste leptina, a ghrelina parece facilitar o comportamento de armazenar alimentos e aumenta os processos de recompensa, como parte de sua ao orexgena.

    A leptina estimulada pela insulina (via meta-bolismo de glicose) e inibida por catecolaminas e

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    por tiazolidinedionas (pela supresso do PPAR gama). Sua ao de inibio do apetite coincide com a da insulina e ambos os hormnios apre-sentam um fator comum de sinalizao fosfa-tidil-inositol 3 quinase (PI3K). Os receptores de leptina expressam-se em vrias estruturas telen-ceflicas, como hipocampo, neocrtex, ncleo acumbens, rea tegmentar ventral, tlamo, tronco caudal, neurnios aferentes vagais e at em receptores de paladar15.

    Analisando o comportamento da leptina em obesos, nos quais suas concentraes elevadas no condicionam bloqueio do apetite, j que se

    desenvolve resistncia leptina, podemos inferir que talvez a leptina no surgiu evolutivamente para prevenir a obesidade. Suas aes biolgicas ocorrem em baixas concentraes plasmticas, em que sua ausncia um forte estmulo para a procura e a ingesto alimentar. No entanto, quando as concentraes se normalizam, a emergncia cessa e posterior elevao de leptina no induz reduo do apetite. Isto ocorre porque pode ter sido desvantajoso para as espcies que viviam em ambiente restritivo ter esse bloqueio de ingesto e evolui um mecanismo que cria a resistncia leptina. Nos animais que hibernam, no final do

    rgos do

    Sentido

    Crtex Lmbico

    Tlamo e Tronco

    Insula e Hipocampo

    POMC CART

    NPY AgRP

    Insulina Glucagon Amilina PP

    PncreasV1-4A1-2S1-2

    Via

    Recom

    pensa

    Crtex Orbitofrontal

    Hormnios Nutrientes

    Leptina Adiponectina IL-1-TNF

    Tecido Adiposo

    Fgado

    Veia Porta

    Via Vagal Vias Autonmicas

    Hipotlamo

    Boca

    Grelina Leptina CCK

    Duodeno

    Glicose

    Jejuno/leo

    PYY3-36 GLP-1

    Clon e Reto

    Tubo Digestivo

    Protena Glicose Outros (?)

    GABA

    AMPKmTOR

    Ncleos

    Medulares

    GLP1R

    GLP1RGHS-R JAK-STAT 5HT3R Y2R

    Glicossensores

    CCK1R

    Estmago

    Figura 2 Mecanismos conhecidos de sinalizao alimentar. Note que os ncleos hipotalmicos tambm esto interconectados: AMPK tem funo orexgena (estimuladora do ncleo NPY/AgRP), sendo inibido pela ao da insulina, glicose e leptina. J o mTOR constitui-se num sensor do estado metablico do organismo, sendo um estimulador anorexgeno (estimuladores do ncleo POMC/CART). AMPK quinase ativada por AMP cclico; NPY neuropeptdeo Y; AgRP protena relacionada ao Agouti; POMC pr pio melanocortina; CART transcritos relacionados a cocana e anfetamina.

  • Controle do apetite: meCanismos metabliCos e Cognitivos

    217vero, quando eles j esto obesos, eles continuam a comer, para aumentar as reservas para o inverno que vai chegar e isto ocorre porque se desenvolve resistncia leptina15.

    Um mecanismo aventado para esta aquisio de resistncia leptina a elevao de triglic-rides, o que dificulta a passagem da leptina pela barreira hematoenceflica. Nas pocas de fome, era til ter um mecanismo que limitasse a ao da leptina no bloqueio do apetite (resistncia leptina) e o sinalizador era o triglicerdeo, j que essas substncias se elevam num perodo de fome prolongado. No entanto, com uma ingesto alta de gorduras, tambm aumentam os triglicrides sricos e isto pode confundir o sistema, que passa a dificultar a ao da leptina quando, na verdade, deveria facilit-la, evitando a obesidade. No recm-nascido, os triglicrides derivados do leite inibem o transporte de leptina para o SNC e isto tem importncia num momento da vida em que o alimento precioso e o ganho de peso neces-srio, rapidamente. intrigante que esse achado de resistncia leptina em obesos possa ser uma confuso de identidade por parte dos sinaliza-dores que controlam a ingesto alimentar: no se trata de falta de alimento, mas de excesso de alimentos gordurosos. No se trata de um recm-nascido, que tem necessidade urgente em ganhar peso, e os triglicrides elevados no so os deri-vados do leite, mas os derivados de uma alimen-tao inadequada.

    Outra explicao para a resistncia leptina um defeito de receptor, que sinaliza para neur-nios NPY e POMC. A deleo de dois reguladores negativos da sinalizao de leptina supressor da sinalizao de citocina 3 ou SOCS3 e tirosina fosfa-tase PTB1B protege camundongos de desenvolver resistncia leptina. Nos animais que hibernam, a reversibilidade da resistncia leptina no vero uma propriedade fisiolgica desses neurnios16.

    A protena ativadora da acetilao (ASP) atua por ao parcrina no tecido adiposo, sendo esti-mulada por insulina, por quilomcrons e VLDL, aumentando a captao de glicose, aumentando o diacilglicerol acil-transferase, reduzindo a lipase sensvel a hormnio e elevando a sntese de triglicrides. Quando se suprime a ao da ASP, o animal se torna resistente obesidade. Seus efeitos ocorrem no fgado, msculo e SNC, aumentando a sensibilidade insulina, redu-zindo a produo heptica de glicose e elevando a oxidao de cidos graxos.

    J a adiponectina estimulada pelas tiazoli-dinedionas (atravs de PPAR gama) e inibida pelas catecolaminas, glicocorticoides e fator de necrose tumoral alfa. Possui dois receptores que j foram identificados: Adipo-R1 (expresso no tecido muscular) e Adipo-R2 (presente nos hepa-tcitos). Atua sistemicamente no fgado, msculo e no SNC, aumentando a sensibilidade insulina, reduzindo a produo heptica de glicose e estimu-lando a oxidao de cidos graxos17.

    A oxintomodulina foi descrita pela primeira vez em 1980, liberada pelas clulas enteroend-crinas (poro distal do intestino), mostrando aumento dos seus nveis cerca de 5-10 minutos aps a ingesta, sendo atingido seu pico mximo nos 30 minutos ps-prandiais. O gene produtor deste pr-glucagon expresso no estmago, pncreas e SNC; as enzimas convertases C1 e C2 clivam esta molcula, dependendo do seu stio de ao. A oxin-tomodulina pode ser secretada em conjunto com o PYY. A oxintomodulina, como o GLP-1, anore-xgena, agindo em vias distintas, mas em receptores semelhantes (GLP-1 e GLP-2). Sua atividade no sistema nervoso encontrada na medula, bulbo olfatrio, cerebelo, crtex e hipotlamo (inibem, no ncleo arqueado, os neurnios NPY/AgRP), alm de atuar via nervo vago18.

    Alm do hipotlamo, o que mais?

    O estudo do controle do apetite tem focado muito o hipotlamo e, de certa forma, tem negli-genciado outras importantes estruturas cerebrais. Os neurnios NPY/AgRP e POMC no esto isolados do resto do crebro, mas recebem infor-maes neurais de vrias reas cerebrais, especial-mente do neurnios orexina/hipocretina no hipo-tlamo lateral (Figura 3).

    A importncia dos processos cognitivos e emocionais para o equilbrio energtico no pode ser desprezada. As estruturas crtico-lmbicas lidam com cognio, recompensa e emoo. Uma vez que o sistema de recompensa passa a ser nosso alvo na complexa circuitaria neuronal do controle do apetite, e sabendo que este sistema tem a capacidade de modular o compor-tamento alimentar, apenas pelo desejo de algum alimento e no pela sua necessidade metablica, necessitaremos sempre considerar a necessidade de terapias que atenuem, de certa forma, sua atividade. Para esse fim, os obesos muitas vezes

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    necessitaro de apoio psicolgico, bem como de farmacoterapia com antidepressivos.

    A procura do alimento um mecanismo de sobrevivncia altamente conservado19. Nesse aspecto, interessante traar um paralelo entre homem primitivo, vivendo num ambiente de restrio e de carncia alimentar, e o homem moderno. Cenrio 1 o homem primitivo, com fome,

    procura seu alimento. Lembra-se de locais onde possa encontr-lo e se dirige a esses locais. Avalia os perigos envolvidos at chegar ao local, como o encontro de predadores. Chegando ao local, encontrando sua presa e sai ao encalo dela, travando uma luta para domin-la, mat-la

    e com-la, eventualmente trazendo-a para seu local de habitao (alguma caverna), onde possa compartilhar o alimento com sua famlia. O alimento ingerido sem nenhum preparo e exige uma digesto trabalhosa.

    Cenrio2 eu gosto de feijoada! Lembro de um restaurante que faz uma excelente feijoada e decido obter esse alimento. Os estmulos motores me levaro at o restaurante: pego meu carro e me dirijo ao local no sem antes considerar os riscos envolvidos: o carro pode quebrar, posso ter um pneu furado ou posso mesmo ser assaltado no caminho. Chegando ao local, deixo o carro com o manobrista (vai que eu estacione longe e tenha que andar mais

    Respostas Endcrinas

    NTS

    NPBComplexo

    AmigdalideSistema Lmbico

    Crtex Orbitofrontal Hipocampo

    Accumbens

    VTA

    Neurohipfise SNA / Tronco

    Nutrientes

    Via Srica e Vagal

    rgos do Sentido

    Ncleo Arqueado

    Ncleo Lateral

    Ncleo Paraventricular

    MCH

    CART

    Orexina

    Neurotensina

    CRHTRH

    CARTADH OXT

    NPY AgRP

    POMC CART

    AgRP

    NPY Y1/Y5

    CART -MSH -Endorfina

    NPY AgRP

    -MSH

    AMPK

    GABA

    mTOR

    JAK-STAT

    MC3R MC4R

    Projees ACh, Dopaminrgicas, 5HT e NA

    Insula

    Hormnios

    Figura 3 Integrao das regies corticais superiores: sistema de recompensa O crebro cognitivo no apetite. NTS ncleo do trato solitrio; NPB ncleo parabraquial; VTA rea tegumentar ventral; CART transcritos relacionados a cocana e anfetamina; MCH hormnio concentrador de melancitos; CRH hormnio liberador de corticotrofina; TRH hormnio liberador de tireotrofina; ADH hormnio antidiu-rtico; OXT ocitocina; NPY- neuropeptdeo Y; AgRP peptdeo relacionado ao Agouti; MC3R receptor de melanocortina 3; MC4R receptor de melanocortina 4; Ach acetilcolina; NA noradrenalina; 5HT serotonina; MSH hormnio melanotrfico; GABA cido gama amino butrico; AMPK quinase ativada por AMP cclico; mTOR alvo da rapamicina em mamferos.

  • Controle do apetite: meCanismos metabliCos e Cognitivos

    219de uma quadra para chegar...) e vou ao encalo da feijoada. Posso com-la no restaurante ou lev-la para minha casa para compartilh-la com meus familiares. O alimento tem tudo para estimular meu apetite: apresentao, odor, sabor. A recompensa da minha refeio uma notvel sensao de bem-estar. Como a feijoada e descanso aps o almoo, afinal, ningum de ferro...Diante desses dois cenrios, fica mais fcil

    entender porque a obesidade vem crescendo no mundo...

    Vemos por esses exemplos que h um crebro metablico (que responde a sinais provindos do estmago, intestino, de nutrientes) e um crebro cognitivo, onde uma complexa rede de integrao parte do gostar do alimento, querer, procurar e ingerir. Todas essas aes apresentam representa-es corticais e lmbicas e influenciam a quantidade de alimento ingerida. Estudos eletrofisiolgicos em primatas mostram que neurnios do complexo amigdaloide, ncleo accumbens e do crtex rbito-frontal respondem a atributos sensoriais espec-ficos dos alimentos experimentados, como bebidas doces e cremes15.

    O gostar de um alimento envolve circuitos neurais que passam pelo ncleo accumbens e plido ventral, na poro lmbica e motora do crebro, respectivamente. Os receptores opioides parecem ser muito importantes nesse processo: a injeo de um agonista de receptor opioide (DAMGO) no ncleo accumbens desencadeia uma fome voraz, especialmente de alimentos doces e com alto teor de gordura. Por outro lado, a injeo de um anta-gonista opioide seletivo para receptores mu reduz a ingesto de sacarose. Contrariamente ao que sempre se pensou, o sistema mesolmbico dopa-minrgico no tem qualquer papel nesse gostar do alimento, mas importante para o comporta-mento motor para obter certos alimentos. Isto foi chamado de querer por Berridge e Robinson19.

    As projees dopaminrgicas da rea tegmentar ventral (VTA) para o ncleo accumbens (parte do sistema dopaminrgico, mesolmbico) so o componente mais crucial desse sistema implcito ou inconsciente de querer. A manipulao desse sistema influencia poderosamente o querer, mas no o gostar. O hipotlamo lateral tambm est envolvido no querer, pois estimulao eltrica nessa rea em camundongos faz com que eles comam (queiram) a comida, mas no os faz gostar dessa comida. Um dado interessante que

    a leptina modula os sinais aferentes provenientes do alimento, mesmo nos estgios mais iniciais do processamento alimentar, de modo que baixas concentraes de leptina podem baixar dramati-camente os limiares dos estmulos externos sina-lizando a disponibilidade de nutrientes. Leptina e insulina podem tambm atuar diretamente nos neurnios dopaminrgicos mesolmbicos para modular o querer alimentar4.

    Quando se gosta de determinado alimento e se d uma escala de valor a esse gostar (eu posso gostar em graus diferentes de diferentes alimentos), quem est envolvido nesse sentimento o crtex pr-frontal e o cngulo (Figura 3). Como se v, esses sentimentos sobre o alimento esto espa-lhados pelo crebro e parece que o fator de unio so os receptores opioides. Quando se administra cronicamente um antagonista opioide (naloxona), verifica-se que h uma clara reduo da ingesto de alimentos palatveis, mas no ocorrem mudanas significativas no balano energtico.

    Outro denominador comum para essa rede de prazer alimentar espalhada pelo crebro a sinali-zao por receptores canabinoides CB1. Como os opioides, a sinalizao dos endocanabinoides por meio de receptores CB1 suprime seletivamente o apetite para comidas palatveis20. O sistema endo-canabinoide atua localmente (autcrina e paracri-namente), sendo inativado muito rapidamente a partir de sua liberao. As substncias agonistas endgenas so bem conhecidas e chamadas de 2AG (2-aracdonoil glicerol) e anandamida (N-aracdonoil etanolamina) esta ltima possui como precursor os fosfolipdios e como metab-lito, derivados do cido araquidnico, resultando em hipomotilidade intestinal, analgesia, catalepsia e hipotermia; este ligante atua nos receptores CB1 e CB2, ambos ligados protena G.

    Os receptores CB1 esto espalhados pelo orga-nismo: crebro (hipotlamo, hipfise, ncleos da base, cerebelo, sistema nervoso entrico), medula espinhal, sistema nervoso perifrico, fgado, tecido adiposo, clulas endoteliais, msculo esqueltico e trato gastrointestinal. Os receptores CB2 foram encontrados nas clulas do sistema imunolgico (clulas B, T, bao, tonsilas e micrglia). A ativao do receptor CB1 possui efeito orexgeno (atuando sobre os ncleos hipotalmicos) e efeito sobre o sistema lmbico: aumenta a motivao para a alimentao e para o fumo. Uma vez ativados, os receptores CB1, acoplados protena G, bloqueiam a adenilato ciclase, fechando os canais de clcio e

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    220 abrindo os de potssio. Nos tecidos perifricos, o receptor CB1 relaciona-se ao aumento da lipog-nese (tecido adiposo, fgado, trato gastrointestinal e msculo esqueltico), alterando, assim, o metabo-lismo da glicose. J dispomos atualmente de ferra-mentas farmacolgicas que bloqueiam o receptor CB1, suprimindo, assim, o apetite. Especula-se que na obesidade este sistema permanea ativado21. A Tabela 1 mostra os principais orexgenos e anorex-genos, importantes na regulao alimentar.

    A pandemia de obesidade

    Quando temos a juno de um fentipo poupador, reflexo de genes poupadores, herdados de nossa necessidade ancestral de se manter vivo, diante de perodos frequentes de escassez alimentar, com a abundncia e a tecnologia para empurrar alimentos para serem consumidos e um grau impor-tante de sedentarismo, temos a a frmula que conduz obesidade. Claro que h os resistentes! Indivduos que, apesar de ingerir uma grande quantidade calrica, tm a capacidade de um alto gasto energtico e so poupados da pandemia de obesidade. As presses ambientais para aumentada ingesto alimentar so enormes, incluindo-se a todo um trabalho de divulgao onde o aspecto e a apresentao do produto falam mais alto que o seu prprio sabor22.

    Diante de um sistema que responde assimetrica-mente, no qual ocorreu uma presso de evoluo para defender o ser humano da fome, mas no defend-lo da obesidade, podemos dizer que as presses ambientais podem sobrepujar a fraca capacidade dos mecanismos homeostticos de defender os limites superiores do peso corpreo e da adiposidade.

    A palatabilidade outro fator que determina a ingesto alimentar. Temos, atualmente, a chamada dieta da cafeteria, que um poderoso estmulo para se alimentar. Quantas vezes, j saciados, no resistimos a uma apetitosa sobremesa? o fen-meno da sobremesa...

    Por outro lado, a vida moderna trouxe um alto grau de estresse. Pouco se conhece sobre os meca-nismos pelos quais o estresse tanto pode aumentar quanto bloquear o apetite. Como todos ns temos um alto grau de estresse, os afortunados que deixam de comer ou comem menos sob estresse tero alta probabilidade de serem magros, enquanto os que no param de comer quando estressados, vo ganhar peso e podem se tornar obesos. O estresse crnico altera o processamento emocional na amdala e

    em outras reas corticais, por meio do aumento de glicocorticoides e do hormnio liberador de corti-cotrofina (CRH). Muitas vezes, o alimento funciona como um medicamento para reduzir o estresse. Outro fator que joga a favor da obesidade a falta de sono, to comum nos nossos dias to atribulados. O indivduo que dorme menos no s tem mais tempo para consumir guloseimas ou outros alimentos, mas altera sua neuroqumica, predispondo-o a ganhar peso.

    A tarefa de se fazer um paciente perder peso rdua, j que o sistema de regulao nos pacientes predispostos obesidade parece atuar ao contrrio. Ao invs de cooperar com a perda de peso, o sistema cria dificuldades a essa perda e isto inter-pretado como a necessidade de sobrevivncia em pocas de escassez alimentar. Comparando as alteraes de atividade cerebral desencadeada por estmulo visual de comida em obesos, antes e aps 10% de perda de peso, detectamos a anatomia de um crebro faminto aps a perda de 10%, embora o indivduo continue obeso. Embora as alteraes de atividade tenham sido notadas nas reas home-ostticas tradicionais do hipotlamo e do tronco cerebral, muitas reas crtico-lmbicas envolvidas nas funes emocionais e cognitivas eram mais fortemente afetadas pela perda de peso. O curioso que a maioria dessas alteraes era reversvel com administrao de leptina e o tratamento com leptina durante a perda de peso aumentava a probabilidade de atingir os objetivos de perda de peso e prevenir recadas23.

    Concluso

    A ingesto alimentar claramente controlada por um conjunto de fatores cognitivos, emocionais e de recompensa, envolvendo a mesma via neuronal que o vcio a uma determinada substncia exerce, com todo seu impacto hednico. Esses processos eminen-temente corticais (crebro cognitivo: consciente e inconsciente) podem ser mais forte que os processos metablicos de regulao da ingesto alimentar, centrados principalmente nos ncleos hipotalmicos. Esses mecanismos subconscientes passam por cima da saciedade e levam o indivduo a comer alm de suas necessidades. Indivduos com a sndrome de Prader-Willi, por exemplo, revelaram nos exames de imagem funcional uma excitao patolgica cortical quando visualizam carboidratos, no possuindo circuitaria neuronal (pr-frontal ventromedial) sufi-cientemente eficaz para inibir o impulso dado pelo

  • Controle do apetite: meCanismos metabliCos e Cognitivos

    221Tabela 1 - Principais sinalizadores do apetite, seu local principal de produo e sua caracterstica: anorexgena ou orexgena.

    Sinalizador Produzido Principalmente Ao

    Ghrelina Estmago e Hipotlamo Orexgena

    Insulina Pncreas Anorexgena

    Anandamida e 2AG Intestinal e Cerebral Orexgena

    Leptina Adipcitos e Estmago Anorexgena

    CCK Intestino Anorexgena

    PYY (3-36) leo e Clon Anorexgena

    Opioides (Endorfina) Crebro e Tronco enceflico Orexgena

    NPY Hipotlamo Orexgena

    AgRP Hipotlamo Orexgena

    CART Hipotlamo Anorexgena

    POMC Hipotlamo Anorexgena

    MSH Hipfise Anorexgena

    GLP-1 leo, Clon e Reto Anorexgena

    Oxintomodulina Final do jejuno e leo Anorexgena

    PYY (1-36) leo e Clon Orexgena

    Glicossensores Portais Veia Porta Anorexgena

    Amilina Pncreas Anorexgena

    Adiponectina Adipcito Anorexgena

    Resistina Clulas mononucleares, Adip-cito, Pncreas

    Orexgena

    Enterostatina Intestino Anorexgena

    Bombesina e GIP Estmago Anorexgena

    Glucagon Pncreas Anorexgena

    Polipeptdeo P (PP) Pncreas Anorexgena

    mTOR Hipotlamo Anorexgena

    AMPK Hipotlamo Orexgena

    complexo amigdaloide. Muito ao contrrio do espe-rado, seu crtex pr-frontal ventromedial apresenta uma desorganizao estrutural, sendo superexcitado, resultando em hiperfagia e obesidade. A longo prazo, a menos que mecanismos compensatrios entrem em cena para limitar a assimilao alimentar, a obesidade vai ocorrer.

    Como afirma Berthoud, esses processos, que no tm sido estudados com tanta profundidade

    como os mecanismos sacietgenos, so to fisio-lgicos quanto os estudos de regulao hipotal-mica (neurofisiologia no possui menor impacto nessa regulao quando comparada fisiologia heptica ou adipocitria) e podem aportar subs-dios para se que obtenham armas para combater com mais efetividade essa verdadeira pandemia de obesidade que presenciamos no mundo todo.

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    Trabalho realizado no Instituto da Criana do Hospital das Clnicas da Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo, So Paulo, SP, Brasil.

    Endereo para correspondncia: Durval Damiani Rua Barata Ribeiro 380, cj 73 Bela Vista So Paulo, SP, Brasil CEP 01308-000E-mail [email protected]

    Submisso: 9/8/2010Aceito para publicao: 6/9/2010

    Revista_Pediatria_Julho_Ago_Set_2010[1].pdf