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Jornal da ABI Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa 337 JANEIRO 2009 Perfis e depoimentos exclusivos de ases do melhor jornalismo daqui e do exterior: Teixeira Heizer, Poerner, Asne Seierstad, Cony, Larry Rohter, Villas-Bôas, Ruy Castro Carlos Lacerda e José Américo: A entrevista que derrubou a censura do Estado Novo EDIÇÃO ESPECIAL Páginas 8, 9, 10, 11, 12 e 13

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Jornal da ABIÓrgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa

337JANEIRO2009

Perfis e depoimentos exclusivos de ases do melhor jornalismo daqui e do exterior:Teixeira Heizer, Poerner, Asne Seierstad, Cony, Larry Rohter, Villas-Bôas, Ruy Castro

Carlos Lacerda e José Américo: A entrevista que derrubou a censura do Estado Novo

EDIÇÃOESPECIAL

Páginas 8, 9, 10, 11, 12 e 13

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2 Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

Jornal da ABIDIRETORIA – MANDATO 2007/2010Presidente: Maurício AzêdoVice-Presidente: Estanislau Alves de Oliveira (interino)Diretor Administrativo: Estanislau Alves de OliveiraDiretor Econômico-Financeiro: Domingos MeirellesDiretor de Cultura e Lazer: Jesus ChediakDiretor de Assistência Social: Paulo Jerônimo de Sousa (Pajê)Diretor de Jornalismo: Benício Medeiros

CONSELHO CONSULTIVOChico Caruso, Ferreira Gullar, José Aparecido de Oliveira (in memoriam),Miro Teixeira, Teixeira Heizer, Ziraldo e Zuenir Ventura.

CONSELHO FISCALLuiz Carlos de Oliveira Chesther, Presidente; Argemiro Lopes do Nascimento,Secretário; Adail José de Paula, Adriano Barbosa do Nascimento, GeraldoPereira dos Santos, Jorge Saldanha de Araújo e Manolo Epelbaum.

CONSELHO DELIBERATIVO MESA 2008-2009Presidente: Pery Cotta1º Secretário: Lênin Novaes de Araújo2º Secretário: Zilmar Borges Basílio

Conselheiros efetivos 2008-2011Alberto Dines, Antônio Carlos Austregesylo de Athayde, Arthur José Poerner,Carlos Arthur Pitombeira, Dácio Malta, Ely Moreira, Fernando Barbosa Lima (inmemoriam), Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Mílton Coelho da Graça, PinheiroJúnior, Ricardo Kotscho, Rodolfo Konder, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

Conselheiros efetivos 2007-2010Artur da Távola (in memoriam), Carlos Rodrigues, Estanislau Alves deOliveiora, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, JoséGomes Talarico, José Rezende Neto, Marcelo Tognozzi, Mário AugustoJakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa (Pagê), SérgioCabral e Terezinha Santos.

Editores: Maurício Azêdo e Francisco UchaProjeto gráfico, diagramação e editoração eletrônica:Francisco UchaEdição de textos: Maurício Azêdo, Marcos Stefano e Paulo Chico

Fotos e ilustrações: Acervo Biblioteca da ABI (Biblioteca BastosTigre), Agência Brasil, Agência JB, Agência O Globo, Folhapress,Jornal do Commercio

Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, Ana PaulaAguiar, Luiz Fernando Baptista Martins, Guilherme PovillVianna, Maria Ilka Azêdo, Mário Luiz de Freitas Borges.

Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador),Queli Cristina Delgado da Silva, Paulo Roberto de Paula Freitas.

Diretor Responsável: Maurício Azêdo

Associação Brasileira de ImprensaRua Araújo Porto Alegre, 71Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012Telefone (21) 2240-8669/[email protected]

Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda.Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 - Osasco, SP

Conselheiros efetivos 2006-2009Antônio Roberto Salgado da Cunha (in memoriam), Arnaldo César Ricci Jacob,Arthur Cantalice (in memoriam), Aziz Ahmed, Cecília Costa, DomingosAugusto Xisto da Cunha, Domingos Meirelles, Fernando Segismundo, GlóriaSuely Alvarez Campos, Heloneida Studart (in memoriam), Jorge MirandaJordão, Lênin Novaes de Araújo, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinhoe Pery de Araújo Cotta.

Conselheiros suplentes 2008-2011Alcyr Cavalcânti, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedrodo Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva(Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Ruy Bello,Salete Liusboa, Sidney Rezende,Sílvia Moretzsohn, Sílvio Paixão e WilsonS. J. de Magalhães.

Conselheiros suplentes 2007-2010Adalberto Diniz, Aluízio Maranhão, Ancelmo Góes, André Moreau Louzeiro,Arcírio Gouvêa Neto, Benício Medeiros, Germando de Oliveira Gonçalves, IlmaMartins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Luiz Sérgio Caldieri,Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio.

Conselheiros suplentes 2006-2009Antônio Avellar, Antônio Calegari, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde,Antônio Henrique Lago, Carlos Eduard Rzezak Ulup, Estanislau Alves de Oliveira,Hildeberto Lopes Aleluia, Jorge Freitas, Luiz Carlos Bittencourt, Marco AurélioBarrandon Guimarães (in memoriam), Marcus Miranda, Mauro dos SantosViana, Oséas de Carvalho, Rogério Marques Gomes e Yeda Octaviano de Souza.

COMISSÃO DE SINDICÂNCIAEly Moreira, Presidente; Carlos di Paola, Jarbas Domingos Vaz,Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Maurílio Cândido Ferreira.

COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃOAlberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti.

COMISSÃO DE LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOSAudálio Dantas, Presidente; Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Germandode Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, Lucy Mary Carneiro, Maria CecíliaRibas Carneiro, Mário Augusto Jakobskind, Martha Arruda de Paiva, OrpheuSantos Salles, Wilson de Carvalho, Wilson S. J. Magalhães e Yacy Nunes.

Número 337 - Janeiro de 2009

SUMÁRIO

UM HOMEMPLURALTeixeira Heizer

Carlos Lacerda ESTA ENTREVISTA DERRUBOUA CENSURA DO ESTADO NOVO

O MAIS JOVEM DOSCASSADOS PELA DITADURAArthur Poerner

A GUERRA SEM TRÉGUADO JORNALISMO DE GUERRAAsne Seierstad

Carlos Heitor Cony “A DITADURACAIU DE PODRE”

O BIÓGRAFO DA VIDABRASILEIRARuy Castro

ESTA HISTÓRIA NÃO DEUNO NEW YORK TIMESLarry Rohter

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1520283036

PONTO FINAL 47

Villas-Bôas Corrêa SEIS DÉCADAS NOSBASTIDORES DO PODER

FAUSTO E OS FOGOS, por Aldir Blanc

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DOCUMENTO HISTÓRICO

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3Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

VIVENDO PARA CONTARProfissionais que vão fundo na vida social aqui e no exterior,

os personagens dos textos a seguir falam de suas trajetórias e mostramcomo é sedutor este campo de atividade: o jornalismo.

ertencentes a gerações diferentes, formados em am-

bientes igualmente distintos, com hábitos culturais

gestados em meios sem a mesma identidade, os pro-

tagonistas das reportagens e entrevistas desta Edição

Especial do Jornal da ABI têm como traço comum

aquilo que inspirou o escritor colombiano Gabriel

García Márquez ao escolher o título de suas memó-

rias: eles vivem para contar, para relatar o que vêem em sua pe-

regrinação profissional.

Para pontificar nessa arte e nessa técnica que é o jornalismo,

eles enfrentam não poucas privações, que variam da necessida-

de de adaptação a hábitos estranhos à sua formação, em países

de civilização diferente, ao risco de perseguições, ameaças e vi- MAURÍCIO AZÊDO

EDITORIAL

olências, entre as quais a de banimento do lugar em que traba-

lham e vivem. Não são poucas as vicissitudes nem raras as hos-

tilidades com que se deparam. Em muitos momentos há que se

ter coragem; noutros, sangue frio, domínio das emoções, para

que o relato não seja toldado pelo sentimento, ainda que em

muitas descrições este seja mais do que necessário: obrigatório.

A fascinante aventura profissional desses mestres do jorna-

lismo é o creme do creme desta edição, engalanada por uma

preciosidade histórica: a célebre entrevista de José Américo de

Almeida ao jornalista Carlos Lacerda, que rebentou a censura

do Estado Novo e precipitou sua derrocada, em 1945, prova de

que jornalismo não é só contar, mas também e sobretudo pro-

vocar mudanças.

P

ROG

ÉRIO

SOU

D

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4 Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

m jornalista, um radialista,um advogado, um professor.Não, não se trata de um elen-co de profissionais por ofício,mas, sim, de uma só persona-lidade: é o competente Teixei-ra Heizer. Nos idos de 1963, foi

ouvido e visto na BBC da Inglaterra, e,através das ondas curtas da Rádio Na-cional de Portugal, da WRUL de NovaYork, ou produzindo programas paraos longínquos rincões de línguas por-tuguesa e espanhola.

Os registros assinalam nascimento noano de 1932 – 16 de dezembro – numpequenino distrito de São Fidélis, noNorte do Estado do Rio. Mas ele mesmofaz questão de acentuar que toda a suainfância e juventude deram-se nas bor-das da Estrada Rio-Bahia, nas cercaniasde Leopoldina, Minas Gerais. Meio mi-neiro, meio fluminense, sobretudo umcidadão brasileiro, esse ousado veteranoda imprensa nutre-se de uma juventu-de imperecível, movendo-se com agili-dade física e mental pouco comum aoscompanheiros de sua geração.

No Rio – onde fincou sua base resi-dencial – Heizer chegou no início dadécada de 50. Pouco depois, já estavaenvolvido com o radialismo e o jorna-lismo, na Emissora Continental – en-tão uma rádio muito ouvida na cidade– e no Diário da Noite, vespertino doGrupo Associado. De permeio, estuda-va advocacia na Universidade FederalFluminense, onde se formou e obtevevários títulos de extensão universitá-ria. Atravessou mil fronteiras profissi-onais e geográficas, mergulhou em co-berturas jornalísticas internacionais degrande significação, sobretudo na áreaesportiva, na verdade a sua preferidaaté à década de 70. Mas sua inquieta-ção e seu espírito versátil balizarammelhor seu rico destino profissional.

– Aquela equipe chefiada por Oduval-do Cozzi, depois por meu compadreValdir Amaral, ensinou-me a relatarvárias modalidades de esportes: futebol,basquete, vôlei, natação, remo, atletis-mo, boxe etc. Comprometi-me com osouvintes, de coração, sendo esse umpacto de grande encantamento que meempurrou pra frente, primeiro comorelator, depois como comentarista.

Teixeira Heizer justifica o fato de osjovens locutores não conhecerem seutrabalho como narrador de esporteslembrando que só Julio Delamare e ele

UM HOMEM PLURAL

TEIXEIRA HEIZER

Em matéria de jornalismo há muito ele brincanas onze, para usar imagem da sua área de

atuação, o esporte. Ele fez jornal, revista,rádio, televisão, livros, percorrendo uma

carreira jamais imaginada pelo menino deum pequeno distrito no Norte fluminense.

POR PAULO STEIN

PERFIL

transmitiam esportes amadores (comoeram chamados antigamente as outrasmodalidades esportivas, pois só o fu-tebol era considerado profissional), nasRádios Tupi e Continental, nos idos de50. Tinham terminologia própria paraa construção de suas narrativas:

– Outro dia, ouvindo um jogo devôlei, surpreendi-me ao ver que a ter-minologia e o jeito de narração eram osmesmos dos anos 50 e 60. Sem tirar omérito do trabalho do locutor, a trans-missão pouco acrescentava em termosde novidade artística e jornalística.

Heizer foi o primeiro empregado daTV Globo, registro nº 1, em 1965. Láatuou como adjunto da primeira dire-toria, co-apresentador de jornais echefe do departamento de esportes.

– Quando fui para a TV Globo, nemestúdios havia. Revivo com saudade asdificuldades da diretoria da qual fui as-sessor: Mauro Sales, Abdon Torres, Her-culano Siqueira e General Lauro Medei-ros. Fomos os pioneiros. Orgulho-me deter participado dessa primeira barricadaque abriu caminho para o êxito de hoje.

Na Globo, Heizer lançou os progra-mas Em Cima do Lance e Por Dentro daJogada. O primeiro trabalho externo foia filmagem do jogo Brasil x União So-viética, em novembro de 1965.

– Foi um esforço conjunto de cine-grafistas, editores, montadores e locu-tores da época, todos de primeiro time.As cenas do jogo, em sua maioria, fo-ram filmadas com uma “mudinha”,uma câmera que usava filme sem tri-lha sonora. José Carlos Araújo fez asreportagens de campo, com uma câme-ra Auricon, que fazia filmagens sono-ras. Tudo em preto e branco.

Antes, Heizer atuou na TV Conti-nental. Depois, na Excelsior, Tupi, Rioe Nacional de Brasília. No rádio, alémda Continental, brilhou na Globo e naNacional, nesta em nível de direção.

No jornalismo impresso, suas cartei-ras de trabalho assinalam passagens peloCorreio Fluminense, de Niterói, ÚltimaHora, Diário de Notícias, Rio Gráfica eEditora, Editora Abril, Empresa Brasi-leira de Notícias (diretor da SucursalRio) e O Estado de S. Paulo, onde foisubchefe de Redação da Sucursal Rio.

– Foram 23 anos no grande jornalpaulista, embutido nessa temporada operíodo da ditadura militar. Sofremosas mais duras perseguições. Como che-fe de reportagem, minha responsabi-

UFR

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lidade se multiplicou, mas em momen-to algum cedemos espaços ao regimediscricionário.

Teixeira Heizer relembra momentosde alta tensão como o exílio de colegasimportantes – Ferreira Gullar entre eles– além do infortúnio de MaurícioAzêdo, vitima de tortura desmedida.

– No Rio, tivemos diretores exem-plares: Prudente de Morais, neto, Fer-nando Pedreira e Villas-Bôas Corrêa.Eles ensinaram nosso grupo a ter dig-nidade diante dessa fase trágica da vidabrasileira.

Teixeira envolveu-se também nabibliografia esportiva, com uma obramuito acreditada, O Jogo Bruto dasCopas do Mundo, em dois volumes fes-tejados entre os leitores. Agora mesmo,

está convidado a construir uma histó-ria comentada das Olimpíadas, dandopreferência a fatos e feitos laterais, comtempero diferente dos livros de resul-tados, muito em moda.

Ele não se deteve nos trabalhos di-retos do jornalismo. Entendeu a neces-sidade de passar adiante seus conheci-mentos e mergulhou em outra ativida-de, na qual logrou sucesso: o magisté-rio. Como professor universitário for-mou enorme contingente de profissi-onais, espalhados pelos jornais, rádiose tevês de todo o Brasil. Um currículorobusto revela a competência de Teixei-ra Heizer. Voz, pena e ação em favor dasmanifestações informativas, educaci-onais e culturais que, certamente, bor-daram um espectro ainda mais bonitopara o Rio que ele tanto ama.

A extraordinária carreira de Teixei-ra Heizer não comportaria num currí-culo convencional. Vale, entretanto,reunir suas atividades – só as oficiais,registradas em contratos e carteirasprofissionais – que avançam de 1955 atéos dias de hoje, onde se vinculam aojornal O Dia e ao Canal Sportv, para seter a codificação de uma história anco-rada na ética e no esforço pessoal.

Dificilmente se conhecerá perfilcomo o de Teixeira Heizer, consideran-do o número de empregos formais poronde passou, com destaque para o Es-tado de S. Paulo, jornal em que atuou por23 anos, sobretudo em coberturas in-ternacionais como Copas do Mundo edecisões de títulos mundiais, e aoacompanhar o Santos do ciclo de Pelé.

FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

Teixeira Heizercomeçou no

jornalismo muitocedo, com 22 anos, etinha cara de menino

quando estreoucomo repórter de

Geral, entrevistandoo Presidente JK (ao

lado, à esquerda), equando colou grau

em Direito (4º daesquerda para a

direita, na segundafila). A juventude

não o impediu deapresentarprogramas

importantes, comoo Jornada Esportiva.

Teixeira atuou em um dos mais famosos programas da tv no começo dadécada de 60, o Noite de Gala, da TV Excelsior, que liderava a audiência.

Fraterno na convivência, desde cedo fez-se admirado e querido pelos colegas.

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Teixeira Heizer relembra os empe-cilhos que o destino opôs em seu cami-nho, desde a infância de caminhantedescalço no saibro da Estrada Rio–Bahia, até à vida sonhada em Paris,onde residiu, bordando uma formaçãocultural de bom refinamento. Provavel-mente, essas dificuldades tenham for-jado um espírito de profissional ven-cedor. Da estrada caipira mineira aMontparnasse foi um trajeto, nadamais do que isso, ele faz questão deassinalar, com certa ponta de orgulho,mas sem qualquer margem de soberba.

– Credito aos que lutaram comigo:a família e os amigos que tanto meorientaram em questões de dignidadee aos profissionais que me cercaram,revelando-me os secretos e espremidos

caminhos por onde passei nojornalismo. Claro que nãoposso me esquecer dos amigosde bar. Sem o formalismo quecodifica nosso aprendizadonas redações e estúdios, a gen-te aprende muita coisa boa.

Preferindo citar nomes semos hierarquizar, Teixeira Hei-zer arma seu catalogo:

Nos jornais e revistas – Pru-dente de Morais, neto, Villas-Bôas Corrêa, Mário da Cunha,Eucimar de Oliveira, Luiz Fer-nando Lima, Ivan Alves (opai), Ferreira Gullar, Fernan-do Pedreira, Álvaro Caldas,Luiz Carlos Cabral, AntônioCarlos de Carvalho, Luiz Gar-cia, Raul Bastos, Clóvis Ros-si, Ludemberg Góis, RicardoKotscho, Luiz Carlos Ramos,José Trajano, Geraldo Pedro-sa, Raul Quadros, MaurícioAzêdo, Mário Jorge Guima-rães, Ernesto Sotto, Helena

Celestino, Renato Maurício Prado,Hélio Cícero, Isabel Mauad, GilsonMonteiro, Nilson Lage, Luiz Luna, Van-derlino Nunes, Albert Laurence, Apa-rício Pires, Geraldo Escobar, SérgioPorto, Joel Silveira, Fernando Bruce,Sandro Moreyra, Geraldo Romualdoda Silva, Ary Guanabara e Silvio Fon-seca (estes dois, niteroienses que o lan-çaram e lhe ensinaram os primeirospassos no jornalismo)

No rádio – Luiz Brunini, ValdirAmaral, Oduvaldo Cozzi, Luiz Men-des, Mauro Pinheiro, Jorge de Souza,Celso Garcia, José Carlos Araújo, Do-alcei Camargo, Saint-Clair Lopes, LuizFernando Vassalo, Celso Guimarães,Antônio Cordeiro, Jorge Cúri e LuizAlberto.

Na tv – Dermeval Costalima, Anto-nino Seabra, Heli Celano, Paulo Gou-lart, Luiz Carlos Miele, Ronaldo Bos-coli, Péricles Amaral, Maurício Sher-man, Mário de Moraes, Mauro Sales,Abdon Torres e Herculano Siqueira.

(E eu, que me excluí da lista acima,porque, além do mais, sou companhei-ro de trabalho, aluno, filho adotado,amigo e afilhado. Na verdade, foi comele que aprendi a profissão e a ver adiferença entre o certo e o errado, a terética profissional.)

– A linguagem de cada área do jor-nalismo me foi passada pelos profissi-onais citados, a par de estudos pesso-ais sobre a ciência da comunicação so-cial. Meu modesto entendimento indi-ca que não devamos desprezar os con-ceitos passados. Afinal, dos conheci-mentos pretéritos surgirá a argamas-sa que construirá o futuro. Explicomais: a tecnologia não deve passar deum ingrediente importante, por sinal,para edificar nossa vida intelectual eprofissional – diz Teixeira Heizer.

JORNAIS E REVISTAS1954 a 1955 - Correio FluminenseCorreio FluminenseCorreio FluminenseCorreio FluminenseCorreio FluminenseRepórter

1955 a 1958 - Diário da NoiteDiário da NoiteDiário da NoiteDiário da NoiteDiário da Noite Repórter

1960 - Última HoraÚltima HoraÚltima HoraÚltima HoraÚltima Hora Repórter

1959 a 1982 - Estado de S.PEstado de S.PEstado de S.PEstado de S.PEstado de S.PauloauloauloauloauloRepórter, Coordenador de Editoria,Secretário e Chefe de Reportagem daSucursal do Rio

1960 a 1964 - Diário de NotíciasDiário de NotíciasDiário de NotíciasDiário de NotíciasDiário de NotíciasRepórter e Editor de Esportes

1961 a 1966 - Rio Gráfica e EditoraRio Gráfica e EditoraRio Gráfica e EditoraRio Gráfica e EditoraRio Gráfica e EditoraEditor de Revistas

1970 a 1973 - Editora AbrilEditora AbrilEditora AbrilEditora AbrilEditora AbrilRepórter das Revistas Placar eFreelancer de Veja

1986 a 1990 - Empresa BrasileiraEmpresa BrasileiraEmpresa BrasileiraEmpresa BrasileiraEmpresa Brasileirade Notíciasde Notíciasde Notíciasde Notíciasde Notícias Diretor da Sucursal/Rio

1990 - TTTTTribuna da Imprensaribuna da Imprensaribuna da Imprensaribuna da Imprensaribuna da ImprensaCopidesque durante a reforma

1992 - Última HoraÚltima HoraÚltima HoraÚltima HoraÚltima Hora Copidesque eEditor

1998 a 1999 e de 2006 atéhoje - O DiaO DiaO DiaO DiaO Dia Colunista

TELEVISÃO1961 a l964 – TTTTTV ContinentalV ContinentalV ContinentalV ContinentalV ContinentalProdutor e apresentador deprogramas, Coordenador doDepartamento de Esportes eNarrador de futebol

1965 a 1967 - TTTTTV GloboV GloboV GloboV GloboV GloboAssistente da diretoria, Chefedo setor de esportes, Editor eapresentador de programas eCo-apresentador do telejornaldiário

1967 a 1968 - TTTTTV ExcelsiorV ExcelsiorV ExcelsiorV ExcelsiorV ExcelsiorComentarista e Produtor doprograma Noite de Gala (umdos)

1971 a 1972 - TTTTTV TV TV TV TV Tupiupiupiupiupi Produtordos programas semanais deesportes e Comentarista

1973 a 1974 - TTTTTV Nacional deV Nacional deV Nacional deV Nacional deV Nacional deBrasíliaBrasíliaBrasíliaBrasíliaBrasília Participação noPrograma Operação 74

A TRAJETÓRIA: JORNAL, REVISTA, RÁDIO, TV

2002 - Globo News Globo News Globo News Globo News Globo News Série de 10programas Colecionadores de Copas

2005 a 2008 – SporSporSporSporSportvtvtvtvtv Comentáriosem programas

RÁDIO1955 a 1959 - Emissora ContinentalEmissora ContinentalEmissora ContinentalEmissora ContinentalEmissora ContinentalLocutor esportivo e Programas etransmissões

1963 a 1965 - Rádio GloboRádio GloboRádio GloboRádio GloboRádio Globo Locutoresportivo, Redator e Comentarista

1989 a 1990 - Rádio NacionalRádio NacionalRádio NacionalRádio NacionalRádio Nacional(Radiobrás)(Radiobrás)(Radiobrás)(Radiobrás)(Radiobrás) Diretor de Jornalismo,Produção e Esportes

MAGISTÉRIO1975 – Universidade Gama FilhoUniversidade Gama FilhoUniversidade Gama FilhoUniversidade Gama FilhoUniversidade Gama FilhoCoordenador do Curso deComunicação e Professor titular deJornalismo

1976 – FFFFFachaachaachaachaacha Professor adjunto

OS CAMINHOS DE UMCAIPIRA ATÉ PARIS

Um momento de descontração na entrega do Prêmio Melhores de 1970 na TVContinental, Canal 9. À esquerda, uma estrela que subia: Hebe Camargo.

Teixeira Heizer recebe a Medalha Tiradentes na Assembléia Legislativa doEstado do Rio. 0s presentes: Álvaro Caldas (1º à esquerda), Mário Cunha (2º),

Villas-Bôas (3º), Deputado Barbosa Porto (4º) e Eucimar de Oliveira (6º).

Teixeira comTelê Santana,

técnico daSeleção

Brasileira deFutebol em

1982 e 1986.

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7Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

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8 Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

CARLOS LACERDAESTA ENTREVISTA DERRUBOU

A CENSURA DO ESTADO NOVO

Publicado pelo Correio da Manhã em22 de fevereiro de 1945, este históricopronunciamento de José Américo de

Almeida, que liderara a Revolução de 1930no Nordeste, rompeu o silêncio imposto

pelo Departamento de Imprensa ePropaganda, o poderoso Dip de

Lourival Fontes, restaurou a liberdadede informação e de opinião e abriu

caminho para a própria deposição doditador Getúlio Vargas. Foi esse um dosmais notáveis trabalhos de um joveme talentoso jornalista: Carlos Lacerda.

ma negociação precedeu à publicação daquela que se-ria o marco da retomada da liberdade de imprensa noBrasil, depois do prolongado sufoco implantado pela de-cretação da ditadura do Estado Novo pelo PresidenteGetúlio Vargas em 10 de novembro de 1937: a publica-ção de longa entrevista do ex-Ministro da Viação José

Américo de Almeida, com a condenação de uma possível can-didatura de Vargas na eleição que deveria seguir-se ao fim daSegunda Guerra Mundial e uma análise minuciosa e abrangentedas atividades do Governo, com um teor crítico que não se co-nhecia desde o malsinado 10 de novembro.

Feita por um jovem e talentoso jornalista, Carlos Lacerda, aentrevista não constituía um fato apenas e estritamente jorna-lístico, pois integrava uma articulação que tinha em vista a der-ruição do poder do Estado Novo e que teria como depoente umapersonalidade cujas palavras ressoariam fortemente na opiniãopública. Seria José Américo de Almeida, líder paraibano que li-

U

Entre ostrabalhos que

deram renome aCarlos Lacerda

destacou-seesta memorável

entrevista comJosé Américode Almeida.

DOCUMENTO

JORNAL DO COMM

ERCIO

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9Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

“Nesta hora não me nego a falar. Aocontrário, julgo chegado o momento detodos os brasileiros opinarem. Esta éuma hora decisiva que exige a partici-pação de todos no rumo dos aconteci-mentos.”

Com estas palavras o Sr. José Amé-rico de Almeida, chefe civil da Revolu-ção de 30 no Norte, Ministro da Via-ção e depois candidato à Presidência daRepública, volta à participação ativa navida pública. Baseado precisamentenessas credenciais e na sua condição deescritor, o que, no seu modo de ver,importa em compromisso perante aopinião nacional, o Sr. José Américo,atualmente Ministro do Tribunal deContas, invoca as decisões do Primei-ro Congresso de Escritores Brasileiros,reunido em São Paulo em janeiro des-te ano, para acentuar a obrigação de oshomens de pensamento tomarem ati-tude ante “os problemas de sua épocae do seu povo”.

“Todos devem intervir na vida pú-blica, segundo sublinhou bem a Decla-ração de Princípios dos Escritores. Porisso mesmo saio do retraimento em queme tenho mantido para manifestaruma opinião sincera em relação aoproblema fundamental do meu País.”

Na varanda de sua casa da Rua Ge-túlio das Neves, com raras interrupções– a netinha que vem pedir um envelo-

derara a movimentação civil da Re-volução de 1930 no Nordeste, inte-grara o Governo Vargas até o adven-to do Estado Novo, como Ministroda Viação, e fora lançado candida-to à Presidência da República naeleição programada para 1938,abortada pelo golpe militar que im-plantou o Estado Novo.

Nessa articulação teve papel emi-nente um hábil político mineiro,Luís Camilo de Oliveira Neto, quetivera participação destacada eminfrutífera contestação do EstadoNovo, o Manifesto dos Mineiros, de1943, e não arrefecera no ânimo dederrubar a ditadura. A Luís Cami-lo se deve o êxito nos diferentespassos da articulação: convencerJosé Américo a conceder uma entre-vista-bomba; escolher um jornalis-ta que se impusesse previamemteà confiança do entrevistado; captara adesão de um jornal importantepara a publicação do pronuncia-mento. A escolha de Carlos Lacer-

A FALA DE JOSÉ AMÉRICOPOR CARLOS LACERDA

da não se dava por acaso: ele des-pontara cedo como um dos maisbrilhantes repórteres do País, aolado de outros jornalistas tão jovenscomo ele – Samuel Wainer, Joel Sil-veira, Edmar Morel.

Além da sua importância histó-rica, a entrevista agora reproduzi-da pelo Jornal da ABI oferece umavisão da técnica e do estilo jorna-lístico dominantes naquela primei-ra metade dos anos 40, os quais ex-perimentaram inegável refina-mento nos anos e nas décadas se-guintes, através tanto desses asesda imprensa como de outros quelhes sucederam. É possível verifi-car, com o olhar crítico de nossosdias, que o repórter intervém naexposição do entrevistado sem apertinência e o senso de oportuni-dade que se notam hoje; ora con-cede ao depoente largos espaços deopinamento, ora permite que estetransite de um tema para outrosem a harmonia desejável, sem o

encadeamento lógico dos aspectosexpostos ou analisados. Não seestá, porém, diante de tropeços natécnica jornalística: este não é umtrabalho meramente profissional,mas a produção de um documen-to político com fins determinados– aliás alcançados.

A escolha do Correio da Manhã

também não fora fortuita. Desde asua criação, em 1901, por Edmun-do Bittencourt, o jornal teve forteengajamento na vida política doPais, o que lhe impôs prisões, pro-cessos, proibições de circulação,perseguições de todo tipo. PauloBittencourt, seu herdeiro e suces-sor, manteve essa linha audaz, co-rajosa. Na mesma semana em quepublicou a entrevista de José Amé-rico, o Correio havia estampadodeclarações de um opositor do var-guismo, o gaúcho Flores da Cunha,que tivera participação destacadana Revolução de 1930 e governouo Rio Grande do Sul de 1935 a 1937,

quando foi deposto pelo EstadoNovo, e de Maurício de Lacerda, ex-deputado, líder da esquerda nosanos 20 e um dos mais notáveistribunos que o Brasil conheceu,virtude que, aliás, impregnou o dnade seu filho Carlos.

A publicação a seguir, mantidosos intertítulos do original, reproduzos textos mais expressivos da entre-vista de José Américo, cuja íntegrafoi obtida pelo Jornal da ABI no Sitedo Governo da Paraiba/FundaçãoJosé Américo de Almeida, que cul-tua seu ex-Governador e inovadorda literatura regional do País como celebrado romance A Bagaceira.

Registre-se que a habilidade deLuís Camilo de Oliveira Neto e seuscompanheiros de conspiração aten-tou para a necessidade de não se fa-zer alarde na apresentação da entre-vista, publicada com um título apa-rentemente inofensivo, neutro: Asituação: declaração do sr. José Amé-

rico. (Maurício Azêdo)

pe, a empregada que traz o café, a che-gada de um amigo –, na paz das sa-mambaias umbrosas, junto à massa doCorcovado, ao fundo da pequena rua,o Sr. José Américo faz as suas decla-rações. Em plena maturidade, sem osóculos que os caricaturistas celebriza-ram em duas espirais representandoas lentes grossas, baixando um pou-co a cabeça para falar, num jeito mo-desto e tímido, mas inexorável de di-zer as suas verdades, é indisfarçável aemoção com a qual ele se dirige à opi-nião brasileira.

“O povo me entende porque eu sem-pre procurei ser sincero, simples e di-reto. Falo de consciência tranqüila ecoração aberto”.

Para ele o problema nacional é me-nos político do que moral. “Acreditona existência da sensibilidade moraldo nosso povo. Não sou um desencan-tado. Sei quanto vale o homem brasi-leiro”.

Romancista da gente nordestina,ele acredita profundamente no vigoressencial do brasileiro. Sendo o primei-ro a proclamar a crise moral que lavrafundo na consciência nacional, consi-dera possível curá-la com os própriosrecursos da democracia, já que foi oregime autoritário que a agravou. Aautoridade das suas palavras provémmenos da experiência dos homens edas coisas do Brasil do que da manei-ra pela qual parece encarar essa pró-pria realidade.

José Américo seriao candidato de

Getúlio na eleiçãode 1938. Com o

golpe do EstadoNovo, Getúlio

derrubou a eleiçãoe o candidato.

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O Sr. José Américo é uma força te-lúrica. Parece, realmente, um homemprofundamente enraizado na terra. Asua emoção, hoje fortalecida pelo os-tracismo e pela dignidade com quesoube esperar, ressurge agora com aforça concentrada da longa meditaçãosobre os homens e os fatos do País.Não existe amargura, antes alegria,ainda que discreta, nas suas palavras.E ele se prepara, com um indisfarçá-vel orgulho, para enfrentar as con-seqüências de suas atitudes, conside-rando necessário falar agora, nuncadepois deste momento.

“No momento em que se pretendetransferir a responsabilidade da situa-ção dominante no Brasil da força quea apóia para a chancela do povo é aprópria ditadura expirante que nos dáa palavra.

É preciso que alguém fale, e fale alto,e diga tudo, custe o que custar”.

CLANDESTINIDADEE SINCERIDADE

“Já todos sabem o que se está proces-sando clandestinamente. Forja-se ummétodo destinado a legalizar poderesvigentes, a manter interventores e de-mais autoridades políticas, pela consa-gração de processos eleitorais capazes decoonestar essa transformação aparente.

Mas – acentua – uma Constituiçãooutorgada não será democrática por-que lhe falta a legitimidade originária.O projeto que se anuncia, mas que nãofoi ainda divulgado, devia ser subme-tido a uma comissão de notáveis e àconsideração de órgãos autorizados,como a Ordem dos Advogados, sempreatenta na defesa denossas tradições jurídi-cas e ideais democráti-cos, que nunca deixoude associar como cria-ções do mesmo espíri-to, para receber final-mente a aprovação oumodificação de umaAssembléia Constituinte, asseguradosdebates livres e capazes de permitiremque todos acompanhassem a elabora-ção da carta fundamental da Nação.Assim o documento seria legítimo.”

PALAVRAS AOCHEFE DO GOVERNO

O Sr. José Américo prossegue:“Nunca mais me avistei com o Sr.

Getúlio Vargas. Mas não somos inimi-gos. A habilidade que eu reconheço neleé a de não irritar adversários – pelomenos até uma certa época. Se eu pu-

desse ter um contacto com o Sr. Getú-lio Vargas, nesta hora, eu que lhe faleicom franqueza e não raro com provei-to pela fidelidade com que lhe transmi-tia a impressão de certos atos de gover-no, fora do âmbito palaciano, segundo

reconheceu na cartaque me dirigiu por oca-sião da minha saída doMinistério, eu lhe diria:

– Faça de conta quesou aquele Ministroque nunca lhe faltoucom a verdade.”

E a seguir enumera oSr. José Américo os argumentos que iriaapresentar ao seu antigo amigo e Chefede Governo para demovê-lo da idéia dese apresentar candidato á Presidênciada República, caso esse desejo esteja emsuas cogitações.

FALTA DE APOIOSegundo o Sr. José Américo, seriam

estes os argumentos:“1 – Falta de apoio do mundo polí-

tico. Amigos do Sr. Getúlio Vargas quelhe merecem a maior confiança já con-sultaram setores dos mais ponderáveisda opinião e chegaram à evidência deque lhe faltaria esse apoio imprescin-dível, não só para assegurar o êxito deuma eleição livre, como para autenti-car a nova feição do seu poder.

2 – Em conseqüência, ficaria o can-didato reduzido ao quadro atual dogoverno, restrito e fatigado.”

Passa o Sr. José Américo a fundamen-tar essas afirmações:

“O Brasil vai ingressar no seu mo-mento mais difícil. E precisa, sobretu-

do, da união nacional para encontraros meios necessários a uma estrutura-ção democrática apta a lhe dar substân-cia que fundamente a obra de restau-ração do após-guerra. Faz-se necessá-rio, para tamanha empresa, além doconcurso de massas, a utilização detodos os elementos de cooperação ca-paz, de todos os valores mobilizáveisda nacionalidade.

Precisamente isto – acentua – seriaimpossível se o atual Chefe do Gover-no se fizesse candidato. É certo quealguns chefes de Estado têm perma-necido no poder, em face da exigênciade problemas graves. Mas renovandoseu equipamento administrativo, oseu corpo de auxiliares. E quantomaior a crise, mas profunda essa mu-dança de valores.”

CRISE DE CONFIANÇA“Ora, essa substituição não poderia

realizar em conseqüência da crise deconfiança declarada no País. Para aten-der aos reclamos da pacificação naci-onal, numa obra comum – direi – desalvação pública, seria necessário queo Governo, como um todo, merecessea confiança dos democratas. Mas alonga prática do poder, sobretudo deum poder discricionário, vicia os seuselementos políticos e administrativos,incapacitando-os, perante a opinião,para uma obra de renovação cívica ematerial. Esse material humano já dis-põe de crédito para empreender umanova aventura. E não se pode cogitarde aventurar quando estão em jogo osdestinos supremos do Brasil. Já não sepode tentar nova experiência com esse

elemento, incapaz de eliminar volun-tariamente todos os vestígios do Go-verno autoritário, porque:

1 – Ele se tornou suspeito perante aopinião democrática.

2 – Devido ao seu insucesso na obraadministrativa.”

UM EXEMPLO: SÃO PAULOConseqüentemente, para o Sr. José

Américo, intimamente ligada à crise deconfiança política existe uma crise, tal-vez ainda mais profunda, de confiançana capacidade administrativa da equi-pe política que compõe o Governo.

“Vamos examinar um setor, porexemplo. E há de ser precisamente oexemplo da região nacional que, sen-do a mais organizada e eficiente, é a quemais produz riqueza: São Paulo. Queé São Paulo, atualmente?”.

E o Sr. José Américo sintetiza:“De vinte milhões cai para dois mi-

lhões de sacas a produção de café, en-quanto, pela proibição de novas cultu-ras, o cafezal existente, envelhecido,apresenta rendimento mínimo para ocusteio elevadíssimo. Comprometidoso presente e o futuro da produção al-godoeira. Um parque industrial nãorenovado, inclusive por imposiçõesoficiais, e que, portanto, não poderásuportar a concorrência da industriaestrangeira mesmo sob a proteção al-fandegária, quando ressurgirem osprodutores mundiais dotados de equi-pamentos modernos, ainda mais remu-nerador. Além do mais, lá, como emtodo o Brasil, o flagelo da inflação agra-vando todos os problemas e interesses.E – o que pareceria inconcebível ver-seem todas as terras de São Paulo – essegrande celeiro chegando a sofrer neces-sidade e apelar para a produção dosEstados do Sul porque, tendo sido ve-dadas às novas plantações de café, ces-sou a cultura alternada de cereais queera feita pelos colonos!

Basta esse quadro – continua – paramostrar que o Sr. Getúlio Vargas iriainiciar sem solução de continuidadeuma nova fase de governo exatamen-te quando se está a encerrar uma ou-tra e longa fase sem resultados compen-sadores.

Com a sua renúncia expressa à hi-pótese de sua candidatura, poderia elerecuperar sua popularidade. Reconci-liado, assim, com a opinião publica,deixaria um saldo para futuramenteressurgir, com a maior e mais justaprojeção.”

Eis nas suas serenas palavras o queo Sr. José Américo diria ao seu antigoamigo, o Presidente Getúlio Vargas,para evitar que por falta de uma adver-tência leal ele fosse levado a aceitar olançamento do seu nome a sua própriasucessão.

UMA GUERRAQUE É NOSSA

Passa depois a analisar a guerra e apaz nas suas relações com o momen-to nacional:

“Embora não queiramos sofrer influ-

“É preciso quealguém fale, e falealto, e diga tudo,custe o que custar.”

Matreiro, o Presidente lançou um movimento para ficar no poder após 15 anos. Era o“Constituinte com ou sem Getúlio Vargas” A entrevista de José Américo frustrou a manobra.

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CARLOS LACERDA ESTA ENTREVISTA DERRUBOU A CENSURA DO ESTADO NOVO

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ências estranhas, evidentemente oBrasil tem de receber os reflexos daguerra, do caráter ideológico da guer-ra, que é uma luta pela sobrevivênciae purificação da democracia. A guerra,com todos os seus males, é uma gran-de oportunidade para nos organizar-mos e ocuparmos o espaço territorialdo nosso País, desenvolvermos a explo-ração de nossas riquezas. A vitória queos nossos compatriotas da Força Expe-dicionária Brasileira foram buscar naEuropa é uma vitória atual para a nos-sa geração, sim, mas sobretudo umavitória para o futuro do Brasil. Já esta-va premeditada a partilha do nossoterritório, mesmo antes do litígio, comos países do Eixo, conforme documen-tos da maior gravidade que foram hátempos apreendidos, de maneira quetriunfantes esses países constituiría-mos um dos mais ricos despojos. Foi aresistência vital das democracias quesalvou a nossa independência.”

UNIÃO NACIONAL EHOMEM PROVIDENCIAL

“Para atender às solicitações daguerra à consciência dos brasileiros,precisa o País de um governo de con-centração nacional. Ora, um governonão se compõe de um só homem pro-videncial e de um povo anestesiado.Já há dias lembrava o meu amigo Adol-fo Konder que qualquer cidadão capazpode ser Presidente da República –verdade elementar que íamos esque-cendo. Um homem de bom senso eespírito amplo que convoque a coope-ração de todos os patriotas e se cerquede auxiliares que, pelo seu valor e ido-neidade, merecem a confiança nacio-nal, esse homem, sim, poderá realizaro grande governo de que o Brasil, maisdo que nunca, necessita. Assim, pois,reintegrado na ordem jurídica, fiadorados interesses nacionais e estrangei-ros que se disponham a colaborar nanossa riqueza, em ambiente de liber-dade e justiça e conduzindo por essapoderosa consciência de sua própriapredestinação, atravessará os dias di-

fíceis de reajustamento das novascondições do mundo. Só organizadonesses moldes poderá valorizar a suaexistência como nação e atender aosseus compromissos na reconstruçãodo mundo devastado. Um governo deequilíbrio, de ordem, de trabalho.”

A RESPONSABILIDADE DA CRISE“Costuma-se responsabilizar a guer-

ra pela depressão econômica do Brasil.

Não me parece que seja exato esse con-ceito. Nem que se diga que a mobiliza-ção de um contingente mínimo emrelação à nossa massa demográficadesviou atividades a ponto de prejudi-car a normalidade produtiva que, aocontrário, devia ter sido desenvolvida,à maneira do que ocorreu em todos ospaíses beligerantes exatamente paraatender às novas necessidades criadaspela luta. Ao invés, o Brasil tem vivi-

do, em parte, do estancamento e daparalisação de fontes produtoras, cau-sados pela guerra em outros países. Aguerra trouxe capitais, técnicos, coo-peração na solução dos nossos proble-mas, descoberta de riquezas e valori-zação de produtos. Alguns Estados doNordeste – para falar só nele – estari-am famintos se não fosse a localizaçãoe valorização de seus minérios e pro-dutos estratégicos.

De fato, a guerra prejudicou umpouco o abastecimento, mas unica-mente porque foi permitido exportarmais que o possível, com prejuízo doconsumo interno. Só a escassez dopetróleo poderia ser atribuída à guer-ra, mas isso acontece até nos paísesprodutores desse combustível e deveser levada à conta da ausência de esto-ques que deveriam ter sido feitos logoque se manifestaram os primeiros si-nais da tormenta a avizinhar-se.”

O Sr. José Américo fixa então o seuinterlocutor e declara:

“O que houve realmente foi o mai-or pecado: a imprevisão.”

IMPREVISÃO E INCAPACIDADE“De fato, por imprevisão, a guerra

nos surpreendeu já sem aparelhamentode transporte, com déficit de materialnas estradas de ferro, empresas de na-vegação desorganizadas, carência deprodução. Só assim se explica que asnossas cidades tenham chegado à cri-se de abastecimento que resulta:

1 – De falta de produção.2 – Da falta de transportes terrestres

e marítimos.3 – E, mais prejudicial, da especula-

ção que o Governo não teve forças paracontrolar.

E deve-se considerar também a de-sorganização geral, cujo sintoma maispenoso são as filas em que as popula-

“Um governo não secompõe de um sóhomem providencial ede um povo anestesiado.Já há dias lembrava omeu amigo AdolfoKonder que qualquercidadão capaz pode serPresidente da República– verdade elementar queíamos esquecendo.”

Com uniforme dechefe militar (ao

alto), que ele nãofoi, Getúlio chegou

ao Rio em 3 denovembro de 1930

para assumir aPresidência da

República, à qualse afeiçoou com

tal intensidade quesó um movimentomilitar conseguiu

apeá-lo do Catete,em 29 de outubro

de 1945. JoséAmérico, que

liderara aRevolução de 30

na Paraíba, deixouo cargo de

interventor federalno Estado e veiopara o Rio para

assumir oMinistério da

Viação e ObrasPúblicas. Na

entrevista, ele trataGetúlio como

amigo, que ambosforam, realmente.

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ções urbanas perdem o tempo e esgo-tam os nervos criando o ambiente deirritabilidade que já se pode observarcom certa inquietação.”

Há uma pausa na enumeração, visi-velmente destinada a assinalar o aspec-to seguinte:

“4 – O outro fator é a intervenção deum Estado desaparelhado e incapaz.Essa intervenção perturbou uns tantosproblemas que a iniciativa particularia conduzindo com relativa facilidade.O Estado incapaz, ao intervir, crioucasos de perturbação, ora pelo retrai-mento da iniciativa particular, ora peloseu iniludível efeito sobre o nível dospreços das utilidades.”

E assim, com a sua característicafranqueza, o Sr. José Américo feriu defrente a origem do problema do abas-tecimento, definindo a causa da criseda carne, do peixe, de ovos, do leite, damanteiga, do sal, etc.

“E – acrescentou ele – por que nãodizer do açúcar, em que se transfor-mou, aberrantemente, o fenômeno dasuperprodução em severo raciona-mento? Finalmente, da carência detudo que aflige a população e que seprocura em vão subtrair à responsa-bilidade do governo transferindo in-justamente essa responsabilidade àemergência da guerra.”

E muito simplesmente conclui:“Esta é que é a verdade e todos sabem

o que eu digo. Todos sentem e comen-tam essas deficiências e esses erros.Basta comparar o aumento do custo devida em países muito mais duramenteatingidos pela guerra com o de astronô-micas proporções que se registrou noBrasil para ver que a guerra não é a causaprincipal da nossa crise econômica. Porcerto, mesmo com a previsão, que fal-tou, seria difícil improvisar muita coi-sa. Mas, mesmo com a imprevisão que

evidentemente predominou, seria pos-sível improvisar muito, no terreno daprodução agrícola. Com a diversidadedos nossos climas, a caracterização deáreas de produção diversificável, seriapossível intensificar, em poucos meses,a produção de cereais e outros gênerosde primeira necessidade.”

CONCENTRAÇÃODE ESFORÇOS

O Sr. José Américo não nega que, “nodecorrer de tantos anos, e a partir de37, com uma soma de poderes que ne-nhum governante enfeixou no Brasil,ainda mais sem abalos da ordem públi-ca, o Governo tenha procurado enca-minhar alguns problemas. Por exem-plo, o da siderurgia”.

Mas acrescenta:“Houve, no entanto, o aban-

dono de iniciativas primárias,principalmente aquelas relaci-onadas com a produção e otransporte. É possível que te-nha prevalecido a preocupaçãode impressionar com empreen-dimentos de maior vulto, demodo a justificar a fisionomiado regime. Mas, se tais empre-endimentos absorveram aten-ções e recursos, não contribu-íram para preterir atividadesmais acessíveis e imediatas,destinadas, inclusive, a lastre-ar e garantir o êxito daquelas de mais re-motos resultados. É, em suma, um Go-verno que acaba exausto e impotente,apesar dos apelos imoderados à emissãode papel-moeda e da sangria fiscal.”

A POLÍTICA TRABALHISTAExaltada por muitos e desconheci-

da por outros, em menor número, alegislação trabalhista atual, que temsido tabu, passa a ser examinada pelo

Sr. José Américo do ponto de vista dasua aplicação efetiva:

“Ela é avançada no papel – afirma oMinistro – mas não produz os benefí-cios apregoados. Está atrofiada pelaburocracia e deformada pela propagan-da. Desvirtuou-se pelo desvio na apli-cação dos recursos acumulados pelacontribuição compulsória de emprega-dos e patrões. Falta-lhe um cunho maisprático de assistência social, pois aspensões mesquinhas que não dão paraviver são ainda retardadas por um pro-cesso moroso e dispendioso. Recolhi,neste particular, os depoimentos maisimparciais de chefes de indústrias emédicos de fábricas que em contatocom esta realidade reconhecem a pre-

cariedade da assistência oficial que setornou, assim, inoperante. Essa políticado trabalho infelizmente serviu menosaos interesses a que devia aplicar-se doque às paradas do regime com rigoro-sas sanções para os faltosos.”

A conclusão surge, inapelável:“Efetivamente, portanto, a legisla-

ção trabalhista não está amparando,como devia, o operário brasileiro.Mesmo que tivesse outra orientação,

estaria anulada nos seus efeitos pelafalência de sua função essencial, que égarantir o bem-estar do povo. Bastaverificar a situação de pobreza e misé-ria a que chegaram a classe média e aclasse trabalhadora, no conceito dopróprio General Góis Monteiro, em suarecente entrevista. Desde que falta oque comer, falta tudo. A fome é a su-prema necessidade.”

CANDIDATOS QUE PODEME QUE NÃO PODEM

“Só três brasileiros, na minha opi-nião, não podem ser candidatos à Pre-sidência da República nesta quadra. Osdois primeiro somos eu e meu antigocompetidor na malograda sucessãopresidencial de 37, o Sr. Armando deSales Oliveira. Na campanha da suces-são nós dividimos a opinião, como eranatural em momento de normalidadeeleitoral. Mas, hoje, precisamos estarunidos e contribuindo para a unifica-ção das forças políticas do Brasil embenefício da restauração democrática.”

E o terceiro inelegível?“O terceiro incompatível – afirma o

Sr. José Américo – é o Sr. Getúlio Var-gas, porque se incompatibilizou comas forças políticas do País. Malsinoutanto os políticos e as organizaçõespartidárias, em seus recentes discursos,que os mais sensíveis, isto é, os maisbriosos, já se arregimentaram contraele. E o que convém à Nação é um ho-mem capaz de fazer convergirem parao seu nome e o seu programa todas ascorrentes de elaboração.”

UM CANDIDATOIRREVELADO

“As forças políticas nacionais já têmum candidato. É um homem cheio deserviços à Pátria, representa uma garan-tia de retidão e de respeito à dignidadedo País. As preferências já foram fixa-das. Os campos estão definidos. Já quase

não há neutros. As posições es-tão ocupadas para a batalhapolítica.”

O Sr. José Américo acelerao ritmo de suas frases maslogo se refreia e observa:

“Nesta altura eu já estariasuspeito para falar em tercei-ro candidato. Mas, falandopor mim, com a minha res-ponsabilidade direta, não vejohomens, vejo soluções para oPaís. Se fosse possível supri-mir essa linha de separação econgregar os brasileiros paraque as energias não se consu-missem e desperdiçarem na

campanha eleitoral, mas em benefíciogeral no interesse do êxito dos proble-mas que mais os importam, se fossepossível encontrar, desde já, tão felizsolução, esta seria a forma mais indi-cada para a reconstrução política ematerial do Brasil.”

Acredita o Sr. José Américo que, nestecaso, o candidato não se oporia à apre-sentação de um terceiro. Formula assima sua confiança:

“A legislação trabalhista atual éavançada no papel, mas não produz osbenefícios apregoados. Está atrofiadapela burocracia e deformada pelapropaganda. Desvirtuou-se pelodesvio na aplicação dos recursosacumulados pela contribuiçãocompulsória de empregados e patrões.”

Apesar da contribuição de José Américo, com essa entrevista, ao movimento pela derrubada do Estado Novo, Getúlio não o considerouinimigo ou desafeto. Ao voltar ao poder como Presidente legitimado pelo voto, Getúlio mais uma vez lhe confiou o Ministério da Viação.

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“Nesta hipótese, acredito que a fór-mula de um terceiro candidato nãoseria recusada por aqueles mesmos quejá tivessem a certeza da vitória.”

E analisa a possibilidade da vitória dacandidatura do atual Chefe do Governo:

“Mesmo porque a vitória, caso fos-se vencedora a candidatura do Sr. Ge-túlio Vargas, seria apenas o começo denova luta a reacender-se no Brasil.”

Por quê? Responde o Sr. José Américo:“Com governos constituídos pela

oposição em vários Estados como SãoPaulo, Bahia, etc., uma Câmara dividida,a opinião a emergir alertada da sombrada censura, a inquietação suscitada peloperíodo de transformações políticas quese vai inaugurar no mundo em busca denovo padrão, de equilíbrio e aperfeiço-amento progressivo da democracia, am-pla liberdade de crítica que o regime quese vai instituir tem de franquear paranão renegar sua própria essência, a vi-tória da candidatura Getúlio Vargas, nascondições em que se debate o Brasil, comtodos os seus elos de coesão desfeitos,inclusive os partidários, seria enfim omergulho na anarquia.

Poderia alguém governar nesse caso?A precariedade, ou melhor, a gravidadedas condições gerais é que impõe a as-sistência de todos os brasileiros à tare-fa de dirimir tais crises e dificuldades,o que só se positivaria em torno de umafigura que atraísse a confiança geral.”

Eis por que o Sr. José Américo declara:“Sem ter consultado ninguém, e

apenas como resultado de minhas ob-servações, conduzo-me nesta hora pelainspiração patriótica com que, ao apa-gar das luzes de 1937, me prontifiqueia renunciar em favor de um terceirocandidato, procurando desse modoconjurar o golpe de Estado então imi-nente. O General Eurico Gaspar Dutrae o Sr. Batista Luzardo são testemunhasdos passos espontâneos que dei nessesentido. Certo de que os outros têmainda mais pronta do que eu a capaci-dade de renunciar e de abrir mão de

vitórias pessoais, quando assim o im-põe o bem do País, é que proponho essaindicação capaz de criar a unidade na-cional mais instante do que sempre.Não tenho dúvida de que o nosso can-didato anuiria à escolha de um tercei-ro, uma vez afastada a possibilidade dacandidatura do Sr. Getúlio Vargas.”

NOVAS PERSPECTIVAS“Encontraríamos assim o caminho da

paz interna com que ajudaríamos a sus-tentar com os nossos aliados a paz e asegurança universais e do futuro esplen-doroso que nos aguarda no após-guer-ra, se tivermos juízo e patriotismo, com-preensão e desprendimento, cada umvoltado menos para o seu egoísmo do

que para as perspectivas dagrande civilização que po-deremos fundar nessanova etapa do mundo.

Nosso bom povo doBrasil merece respeito pelasua sorte e pelas suas de-cisões. Já disse que confionele. Deverá esse Brasil dofuturo valorizar o homem,esse homem resistenteque realiza o milagre dasobrevivência entre tan-tos fatores adversos e tan-to abandono da sua pró-pria condição humana.Precisamos tratar da saú-de desde o nascimento,reduzindo essa espantosamortalidade infantil querepresenta o maior desfal-que para o nosso progres-so natural. Precisamos re-solver o problema da casa,que eu disse ter solução,quando fui candidato.”

“Eu sei onde está o di-nheiro”, disse o Sr. JoséAmérico num discurso fa-moso, referindo-se ao cus-teio da habitação popularcom o dinheiro acumulado

pelos Institutos, mas que hoje não se po-deria resolver depois de tanto tempo desoluções minguadas tentadas pelos Ins-titutos, pelo simples motivo de que umacasa padronizada, que naquele tempocustaria quinze contos, ficaria hoje porcinqüenta e sessenta mil cruzeiros.

“O novo Governo terá de cuidar daalimentação que já era precária e foiagravada, nos últimos anos, pela mai-or crise de abastecimento de que hánotícia em nossa história. Deverá cui-dar da educação não pelo primitivismodo A B C, mas para preparar a criançapara a vida moderna. Terá de reformara política e sobretudo os costumes paraque o homem brasileiro possa ficar aonível dos povos livres, civilizados e

“O novo Governo terá de cuidar da alimentação que já era precária e foi agravada,nos últimos anos, pela maior crise de abastecimento de que há notícia em nossahistória. Deverá cuidar da educação não pelo primitivismo do A B C, mas parapreparar a criança para a vida moderna. Terá de reformar a política e sobretudoos costumes para que o homem brasileiro possa ficar ao nível dos povos livres,civilizados e eficientes e à altura da grandeza da terra que a Providência lhe doou.”

eficientes e à altura da grandeza daterra que a Providência lhe doou.”

AFIRMAÇÃO DARESPONSABILIDADE NACIONAL

“Os problemas do presente e os dofuturo imediato, na recuperação dademocracia, na sua revalorização, naprodução e intensificação da riquezanacional, dependem no momento – nãome canso de repetir – da união de todosos valores da vida brasileira, da conju-gação dos esforços de todo o povo.

Pelos motivos expostos, consideroinviável a eleição do Sr. Getúlio Vargas,dos seus interventores, da sua estafa-da máquina administrativa, do seureduzido quadro político. Reproduzoaqui o que tenho meditado e o que di-ria ao Sr. Getúlio Vargas, pessoalmen-te, caso me fosse facultada essa opor-tunidade. Com isso dou-lhe uma pro-va de que não me desinteressei de todopela sua sorte e, ainda mais, como sem-pre tenho procurado fazer, do respei-to ainda maior que devo à verdade.”

E o Sr. José Américo conclui pelaafirmação de que mais vale a luta doque a estagnação:

“Caso, porém, não se verifique adesistência da sua propalada candida-tura, ainda pior do que a luta da suces-são é a estagnação do espírito públi-co. Neste caso, uma campanha de res-peito recíproco, de garantias cívicasefetivamente asseguradas por autori-dades insuspeitas, um severo regimede responsabilidade para os agentes doPoder que se utilizem da máquina ad-ministrativa, dos dinheiros públicosou da força para fins partidários, ofuncionamento da Justiça Eleitoral,um pleito sinceramente efetuado, noqual o vencido pudesse respeitar ovencedor, submetendo-se ao resulta-do das urnas, seria também – e quan-to! – uma forma de paz, paz nacional,de união do Brasil. A eleição por pro-cessos idôneos não desune. Ela recon-cilia a Nação consigo mesma e resta-belece o rumo do seu legítimo desti-no democrático.”

CUMPRIMENTODE UM DEVER

Ao finalizar a sua entrevista, o Sr.José Américo declarou:

“Cumpri um dever. Falei por mim esinto ter interpretado também o pen-samento ainda vedado do povo brasi-leiro. Fui levado a exprimir-me destaforma por um poder de determinaçãoque nunca me abandonou nos momen-tos decisivos.”

Ao defender a candidatura de “um homem de bom sensoe espírito amplo”, José Américo pensava no Brigadeiro

Eduardo Gomes, herói dos 18 do Forte. O eleito foi o GeneralEurico Dutra (foto), que bancou o golpe do Estado Novo.

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15Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

Diretor do primeiro jornal de oposição criadoapós o golpe militar, a Folha da Semana, ele foi

cassado com apenas 26 anos pelo ditadorCastelo Branco. Começava o seu tormento de

torturado e exilado, sem que as puniçõesimpedissem sua ascensão como jornalista,

escritor e, acreditem, compositor, parceiro deBaden Powell e do Mestre Candeia da Portela.

POR BERNARDO COSTA

mais jovem brasileiro (26 anos na época) a ter os direitos políti-cos cassados, Arthur Poerner se destacou na imprensa brasileirapor sua atuação contra o regime militar no Correio da Manhã.Como aluno de Direito da Faculdade Nacional, participava ati-vamente do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira-Caco e fa-zia a ponte entre o jornal e os estudantes.

Na literatura, também resistia à ditadura, escrevendo livros de con-teúdo político e de protesto. Em 1968, publicou pela Civilização Brasi-leira sua mais importante obra: O Poder Jovem – História da Participação

Política dos Estudantes Brasileiros, proibido no início do ano seguinte emtodo o território nacional.

Aqui, o jornalista e Conselheiro da ABI conta como foi sua prisão naredação do Correio da Manhã e sua passagem pelos porões do Doi-Codi,na Rua Barão de Mesquita, que serviu de base para o romance Nas Pro-

fundas do Inferno, publicado na Espanha quando já estava exilado. Falaainda das parcerias musicais com Baden Powell, João do Vale e Candeia,com quem se correspondia de Berlim para saber notícias da Portela e domundo do samba.

Sempre atuando junto aos jovens, dando palestras em universidadesde todo o País, lecionando Jornalismo na Uerj e acompanhando a UniãoNacional dos Estudantes-Une, Poerner conta que vê no jovem de hoje omesmo interesse em mudar o mundo que havia em sua geração.

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JORNAL DA ABI – QUANDO ADOLESCENTE,NO COLÉGIO AMARO CAVALCÂNTI, VOCÊ PARTI-CIPOU DE UM JORNAL. VEM DESSA ÉPOCA SEU

INTERESSE PELO JORNALISMO?

Arthur Poerner – É anterior ainda.Nasci no Rio Comprido e cresci naLapa, onde, na Rua Gomes Freire, fica-va o Correio da Manhã. Eu me lembrode que naquela época havia um alma-naque anual do jornal, uma espécie debrinde de fim de ano, que era distribu-ído ali mesmo. Li aquele almanaque efiquei fascinado. Na verdade, sempregostei de ler e tinha uma propensãogrande a escrever. Era bom em redaçãoe me destacava na escola pelos textos,o que me dava certo prestígio com osprofessores. Já no ginásio, no AmaroCavalcânti, no Largo do Machado, eue alguns colegas nos aventuramos afazer um jornal muito modesto, alémde um time de futebol com carteirinhade sócio e tudo. Mais tarde, na EscolaNaval, quis escrever para a revista Afragata. Enfim, sempre gostei dessa ati-vidade, desde pequeno.

JORNAL DA ABI — E COMO FOI A ESTRÉIA

PROFISSIONAL?

Poerner — Minha família era bem po-bre e havia uma espécie de acordo táci-to, pelo qual meus pais garantiriam oginásio a mim e ao meu irmão, e depoisa gente teria que trabalhar e se virar. Fuiboy, bancário, fiz várias coisas até sur-gir a oportunidade de fazer o concursopara o Colégio Naval. Passei, fui estu-dar lá e, em seguida, na Escola Naval,mas acabei sendo desligado por indis-ciplina. Já era um rebelde, embora ain-da sem causa. Aí, deu para ir sobreviven-do, mas não me sentia bem nos empre-gos que conseguia, não encontrava algoque realmente gostasse de fazer. Atéque, por intermédio do pai de um ex-colega da Marinha, conheci o WagnerTeixeira, um jornalista importante queme levou para o Jornal do Commercio, em1962. No momento em que entrei na-quela Redação, onde me senti absolu-

tamente integrado desde o início, per-cebi que tinha acabado minha buscavocacional, que o jornalismo era a mi-nha profissão.

JORNAL DA ABI – POR QUE, EM 1964, VOCÊ

FOI ESTUDAR DIREITO?

Poerner – Senti que era importantefazer uma universidade, ampliar meusconhecimentos. Como na época nãoexistiam cursos de Comunicação, come-cei a pensar em uma cadeira que pudesseenriquecer a atividade jornalística, àqual pretendia me dedicar, e presteivestibular para a Faculdade Nacional deDireito, o que de fato foi muito útil, por-que eu fazia jornalismo político – semcontar que comecei a me integrar nomovimento estudantil e entrei no Cen-tro Acadêmico Cândido de Oliveira,uma das mais antigas instituições de re-presentação de estudantes do País.

Fazer parte do Caco, ser jornalistae começar a escrever livros deconteúdo político foram fa-tores que contribuíram paraeu me destacar na carreira e,também, ser punido pela di-tadura. Tanto é que estreeiem 1962 como repórter doJornal do Commercio e já em5 de julho de 1966, com 26anos, fui o brasileiro mais jo-vem a ter os direitos políti-cos suspensos por dez anos,por decreto presidencial doMarechal Castelo Branco.Pouco antes, em maio, hou-ve um movimento dos jorna-listas, centralizado na ABI,para a eleição de cinco repre-sentantes da categoria parao Diretório Regional do Mo-vimento Democrático Brasi-leiro-MDB, partido de opo-sição. Fui um dos escolhidos,junto com Paulo Silveira, JoséLuiz da Costa Pereira, Her-mano Alves e Fabiano Vila-nova Machado. Era um pas-

so para ser candidato nas eleições de1966, tanto que o Hermano foi eleito de-putado federal e o Fabiano, estadual. Eeu já estava com os direitos cassados.

JORNAL DA ABI – CONTE MAIS SOBRE AS

MANIFESTAÇÕES ESTUDANTIS DA ÉPOCA.

Poerner – Havia uma atividade mui-to grande. Hoje, muita gente cobra dosestudantes essa mesma hegemonia, masé impossível, pois o movimento estu-dantil, atualmente, é um entre váriosmovimentos sociais. Na ditadura, todosos outros focos de resistência – como osindicalismo urbano e o rural, ainda in-cipiente – tinham sido eliminados e osestudantes assumiram a dianteira nocombate ao regime, os protestos, as pas-seatas. Como participante do Caco e re-dator do Correio da Manhã, que lidera-va a resistência à ditadura na impren-sa, eu era um ponto de contato entre osestudantes e o jornal.

JORNAL DA ABI – QUAL ERA A SUA EDITO-RIA NO CORREIO DA MANHÃ?

Poerner – Eu cobria política externa,no Itamarati, e tinha ali como colegas,entre outros, o Sérgio Cabral, creden-ciado pela Folha de S.Paulo, e o Elio Gas-pari, do Diário de São Paulo. Em 1965,fui cobrir o encontro dos chanceleresbrasileiro e argentino, que articulavamuma frente contra o Chile, país entãoainda a salvo das ditaduras no ConeSul. Quando voltei de Buenos Aires,propus a Niomar Moniz Sodré Bitten-court, proprietária e Diretora do Cor-reio da Manhã, ir a Montevidéu fazerum levantamento de como estavam osexilados brasileiros e tentar entrevis-tar o ex-Governador Leonel Brizola. Efoi o que fiz. Em decorrência disso,quando retornei ao Rio, minha creden-cial no Itamarati foi cassada pelo Secre-tário-Geral Pio Corrêa, que tinha sidoEmbaixador no Uruguai. Foi a primeira

A pedido do editor Ênio Silveira, da Editora Civilização Brasileira, Poerner foi àArgélia entrevistar o Governador cassado de Pernambuco, Miguel Arrais (foto), que

se exilara lá. Voltou com material para o livro Argélia, O Caminho da Independência.

Poerner lançou O Poder Jovem quando fervia a resistência estudantil. Por isso foi convidado a carregar o caixão do estudante Edson Luiz, assassinado pela repressão. Poerner é o último à direita.

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punição que recebi da ditadura e tevegrande repercussão, com protestos daABI e no Congresso Nacional. Passei air aos botecos da antiga Rua Larga, pertodo Palácio do Itamarati, esperar que oGaspari e o Cabral me passassem infor-mações que pudesse levar ao Correio daManhã.

JORNAL DA ABI – COMO VOCÊ SE TORNOU

DIRETOR DA FOLHA DA SEMANA?

Poerner – Em protesto contra o golpemilitar, ingressei no Partido Comunista,que tinha um semanário legal circulan-do nas bancas. Com a edição do AI-2, queinstaurou o bipartidarismo, permitindoa existência apenas da Arena e do MDB,o Diretor dos dez primeiros números daFolha da Semana, Alfredo Tranjan, advo-gado famoso e então deputado estadu-al, renunciou ao posto. Então, o Maurí-cio Azêdo, hoje Presidente da ABI, o Sér-gio Cabral e outros que já colaboravamcom o jornal me convidaram a assumiro cargo, em que permaneci até ter osmeus direitos políticos suspensos.

JORNAL DA ABI – FALE UM POUCO DO INÍ-CIO DE SUA CARREIRA COMO ESCRITOR. A PO-LÍTICA É SUA MAIOR MOTIVAÇÃO LITERÁRIA?

Poerner – Sem dúvida, acho que sem-

pre escrevo no sentido de esclarecer edivulgar a realidade existente e inter-ferir nela de maneira positiva. Minhaestréia foi com Assim Marcha a Famí-lia, organizado em 1965 pelo José Lou-zeiro, que convidou alguns colegas paraescreverem o livro, que mostrava osverdadeiros problemas que deveriamter mobilizado as senhoras das “mar-chas da família com Deus pela liberda-de” – e, evidentemente pela proprieda-de. Era um livro de protesto, que teveproblemas em vários Estados e foi pre-faciado pelo Carlos Heitor Cony. Fiqueicom o tema moradia, que me trouxe al-gumas experiências interessantes. NaMangueira, por exemplo, conheci o Car-tola, que se tornou um grande amigo.

Ainda em 1965, ocorreu um fato de-terminante em minha vida. O MiguelArraes, preso no dia do golpe como Go-vernador de Pernambuco e levado paraFernando de Noronha, conseguiu umhabeas corpus, veio para o Rio e pediuasilo na Embaixada da Argélia. Amigosdele me escalaram para a missão deacompanhá-lo e acabei ficando trêsmeses e meio naquele país, que tinha setornado independente em 1962, após132 anos de domínio francês. Lá, rece-bi um convite do Ênio Silveira, editor da

Civilização Brasileira, para escrever umlivro sobre a realidade argelina, pois nãohavia nenhum em língua portuguesa.Argélia: O Caminho da Independência foipublicado em 1966 e algumas correnteso consideraram a favor da luta armada,embora não fosse esta a minha inten-ção. Durante muitos anos, era sempreprocurado quando um novo embaixa-dor daqui era designado para a Argélia,para conversar sobre o país.

JORNAL DA ABI – O PODER JOVEM: HISTÓ-RIA DA PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DOS ESTUDAN-TES BRASILEIROS FOI PUBLICADO EM JULHO DE

1968, DEPOIS DA PASSEATA DOS CEM MIL EANTES DO AI-5, QUANDO SE TINHA A ILUSÃO DE

QUE A ABERTURA ESTAVA PRÓXIMA. HOUVE,NESSE MOMENTO, UMA DEMANDA MAIOR DE LI-VROS DE CONTEÚDO POLÍTICO?

Poerner – Até o AI-5, muitas obrastentavam explicar e compreendercomo o golpe tinha sido possível. Averdade era que nós, brasileiros, já nosconsiderávamos a salvo desse tipo deintervenção militar. Lembro que em1963 houve um golpe no Equador con-tra o Presidente Arosemena e os co-mentários aqui eram de que nós já es-távamos em outra fase, acreditávamosmesmo que não éramos mais uma re-

pública “bananeira”. E, de repente, umgoverno constitucionalmente eleito éderrubado.

Na área editorial, a Civilização Bra-sileira representava a mesma resistên-cia que o Correio da Manhã no jorna-lismo e os estudantes no movimentosocial. O Ênio Silveira me apressava aconcluir O Poder Jovem; quando ele jáestava com os originais, o Edson Luísfoi assassinado. Tive que escrever umanota suplementar. Nesse episódio, comoas lideranças estudantis já sabiam queeu estava escrevendo o livro, fui con-vidado para carregar o caixão. O Ênioachava que O Poder Jovem era muitoforte, mesmo com as perspectivas deque se poderia avançar no processo dedemocratização naquele momento, eme pediu um outro prefácio além doque já tinha sido escrito pelo AntônioHouaiss. O primeiro nome que ele mepropôs foi Magalhães Pinto, que eraMinistro das Relações Exteriores enaquela altura já tinha adotado umalinha mais moderada, mas eu não acei-tei, porque não queria ter meu nomeassociado a alguém que tinha tido par-ticipação no golpe militar. Aí veio o 1ºde maio de 1968 e o Abreu Sodré, en-tão Governador de São Paulo, permi-

Poerner pós-exílio: com Fernando Gabeira, com o qual convivera na Europa, e entrevistado pela turma do Pasquim: Fausto Wolff, ao fundo, Argemiro Ferreira, Jaguar.

Exilado na Alemanha, Poerner entrevista Didi, técnico da Seleção do Peru na Copa de 1974. Ao lado, num encontro com Luís Carlos Prestes, Raul Ryff e José Louzeiro.

FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

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tiu a comemoração do Dia do Trabalha-dor e foi às manifestações, sendo inclu-sive apedrejado pelo povo que protes-tava contra a repressão. O Ênio logo su-geriu que ele escrevesse o prefácio, mastambém resisti. Quando vi que ele nãoia desistir, eu me lembrei de uma entre-vista que tinha feito com o General PeriBevilaqua, nacionalista que depois sedestacaria muito no Superior TribunalMilitar contra o absurdo das punições,sendo também punido após o AI-5. Eleacabou fazendo o prefácio e o texto doHouaiss ficou sendo a apresentação.

JORNAL DA ABI – O LIVRO FOI UM DOS PRIMEI-ROS OFICIALMENTE PROIBIDOS PELA DITADURA.

Poerner – Sim, ao lado de 19 obrasde autores como Che Guevara, MaoTse-tung e mais um único brasileiroalém de mim, Nelson Werneck Sodré,com História Militar do Brasil. A Vejaestreou 1968 trazendo na última pági-na a lista dos mais vendidos e O PoderJovem ficou lá muitas semanas. Foi umaalegria descobrir que, quando manda-ram apreender o livro, ele já estavaesgotado. Anos depois, no exílio, recebiuma segunda edição clandestina, fei-ta por estudantes da Puc-SP em 1977,quando o movimento estudantil vol-tou às ruas para lutar pela anistia.

JORNAL DA ABI – CONTE O QUE ACONTECEU NO

CORREIO DA MANHÃ COM A NOTÍCIA DO AI-5.

Poerner – Lembro bem do dia 13 dedezembro de 1968. Não havia nada noItamarati, porque o Ministério estavareunido com o Presidente MarechalCosta e Silva no Rio, para tomar umaatitude diante da recusa do Congres-so em processar o Deputado MárcioMoreira Alves, meu colega de jornal.Liguei para o Peralva, Diretor de Reda-ção, que recomendou: “Se eu fosse você,hoje nem viria aqui.” Eu disse que que-ria ficar a par dos acontecimentos, e eleretrucou: “Se quiser vir, venha. Mas nãogaranto que consiga sair.” E tinha todarazão. Quando o radialista Alberto Cúricomeçou a ler em cadeia nacional otexto do AI-5, o jornal foi invadido. OPeralva desceu para ver o que estavaacontecendo e foi imediatamente alge-mado e jogado num camburão. Lá emcima, nos avisaram que os militares es-tavam atrás de mim, do Edmundo Mo-niz e do Franklin de Oliveira. Corremospara o andar da oficina e fugimos poruma janela que dava para os fundos deum prédio da Rua do Lavradio, ondepassamos a noite.

No meio desses momentos trágicos,houve um episódio engraçado. A Nio-mar, que era prima e cunhada do Ed-mundo, armou um esquema para tirá-lo dali: mandou um macacão para elevestir e se misturar aos operários quetrabalhavam no jornal. Só que o Ed-mundo tinha sido tuberculoso na mo-cidade, tomava muito cuidado comventos e, mesmo no verão carioca, sem-pre andava de terno escuro e colete.Então, ficamos Franklin e eu ali nochão, julgando se o Edmundo já esta-va com aparência de operário; ele se

apresentava, nós o reprovávamos segui-das vezes. Até que, finalmente, depoisde confiscarmos o relógio e os óculoscom hastes de ouro, ele pôde sair con-forme o plano e seguiu direto para aEmbaixada do México. No dia seguin-te, Franklin e eu fomos avisados de quepodíamos sair, mas não devíamos ir àRedação. Passamos a escrever com pseu-dônimo – eu era Américo Paiva. Caí naclandestinidade até ser convidado peloPC para representar a esquerda brasilei-ra num evento na Finlândia, com a re-comendação de me manter lá fora o

máximo possível. Então, da Finlândia,fui para a Iugoslávia, a Polônia, a Argé-lia e outros países, onde fazia alguns tra-balhos como jornalista e ia me virando.Até que tive que retornar ao Brasil.

JORNAL DA ABI — E AÍ VOCÊ FOI PRESO...

Poerner – Pois é. O Correio já tinhasido arrendado pelos irmãos Alencar eestava engajado na campanha do Coro-nel Mário Andreazza para a Presidên-cia. Fazia meu trabalho discretamente,mas em 2 de abril de 1970 fui preso naRedação, levado para o Dops e depois

para o Doi-Codi, onde fiquei três mesese meio. Quando saí, fui demitido e ti-nha que me apresentar toda quinta-feirano Ministério do Exército, na Praça daRepública, para assinar uma lista ates-tando que eu estava no Rio.

Então, decidi que tinha que sair doPaís, o que aconteceu graças a umaarticulação com a Embaixada alemã,que estava organizando a Feira do Li-vro de Frankfurt e me convidou a par-ticipar, juntamente com Jorge Amado,Adonias Filho e Eduardo Portela. Pedio visto ao Coronel a quem me apresen-tava toda semana e, diante da primei-ra negativa, argumentei: “Mas vocêsnão vivem dizendo que o Brasil sofreuma campanha de deformação de suaimagem no exterior? Estou sendo con-vidado pelo Embaixador alemão, quesabe que eu quero ir. O que ele vai pen-sar?” Consegui o passaporte, mas naAlemanha fui avisado por um diploma-ta do Itamarati de que não o apresen-tasse em lugar nenhum, pois ia serapreendido. Então, tive que pedir asi-lo político.

JORNAL DA ABI – LÁ VOCÊ ESCREVEU MAIS

DOIS LIVROS.

Poerner – Primeiro, fui convidado aparticipar de Memórias do Exílio, de au-toria coletiva. Depois veio o romance Nasprofundas do inferno, a digestão de tudoo que eu tinha visto e vivido na prisão.

JORNAL DA ABI – O QUE O MOTIVOU A ES-CREVÊ-LO JÁ LONGE DO PERIGO?

Poerner – Mesmo estando a salvo,ainda tinha pesadelos e às vezes acor-dava pensando que estava na Barão deMesquita, no Doi-Codi. Aquelas coisasterríveis me perseguiam. Pensei emescrever sobre isso e tomei a decisão aoler sobre a função terapêutica da lite-ratura e da arte em geral, muito usadapor Nise da Silveira no tratamento depacientes psiquiátricos no Engenho deDentro. Comecei a me sentir melhor namedida em que escrevia sobre minhaexperiência. Na mesma época, o (Fer-nando) Gabeira, que tinha estado presocomigo, escrevia O Que é Isso, Compa-nheiro? e de vez em quando me ligavada Suécia para confirmar algumas coi-sas, como o nome exato da Folha da Se-mana. Ele escreveu, de certa forma, járejeitando a experiência; eu busqueioutro caminho, mesclando alguma fic-ção para ter mais liberdade, para nãocitar certos nomes, e sem amargura elamentações, pois aquela tinha sidouma luta necessária. Minha intençãoera mostrar as atrocidades e os tipos detorturadores. Tinha aqueles que con-fiavam no método para chegar à verda-de, acreditando que se uma pessoa re-cebe uma carga de tantos volts e con-tinua dizendo que não sabe de nada nãodeve estar mentindo, pois ninguémagüenta aquilo. Mas havia os que nãoestavam interessados na verdade, e simno prazer de torturar. Quando o livro fi-cou pronto, consegui fazê-lo chegar aoBrasil, mas nem a mobilização de gen-te como Chico Buarque viabilizou a pu-

A familiaridade de Poerner com a política e a cultura: com o GovernadorLeonel Brizola, o ator e diretor teatral Sérgio Brito e com o arquiteto Oscar Niemeyer.

ARTHUR POERNER O MAIS JOVEM DOS CASSADOS PELA DITADURA

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blicação aqui. Então, o Jorge Amado,autor do prefácio, me encaminhou àagente literária dele em Barcelona e NasProfundas saiu na Espanha, em 1978, elogo depois na Itália, onde recebeu prê-mio de literatura estrangeira. Em 1979,com a abertura, finalmente foi editadono Brasil, com o prefácio do Jorge e ore-lha do Alceu Amoroso Lima.

JORNAL DA ABI – FOI POSSÍVEL TRABALHAR

COMO JORNALISTA NO EXÍLIO?

Poerner – Tive muita sorte nesse sen-tido. Estabeleci contato com o Pasquime em 1971 comecei a colaborar com ojornal. No ano seguinte, a Rádio Vozda Alemanha, que transmitia para 34países, me chamou para trabalhar. Logosurgiram convitesde jornais e tvs ale-mãs e também dePortugal, sobretu-do depois da aber-tura, em 25 de abrilde 1974. O Gabeira,por exemplo, traba-lhou numa loja deroupas, substituin-do etiquetas asiáti-cas por européias,foi motorneiro demetrô... Um doscasos mais patéti-cos de que tive conhecimento foi o deum advogado que tinha sido Secretá-rio de Segurança ou Justiça do MiguelArraes e trabalhava como vigia notur-no em Paris. Isso é terrível, é um duploexílio, de país e de profissão. Disto, fe-lizmente, fui poupado.

JORNAL DA ABI – EM 1979 O SENHOR VOL-TOU AO BRASIL, MAS NÃO DEFINITIVAMENTE.POR QUE RETORNOU À ALEMANHA?

Poerner – Cheguei aqui num mo-mento de muita festa e alegria, mas pre-cisava de emprego. Não poderia ficarno Brasil sem trabalho. Como não con-segui nada e o salário da rádio alemã mepermitiria viajar para cá uma vez porano, voltei para lá. Depois, o MinoCarta me convidou para ser correspon-dente da IstoÉ na Alemanha e países li-mítrofes, e eu fui ficando. Até que jun-tei dinheiro para comprar um aparta-mento no Leme e voltei definitivamen-

te em 1984, já convidado pela TV Glo-bo para ser editor de Cultura. Depois,o Neiva Moreira me convidou pra tra-balhar nos Cadernos do Terceiro Mundo,fiz resenhas literárias para o Estadão ea IstoÉ... Para o Pasquim, lembro que es-crevi pela última vez em 1990, me re-cuperando do meu primeiro infarto.Pedi máquina de escrever e fiz um ar-tigo no hospital.

JORNAL DA ABI – COMO COMEÇOU A ESCRE-VER LETRAS DE MÚSICA?

Poerner – Cresci num ambiente quepropiciava isso, na antiga Lapa, comseu carnaval de blocos de sujo... Depois,como jornalista, o contato se tornoumais amplo. Fiquei muito amigo do Zé

Kéti, do Ismael Sil-va e do João doVale, meu parceironuma música gra-vada pela VanjaOrico. Depois daprisão, criei comJorge Coutinho,Haroldo de Olivei-ra e Leléu da Man-gueira o show Car-tola Convida, queficou dois mesesem cartaz na Praiado Flamengo, 132,

de onde a Une havia sido expulsa —numa noite, a de maior público, osconvidados eram Pixinguinha, João daBaiana e Donga. Também aprofundeirelações com o Candeia, com quem fizduas músicas. Depois, o Baden Powellfoi a Berlim em 1972, ficou lá em casae, nesse período, fizemos três compo-sições. A 3ª edição brasileira de NasProfundas do Inferno é dedicada a vári-as pessoas, entre elas três grandes ami-gos que não pude encontrar quandovoltei do exílio, pois tinham morridono ano anterior: Candeia, Ismael e OtoMaria Carpeaux.

JORNAL DA ABI – VOCÊ NUNCA DEIXOU DE

ATUAR JUNTO AOS JOVENS. COMO FOI DAR AU-LAS DE JORNALISMO NA UERJ?

Poerner – Uma experiência muitoboa, da qual lembro com saudades.Mas, depois, como já passava dos 40anos de serviço ativo e queria me de-

dicar mais à literatura, achei melhor meaposentar. Além disso, nessa minhaatividade, recebo muitos convites paraviajar, e é muito chato quando o pro-fessor falta à aula.

JORNAL DA ABI – VOCÊ DÁ MUITAS PALES-TRAS PELAS UNIVERSIDADES DO PAÍS. QUE TE-MAS COSTUMA ABORDAR?

Poerner – Geralmente os relaciona-dos à participação política da juventu-de. Este ano, por exemplo, muitas pa-lestras foram relacionadas ao 40º ani-versário de 1968, quando a velha ordemmundial sofreu um tsunami, especial-mente na área política e social. Desdeque voltei ao Brasil, procuro participarativamente de tudo. Teve gente queestranhou eu querer viver “num lugaronde tudo é incerto”. Mas é aqui o meuPaís, é aqui que tudo me interessa mais.

JORNAL DA ABI – QUAL É A SUA VISÃO DOS

JOVENS DE HOJE?

Poerner – Há mais individualismoe pragmatismo, mas vejo neles o mes-mo interesse em mudar o mundo. Anopassado, fui ao Congresso de 70 anosda Une, em Brasília, e estavam lá uns7 mil estudantes dos mais variadospontos do País. Eles dormiam no chão,tinham viajado em condições descon-fortáveis, ou seja, tinham interesse emparticipar. E muitos conheciam O Po-der Jovem, eu era abordado constante-mente. Há quem tenha opinião desfa-vorável sobre os estudantes de hoje,achando que jovem tem que ser, ne-cessariamente, contra. Mas por que, seagora há um Governo que dialoga comele? Aí dizem que a Une é chapa-bran-ca. Não concordo com isso. No próprionascimento do movimento estudan-til, em pleno 1937, a Une começou serelacionando muito bem com o Presi-dente Getúlio Vargas, que tinha aquelavisão da sociedade organizada porblocos de interesses – quer dizer, a cri-ação da entidade se ajustava ao seupensamento. Logo vieram os proble-mas, a Une se voltou contra o EstadoNovo e perdeu um estudante em Per-nambuco, Demócrito de Souza Filho.

Quando comecei a estudar marxis-mo, aprendi uma coisa básica: tudoestá em permanente transformação.

E se a realidade política e históricamuda, seria impossível os estudantescontinuarem os mesmos. Eles podemestar menos utópicos e coletivistas,mas esta é uma tendência mundial —a meu ver, gerada pelo próprio siste-ma capitalista, que ainda não vai dei-xar de existir com essa crise financei-ra global, mas, certamente, vai ter quemudar.

JORNAL DA ABI – DEPOIS DE TRABALHAR

TANTOS ANOS COM JORNALISMO E CULTURA,COMO O SENHOR VÊ O JORNALISMO CULTURAL

PRATICADO HOJE NO BRASIL? SERÁ QUE OS

GRANDE VEÍCULOS, COM SEUS CADERNOS DE

CULTURA, ATENDEM A CONTENTO À DEMANDA?

Poerner – O jornalismo culturalpraticado hoje no Brasil não disponi-biliza espaço correspondente à relevân-cia e ao multifacetismo da nossa cul-tura. Os cadernos culturais da grandeimprensa são insuficientes para a co-bertura de tão importante área, inclu-sive porque o espaço ainda é dividido– quase sempre, em desvantagem paraos temas nacionais – com o que vemde fora, abrangendo o chamado “lixocultural”. A isto se acresce a atual ten-dência da mídia brasileira em geral apriorizar o entretenimento às custas dainformação; e, ainda, o culto às celebri-dades mercadológicas.

JORNAL DA ABI – QUAIS SÃO SEUS PRÓXI-MOS PROJETOS?

Poerner – No ano passado, o amigoMichel Misse, escritor e Diretor doDepartamento de Sociologia da UFRJ,se dispôs a iniciar a gravação das mi-nhas memórias. Já temos mais de 30horas gravadas, mas sempre acontecemcoisas mais urgentes: entrevistas, arti-gos, palestra na Bahia, a revisão dasegunda edição do livro Leme – Viagemao Fundo da Noite... Mas espero voltaràs memórias, que não será um relatolinear, mas episódico. O problema é quenunca fui daqueles intelectuais reclu-sos e distantes. Gosto do contato comgente de todas as áreas, do samba, dofutebol, do candomblé, do movimen-to negro, da cultura popular. E, sempreque convidado, tenho o maior prazerem participar e compartilhar experiên-cias e conhecimentos.

Ser político pluralista, Poerner mantém relações cordiais com líderes de diferentes correntes políticas, como João Amazonas, Presidente do PCdoB, Neiva Moreira e Barbosa Lima.

“Fui preso na Redação,levado para o Dops edepois para o Doi-Codi,onde fiquei três meses emeio. Quando saí, fuidemitido. Então, decidique tinha que sair do País.”

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A GUERRA SEM TRÉGUADO JORNALISMO DE GUERRA

ASNE SEIERSTAD

A autora de O Livreiro de Cabul fala sobre suas experiências comocorrespondente nos Bálcãs, no Afeganistão, no Iraque e na Tchetchêniae sobre a cobertura que a imprensa mundial faz dos grandes conflitos.

POR MARCOS STEFANO

oucas semanas após os ataques terroristas de11 de setembro de 2001, a jornalista norue-guesa Asne Seierstad, de 39 anos, entrou noAfeganistão com a Aliança do Norte, o gru-po guerrilheiro antitalibã apoiado pelos Es-tados Unidos. Havia bombardeios por toda

a parte, muita destruição e nenhum sinal de água oueletricidade. Ela se acostumou rápido à situação, poisjá fazia parte de seu trabalho viajar para lugares su-jos e sem infra-estrutura. Porém, penava para se des-vencilhar de soldados e comandantes e fazer conta-to com aqueles com quem mais gostava de trabalhar:o povo. A oportunidade surgiu quando ela começoua freqüentar uma livraria de Sha Mohammed Rais,uma cordial figura defensora da arte e da cultura afe-gãs que mais tarde ela apelidaria de Sultan Khan. Logo,ela e outros jornalistas foram convidados a jantar emsua casa. Asne ficou sabendo então que Rais conti-nuou a vender livros apesar das restrições do regimetalibã, que proibia obras com ilustrações e aquelasconsideradas ofensivas aos princípios islâmicos.Chegou a ser preso e foi forçado a cobrir alguns de-senhos, para não ter as obras queimadas. Observan-do as nuances de sua história e de sua família, tãoincomuns para um país com imensa maioria analfa-beta e rural, ela percebeu que havia ali uma boa his-tória. Fez sua proposta e, em comum acordo com olivreiro, passou três meses morando com eles, paraescrever a experiência. Nascia ali a reportagem OLivreiro de Cabul, um best-seller com mais de 3 mi-lhões de exemplares vendidos em 30 países.

Com uma narrativa em tom literário, Asne Seiers-tad fez um retrato inusitado e revelador da sociedadeafegã, da segregação entre homens e mulheres e do caosreinante em um país em ruínas. Uma realidade pare-

cida com aquela que encontrou durante sua primeiracobertura em 1994, da guerra da Tchetchênia ou a dosBálcãs, que mais tarde retrataria em outra obra de gran-de impacto: De Costas Para o Mundo – Retratos da Sér-

via. Junto com 101 Dias em Bagdá, livro em que falasobre a vida no Iraque, antes e depois da queda do re-gime ditatorial de Saddam Hussein, ela produziu al-guns dos melhores trabalhos jornalísticos e literáriosde guerra da atualidade.

“Cada lado tem sua própria verdade. É aquela velhahistória de que estamos avançando e os rebeldes recu-ando. De que houve poucas vítimas e praticamente ne-nhuma civil. Porém, existe algo verdadeiro e que vocêdescobre quando chega no lugar do conflito. Essa facemais real de uma guerra é aquela que a população lo-cal experimenta. E descobrir o drama enfrentado pelopovo foi o que me atraiu para esse tipo de cobertura”,diz Asne, que é formada em Literatura russa e espanholae História da Filosofia.

No fim de 2008, a correspondente esteve no Brasilparticipando de eventos e para divulgar seu novo livroCrianças de Grozni, na qual relata o drama dos órfãosda Tchetchênia, onde esteve novamente 12 anos depois,e que é publicado no Brasil, assim como seus demaislivros, pela Editora Record. Entre um compromisso eoutro da apertada agenda, ela atendeu na PontifíciaUniversidade Católica do Rio de Janeiro o Jornal da ABI,e falou sobre suas experiências na cobertura de confli-tos de guerra e criticou a propalada imparcialidade daimprensa que cobre esses eventos a partir de hotéis ounos batalhões de um dos exércitos: “Cada profissionaltraz sua bagagem e ainda há os interesses do veículopara o qual faz a cobertura. Por isso, é preciso dar maisvoz para o povo simples. Isso não é só denúncia, é in-formação, compreensão e transformação”.

P

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JORNAL DA ABI – A SENHORA ESTUDOU LI-TERATURA RUSSA E ESPANHOLA E HISTÓRIA DA

FILOSOFIA, MAS NÃO JORNALISMO. COMO

ACABOU SE TORNANDO UMA CORRESPONDEN-TE DE GUERRA?

Asne Seierstad – Ir a guerras não foibem uma decisão. Nunca desejei ou fizplanos para me tornar correspondente.Porém, em 1994, quando tinha 23 anos,morava com uma família em Moscou ecomecei a trabalhar como freelancer paraum jornal. O editor de Internacionaldizia que era mais fácil aprender jorna-lismo para quem fala russo do que en-sinar russo a um jornalista. Viajava paraa Sibéria servindo de tradutora paraoutros jornalistas. À noite, eles compa-ravam informações e me passavam.Então eu ia escrever. Não tinha dinhei-ro para fazer de outro modo. Então osrussos invadiram a Tchetchênia. Nãopensava em ir para lá; meus planos eramouvir autoridades em Moscou e falarcom o pessoal das agências. Eu nasci ecresci num país pacifista e não sabia quea realidade do mundo era diferente, comdisputas cada vez mais perigosas e con-flitos em vários lugares. Logo percebi queficando lá poderia ser vítima de outro tipode violência: a da guerra de propaganda.Se ficasse em Moscou, só teria as infor-mações oficiais e tendenciosas, divulga-das com apoio da mídia local. Queriabuscar algo mais verdadeiro, por isso,entrei em contato com o Ministério daDefesa e consegui um lugar num aviãomilitar com os soldados para Grozni.

JORNAL DA ABI – MAS QUAL É A VERDADE

EM UMA GUERRA? QUAL FOI O IMPACTO QUE

VOCÊ RECEBEU AO VER A REALIDADE?

Asne – Cada lado tem seus argumen-tos e produz sua própria verdade. E ojornalista opta por um deles ou apenasnoticia fatos. É aquela velha história deque estamos avançando e os rebeldesrecuando. De que houve poucas víti-mas e praticamente nenhuma civil.Porém, existe algo verdadeiro e quevocê descobre quando chega no lugar.Essa face mais verdadeira e real de umaguerra é aquela que a população localexperimenta. E descobrir o drama en-frentado pelo povo foi o que me atraiupara esse tipo de cobertura.

JORNAL DA ABI – COMO VOCÊ AVALIA A CO-BERTURA QUE A GRANDE IMPRENSA TEM FEITO

EM DIVERSOS CONFLITOS? EM ESPECIAL, DURAN-TE A INVASÃO NORTE-AMERICANA AO IRAQUE,QUE DEPÔS SADDAM HUSSEIN, VOCÊ NÃO ACHOU

QUE HOUVE UM TRABALHO MUITO PARCIAL?

Asne – Depende. Não é necessárioficar refém, como demonstro com meutrabalho, das informações oficiais, dosnúmeros e das informações de agênciasde notícias. Claro que a maioria, nocorre-corre diário, ainda prefere essasolução. Mas há muitos veículos e quecobrem os conflitos de diferentes ân-gulos. Sobre esse último conflito no Ira-que – o que derrubou Saddam –, creioque houve uma postura parcial e des-preparada da imprensa antes da guer-ra. Especialmente da norte-americana,que comprou sem contestar a idéia de

MARC

OS STEFAN

O

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que o Iraque estava fabricando bombase armas de destruição em massa. O queacabou sendo decisivo para que a guer-ra acontecesse foi a imprensa ter com-prado essa propaganda. Ela fez a pres-são decisiva e garantiu a realização daguerra, que seria evitada caso houves-se uma posição mais responsável da mí-dia. Jornais como o The New Iork Timesendossaram a acusação e depois tive-ram que pedir desculpas.

JORNAL DA ABI – QUANDO VÃO COBRIR

UMA GUERRA, OS JORNALISTAS GERALMENTE

FICAM CONCENTRADOS EM ALGUM HOTEL, UM

PONTO MAIS SEGURO, RECEBENDO INFORMA-ÇÕES. MAS SUA PRÁTICA PARECE SER BEM DI-FERENTE: A SENHORA VAI A CAMPO.

Asne – Faço esse trabalho justamentepara buscar algo mais original e verda-deiro. Como comentei, concordo quenão exista uma verdade só em se tratan-do de guerra, mas assim, presentes, fi-camos mais próximos da realidade,usando nossos próprios olhos e ouvidos.Não critico o trabalho de outros profis-sionais porque é realmente muito peri-goso cobrir guerras atualmente. Os maisveteranos contam que até se sentiamseguros na Coréia ou no Vietnã, poiseram protegidos pelos dois lados. Issomudou. No Iraque, por exemplo, osjornalistas eram alvos de seqüestros,troféus de guerra. Grande parte dos cor-respondentes não podia ficar dez minu-tos nas ruas de Bagdá, porque já eracaçado. Alguns optavam por sair em ca-minhões ou comboios militares norte-americanos e chegaram a ser acusadosde parcialidade. Outros trabalhavam emparceria com iraquianos, que saiam àsruas para pegar informações. Eu prefe-ri ficar com a população civil. Achei queisso era fundamental para entender asociedade iraquiana, as tensões entresuas etnias e grupos religiosos. Depois,essa realidade mudou e trabalhar sob aproteção de soldados passou a ser aúnica maneira de atuar em Bagdá. Porisso, eu mesma resolvi sair. Vi muitosjornalistas irem para o campo de bata-lha. Mas poucos dão tempo para fazerum trabalho de mais fôlego. Como nasociedade, no jornalismo também a pa-lavra de ordem é “para ontem”. Todaessa impaciência força a produção derelatos factuais. Para se ter grandes his-tórias, grandes reportagens que fujamdo convencional, tempo éfundamental, não há solu-ções mágicas que resol-vam. Também é precisobuscar alternativas emcertos momentos. A mídianorte-americana sofre umtipo de censura ao não po-der mostrar caixões compessoas mortas? Por queisso? Pessoas morrem em guerras.Morrem também crianças. Mas até emmeu país tive uma foto de uma criançamorta censurada. Infelizmente, esselado duro não pode ser escondido.

JORNAL DA ABI – FAZER ESSE TIPO DE CO-BERTURA CERTAMENTE EXIGE SACRIFÍCIOS. QUE

SITUAÇÕES JÁ TEVE QUE ENFRENTAR NAS GUER-RAS QUE COBRIU?

Asne – Viver essas privações fazparte do jogo. É o paradoxo de uma vidade aventuras e de restrições. Quandovocê está na Noruega ou no Brasil, vocêtem inúmeras opções para comer, ves-

tir, fazer ou ir. Ao sair do seu mundo,outros decidirão por você e não have-rá outra opção. Só o fato de ter uma al-ternativa já é algo a ser comemorado.Para ser correspondente, é preciso nãose incomodar com isso e aceitar dormirno chão, ficar sem eletricidade, não to-mar banho às vezes. E, principalmen-

te, enfrentar o perigo. Durante a guerrado Iraque, fizeram de tudo para que osjornalistas saíssem. Diziam que haveriamuitas mortes. Porém, pensei: “Bagdátem mais de 500 mil habitantes e a mai-oria vai sobreviver. Vou me misturar aeles e também terei chances”.

JORNAL DA ABI – E O QUE FOI MAIS DIFÍCIL

EM CABUL? A SENHORA JÁ DISSE QUE USAR ABURCA, O MANTO QUE COBRE A MULHER DOS

PÉS À CABEÇA E TEM APENAS UMA REDINHA

PARA VER E RESPIRAR, NÃO FOI A PARTE MAIS

DESAGRADÁVEL DE SUA EXPERIÊNCIA.

Asne – Usar a burca foi até algo in-teressante, uma nova experiência jor-

nalística, apesar de ela ser um pouco in-cômoda (risos). Para não marcar o cor-po, as burcas são grossas. Isso impedea circulação do ar, provoca umidade eacumula sujeira. Eu não conseguia en-xergar direito pela redinha, tropeçavae suava. Mas foi oportuno para andarpelos lugares e observar, sem ser obser-vada. Se não fosse assim, não consegui-ria contar como as mulheres afegãs sesentem, por exemplo, quando precisamviajar no porta-malas de um táxi. Se euestivesse vestida como ocidental, mes-mo sendo mulher, eles me colocariamno banco da frente. Mas, por ser maisuma burca na multidão, tive que ir paralá, quando outros homens entraram nocarro, por não ser permitido a mulhersentar no banco de trás com um ho-mem. Se estivesse lá como ocidental,jamais saberia se cada situação é realou foi montada para que eu, uma es-trangeira, visse. Difícil mesmo foi vera vida de meninos e meninas, com seussonhos e esperanças partidos. As me-ninas não podem aspirar a nada senãoserem boas esposas e mães – e mesmoassim, com chances de serem trocadasa qualquer hora por mulheres mais jo-vens. Elas são vistas como objetos. Per-tencem ao pai, depois são vendidas aosmaridos. Se a mulher é bem protegidados olhos masculinos, seu valor tambémsobe: uma jóia, uma vaca, dinheiro. Paraos meninos também não é fácil. Os ta-libãs proibiam o uso de maquiagem, ou-vir música, empinar pipa e consumir be-bidas alcoólicas. Com os livros didáti-cos, os garotos aprendiam a contar nãousando frutas ou bolas, mas quantosinfiéis poderiam matar usando pentescom balas. Eles também são vítimas deuma cultura de vingança que perpetuaa violência pelas gerações. Não há fimpara tanto ódio.

JORNAL DA ABI – NESSE AMBIENTE, FOI DI-

ASNE SEIERSTAD A GUERRA SEM TRÉGUA DO JORNALISMO DE GUERRA

“A imprensa comprou sem contestar a idéia de que o Iraqueestava fabricando bombas e armas de destruição em massa. Elafez a pressão decisiva e garantiu a realização da guerra, que seriaevitada caso houvesse uma posição mais responsável da mídia.”

Com o bloquinho e a caneta sempre à mão, Asne acompanhou a guerra contra Saddam Hussein em 2003, no Iraque. Apesar de estar comos soldados no começo, optou por permanecer com a população civil e mostrar a face mais cruel da guerra: o sofrimento dos iraquianos.

FOTOS: ACERVO PESSOAL

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“As meninas não podem aspirar a nada.Elas são vistas como objetos. Pertencemao pai, depois são vendidas aos maridos.”

FÍCIL SE CONTROLAR PARA NÃO INTERFERIR?

Asne – Era um exercício diário. Asmulheres de Sha Mohammed Rais, olivreiro, tinham que obedecer sem con-testar. Algumas vezes me pediam aju-da, mas se eu o confrontasse não have-ria livro. Só depois, quando já tinhaconvivido com eles o tempo suficiente,é que me permiti algumas interferênci-as. Por exemplo, uma das mulheres meconfessou que queria trabalhar, mas nãotinha permissão. Aconselhei-a a não secontentar com o não e insistir. Agora,se interferisse mais, a história não seriaverdadeira. Tive que me controlar.

JORNAL DA ABI – ESSA VIDA DA JUVENTUDE,SOB A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO, DA TIRANIA

DOS PAIS E DA FALTA DE PERSPECTIVA, NÃO É UM

SOLO FÉRTIL PARA O TERRORISMO?

Asne – Existe um ditado que afirma:a guerra alimenta o radicalismo e oradicalismo alimenta a guerra. Por isso,

ga para fazer algo acadêmico. Sou umajornalista. E o que isso significa? Queacredito na Declaração dos DireitosHumanos, na liberdade de expressão,nas liberdades individuais. São valoresuniversais, aos quais é impossível esca-par. Uma coisa é respeitar a perspectivaafegã. Outra é concordar com ela. Parafazer esse trabalho, é essencial acompa-nhar jornais e revistas, ler literatura dospaíses que vamos cobrir. Para poder en-tendê-los, mas também transformar.

JORNAL DA ABI – HÁ ALGUNS ANOS, A PU-BLICAÇÃO DE UMA CHARGE DO PROFETA MAO-MÉ NA DINAMARCA, CRITICANDO O FUNDAMEN-TALISMO ISLÂMICO, CAUSOU UMA EXPLOSÃO DE

VIOLÊNCIA. AO ESCREVER O LIVREIRO DE CA-BUL, EM ALGUM MOMENTO A SENHORA SE SEN-TIU AMEAÇADA?

Asne – Cheguei até a ganhar umnovo sistema de segurança para minhacasa em Oslo, depois da publicação dolivro. Mas não tive nenhum problemaassim. Até porque são situações bastan-te diferentes. Em meu livro, não façocríticas ao Islã. Apenas retrato umafamília. Eles não se importam com isso.Sentem-se ofendidos com críticas àreligião, a seus símbolos, a Maomé.

JORNAL DA ABI – UM DOS PAÍSES PARA OS

QUAL A SENHORA MAIS TEM VIAJADO NA DIVUL-GAÇÃO DE SEUS LIVROS É OS ESTADOS UNIDOS.QUE TAMBÉM VIVE OUTRO TIPO DE FUNDAMEN-TALISMO RELIGIOSO: O CRISTÃO. QUAL A DIFE-RENÇA ENTRE ESTE FUNDAMENTALISMO E O IS-LÂMICO? ISSO TAMBÉM NÃO DÁ UM LIVRO?

Asne – Fiz algumas matérias sobreessa questão, mas acho que o assuntojá está sendo coberto. A principal dife-rença entre o radicalismo religioso cris-tão é que não é violento. São grupospequenos. Não representam perigo. Osfundamentalistas islâmicos são maio-res e mais violentos. E o 11 de setem-bro de 2001 e as guerras são cicatrizespermanentes nos dois lados. Tanto quehá gente que considera o ex-Presiden-

Três experiênciasjornalísticas:Acima, Asne

conversa comsoldados talibãsno Afeganistão

em 2001; ao lado,ela vestida com a

burca, o mantoislâmico que

cobre a mulherdos pés à cabeça,

mas que lhepermitiu observara sociedade comouma típica afegã,em 2002; abaixo,com uma menina,órfã da guerra da

Tchetchênia, emGrozni, cidade a

qual retornou em2006 para mostraras conseqüências

do conflito.

o grande desafio é dar educação e opor-tunidades para essa juventude escapardas doutrinações tão comuns em al-guns países da região.

JORNAL DA ABI – A SENHORA FOI MUITO

CRITICADA POR RETRATAR A FAMÍLIA AFEGÃ DO

PONTO DE VISTA DE UMA MULHER OCIDENTAL.CONCORDA COM AS CRÍTICAS OU ACHA QUE

SEUS PONTOS DE VISTA NÃO INTERFERIRAM?

Asne – Até acreditei que tinha sidoneutra no início. Mas refletindo, percebique minha experiência me moldou e éimpossível escrever sem essa herança.Porém, o que há de errado nisso? Nãosou uma antropóloga ou uma sociólo-

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te George Bush um fundamentalistacristão por conta das guerras que fezno Oriente Médio. É uma questão dedefinição. Mais grave é o abismo entreo mundo cristão e muçulmano na Eu-ropa. Essa é uma questão que acho de-veria merecer mais atenção.

JORNAL DA ABI – APESAR DE ALGUNS OU-TROS PROJETOS, HOJE SUA PRINCIPAL DEDICA-ÇÃO É PARA OBRAS DE FÔLEGO, COMO GRAN-DES REPORTAGENS LANÇADAS EM LIVROS.QUANTO TEMPO LEVA PARA FAZÊ-LOS?

Asne – Em geral, não demoro mui-to. O Livreiro de Cabul, por exemplo, foibem rápido. Convivi por pouco mais detrês meses com a família e depois fuiescrever. Comecei a escrevê-lo no finalde janeiro de 2002 e em julho ele jáestava pronto. Era um livro que retra-tava um momento e estava com tudoainda bastante “fresco” em minhamemória. Se deixasse passar muitotempo, perderia aquele momento e omaterial poderia ficar ultrapassado.Hoje, vejo que o livro continua atual.Talvez por tratar de temas universaiscomo a opressão contra a mulher e areligião. Mas acredito que a próprianatureza do jornalismo nos inspire a terpressa até nessas horas, pois o que façoé aprofundar assuntos que estão namídia. Claro que a velocidade com quefaço é bem diferente da velocidadedaquele que sai pela manhã para entre-gar a matéria pronta à tarde.

JORNAL DA ABI – ANTES DE MORAR COM AFAMÍLIA DO LIVREIRO, A SENHORA JÁ ESTAVA

COBRINDO A GUERRA NO AFEGANISTÃO. FOI

SEU JORNAL QUE A BANCOU PARA FICAR OS TRÊS

MESES COM A FAMÍLIA?

Asne – Nessa etapa do trabalho, mi-nha relação já era com a editora que pu-blicaria o livro, já que meu trabalho parao jornal tinha terminado. A família comquem fiquei não aceitou minha propos-ta para pagar aluguel. Assim, decidi re-tribuir com presentes e melhorias. Com-prei presentes e jóias de ouro para asmulheres e até um gerador para a casa.Não falei nada que eles não permitiram,não relatei nenhuma conversa escon-dida atrás de alguma porta. Apenas des-crevi o que presenciei e diálogos queforam traduzidos pela própria família,já que não falava o dialeto deles.

JORNAL DA ABI – LÍDERES POLÍTICOS E OS

GRANDES LANCES DAS GUERRAS NÃO OCUPAM

ESPAÇO CENTRAL EM SUA OBRA. COMO FAZ

PARA CONCILIAR SITUAÇÕES INDIVIDUAIS COM

O PLANO MAIS AMPLO GEOPOLÍTICO?

Asne – É um desafio, mas já existemtantos livros sobre personalidades e lí-deres políticos. Como disse, apesar detratar de pessoas comuns, seus dilemassão universais e oferecem um retratomais preciso da guerra. Tanto no Afe-ganistão quanto no Iraque fiz um acor-do com meus editores de que faria asreportagens que visse e achasse melho-res. Não era pautada pelo jornal; eumesma me pautava. O que aconteciano deserto, a centenas de quilômetros,ou as hardnews eram feitas pelos pró-

prios editores do jornal, com as infor-mações de agências internacionais. Eunão me preocupava em correr atrásdelas. Se conseguisse apurar algumacoisa, enviava a eles. Dedicava-me aproduzir material exclusivo, reporta-gens nas ruas, aquilo que me impres-sionava. A página do jornal teria aminha matéria de Bagdá, uma nota deoutro jornalista sobre a guerra no de-serto e comentários de especialistas.Esse tipo de esquema é bom, pois nãotraz a visão de uma única pessoa.

JORNAL DA ABI – SEUS LIVROS SÃO REPOR-TAGENS, MAS PODEM SER LIDOS COMO ROMAN-CES. QUE INSPIRAÇÃO A LITERATURA OFERECE

PARA SUA OBRA?

Asne – Parto do princípio de queexiste informação demais, mas poucacompreensão da realidade. Números,dados e estatísticas auxiliam, mas nãodão a verdadeira dimensão de um con-flito. Há grandes escritores que usama literatura como veículo para fazer omelhor jornalismo. Gosto muito dopolonês Ryszard Kapuscinski [1932–2007], que entre outros escreveu Impe-rium, Ébano: Minha Vida na África e OImperador (todos publicados no Brasilpela Editora Companhia das Letras).Ele, por exemplo, costumava dizer queera impossível mostrar o que realmenteé uma selva apenas usando informa-ções técnicas do jornalismo: quem,como, onde, quando e por quê? A vidaé muito mais complexa que isso. Suasdescrições são belíssimas, é possívelsentir o clima do lugar, sentir seus chei-ros. Esse aprofundamento não aliena.Pelo contrário, ele consegue fazer umaanálise política sem ficar apenas noplano macro. Trabalha nos detalhes,mostrando o que acontece na vida daspessoas e fazendo pensar. Eu aprendimelhor a usar os recursos da literaturaquando precisei ir a guerras civis e apre-sentar tudo o que via nelas. A literatu-ra é riquíssima de estilos, termos e téc-nicas que permitem ao jornalista des-crever lugares ou situações, contar his-tórias, trazer as mesmas informaçõesconvencionais em uma linguagem mui-to mais agradável ao leitor. Acredito quedeva haver espaço para todo tipo dejornalismo: os despachos rápidos dasagências, as informações curtas e obje-tivas do rádio, o hardnews da televisão,as análises econômicas e políticas, e ojornalismo literário, mais elaborado,humanizado e aprofundado.

JORNAL DA ABI – FALANDO NISSO, HUMANI-ZAÇÃO E IMERSÃO NAS COBERTURAS, ELEMEN-TOS QUE SÃO TÃO ABUNDANTES EM SEU TRABA-LHO, ESTÃO EM FALTA NO JORNALISMO ATUAL?

Asne – É difícil generalizar, mas háuma falta muito grande desses elemen-tos. Em geral, por causa das restriçõesde espaço, tempo e dinheiro, a maio-ria dos veículos e profissionais se con-tenta em fazer o óbvio e usar textos bu-rocráticos. Falta um pouco mais de am-bição ao moderno jornalismo. No má-ximo, ainda se busca informações ex-clusivas e reveladoras, alguma coisa de

A aparente tranqüilidade da bucólica paisagem pastoril contrasta com oshorrores vivenciados pelos iraquianos. Apesar de muitos se sentirem aliviados

com a queda de Saddam, o caos e a tensão se tornaram permanentes.

Asne ao lado de Hadizat, que ajudou a jornalista a ter contato com as crianças emuma Grozni em ruínas: se é perigoso falar, calar pode ser ainda mais perigoso.

ASNE SEIERSTAD A GUERRA SEM TRÉGUA DO JORNALISMO DE GUERRA FOTOS: ACERVO PESSOAL

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27Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

jornalismo investigativo, mas o maiscomum é encher uma página de jornalde forma medíocre. É preciso outroolhar sobre o cotidiano para trazer boashistórias. Às vezes, as melhores não sãosecretas, estão na cara, mas só poderãoser contadas se houver uma preocupa-ção maior com o ser humano e o jorna-lista primeiro mergulhar e entender omundo delas.

JORNAL DA ABI – POR UM TEMPO, A SENHO-RA TAMBÉM TRABALHOU NA TELEVISÃO. O QUE

PREFERE: O JORNAL DIÁRIO, A TV OU OS LIVROS?

Asne – Aprendi muito na televisão.Mas seu problema é a superficialidade.Por isso, prefiro uma atitude mais re-flexiva, usando meu bloquinho, minhacaneta, fazendo anotações, construin-do textos com calma. Já na mídia diá-ria a tendência do jornalista é até escre-ver mais do que aquele que trabalha emgrandes reportagens. Para fazer umtrabalho mais rápido, ele precisa escre-ver mais, sem se preocupar tanto coma elaboração do texto. Por isso, prefirotrabalhar com livros. Posso buscar pa-lavras, burilar frases ou trocar de ordemsentenças, para que o texto tenha osmelhores resultados.

JORNAL DA ABI – DIANTE DE TUDO QUE

VOCÊ VIU NAS GUERRAS, ACREDITA NA IMPAR-CIALIDADE DO JORNALISMO?

Asne – Não creio que exista impar-cialidade. Cada um traz em seu passa-do, sua criação, formação e experiên-cias, e tudo isso molda seu ponto de vis-ta. Também todos têm interesses, queacabam influenciando desde a formu-lação da pauta. Como disse, eu sofriinfluências em meu trabalho. Sou umanorueguesa, uma nação rica e pacífica,nascida nos anos 70 e filha de uma fe-mininista e de um socialista. O que pro-curo fazer quando estou numa cober-tura é dar voz para as pessoas, para queelas falem por isso. Com isso, acredi-to que haja uma objetividade maior.Ainda assim, não é uma fórmula infa-lível. Pois quem escolhe quem falarásou eu. Depois da publicação de O Li-vreiro de Cabul, várias mulheres muçul-manas me procuraram na Noruega. Asmais velhas criticaram a forma comoapresentei as mulheres e a sociedadeafegã. As mais novas elogiaram. De-pois, descobri que as mais velhas mo-ravam há décadas na Europa e tinhamdeixado o país por ocasião da ocupaçãosoviética, tempo em que o país aindanão estava em guerra civil, havia debateintelectual e possibilidades para o pú-blico feminino. Com o Talibã, tudo issoacabou, o país foi destruído. As maisnovas, que pegaram um pouco desseperíodo, disseram-me que a reconsti-tuição que fiz foi tão boa que podiamsentir o cheiro de suas antigas casas.

JORNAL DA ABI – VOCÊ ESTEVE PRESENTE EM

VÁRIAS COBERTURAS DE GUERRA, MAS DISSE

RECENTEMENTE QUE NÃO PENSA EM VOLTAR TÃO

CEDO PARA ESSES LOCAIS OUTRA VEZ. ESTÁ

APOSENTADA?

Asne – Não é que não voltarei mais.

“Parto do princípio de que existe informação demais, maspouca compreensão da realidade. Números, dados e estatísticasauxiliam, mas não dão a verdadeira dimensão de um conflito.”

grande erro, como a experiência ira-quiana mostrou, querer implementarnessas nações o modelo ocidental desociedade. Ainda mais, de uma só vez.Tudo isso tem um efeito apenas cos-mético, que depois sumirá. É necessá-rio que se formem instituições sólidas,que não venham a ser abaladas porconflitos civis e disputas, e depois asnações construam sua própria socie-dade. Como conseguir isso? Dando ascondições básicas para a vida, inves-tindo em infra-estrutura, em saúde e,principalmente, em educação. Educa-ção em todos os níveis, do mais ele-mentar ao superior, pois é ela que, defato, formará as novas gerações. Aque-las que vão mudar esses países. Querdizer, o que deve ser feito é dar osmeios para eles decidirem por contaprópria. Se não for desse modo, nãoserá duradouro. Parte da renda de OLivreiro de Cabul foi doada para umaescola no Afeganistão. Ela já atende600 meninas. Não a conheço pessoal-mente, pois não posso ir lá por estarmuito visada, mas acompanho tudopor fotos e relatórios. Também conse-guimos montar escolas profissionali-zantes para parteiras e enfermeiras ebibliotecas. Espero que, futuramente,possam sair de lá escritoras e cineas-tas que possam refletir sobre a socie-dade afegã por si próprias. E que meulivro fique ultrapassado. Mas receioque este objetivo demore um poucomais para se concretizar.

JORNAL DA ABI – A SENHORA TRABALHOU

EM LUGARES ONDE NÃO HÁ LIBERDADE PARA AIMPRENSA. NO BRASIL TAMBÉM, VEZ OU OUTRA,HÁ PROBLEMAS COM GOVERNOS, CRIME ORGA-NIZADO, PODERIO ECONÔMICO TENTANDO TO-LHER A AÇÃO JORNALÍSTICA. QUE IMPORTÂNCIA

DÁ À LIBERDADE DE EXPRESSÃO PARA O EXER-CÍCIO DO JORNALISMO?

Asne – É crucial para o bom jorna-lismo. Aliás, sem ela, o exercício do jor-nalismo é capenga. Aqui ou no Afega-nistão. Por isso, entidades como a As-sociação Brasileira de Imprensa desem-penham funções tão importantes. NaNoruega, temos muita liberdade deimprensa e valorizamos demais essesentimento. Por isso, apoiamos a im-prensa em lugares onde a liberdade de

expressão não existe. Traba-lhei dois anos na Rússia epercebi que mesmo atual-mente o país não oferece li-berdade para os jornalistastrabalharem. Muitos profis-sionais têm sido mortos egrande parte prefere adular

as autoridades para evitar perseguição.O mesmo acontece na Tchetchênia. Láentrevistei o Presidente Ramzan Ka-dyrov e perguntei-lhe sobre o assassi-nato da jornalista Anna Politkovskaia,que se opunha ao regime com seus tex-tos. Ao que ele respondeu: “Não amatei. Mas depois de escrever tantacoisa contra tanta gente, o que ela podiaquerer?”. Mais terríveis eram suas gar-galhadas dizendo que lá eles amavam,não matavam suas mulheres.

Mas há tempo para tudo. Fui corres-pondente de guerra por 15 anos. Foi umtempo difícil, de muitas privações ededicação. Se tivesse que retomar essarotina, acho que não teria forças. Serjornalista em guerras exige renúncia,deixar de lado seus interesses, sua vida,para viver a vida das pessoas dos diver-sos lugares. Na verdade, ainda volteipara a Tchetchênia em 2006, depois deter coberto a guerra lá em 1994. Massentia-me madura para aquilo e mes-mo assim foi difícil. Conheci duas cri-anças lá. Eram órfãos, irmãos por par-

te de pai. Só que o pai e os avós pater-nos – a mãe e a família materna nuncaficam com a criança – também já ha-viam morrido. Com isso, o menino de12 anos e a menina de 13 ficavam sobos cuidados de um tio. Dormiam nochão, eram espancados com fios elétri-cos, abusados sexualmente e incenti-vados para o crime. O menino extra-vasava seu ódio matando cachorroscom tijoladas, extorquindo as esmolasde outras crianças e a menina, furtan-

do na rua. Denunciado o tio, foramparar em um orfanato. Narro essa his-tória e a destruição de vidas e da soci-edade em As Crianças de Grozni. Foimuito impressionante, mas essa é amaior herança da guerra. Quanto aretornar ao Afeganistão, ao Iraque ouaos Bálcãs, por enquanto não é segu-ro. Assim, quero curtir minha licençamaternidade de um ano, minha famí-lia e divulgar esse novo livro. Mas nãome aposentei e, mais para frente, quemsabe, voltarei a escrever matérias parajornais. Talvez até na forma de Jorna-

lismo literário. Reportagens mais pro-fundas e elaboradas, com mais tempo.Também continuar viajando, vir parao Brasil, entrevistar o Lula.

JORNAL DA ABI – QUANDO A SENHORA

SAIU DO AFEGANISTÃO, HAVIA UM MILHÃO DE

MENINAS NA ESCOLA. HOJE, JÁ HÁ SEIS MI-LHÕES. ISSO É UM SINAL DE ESPERANÇA PARA

AQUELE PAÍS?

Asne – Há essa esperança, mas seique é preciso muita paciência. É um

A jornalista com seu livro O Livreiro de Cabul durante a entrevista no Rio de Janeiro: certezade que a literatura da realidade é um instrumento de transformação para o mundo.

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OS STEFAN

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28 Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

CARLOSHEITOR CONY

“A DITADURA CAIU DE PODRE”Primeiro jornalista a denunciar o arbítrio da

ditadura, logo nos primeiros dias de abril de 1964,ele defende a abertura dos arquivos militarespara se “levantar a cortina e passar a limpo”.

POR ARCÍRIO B. GOUVÊA NETO

esta entrevista exclusiva, Carlos Heitor Cony fala sobre o pano-rama político brasileiro atual, passando pela violência e a crise. Alémdisso, dá sua visão sobre a ditadura militar, uma visão de quemsentiu com toda profundidade aqueles tempos de horror. Conyanalisa ainda a ascensão de Barak Obama à Presidência dos Esta-dos Unidos e dá uma passada crítica sobre a América Latina, ter-

minando por analisar inteligentemente a mudança de atitude da Acade-mia Brasileira de Letras diante da sociedade e o futuro do jornalismo.

Cony nasceu no Rio, em 1926, fez Humanidades e Filosofia no Se-minário São José. Estreou na literatura ganhando por duas vezes con-secutivas o Prêmio Manuel Antônio de Almeida (em 1957 e 1958) comos romances A Verdade de Cada Dia e Tijolo de Segurança. Trabalha naimprensa desde 1952. Começou no Jornal do Brasil, e mais tarde foi para

o Correio da Manhã, do qual foi redator, cronista, editorialista e editor.Ganhou os prêmios Jabuti (1996, 1998 e 2000), Livro do Ano (1996, 1998e 2000), Nacional Nestlé (1997) e Machado de Assis (1996), da Acade-mia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. Em 1998, recebeudo Governo da França, no Salão do Livro de Paris, a condecoração L’Ordredes Arts et des Lettres.

Depois de várias prisões políticas, provocadas principalmente por suaforte personalidade e destemor, caracterizado por dizer o que pensa, semmeandros, durante a ditadura militar sofreu um exílio forçado no ex-terior. Na volta ao Brasil, entrou para a Editora Bloch, onde lançou asrevistas Ele&Ela e Fatos e onde dirigiu também Fatos&Fotos e Desfile.Hoje tem uma coluna diária na Folha de S. Paulo e participa de progra-mas nas rádios CBN e BandNews.

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popularidade do Lula é reflexo disso.Bom, essa a minha opinião.

JORNAL DA ABI – E A CRISE?

Cony – Aí, sim, nesse caso o pano-rama já demonstra intranqüilidade. Acrise tem contornos sombrios e estáestourada em inúmeros países de eco-nomia muito mais sólida que a nossa.Estamos em desenvolvimento e paísesem desenvolvimento se tornam frágeisnessa hora. Um bom exemplo foi a ime-diata, quase instantânea, desvaloriza-ção do real frente ao dólar, que mudoutoda a fisionomia da nossa economia.São preocupantes as demissões, prin-cipalmente na indústria automobilís-tica, mas parece que ela já está se recu-perando. Vamos esperar mais um pou-co; qualquer coisa que se falar agora épura especulação.

JORNAL DA ABI – A VIOLÊNCIA QUE ASSO-LA A SOCIEDADE BRASILEIRA TAMBÉM É PRE-OCUPANTE.

Cony – Não tenha dúvida, mas ela éreflexo da impunidade, impunidade emtodas as áreas, não somente a relacionadaaos crimes de colarinho branco, masaqueles crimes do dia-a-dia, do cotidia-no. A violência do próprio Estado, quan-do se apresenta com princípios conser-vadores e claramente benevolen-tes para determinados segmentosda sociedade. O Estado precisa serenérgico se quiser mudar o rumoda violência que certamente re-flete a decadência dessa mesmasociedade. Mas as instituições se-culares brasileiras também preci-sam atuar mais, aparecer mais, estão umtanto omissas, a OAB, a ABI, a CNBB,pela importância e abrangência, têmque se manifestar mais, embora se sai-ba que elas fazem o que podem.

JORNAL DA ABI – HÁ POUCO COMPLETA-RAM-SE 40 ANOS DA INSTITUIÇÃO DO AI-5. ÉDATA PARA SER LEMBRADA OU ESQUECIDA?

Cony – Lembrada, lembrada sempre.No entanto, é bom que se diga, semromantismos ou pieguices. O povonunca esteve na luta junto às organiza-ções que participaram do confronto comos militares da ditadura, com os estu-dantes, os intelectuais, os operários, ouprofissionais de outras áreas; eles esti-veram sozinhos. Não foi, e nessa horasempre aparece gente dizendo que foiuma ação envolvendo o povo; o povomanteve-se afastado dos movimentosque peitaram os militares. Não entrouem cena nem como coadjuvante, qual-quer notícia nesse sentido é mentirosae falsa. O regime militar caiu de podre,caiu de exaustão, caiu porque se esgo-tou em si mesmo. Caiu, talvez, pelo pró-prio caminhar da História.

JORNAL DA ABI – TUDO JÁ SE DISSE SOBRE

A DITADURA, OU FALTOU DIZER ALGUMA COISA?

Cony – Não, tudo já se disse, mas oassunto não se esgotou. O que eu gos-taria de acrescentar é que um Gover-no democrático tem de ser transparen-te e nesse sentido não pode esconder

nada, não é mesmo? Se esconde, nãoé transparente, não é claro, não é lím-pido. Estou dizendo isso porque já estána hora de abrirem-se os arquivos mi-litares e levantar a cortina, passar tudoa limpo. Não vejo por que motivo con-tinuarem fechados, é um desrespeitoao povo brasileiro. Porém, creio queexistem outras implicações para os ca-deados continuarem trancados: quan-do o PMDB, através de Ulisses Guima-rães, negociou a abertura com o gover-no militar, uma das cláusulas para queela ocorresse foi que os arquivos doDops e do SNI não deveriam ser bisbi-lhotados, vasculhados. O que está dei-xando o Governo nesse aspecto e o pró-prio Tarso Genro (Ministro da Justiça)de calças curtas.

JORNAL DA ABI – COMO VOCÊ VÊ A ASCEN-SÃO DE BARAK OBAMA À PRESIDÊNCIA DOS

ESTADOS UNIDOS?

Cony – Histórica, qualquer aspecto.Depois da Guerra de Secessão, de 1861a 1865, entre o Norte e o Sul, esse foi ofato mais marcante da História dosEstados Unidos, muito mais do que oataque às Torres Gêmeas do World Tra-de Center. Agora, não se iludam, fatohistórico para eles, para nós brasileiros,sul-americanos, latino-americanos,

nada vai mudar. A mudança é deles, dizrespeito à sua sociedade. Os americanosnão ficarão bonzinhos da noite para odia. Continuarão sendo conservadores,embora não tenham sido ao elegeremObama, mas quando se trata de defen-der sua economia são tiranos e ferrenhosprotecionistas. Pode ser que se abra umespaço para nossas exportações aqui eali, mas a longo prazo. Até porque, sevocê olhar com atenção, os nomes de seusecretariado são os mesmos de outraspolíticas, de outras invasões, de outrossubsídios e sobretaxas. É possível queolhem com mais carinho para a África,pelas ligações étnicas de Obama, e issotambém já será um fato histórico. Masfaço questão de enfatizar que está nahora de se parar com essa idéia, quasemítica, de que seremos invadidos, deque tomarão a Amazônia e coisas des-se tipo. O panorama internacional mu-dou, a presença do Brasil nesse mesmopanorama internacional é outra. Tudobem, existe a questão amazônica, masdeve ser olhada sob outro aspecto.

JORNAL DA ABI – E A QUESTÃO DA AMÉRI-CA LATINA?

Cony – Ah, essa mudou muito de fi-gura. Com os Governos populares deRaúl Castro, Hugo Chaves, Evo Mora-les e Alfredo Palácios, deixou de ser va-quinha de presépio dos Estados Unidos,que perderam prestígio e conseqüente-mente dólares em muitas áreas. Está cer-

to que continuam, de certa forma, go-vernos centralizados, mas com outraaparência, sem aquela roupagem surra-da das velhas dinastias ditatoriais pero-nistas, somozistas, stroessinistas, pino-chistas, além, é claro, de terem sido elei-tos pelo voto popular. Creio que aAmérica Latina hoje ocupa um lugar dedestaque na política internacional.

JORNAL DA ABI – E A ACADEMIA BRASILEI-RA DE LETRAS?

Cony – É outra que também mudoumuito de atitude (risos). Deixou de seruma velha senhora circunspecta e hojeestá mais aberta ao público, provandoque está no caminho certo. O ano Ma-chado de Assis está terminando comum enorme sucesso. Tivemos pales-tras, conferências, seminários, debates,visitas guiadas e tantos outros eventoscom imensa participação popular, comgente em pé, mostrando que o brasilei-ro gosta de cultura quando lhe dãoacesso a ela. Não perdemos a pompa,nem o glamour, que no fundo o povogosta também, mas estivemos semprecom os portões abertos para o visitan-te que foi sempre bem-vindo e espera-mos a mesma receptividade em 2009,quando comemoraremos o ano de Eu-clides da Cunha.

JORNAL DA ABI – AINDA SE FAZ JORNALIS-MO, PRINCIPALMENTE DEPOIS DO APARECIMEN-TO DA INTERNET?

Cony – Jornalismo hoje é sinônimo decompetitividade. Tudo se mistura den-tro da imensa e confusa geléia geral. Ojornalismo está muito comprometidocom o sistema que o cerca. O jornalistahoje é um mero escriba e as grandes re-portagens investigativas estão rareando;ele nem mesmo é mais um formador deopinião, nos moldes de como se dizia an-tigamente. Aliás, sempre me coloqueicontra essa afirmação, jornalista nuncafoi e nem será formador de opinião, elelida com a notícia, exclusivamente coma notícia. Está havendo a briga contra oua favor do diploma, eu, por exemplo, nãotenho diploma, em tantos países nãoexiste a obrigatoriedade do diploma.Creio que as faculdades são importan-tes para dar uma cultura geral, uma basede formação sólida. No entanto, o quedará um novo rumo ao jornalismo, à mí-dia em geral, será mesmo a internet;dará não, já está dando. Sem dúvida, éo mais democrático conceito de infor-mação. A informação acessível a qual-quer um. Qualquer pessoa pode dar suanotícia, pode propagar uma informação,se é boa ou má, aí é outra história. O fu-turo da imprensa, do jornalismo comoconhecemos hoje, será a internet, atéporque ainda não conhecemos toda a po-tencialidade de um campo que está per-manentemente em desenvolvimento.

JORNAL DA ABI – COMO VOCÊ VÊ O ATUAL

PANORAMA POLÍTICO BRASILEIRO?

Cony – Eu acho tranqüilo. O Lulaestá com a popularidade alta e issoinflui bastante. Independentemente dequalquer juízo que se faça sobre ele,creio que as instituições estão sendorespeitadas e vive-se em um EstadoDemocrático de Direito. É claro, comalguns deslizes aqui e ali, coisas pon-tuais que atingem qualquer Governoe qualquer regime. Lógico que nãopodemos esquecer os casos de corrup-ção, mas não chegaram a alterar subs-tancialmente a cara do Governo. Noplano social, muito se tem feito e a alta

“Está na hora de abrirem-se os arquivos militares e levantar acortina, passar tudo a limpo. Não vejo por que motivocontinuarem fechados, é um desrespeito ao povo brasileiro.”

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JORNAL DA ABI – DEPOIS DE TRABALHAR

TANTO TEMPO NO BRASIL SÓ AGORA O SENHOR

RESOLVEU REVELAR SUAS IMPRESSÕES E CONTAR

UM POUCO DOS BASTIDORES DE SUAS REPOR-TAGENS MAIS POLÊMICAS, COMO AQUELA DE

2004, EM QUE FALA SOBRE O HÁBITO DO PRE-SIDENTE LULA DE BEBER. POR QUE DEU NO

NEW YORK TIMES DEMOROU TANTO?

Larry Rohter – Não é que tenhademorado tanto. Tomei a decisão deescrever o livro, com algumas reporta-gens, acompanhadas do making of e decomentários que as contextualizavam,depois de alguns churrascos de fim desemana com a família de minha espo-sa, no Rio. Sempre que participava,

ESTA HISTÓRIANÃO DEU NO

NEW YORK TIMES

Depois de quase ser expulso do País porcausa de uma reportagem em que dizia

que o hábito de beber do Presidente Lulaestaria prejudicando a condução doGoverno, o correspondente do mais

prestigiado jornal do mundo fala sobre arepercussão de sua polêmica matéria,

analisa o jornalismo atual e se declara umapaixonado pelo Brasil e por sua cultura.

LARRYROHTER

omingo, 9 de maio de 2004. Logo pela manhã, o telefo-ne toca no escritório do jornal norte-americano The NewYork Times, o mais prestigiado diário do mundo, em Bu-enos Aires, Argentina. Quem atende é o corresponden-te Larry Rohter, que estava na cidade fazendo algumasmatérias sobre política e economia.

“Não sei o que você está pretendendo com isso, mas os mer-cados vão enlouquecer amanhã”, disse a voz do outro lado dalinha. A reclamação vinha de Roberto Abdenur, embaixador bra-sileiro em Washington. Em suas mãos, o motivo da insatisfa-ção: a edição do jornal do dia, com uma reportagem assinada porRohter com o título Gosto de dirigente brasileiro pela bebida tor-

na-se preocupação nacional e que já no lead mostrava as garras:“Luiz Inácio Lula da Silva nunca escondeu seu gosto por um

copo de cerveja, uma dose de uísque ou, até melhor, um tragode cachaça, a forte bebida brasileira feita de cana-de-açúcar. Masalguns dos seus compatriotas começaram a especular se a pre-dileção do Presidente por bebidas fortes estaria afetando seu de-sempenho no cargo.”

Era o começo de uma tempestade para Rother. Irritado coma repercussão da matéria, apenas dois dias depois o PresidenteLula assinava um decreto ordenando a expulsão do correspon-dente do Brasil. A grande imprensa entrou na polêmica e, comalgumas exceções, criticou o jornalista norte-americano. Amatéria dava o que falar: afinal, o que é interesse público e o queé direito à privacidade no jornalismo? Apesar das ameaças, a ex-pulsão era inconstitucional. Dias depois, o Ministro da JustiçaMárcio Thomaz Bastos convocou um entrevista coletiva e dis-se que tudo estava resolvido: o jornalista enviara uma retrata-

ção e Lula aceitou as desculpas.“Não foi isso que aconteceu. O tí-

tulo realmente não era correto, masforam os editores em Nova York quederam. Porém, o conteúdo da ma-téria não foi desmentido. Tanto queem momento nenhum enviamosqualquer retratação. O único docu-mento assinado por mim e pormeus advogados era um documen-to com os argumentos legais em fa-vor da revogação do decreto de ex-pulsão”, explica Rohter.

Durante todo o episódio, o cor-respondente chegou a ser tachado como mais um “gringo me-tido” que “não conhece e não gosta do País” e, por isso, “tentadesestabilizá-lo”. Esse realmente não é Larry Rohter. A primei-ra vez que o jornalista chegou aqui foi há quatro décadas, em1972, a convite da Rede Globo, emissora na qual trabalhava nasucursal de Nova York. Com 22 anos, ele vinha para servir detradutor no VII Festival Internacional da Canção. Antes esta-va de malas prontas para a China, mas quando chegou aqui per-cebeu que não queria ir embora. Pouco tempo depois, já casadocom uma brasileira, voltou para ficar. Até 1982, Rohter foi cor-respondente internacional da revista Newsweek e do jornal TheWashington Post no Brasil. Depois, trabalhou em diversos paísesda América Latina, China e Ásia. Voltou para cá de 1999 até 2007,período em que foi correspondente do The New York Times.

No fim de 2008, Rohter esteve de férias no Rio de Janeiro eaproveitou para lançar Deu no New York Times (Editora Objeti-va), livro em que reproduz algumas de suas principais reporta-gens e tece comentários sobre temas como cultura, ciências epolítica brasileiras. Em entrevista ao Jornal da ABI, mostrou suaverdadeira face: “Sou um apaixonado e admirador do Brasil, desuas artes, potencial e cultura”.

POR MARCOS STEFANO

contava as histórias que acompanha-vam cada trabalho e o pessoal me en-corajava: “Olha, isso vale um livro”.Amadureci durante anos as possibili-dades, mas só agora surgiu a oportuni-dade. As regras no The New York Timessão bem claras: o correspondente nãopode emitir opiniões nem escreversobre aquilo que esteja cobrindo; nomeu caso, o Brasil. Porém, acabado omeu tempo como correspondente em2007, fiquei liberado. Também preci-sava esclarecer o que realmente acon-teceu no incidente com o PresidenteLula em 2004, que quase fez que eufosse expulso do país. As versões pas-

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me criticavam e questionavam comoum gringo metido podia estragar a ima-gem do País no exterior. Não era ver-dade. Mas acredito que quando esta-va fazendo uma reportagem sobre o as-sassinato do Celso Daniel, Prefeito deSanto André, tenha esbarrado num es-quema de arrecadação de fundos irre-gular para o PT. Naquele tempo, sabiapouco sobre a real extensão do proble-ma e não dei tanta atenção ao assun-to, até porque era coisa para a imprensabrasileira, mas alguns setores do PTpassaram a me ver como uma ameaçae buscar qualquer oportunidade parase livrar de mim.

sadas por algumas emissoras de televi-são e publicações eram totalmente dis-torcidas; queria passar tudo a limpo.

JORNAL DA ABI – EM 2004, O PRESIDENTE

LULA DISSE EM ENTREVISTA À FOLHA DE S.PAULO: “FIQUEI PUTO PORQUE COMO PODE UM

CIDADÃO QUE NUNCA CONVERSOU COMIGO,QUE NUNCA TOMOU UM COPO DE CERVEJA CO-MIGO, QUE NUNCA TOMOU UM COPO D’ÁGUA

COMIGO, FAZER UMA MATÉRIA DIZENDO QUE EU

BEBIA?”. ISSO É VERDADE?

Larry – Bom, talvez ele tenha se esque-cido de que o conheci em 1978, quandotrabalhava para a semanal Newsweek, efui o primeiro jornalista a fazer um per-

fil seu para uma publicação estrangeira.Usei como título da matéria uma frasede John Lennon: “Herói da classe traba-lhadora”. Ele pareceu bastante feliz coma repercussão, até porque lhe dava umablindagem contra as ameaças da ditadu-ra. Para fazer esse e outros textos, acom-panhei-o bastante. Naquele tempo, cos-tumava tomar apenas Fanta laranja e eleainda ria da minha cara: “Que é isso? Umjornalista que não bebe?”. Apesar disso,já acompanhei-o em cervejas e mesmoem bebidas mais fortes. Mesmo enquan-to estive fora do País, procurei acompa-nhar sua trajetória. Nosso reencontro foinos anos 90, pouco antes de voltar a tra-

balhar no Brasil, quando cobria um even-to em El Salvador. Foi um encontro cor-dial. Por isso, estranhei algumas de suasdeclarações. Acho que houve outros mo-tivos para suas atitudes.

JORNAL DA ABI – QUE MOTIVOS SERIAM ESTES?

Larry – Desde 2003, quando o PT as-sumiu o Governo, eu já vinha fazendoalgumas matérias que não estavamagradando suas lideranças. Comecei fa-zendo uns artigos sobre o WaldomiroDiniz e sobre os problemas enfrenta-dos pelos camponeses sobreviventes daguerrilha do Araguaia. Por minhas fon-tes, ouvia dizer que assessores de Lula

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JORNAL DA ABI – NA OPORTUNIDADE, PA-RECEU QUE GRANDE PARTE DA IMPRENSA BRA-SILEIRA FICOU AO LADO DE LULA. O SENHOR

TAMBÉM TEVE ESSA IMPRESSÃO E O QUE ACHOU

DA POSIÇÃO DOS VEÍCULOS NACIONAIS?

Larry – Tive a mesma impressão. Naverdade, fiquei mais irritado com os “co-leguinhas”, do que com o Governo. Go-vernos agem de acordo com seus inte-resses, mas a imprensa não teve o bomsenso e a imparcialidade que semprepregou. Esperava mais da cobertura quefizeram, pois foram tendenciosos. Al-guns órgãos funcionaram como papa-gaios do Governo e não me procuraramnem a meu jornal para ouvir o outrolado. Bateram cegamente. Fui corres-pondente desde a ditadura, acompanheia luta da imprensa em favor da demo-cracia e todos me conheciam. Mas nãovi coerência naquele momento. Muitagente não gostou da matéria e até a clas-sificou como leviana. Mas vejo de for-ma diferente: boa parte da imprensa bra-sileira foi omissa e, depois de a polêmi-ca estourar, hipócrita. Nos bastidores,entre jornalistas e políticos, falava-semuito nisso: que o Lula estava bebendodemais. Ninguém, entretanto, teve co-ragem de fazer uma matéria mostrandoisso. Talvez pela simpatia com o ideáriogovernista, talvez porque não queriamtocar num assunto que pudesse prejudi-car a imagem do Governo. Outros, porcausa dos negócios e dívidas com o Po-der Público ou ainda porque não tinhamcoragem de tocar em um ponto comoaquele diante da popularidade crescentedo Presidente da República.

JORNAL DA ABI – MAS DIZER QUE O “GOS-TO DE LULA PELA BEBIDA TORNA-SE PREOCUPA-ÇÃO NACIONAL” NÃO ERA MEIO EXAGERADO?

Larry – Realmente. Teve gente quecriticou esse título e com razão. Mastodo jornalista sabe que não é o repór-ter que escolhe o título. Se fosse eu, nãoteria dado daquela forma. Mas o con-teúdo da matéria não teve erros. Issoeles não contestaram. Preferiram escre-ver meu nome errado e dizer mentiras,inventando que eu estava aqui e, quan-do a bomba estourou, fugi para a Ar-gentina. Não foi nada disso. Eu estavalá e voltei para cá quando estourou apolêmica, para enfrentar a fera. Comocorrespondente para todo o Mercosule o Chile, país associado, estava lá emnosso escritório argentino para fazerreportagens sobre política e economia.A matéria foi publicada num domin-go, voltei para cá na segunda e na ter-ça-feira saiu o decreto sobre a minha ex-pulsão. Fiquei aqui o tempo todo, masaté hoje abro os jornais e vejo ummonte de besteiras sendo publicadassobre o episódio.

JORNAL DA ABI – SE PUDESSE VOLTAR ATRÁS,O SENHOR FARIA A MESMA REPORTAGEM? OU

MUDARIA ALGUMA COISA?

Larry – Faria igual. A reportagemestava corretíssima e refletia o queacontecia no momento. No máximo,fortaleceria a matéria com mais fontese citações. Mas, claro, também tem o

JORNAL DA ABI – DEPOIS DA

POLÊMICA COM LULA, O SENHOR SE

SENTE INJUSTIÇADO?

Larry – Injustiçado é mui-to forte. Achei a reação desne-cessária e estranho que umGoverno que diz popular te-nha usado uma lei do tempoda ditadura para tentar me ex-pulsar. Tentaram usar outraparte daquela mesma lei con-tra o próprio Lula, em 1980,para justificar sua prisão. Eusabia que o Governo não gos-taria da reportagem, porém,não esperava que reagisse como fígado, como aconteceu.Para mim, ele foi mal assesso-rado. Não condeno o PT comoum todo, pois o partido temvárias tendências e correntes.Mas alguns são remanescen-tes de tempos passados e sim-patizantes de governos auto-ritários de esquerda. O Lulasentiu-se ofendido pessoal-mente e alguns de seus asses-sores no Palácio do Planalto es-timularam as críticas de que amatéria foi impertinente, ar-rogante, insultante. Foi umamistura de fatores pessoais eideológicos. Mas também al-guns aproveitaram para fazercampanha de suas concep-ções, distorcendo a história ecriando um factóide. Disse-ram que estava tentando mi-nar o prestígio do Lula no ex-terior, que se tratava de uma

matéria encomendada e até que eu eraum agente a serviço de outros interes-ses. Tudo paranóia. Uma visão ultra-passada, especialmente contra um jor-nalista estrangeiro.

JORNAL DA ABI – TODA ESSA CONFUSÃO

TRAZ UM DEBATE INERENTE AO JORNALISMO.ATÉ QUE PONTO A VIDA PESSOAL DE LULA ÉALGO DE INTERESSE PÚBLICO OU PERTENCE

SOMENTE A ELE?

Larry – Durante as apurações, FábioKerche levantou essa objeção. Mas dissea ele que qualquer coisa que pudesse im-pactar o desempenho de um servidorpúblico é pauta. Citei, inclusive, o escân-dalo Clinton-Lewinsky como exemplo.O problema não foi o adultério em si,mas o fato de ter sido cometido na CasaBranca, em horário de expediente e peloPresidente ter usado seu cargo e aindamentido em juramento. Tudo bem, ojornalismo no Brasil talvez não tenha amesma preocupação que o norte-ame-ricano, mas eu era um repórter de lá,escrevendo para um veículo norte-ame-ricano que seria lido por norte-america-nos. Pouco tempo antes, tinha feito umamatéria sobre como o divórcio entreMarta Suplicy e o Senador EduardoSuplicy estava afetando a política emSão Paulo. O PT chiou, mas Marta erauma feminista, movimento que sempredefendeu que “o político é pessoal e opessoal é político”. Acredito que nadaque reflita sobre as crenças, políticas, po-

problema de espaço. É o velhoproblema do jornalismo: vocêtem quatro páginas de infor-mação, mas apenas uma parapublicar tudo. Não concordocom várias críticas feitas.Achei correto usar o Brizolacomo fonte. A reportagemmencionava que ele era ex-companheiro de chapa e, na-quele momento, crítico doGoverno Lula. Esse negóciode que não deveria ter usadoo Brizola por causa de suarelação estremecida com Lulapara mim é irrelevante. Im-porta levar a informação parao leitor, inclusive sobre astensões entre os dois políti-cos. Não cabe a mim julgar seo que Brizola falava era certoou não. Ele falou abertamentesobre a questão. Criticam-mepor aí também dizendo queminhas fontes principais fo-ram o Cláudio Humberto e oDiogo Mainardi. Primeiro,não conheço o Humberto enunca falei com ele. Eu citeio concurso na coluna deleapenas como exemplo dosboatos que corriam pelo Paíse ligavam Lula à bebida. A pri-meira vez que falei com Ma-inardi foi no programa Ma-nhattan Connection há poucassemanas. Minhas fontes fo-ram jornalistas e políticos.Ninguém quis aparecer namatéria com o nome comple-to. Mas ex-Presidentes e donos de jor-nais disseram que Lula bebia demais eque o País estava à deriva. E o texto re-fletiu isso. Era um tempo em que o Go-verno parecia omisso diante da corrup-ção e havia passividade em suas ações.Hoje, sabemos que, naquele momen-to, o mensalão e outros escândalos decorrupção já eram executados.

JORNAL DA ABI – O SENHOR TENTOU FALAR

COM O LULA NA ÉPOCA?

Larry – Tentei. Procurei várias vezeso Palácio do Planalto, procurei com oRicardo Kotscho, mas ele não pôde mereceber e me passou para seu subordi-nado, o Fábio Kerche. Houve uma reu-nião lá no Planalto e várias ligações te-

lefônicas sobre a matéria que eu faria.O Governo teve várias oportunidadespara se posicionar sobre o assunto e nãoquis. Depois, quando a reportagemsaiu, recebi uma ligação do Embaixa-dor Roberto Abdenur, da embaixadabrasileira em Washington. Ele me in-terpelou: “Não sei o que você está pre-tendendo com isso, mas os mercadosvão enlouquecer amanhã. O dano ao

Brasil é enorme”. Também fiquei sa-bendo que durante uma reunião, quan-do Lula ficou sabendo por um de seusassessores que me expulsar do País erainconstitucional porque minha mulheré brasileira, esmurrou a mesa, exalta-do: “Que se foda a Constituição! Queroque ele vá embora”.

JORNAL DA ABI – PARA SOLUCIONAR DE VEZ

O IMPASSE E O DECRETO QUE O EXPULSAVA SER

ANULADO, O SENHOR TEVE QUE SE RETRATAR,COMO A MÍDIA DIVULGOU?

Larry – Isso não é verdade. Não man-dei carta nenhuma e o jornal enviouapenas uma correspondência saudandoa mudança de posição do Governo ereiterando a correção e justeza da repor-

tagem. Porém o Mi-nistro da Justiça naépoca, Thomaz Bas-tos, deu uma entre-vista em São Paulo naqual distorceu a cor-respondência; disseque eu tinha escrito

uma carta de retratação e que Lula tinhaaceitado meu “pedido de desculpas”. OJornal Nacional, da TV Globo, repercu-tiu essa informação e fez o estrago. Osjornais do dia seguinte já saíram com aversão do The New York Times, que ne-gava a retratação. A revista Veja deu atématéria de capa e detalhou ocasiões emque repórteres brasileiros presenciaramo consumo de álcool pelo Presidente.

“Estranho que um Governo que se dizpopular tenha usado uma lei do tempoda ditadura para tentar me expulsar.”

LARRY ROHTER ESTA HISTÓRIA NÃO DEU NO NEW YORK TIMES

Larry continua no New York Times, e como queria: baseado em NovaYork e destacado para a área cultural e eventos internacionais.

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pularidade e eficiência no cargo de re-presentantes eleitos deva ser conside-rado inaceitável.

JORNAL DA ABI – ATUALMENTE, O SENHOR

ESTÁ MORANDO NOS ESTADOS UNIDOS. SUA

VOLTA PARA LÁ FOI MOTIVADA POR ALGUM DES-DOBRAMENTO DESSA REPORTAGEM?

Larry – Não. O jornal The New YorkTimes tem como procedimento padrãotrocar seus correspondentes a cada trêsou cinco anos. Eu fiquei no Brasil pornove anos, fui recordista. Chega omomento de sair. Minha esposa tam-bém queria morar em outro lugar. Ape-sar de ser carioca, estava preocupadacom a violência na cidade, especialmen-te depois da morte do garoto João Hé-lio. Eu já fui chefe em todas as nossassucursais na América Latina. Queriafazer algo diferente. Cobri eleições em40 países. Mas agora foi a primeira vezque acompanhei as eleições em meupróprio país. Foi uma campanha histó-rica e algo novo e enriquecedor paramim. Agora, estou trabalhando no jor-nal como correspondente itinerante decultura e notícias internacionais. É umtrabalho de bombeiro nas crises inter-nacionais, mas na maior parte do tem-po posso me dedicar à cultura, minhapaixão. Um posto criado sob medidapara mim. Minha base é Nova York eviajo segundo as necessidades.

JORNAL DA ABI – FALANDO EM FAZER OQUE GOSTA, O SENHOR VEIO AO BRASIL PELA

PRIMEIRA VEZ EM 1972 E FICOU TÃO APAIXO-NADO POR ESTA TERRA QUE DECIDIU FICAR DE

VEZ POR AQUI. O QUE DESPERTOU ESSE AMOR

À PRIMEIRA VISTA?

Larry – Para falar a verdade, foramvários fatores. Eu me apaixonei primei-ro por uma brasileira. Isso foi funda-mental. Mas eu também encontrei umpaís fascinante, muito diferente domeu e atravessando um momento his-tórico muito interessante. Eu encontreidois Brasis: o oficial, repressivo, som-brio; e o povo, que lutava contra osdesmandos da ditadura e que se expres-sava por meio de uma cultura vibran-te, especialmente pela música, outrapaixão minha. Eu queria ser correspon-dente estrangeiro. Na época, estavaestudando a língua e a história da Chi-na. Porém, minha visita em 1972 des-viou-me do Oriente.

JORNAL DA ABI – QUAL FOI SUA PRIMEIRA

IMPRESSÃO AO DESEMBARCAR NO RIO?

Larry – Vim como funcionário con-tratado pela Rede Globo, trazido deNova York para trabalhar no VII Fes-tival Internacional da Canção. Senta-do a meu lado na van da emissora vi-nha outro estrangeiro: o cantor e com-positor franco-grego Georges Mous-taki. Ele estava deslumbrado com ocalor, as cores tropicais e toda aquelaefervescência. Quando o motorista seofereceu para ligar o ar-condicionado,Moustaki insistiu para que a janelapermanecesse aberta. Queria ver, ou-vir e cheirar tudo, fosse a Favela da

Maré, ainda pequena em relação ao queé agora, seja o Cristo Redentor ou o Pãode Açúcar: “Très belle!”, repetia ele,entusiasmado. Apesar de mais conti-do, eu sentia o mesmo.

JORNAL DA ABI – DE QUE FORMA COMEÇOU

ESSA RELAÇÃO COM A GLOBO?

Larry – Já trabalhava na sucursaldeles em Nova York. Lá conheci umabrasileira, que se tornou namorada edepois esposa. Ela foi contratada paratrabalhar na tradução do programainfantil Sesame Street, o Vila Sésamo. Eufazia um pouco de tudo. Acompanha-va o mercado musical, buscava direi-tos autorais das canções, trabalhandona produção do Fantástico e fazendotraduções de documentos e matérias.Também conheci muitos brasileiros efiz ótimos contatos em festas. Chegueiaqui para trabalhar como intérprete deartistas norte-americanos e canaden-ses que atuavam no festival. Tambémfui o responsável por comprar todos osequipamentos para o FIC, de amplifi-cadores a baterias. Aqui, além de tra-duzir, ciceroneei o pessoal, apresentan-do a eles a Mangueira, o samba, os bra-

saíam às ruas, acabavam massacrados.A pobreza também me impressionou.Quando subi a uma favela pela primei-ra vez fiquei marcado. Não que a pobre-za não exista nos Estados Unidos, masaqui a diferença entre ricos e pobres é

feira. Tudo me interessava, mas encon-trei manifestações que nunca tinhavisto antes em lugar algum: repentis-tas, artistas de xilogravura e cordelis-tas. Fiz questão de adquirir uns cincoou seis títulos de cordel. O interesse foicrescendo, fiz pesquisas, escrevi vári-as reportagens. Queria ter feito um li-vro para o público inglês, mas como jáhá dois outros bons títulos, percebi quenão teria mercado. Para mim, o cordelé uma das expressões mais originais dabrasilidade, com uma mistura nordes-tina, européia, africana e indígena.Uma expressão popular e não da elite,nascida há mais de 150 anos, quandoo Brasil mal havia deixado de ser colô-nia portuguesa.

JORNAL DA ABI – QUAL É O SEU PENSAMEN-TO SOBRE PROJETOS DE PARLAMENTARES E OCLAMOR DE ALGUMAS CORRENTES NACIONALIS-TAS CONTRA O “IMPERIALISMO NORTE-AMERI-CANO QUE INVADE A CULTURA BRASILEIRA”?

Larry – Tenho acompanhado essasmanifestações desde o início do meutrabalho no Brasil. Os parlamentarese lideranças que têm essas posições es-tão agindo de boa-fé, mas creio que

sileiros e outras cidades do País. Nofinal, quem não conseguiu resistir atudo isso fui eu.

JORNAL DA ABI – QUANDO O SENHOR CHE-GOU NO BRASIL NA DÉCADA DE 1970, QUE

GRANDES DIFERENÇAS SENTIU EM RELAÇÃO

AOS ESTADOS UNIDOS? O QUE MAIS O IM-PRESSIONOU AQUI?

Larry – Primeiro, a repressão políti-ca. Lá, eu ainda era estudante e saí àsruas durante a Guerra do Vietnã paraprotestar. Não havia violência contranós. Estudantes brasileiros, quando

mais brutal. Também houve aspectospositivos: a efervescência cultural, porexemplo, causou uma impressão mui-to maior. Apesar das mazelas, o povobrasileiro é lutador, não se entrega etriunfa com enorme capacidade.

JORNAL DA ABI – O SENHOR REVELA UMA

SIMPATIA TODA ESPECIAL PELO CORDEL. COMO

O CONHECEU?

Larry – Um tio da minha esposa le-vou-me logo no primeiro domingo parao Campo de São Cristóvão, para conhe-cer as tradições nordestinas em uma

estão errados. Não dão suficiente va-lor à capacidade criativa da culturabrasileira, ao seu reinventar. Gosto deusar aquele conceito de antropofagiapara a cultura do Brasil, pois ela con-segue ir ao encontro de outras cultu-ras de igual para igual, absorvendo,como qualquer outra, o melhor, trans-formando-se em algo novo, mas pre-servando suas raízes. Um exemplo clás-sico é o Tropicalismo, atacado comouma ferramenta imperialista. Mas era,na verdade, um movimento vibrantede renovação da música nacional. O

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“O cordel é uma dasexpressões mais originaisda brasilidade, com umamistura nordestina,européia, africana eindígena. Uma expressãopopular e não da elite,nascida há mais de150 anos, quando o Brasilmal havia deixado de sercolônia portuguesa.”

Em sua longa permanência no Brasil, Larry fez mais de 500 reportagens, muitas de risco, deslocando-se em frágeis embarcações.

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funk e o rap também foram muito ata-cados, mas o brasileiro conseguiu fazeralgo singular, com sua cara. Tanto quemuitos dos artistas que vêm para cábuscam captar e aprender coisas novas.Até no improviso temos um elementobrasileiro. Por isso, não concordo comessa visão apocalíptica.

JORNAL DA ABI – EM SEU LIVRO, O SENHOR

MOSTRA GRANDE SIMPATIA PELO POVO E CRITICA

AS ELITES. COMO FOI SUA FORMAÇÃO POLÍTICA?

Larry – Comecei minha vida traba-lhando em fábricas, ao lado de imigran-tes e exilados latino-americanos. Euescutava atentamente a história queesses dominicanos, cubanos, mexica-nos e porto-riquenhos contavam. Foio início do meu processo de conheci-mento da América Latina. Eles recla-mavam muito dos governos, chama-vam-nos de corruptos, incompetentes,ditadores. Tanto os de direita quanto osde esquerda. Isso foi fundamental naminha formação política. Na faculdade,tive um professor polonês que emigroupara os Estados Unidos depois da Segun-da Guerra Mundial. Ele havia passadotemporadas em campos de concentra-ção nazistas e soviéticos. Isso solidifi-cou minha opinião de que qualquertotalitarismo é nocivo para o ser huma-no. Como jornalista, sempre escrevi afavor dos movimentos populares e con-tra os ditadores de plantão, não somenteaqui, mas em vários países da AméricaLatina. Seja Pinochet, seja Fidel. Sejamos militares no Brasil, sejam os sandinis-tas na Nicarágua. Ainda hoje, isso é umaquestão polêmica, já que aqueles que sãoditadores para a esquerda não o são paraa direita, e vice-versa. Não sou da ter-ceira via. Sempre fui e sou partidário dosEstados democráticos.

JORNAL DA ABI – QUAL FOI SEU TRABALHO

NESTA ÚLTIMA ELEIÇÃO PRESIDENCIAL NOS ES-TADOS UNIDOS?

Larry – Inicialmente, tive quatro co-berturas, todas girando em torno dacampanha eleitoral: política internaci-onal, comércio internacional, imigra-ção e eleitorado hispânico. Já na primei-ra semana, meu chefe me chamou e dis-se que todos os correspondentes queacompanhavam os candidatos estavamexaustos. Todos esperavam que as pri-márias terminariam em março, com adefinição do candidato indicado porcada partido. Mas elas prolongaram-seaté junho. Então, ele me perguntou seeu toparia viajar e acompanhar um doscandidatos. No New York Times temosgente que cobre política, internacional,economia, saúde e aqueles que acom-panham os candidatos. Eu topei. Pri-meiro, viajei com John McCain por cin-co dias, depois com Hillary Clinton, emseguida com Barack Obama e fui reve-zando. Em setembro e outubro, na fasefinal, viajei com Sarah Pallin. O fato deObama e Clinton serem da minha ci-dade, Chicago, ajudou-me a contextu-alizar melhor a trajetória deles.

JORNAL DA ABI – COMO O SENHOR COMPA-

RA A COBERTURA FEITA PELA IMPRENSA NORTE-AMERICANA DAS ELEIÇÕES LÁ COM A QUE ÉFEITA AQUI NO BRASIL?

Larry – Acredito que cada uma a seumodo é bem feita. Há nuances e dife-renças na imprensa dos dois países, mascada uma faz bem feito seu papel emcada nação. Falam muito em imparci-alidade na cobertura lá e parcialidadeaqui. Na cobertura, existe imparciali-dade, mas não no jornalista. Você temuma trajetória, uma formação, opini-ões e visões. Isso impacta a cobertura.Mas é justamente missão do profissi-onal passar elementos, independente-mente de suas convicções, para que oleitor tome suas decisões. Eu mesmo jáfiz reportagens com candidatos quecontrariavam minhas convicções pes-soais, mas fui elogiado pelos partidá-rios do candidato, que achavam que euo apoiava. Entretanto, apenas procu-rei ser neutro.

JORNAL DA ABI – APÓS COBRIR A ELEIÇÃO DE

BARACK OBAMA, QUAIS SÃO SUAS EXPECTATIVAS

PARA COM O GOVERNO QUE ESTÁ COMEÇANDO?

Larry – Primeiro, um pesadelo quejá durava oito anos finalmente termi-nou. Nesse tempo, foram duas guerras,uma delas completamente desnecessá-ria e inconseqüente, uma economia emruínas, por causa de uma ideologia ul-trapassada, que defende sem pondera-ção o livre mercado. Quer dizer, a he-rança recebida por Obama é um pesoe um desafio que não será fácil conser-tar. Porém, sua liderança consegue ins-pirar as novas gerações, antes total-mente aversas ao patriotismo e à polí-tica, para participarem. Como diz oLula, é uma “herança maldita”. Nãoacho que ele tenha recebido uma. MasObama, sim. E arrumar a casa levarátempo e custará caro. Nem todas as fi-guras do Governo Obama são no-vas. Mas, como sempre ouvia Hi-llary Clinton perguntar em suasviagens: “Que parte dos anos 90você não gostou: a prosperidadeou a paz?”. Não acho problema res-gatar alguns personagens daqueletempo que fizeram um trabalhoexemplar nessas áreas. Mas para oBrasil e os demais países, acho queestá havendo uma esperança exage-rada. Não quero estragar as expec-tativas, mas acho que essa ima-gem universal do primeiro negro adirigir a Casa Branca, dono de uma vi-são internacional por ter morado no ex-terior, e de uma biografia singular, nãosustentará ilusões por muito tempo.Obama é o Presidente dos Estados Uni-

dos, ponto. Não vai governar para oBrasil. Lá na frente prevejo dificulda-des para os brasileiros. Quer um exem-plo? Hoje, o Brasil é dono do maior emais avançado programa de etanol domundo. Os Estados Unidos não têmcomo concorrer. Mas têm outro, à basede milho, sustentado com barreiras ar-tificiais e subsídios. Como senador,Obama tem defendido não apenas acontinuidade delas, mas seu aumento.O Bush assinou um acordo com Lulapara fortalecer parcerias e programasem conjunto. Como já sinalizou nacampanha, Oba-ma não deve sus-tentar esse acor-do. É apenas umade várias áreas depotencial atritoentre os dois paí-ses. Nessa ques-tão, apóio o Brasil.Temos que admi-tir e apoiar o mai-or e mais eficienteprograma de pro-dução de etanoldo mundo. Durante a campanha, fizuma matéria sobre o etanol e Obama,que virou primeira página do New YorkTimes. Ela foi muito comentada, masos admiradores de Obama criticaram-na. É algo que ainda vai repercutir e valeacompanhar.

JORNAL DA ABI – QUAIS REPORTAGENS MAIS

MARCARAM EM SUA TRAJETÓRIA?

Larry – Só aqui no Brasil fiz mais de500 reportagens. Em especial, ficarammarcadas aquelas que fiz sobre a guer-rilha do Araguaia; a descoberta de umacaixa de discos com gravações feitas em1938 por uma missão de pesquisa fol-clórica enviada por Mário de Andrade,naquele tempo Secretário Municipalde Cultura de São Paulo, ao sertão nor-destino; no campo político, o assas-sinato de Celso Daniel, Prefeito de

Santo André, na Grande SãoPaulo. A do Lula alguém podepensar que foi mais importan-

te por causa da repercussão, masestá longe disso.

JORNAL DA ABI – A CORRUPÇÃO É UM PRO-BLEMA SÉRIO NO BRASIL. PORÉM, MUITO TEM SE

FALADO NO TRABALHO DA IMPRENSA DENUNCI-ANDO CASOS DE CORRUPÇÃO E, COM ISSO, UM

COMBATE EFETIVO A ESSE MAL. O SENHOR ACHA

QUE A CORRUPÇÃO TEM DIMINUÍDO?

Larry – Tenho pensado muito sobreisso. Claro que durante a ditadura ha-via corrupção, mas era impossível de-nunciá-la. Com a censura e repressãoera difícil dizer se houve desvio de di-nheiro em obras como a hidrelétrica deItaipu, a Ponte Rio-Niterói ou a Tran-samazônica. A democratização trouxe

novas possibilida-des para o traba-lho do jornalista,que foram com-plementadas pornovos recursost e c n o l ó g i c o s ,como câmeras egravadores mi-núsculos. Não seise a corrupção temdiminuído, mas otrabalho de de-núncia feito pela

imprensa brasileira está-se aperfeiçoan-do cada vez mais. Agora, pelo que já foirevelado, o Governo Lula é o mais cor-rupto da História. Perto dele, casoscomo o de Fernando Collor e PC Fari-as são café pequeno. Outra mudançasignificativa é que antigamente os cor-ruptos não estavam interessados emconstruir um aparato que os mantives-se no poder por décadas. Hoje, enrique-cer é uma preocupação secundária. EmSanto André, por exemplo, havia umesquema cujo objetivo era arrecadar di-nheiro para o PT. Só que acho a corrup-ção feita para monopolizar o podermuito mais grave.

JORNAL DA ABI – O QUE MUDOU EM QUASE

QUATRO DÉCADAS NO BRASIL?

Larry – No campo da po-lítica, muita coisa mudou.

“Pelo que já foi revelado,o Governo Lula é o maiscorrupto da História.Perto dele, casos como ode Fernando Collor e PCFarias são café pequeno.”

“Acho que essa imagem universal doprimeiro negro a dirigir a Casa Branca, donode uma visão internacional por ter moradono exterior, e de uma biografia singular,não sustentará ilusões por muito tempo.”

LARRY ROHTER ESTA HISTÓRIA NÃO DEU NO NEW YORK TIMES

Obama, na posse:Ele não vai governarpara o Brasil, adverte

Larry Rohter.

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35Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

A começar pelas institui-ções, que estão fortaleci-das e funcionando muitomelhor. Existem proble-mas, às vezes muito ba-rulho, mas como efeitotambém do processo de-mocrático. Durante a di-tadura, eu teria sido ex-pulso do País. Mas agorao Judiciário agiu de modoindependente, contra osinteresses de parte da im-prensa e do Governo, emanteve os princípiosconstitucionais, permi-tindo que eu ficasse. OPaís está progredindo epara que continue é ne-cessário aprofundar a re-forma política e a refor-ma judiciária. A Justiçalenta é um desafio muitogrande para o Brasil. Des-de o começo do meu tra-balho, tenho procuradosempre manter contatocom o meio político. Em1978, entrevistei Arnonde Mello, pai do futuroPresidente Fernando Co-llor de Mello, e senadorbiônico da Arena. Ele mecontou uma história queexemplifica muito bem como as coisasfuncionam na política brasileira. Arnonera um jovem repórter em Maceió, naagitada década de 1930. Assim, recebeua tarefa de encon-trar um poderosocacique no interiorde Alagoas e desco-brir que lado ele es-tava apoiando.Quando encon-trou o homem emseu cavalo, dispa-rou: “De que lado osenhor está?”.“Meu filho, o Go-verno mudou, maseu não”, respon-deu o coronel.“Continuo com oGoverno”.

JORNAL DA ABI – AFORA A BRIGA COM OPRESIDENTE LULA EM 2004, COMO O SENHOR

AVALIA O TRABALHO FEITO PELA IMPRENSA NO

BRASIL?

Larry – Pode soar negativo, mas vejoo trabalho da imprensa como um marde mediocridade com algumas ilhas deexcelência. Quando cheguei aqui, o jor-nalismo era muito mais do que umacarreira. Era uma vocação. Você desa-fiava o poder, corria riscos, pagava al-tos preços. Vladimir Herzog pagou coma própria vida. Jornais como O Estadode S. Paulo desafiavam a censura e,quando tinham alguma matéria corta-da publicavam Camões em seu lugar.A Editora Abril e o Jornal do Brasil eramoutros extremamente combativos. Euadmirava isso. Deixei o Brasil em 1982.Durante anos, vim ao Brasil apenas

para passar férias e visitar a família deminha esposa. Quando voltei a moraraqui em 1999, muita coisa tinha muda-do no jornalismo. Acho que faltam ide-

ais e compromissopara os mais jo-vens. Tem genteque quer ingressarna área apenas paraganhar dinheiro ouficar famoso, espe-cialmente apare-cendo na televisão.Uma grande parteperdeu o sentido devocação. Ainda exis-te muita gente boana área, mas mes-mo estes precisamlidar com uma sériede limitações. Al-

gumas financeiras, como o orçamentoapertado, mas também falta de vonta-de em investir em certas coberturas ouno jornalismo investigativo, e compro-missos assumidos pelos donos comgrupos políticos regionais. Esses inte-resses precisariam ficar mais claros. Emqualquer veículo da imprensa eles exis-tem, mas no Brasil eles infiltram-se nasmatérias. Não ficam no editorial. E osveículos não declaram suas posições econtinuam vendendo a falsa imagemde imparcialidade.

JORNAL DA ABI – O SENHOR DISSE QUE OS ES-TRANGEIROS NÃO CONHECEM O POTENCIAL CIEN-TÍFICO E TECNOLÓGICO DO BRASIL. COMO ASSIM?

Larry – Nem o próprio brasileiroconhece. É dos aspectos menos essen-ciais para a identidade do povo. É algocurioso: sempre que fazia uma maté-

ria considerada negativa,a grande imprensa a des-tacava. Diziam: “Nova-mente aquele gringo me-tido ataca o Brasil”. Masquando fazia um textopositivo, sobre alguma fa-çanha ou descoberta bra-sileira, ninguém comen-tava. O Brasil é fortíssimoem certos nichos tecnoló-gicos e em inovações cien-tíficas. Por isso, dedico aúltima parte de meu livroàs matérias que fiz naárea. Empresas como Em-brapa e Embraer são líde-res mundiais; a Petrobrástem a melhor tecnologiade exploração de petróleoem águas marinhas; oprograma de produção deetanol pode ser a saídaque o mundo busca parauma fonte de energia al-ternativa; e os estudosque decifraram o genomade pragas que devastamos cítricos podem revolu-cionar a agricultura. Sãocoisas que o mundo intei-ro respeita, mas o brasilei-ro desconhece. O Brasilnão é só praia, futebol,

mulher e samba. Também não é verda-de que os estrangeiros só vejam isso noPaís. Nos meios acadêmicos e científi-cos, o Brasil é muito respeitado lá fora.

JORNAL DA ABI – ESSES SÃO ALGUNS MITOS

QUE ATÉ A IMPRENSA LÁ FORA CULTIVA SOBRE

O BRASIL. QUE OUTROS MITOS?

Larry – Com o crescimento da eco-nomia brasileira, as notícias que só fa-lam do Brasil como a terra do futebol,do Carnaval ou da sensualidade pau-latinamente vão desaparecendo. Hoje,o Brasil é encarado pela imprensa in-ternacional comouma grande eco-nomia em ascen-são. Entretanto,há ênfase exagera-da na violência,por exemplo. Nãoque não exista. Éum fato, mas pa-rece que só existeisso. O públicoforma uma ima-gem irreal. Já con-versei com pesso-as que achavamque aqui existiaum tiroteio emcada esquina. Issonão existe. Outra:a imagem que se passa lá fora da Ama-zônia é de que não há remédio, pois a de-vastação não consegue ser sequer contro-lada pelo Governo. O desmatamento éterrível, mas a verdade é mais comple-xa, pois muitos governantes e organi-zações estão buscando formas de com-batê-lo e com sucesso. Em meus textosfaço questão de salientar que Jorge Vi-

ana e Eduardo Braga* são exemplos delideranças inteligentes e modernas,com boas idéias, e que têm combati-do a destruição da floresta. Assim que-bramos aquela idéia equivocada recor-rente lá fora de que o brasileiro nãotem consciência dos danos que provo-ca. O problema é fazer valer o poderdo Estado e equilibrar desenvolvimen-to com preservação, exploração e dis-tribuição de renda.

JORNAL DA ABI – QUAL A IMPORTÂNCIA

DO TRABALHO DE ENTIDADES COMO A ASSO-CIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA NO SENTI-DO DE BUSCAR UMA IMPRENSA MAIS LIVRE EDE QUALIDADE?

Larry – O trabalho desenvolvidopor entidades como a ABI é extrema-mente importante. Durante a ditadu-ra, a defesa que fez da liberdade de ex-pressão foi balizadora e encorajadorapara muitos profissionais. Mas mes-mo hoje acho que o papel que cumpreé tão importante quanto foi nos anosde chumbo. Temos cidades extrema-mente desenvolvidas como o Rio e SãoPaulo, mas lugares, e não muito dis-tantes desses grandes centros, compráticas que lembram as do século 19,cheias de ameaças, coronelismo e bus-ca de interesses escusos. Sempre ouçofalar de situações assim e quem estálá para defender a liberdade de expres-são? Entidades como a ABI. Tenho umcolega, Lúcio Flavio Pinto, jornalistalá de Belém, no Pará, que enfrenta aperseguição de grupos locais, como deJader Barbalho e seus arapongas.

JORNAL DA ABI – E SEUS PLANOS FUTUROS?ENVOLVEM O BRASIL?

Larry – Até gostaria de morar aquinovamente. Mas aposentado. Achoque não volto como correspondente.Porém, tenho planos de escrever livrossobre o Brasil. Falar de suas músicas, daAmazônia, fazer biografias, como a do

Marechal Rondon.Também contarmais histórias debastidores e mi-nhas brigas comalguns jornalistase veículos da im-prensa. Agora quenão estou maiscomo correspon-dente, a regra dojornal me permitetocar esses proje-tos e falar sobre es-ses temas. Não es-tou mais no Bra-sil, mas aprendi aamar o País. É mi-nha segunda casa.

Não consigo deixar de acompanhar ostemas importantes e também as fo-focas: quem briga com quem, quemestá brilhando, histórias de artistase políticos.

*Jorge Viana foi Governador do Estado do Acre pordois mandatos. Eduardo Braga é Governadorreeleito do Estado do Amazonas.

“O Brasil é fortíssimo emcertos nichos tecnológicose em inovações científicas.Por isso, dedico a últimaparte de meu livro àsmatérias que fiz na área.Nos meios acadêmicose científicos, o Brasil émuito respeitado lá fora.”

“Quando cheguei aqui,o jornalismo era muitomais do que uma carreira.Era uma vocação. Vocêdesafiava o poder, corriariscos, pagava altos preços.Vladimir Herzog pagoucom a própria vida.”

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OS STEFAN

O

Larry Rohter sobre sua obra: “Qualquer totalitarismo é nocivo parao ser humano. Sempre escrevi a favor dos movimentos populares

e contra os ditadores de plantão. Seja Pinochet, seja Fidel”.

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em nível.” Foi com essas palavras que,em 1967, José Lino Grünewald, Dire-tor de Redação do Correio da Manhã,acabou com os sonhos de um garotode se tornar meia-esquerda do Flamen-go e comprovou que ele sabia escrever.

Mesmo assim, o rapaz ainda precisaria traba-lhar oito meses sem receber e ralar muito, co-brindo crimes, tomando borrachada em passe-atas estudantis e indo a hospitais públicos, antesde ter emprego remunerado. O começo foi inu-sitado, mas quando lembra do passado Ruy Cas-tro não tem dúvidas de que se tratou de umaexcelente escola, que lhe daria bagagem para setornar um dos mais célebres biógrafos brasilei-ros da atualidade. Autor de obras como O Anjo

Pornográfico: A Vida de Nelson Rodrigues, de1992; Estrela Solitária: Um Brasileiro Chama-

do Garrincha, 1995; e a de Carmen Miranda, de2005 (todas publicadas pela Editora Companhiadas Letras), ele se tornou um autêntico biógrafoda vida brasileira. Isso porque, quando escre-ve, Castro não retrata apenas o personagem,mas fala sobre a sociedade no País e contaos mais curiosos aspectos da vida nos bas-tidores do mundo das artes, do futebol,da música e da política.

”A graça da biografia está em desco-brir fatos que estavam enterrados hádécadas, no fundo de uma gaveta ouda memória de alguém”, diz Ruy Cas-tro, que se considera jornalista por vo-cação, mas também tem uma bem-su-cedida carreira de tradutor, ficcionis-ta e estudioso da bossa nova, ritmosurgido no Rio de Janeiro no fim dos

anos 1950 e que foi abordado em quatro de seuslivros, inclusive em Chega de Saudade: A His-

tória e as Histórias da Bossa Nova (Companhiadas Letras).

Em entrevista ao Jornal da ABI, Castro falaum pouco sobre a arte de escrever sobre vi-das, lembra sua carreira no jornalismo, daconvivência com Ismael Silva e Paulo Fran-cis e do prazer de escrever. Também anali-sa o crescimento do número de biografiasfeitas por jornalistas nos últimos anos, a po-lêmica que cerca as chamadas “biografiasnão autorizadas” e esclarece como ficou o pro-cesso movido pelas filhas de Garrincha, quechegou a retirar de circulação Estrela Solitária

durante algum tempo.

“T

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37Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

JORNAL DA ABI – HOJE, ESCREVER BIOGRAFIAS

E MEMÓRIAS É ALGO QUE PARECE ESTAR NA MODA.PORÉM, QUAL É O SEGREDO DA BOA BIOGRAFIA?

Ruy Castro – Será uma moda? Nos Es-tados Unidos, na Inglaterra, na Alemanhae em outros países, a biografia é um gêneroliterário estabelecido há algumas dezenasde anos. Sem dúvida, o segredo de uma boabiografia é localizar o maior númeropossível de fontes para falar sobre o bio-grafado, como tentei fazer em meus livrossobre Nelson Rodrigues, Garrincha eCarmen Miranda.

JORNAL DA ABI – A MAIORIA DAS PERSONALI-DADES QUE VOCÊ BIOGRAFOU JÁ MORRERAM, COM

EXCEÇÃO DE JOÃO GILBERTO EM CHEGA DE SAU-DADE. HÁ ALGUMA PREFERÊNCIA? O QUE É MAIS

DIFÍCIL: FALAR SOBRE VIVOS OU MORTOS?

Ruy – O biografado vivo é impraticá-vel: interfere no trabalho, mente sobre sipróprio, obriga os amigos a mentir e in-flui sobre eles para que não falem sobrecertas coisas – ou para que não recebamo autor. Mesmo assim, depois de o livropronto, entram com o inevitável proces-so. Para piorar, sua história ainda não ter-minou. O morto tem essa vantagem – estámorto, acabou, não inflói nem contribói. Oprocesso, quando há, parte dos herdeiros.

JORNAL DA ABI – NO BRASIL, DIFERENTE DE OU-TROS PAÍSES COMO OS ESTADOS UNIDOS, ONDE JÁEXISTE UMA FORTE TRADIÇÃO DO FAZER BIOGRÁFI-CO, AS PESSOAS ACHAM QUE UM ÚNICO TIPO DE BI-OGRAFIA, A AUTORIZADA, PODE EXISTIR. E APENAS

UMA DE CADA PERSONAGEM. COMO VOCÊ VE AQUESTÃO? O QUE PRECISA SER

FEITO NO BRASIL PARA AMA-DURECER ESTE MERCADO?

Ruy – Pois é, temos queacabar no Brasil com essahistória de biografia au-torizada. Eu próprio nun-ca fiz uma e nunca farei.Acho também que pode edeve haver mais de umabiografia por biografado– a minha sobre a Car-men, por exemplo, é a ter-ceira ou quarta sobre ela.Ganha a melhor.

JORNAL DA ABI – EM 1995, SUA BIOGRAFIA

ESTRELA SOLITÁRIA SAIU DE CIRCULAÇÃO POR DE-CISÃO DA JUSTIÇA, DEPOIS QUE AS FILHAS DE GAR-RINCHA SE SENTIRAM OFENDIDAS E ALEGARAM

“DIREITO À PRIVACIDADE” DO PAI. COMO VOCÊ VE

ESTE CONFLITO ENTRE “LIBERDADE DE EXPRESSÃO”E “DIREITO À PRIVACIDADE”?

Ruy – É o resultado dessa “ConstituíçãoFrankenstein” que tenta agradar a todomundo.

JORNAL DA ABI – ALIÁS, VOLTANDO A ESSA BI-OGRAFIA, COMO FICOU O PROCESSO? EM 2001, ACOMPANHIA DAS LETRAS E AS FILHAS RECORRERAM

DA DECISÃO JUDICIAL QUE MANDAVA A EMPRESA

INDENIZAR A FAMÍLIA PELO USO DE 180 FOTOS DE

GARRINCHA. O QUE ACONTECEU DEPOIS?

Ruy – Em 2006, cansadas de esperar poruma decisão, e já suspeitando de que,mesmo que ganhassem, seus advogadosficariam com o dinheiro, as filhas de Gar-rincha propuseram encerrar o processo efazer um acordo à parte com a Companhia

O BIÓGRAFO DAVIDA BRASILEIRA

Com humor e pertinência, o jornalistaque escreveu sobre personagens

como Nélson Rodrigues, Garrinchae Carmen Miranda fala sobre a

arte de escrever biografias esobre sua carreira de mais

de quatro décadas.

POR JOSÉ REINALDO MARQUESE MARCOS STEFANO

das Letras. A editora topou, pagou umacerta quantia para cada uma – o total nãofoi mixaria, considerando-se que eram dezpessoas – e tudo se resolveu. Só que os ad-vogados ficaram fulos e também quiseramo mesmo dinheiro, que a editora pagou.Vamos ver se, agora, sossegam. A coisa searrastou por onze anos.

JORNAL DA ABI – AS FILHAS DO ANTIGO CRA-QUE SE INDIGNARAM CONTRA O CAPÍTULO A MÁ-QUINA DE FAZER SEXO E SOBRE CITAÇÕES DA ANA-TOMIA ÍNTIMA DE GARRINCHA. HOJE, SE FOSSE

ESCREVER O TEXTO NOVAMENTE, VOCÊ COLOCARIA

ESSAS INFORMAÇÕES NOVAMENTE?

Ruy – As filhas de Garrincha não seindignaram com nada, porque nenhumadelas leu o livro. Todo o processo partiudos advogados. Se eu fosse escrever denovo, faria exatamente igual.

JORNAL DA ABI – ESSE TIPO DE PROBLEMA –HOUVE INTERFERÊNCIA JUDICIAL NA BIOGRAFIA

ROBERTO CARLOS EM DETALHES, DE PAULO CESAR

DE ARAÚJO, MAIS RECENTEMENTE – NÃO PODE

ABORTAR ESSE BOOM DE NOVAS BIOGRAFIAS, ESCRI-TAS PRINCIPALMENTE POR JORNALISTAS? COMO

VOCÊ VÊ ESSE MOVIMENTO DE JORNALISTAS ESCRE-VEREM BIOGRAFIAS?

Ruy – Não se faz uma boa biografia ape-nas com a tarimba da imprensa. É precisotambém saber história e ter uma culturaampla. Um curso de biografia na universi-dade deveria ter aulas em pelo menos trêsfaculdades: Jornalismo, História e Letras.

JORNAL DA ABI – O JORNALISMO O AJUDOU ADESENVOLVER O SENSO DE OB-SERVAÇÃO QUE SE PERCEBE EM

SEUS LIVROS?

Ruy – Sem dúvida. Pa-ra mim, a primeira coisaa buscar é a informação.Livros como Chega deSaudade, O Anjo Porno-gráfico, Estrela Solitária,Ela é Carioca e Carmen fo-ram todos baseados ementrevistas com centenasde fontes. Para isso, a ta-rimba de quase 40 anosentrevistando gente foifundamental. Só a im-

prensa ensina a fazer perguntas, tomar no-tas, pegar a fonte desprevenida e, princi-palmente, a ouvir o entrevistado.

JORNAL DA ABI – FALANDO UM POUCO SOBRE SUA

CARREIRA, COMO VOCÊ ESTREOU NO JORNALISMO?

Ruy – Comecei no Correio da Manhã,como repórter, em março de 1967. Tinhaacabado de fazer 19 anos. Quem me levoufoi o José Lino Grünewald, que era editori-alista e articulista do jornal e eu já conhe-cia há uns dois anos, de freqüentar sua casa.O Diretor de Redação, ou Redator-chefe,como se dizia no Correio, era o Newton Ro-drigues. José Lino já tinha lhe falado a meurespeito: “Tem nível.” Era assim que, naépoca, se descrevia alguém que suposta-mente sabia escrever. Newton me recebeuna sua salinha atrás do “Petit Trianon” —a sala dos editorialistas, onde os repórtereseram proibidos de entrar — e disse: “Vocêcomeça amanhã na Geral. Vai trabalharcomo profissional e receber como amador.”

RUYCASTRO

RUYCASTRO

“Não se faz uma boabiografia apenascom a tarimba daimprensa. É precisotambém saberhistória e ter umacultura ampla”

FOTO: IVSON - TRATAMENTO DE IMAGEM: FRANCISCO UCHA

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JORNAL DA ABI – E VOCÊ ACEITOU?

Ruy – Duas coisas me fizeram pen-sar. Eu não ia receber nada, o que atra-palhava os planos de sair da casa dosmeus pais para morar no Solar da Fos-sa. E não ia para o caderno cultural. Istofoi uma ducha gelada: saber que ia co-brir cachorro atropelado, buraco de ruae filhote de girafa, em vez de bossanova, cinema, festivais da canção, de-bates no Teatro Casa Grande, gravaçãode depoimentos no Museu da Imageme do Som... Mas trabalhar no Correio daManhã valia qualquer coisa. Fiquei de-cepcionado, mas engoli. E a passagempela Geral foi fundamental para mim.Cobri hospital, delegacia e ministério,sem falar nas passeatas estudantis, emque levei borrachada tanto como jor-nalista quanto como estudante e até fuiaté preso uma vez. Trinta anos depois,agradeci ao Newton Rodrigues por terme dado esse privilégio. E, na verdade,acabei cobrindo a área cultural domesmo jeito.

JORNAL DA ABI – TRABALHAR

NA IMPRENSA ERA UM PROJETO

ANTIGO?

Ruy – Desde que aprendia ler – o que ocorreu aos qua-tro anos, vendo os jornais nocolo da minha mãe. Meu paiassinava o Correio da Manhã,seguindo a tradição do meuavô, assinante praticamentedesde a fundação do jornal,em 1901. Cresci ouvindo fa-lar de seu proprietário, Ed-mundo Bittencourt, de comoo Presidente da República Ar-thur Bernardes fechou o Cor-reio por dois anos em 1924, e decomo o jornal provocara a que-da do Getúlio, em 45, com umaentrevista feita por Carlos La-cerda com o José Américo de Al-meida. Ou seja, para mim, oCorreio era tudo. Pode parecerincrível, mas nunca me vi sen-do qualquer outra coisa como adulto,que não jornalista – e do Correio da Ma-nhã. No máximo, devo ter alimentadoalguma ilusão de me tornar meia-es-querda do Flamengo.

JORNAL DA ABI – QUAIS SÃO AS LEMBRAN-ÇAS MAIS MARCANTES DOS PRIMEIROS ANOS DE

CARREIRA?

Ruy – Tive a sor-te de trabalhar comrepórteres de verda-de, uma turma ca-paz de fazer qual-quer negócio pelanotícia. Não eramintelectuais, eramjornalistas. Conhecitambém os velhosfotógrafos do Cor-reio, como o LuísBueno, que foi o pri-meiro fotojornalistaa ser registrado na imprensa brasilei-ra. O primeiro Secretário de Redaçãoque tive na vida foi Aluísio Branco,

podia haver melhor? Naque-le tempo, as redações aindaeram abertas, entrava qual-quer pessoa que passasse narua e resolvesse subir.Quem ia quase todo dia aojornal era o compositor esambista Ismael Silva, quemorava ali perto, na Go-mes Freire, na Lapa.

JORNAL DA ABI – VOCÊ

TEVE A CHANCE DE SE APROXI-MAR DELE?

Ruy – O pessoal maisvelho já não tinha mui-ta paciência com o Is-mael, mas eu sim. Des-cíamos juntos paraconversar e beber nobotequim em frente:ele, cachaça; eu, no co-meço, Crush. Aí vi quenão pegava bem e mu-

d e ipara Brahma Chopp. Outro que ia mui-to lá era o Nelson Cavaquinho. Mas alembrança mais marcante daqueles pri-meiros meses foi a Kim Novak, quetinha vindo ao Rio para o Festival daCanção e eu entrevistara longamenteno Galeão. No dia seguinte, na aberturado evento no recém-inaugurado Cane-

cão, ela passou pelaminha mesa, lindís-sima, e disse “hello,Ruy”, para espantomeu e das moçasque estavam comi-go. Infelizmente, fi-cou nisso. [risos]

JORNAL DA ABI –QUE FASE ATRAVESSAVA

O JORNALISMO BRASI-LEIRO QUANDO VOCÊ

INICIOU A CARREIRA?

Ruy – Talvez fos-se o último período do amadorismo.Eu, por exemplo, trabalhei oito mesesno Correio sem ser efetivado, sem re-

ceber nada e sem ninguém dar uma ex-plicação para o meu caso. Sendo quetudo que eu escrevia saía na íntegra, oscopys não mudavam uma vírgula. Sódepois descobri que não podia ser efe-tivado porque não tinha o serviço mi-litar. Até que o Fuad Atala, que era Che-fe de Reportagem da Manchete duran-te o dia e do Correio à noite – a maioriados jornalistas tinha dois empregos –,me convidou para ir para a revista ga-nhando 900 mil cruzeiros por mês.

JORNAL DA ABI – O CONVITE FOI ACEITO DE

IMEDIATO?

Ruy – Por mais que eu amasse o Cor-reio, queria ir morar sozinho. Então,aceitei e, no dia seguinte, me mudeipara o Solar da Fossa, passei a andar detáxi e troquei a Spaghettilândia pelo LaMole. A Manchete ficava ainda na FreiCaneca e só tinha um telefone paratodos os repórteres eredatores. O Diretorera o Justino Martins,com quem aprendihorrores.

JORNAL DA ABI – ONDE

MAIS VOCÊ TRABALHOU?

Ruy – Tive a sortede passar por grandesveículos e em épocasimportantes para eles.Em 68, por exemplo,estava novamente noCorreio da Manhã, tra-balhando com o Pau-lo Francis, e o jornal estava mandandover contra a ditadura. Não podíamosadivinhar que na noite de 13 de dezem-bro daquele ano o que restava de liber-dade ia acabar e o Correio seria uma desuas maiores vítimas. Em 76, estava noJornal do Brasil, criando a Revista de Do-mingo, da qual fui o primeiro editor. O

JB era então, graças ao ElioGaspari, o jornal mais fasci-nante para se trabalhar.

JORNAL DA ABI – POR QUÊ?

Ruy – Porque era o que esta-va mais por dentro do que acon-tecia na abertura promovidapelo Geisel. E, em 1984, eu erarepórter especial da Folha deS.Paulo, então o principal veículoda campanha pelas diretas. Emcompensação, em abril de 1974,eu estava na cidade certa, Lisboa,quando houve a Revolução dosCravos, só que no veículo errado.

JORNAL DA ABI – COMO ASSIM?

Ruy – Eu era editor-executivoda Seleções do Reader’s Digest e veiouma ordem de Nova York para ig-norarmos tudo que estivesse acon-tecendo em Portugal. E eu tinhafontes ótimas, inclusive dentro donovo Governo. Resultado: comecei

a mandar matérias para a Manchete da“Sucursal de Lisboa”, que não existia.Fui o primeiro na imprensa brasileiraa chamar a atenção para o folclóricoOtelo Saraiva de Carvalho, que só de-pois sairia da sombra e se revelaria oprincipal nome da Revolução.

JORNAL DA ABI – COMO FOI SUA CONVIVÊN-CIA COM PAULO FRANCIS?

Ruy – A Diners, dirigida por ele, foioutro veículo fascinante em que traba-lhei, em 1968. A revista era uma espé-cie de sucessora da falecida Senhor. Pa-gava muito bem e o Francis nos deixavaescrever as maiores barbaridades. À tar-de, todo mundo ia visitá-lo na redação,que ficava na esquina de Ouvidor comRio Branco: a velha esquerda – entre elesOctávio Malta e Franklin de Oliveira –,a nova esquerda – Fernando Gasparian,por exemplo –, os porras-loucas – Glau-ber Rocha, Carlinhos Oliveira – e os car-deais – como Millôr Fernandes, PaulinhoMendes Campos e Armando Nogueira.

JORNAL DA ABI – SÓ TINHA CRAQUE NES-SE TIME...

Ruy – E, no meiodeles, os três garotosque efetivamente es-creviam a revista: Flá-vio Macedo Soares eAlfredo Grieco, queeram um pouco maisvelhos, e eu, com 20anos. Todos os jorna-listas do Rio, naqueleano, queriam ser cola-boradores da Diners.Quando veio o AI-5.Francis foi preso e oDiners Club preferiu

acabar com a revista. Em 1969, surgiuO Pasquim, com o qual comecei a cola-borar a partir do número 7 ou 8.

JORNAL DA ABI — VOCÊ SE LEMBRA DO SEU

PRIMEIRO TEXTO PUBLICADO?

Ruy – Tive uma passagem pela im-prensa de Caratinga, Minas Gerais,

“Para mim, o Correioera tudo. Pode parecerincrível, mas nunca mevi sendo qualquer outracoisa como adulto, quenão jornalista – e doCorreio da Manhã.”

Ruy Castro sempre quis ser jornalista, desdecriança, quando ganhou de aniversário uma

máquina de escrever. Entre seus livros infantispreferidos, Tarzan, da Coleção Terramarear.

RUY CASTRO O BIÓGRAFO DA VIDA BRASILEIRA

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onde nasci e passei parte da adolescên-cia. Escrevia sobre futebol, cinema eassuntos gerais. Mas o primeiro artigoassinado para valer foi no Correio, nodia 4 de maio de 1967, sobre os 30 anosda morte de Noel Rosa, que foi capa doSegundo Caderno.

JORNAL DA ABI – O QUE O LEVOU DAS REPOR-TAGENS PARA OS LIVROS? E FALANDO NISSO, VOCÊ

NÃO PENSA EM FAZER LIVROS-REPORTAGEM?

Ruy – Não faço livros-reportagem.O jornalismo é fundamental para aapuração das informações, mas, a par-tir daí, pretendo que o tratamento sejao mais literário possível. Livro-repor-tagem, para mim, tem um pouco deoportunismo: o Tancredo morre, oCollor sofre impeachment ou o Lula éeleito e, daí a uma semana, o sujeitopublica uma “cozinha” do que saiu naimprensa e chama de livro-reportagem.Como comparar isso com uma biogra-fia ou uma reconstituição histórica quelevou dois, três ou cinco anos para serfeita? Quanto aos motivos que me fi-zeram sair do dia-a-dia das redações,acho que o principal foi o cansaço.

JORNAL DA ABI – QUANDO FOI ISSO?

Ruy – Em 1986, quando estava naVeja, em São Paulo, já tinha 19 anos deestiva e precisava de um tempo. Fui paracasa decidido a viver de frila e esperei otelefone tocar. Só comecei a trabalharde verdade com livros em 1988, mesmoassim por acaso. Ao contrário de mui-tos colegas, nunca achei que ser jorna-lista fosse pobre e que ser escritor fos-se nobre. Ao contrário, sempre adoreiser jornalista; os livros aconteceram semque eu pedisse ou esperasse por isso.

Jornal da ABI – E como teve a idéiade escrever biografias?

Ruy – Em todos os casos, foi o assun-to que determinou o formato. Chega deSaudade, por exemplo, embora tenhaJoão Gilberto como personagem cen-tral, é mais a reconstituição históricade uma época e de um grupo de pesso-as. Já O Anjo Pornográfico nasceu dire-to como biografia, ou seja, para contara vida de Nélson Rodrigues. EstrelaSolitária, quando piscou na minha ca-beça, era um livro sobre alcoolismo, as-sunto que me diz particularmente res-peito, porque sou alcoólatra, emboranão beba há 20 anos. Mas, em seguida,vi que precisava de um fio condutor, eo nome do Garrincha surgiu no mes-mo instante, daí a biografia.

JORNAL DA ABI – O FUTEBOL FOI APENAS

PANO DE FUNDO?

Ruy – Tinha vontade de contarcomo era a vida dos jogadores de fute-bol no Brasil nos anos 50 e 60 – antes edepois dos jogos, no vestiário, na con-centração, em casa e, se possível, den-tro da cabeça deles. Achei incrível, porexemplo, descobrir que o Nilton San-tos só foi ter o seu primeiro carro commais de 30 anos e já bicampeão do mun-do. Hoje, qualquer foragido dos juni-ores tem carro importado. Enfim, acho

que Estrela Solitária é também uma crô-nica de costumes do futebol e até im-prensa esportiva. Mas, tecnicamentefalando, tem muito pouco futebol, ouseja, são raras as descrições de gols e jo-gadas. Isso pode explicar, em parte, osucesso dele entre o público feminino.

JORNAL DA ABI – O PROCESSO DE CONSTRU-ÇÃO FOI O MESMO EM TODAS AS BIOGRAFIAS?

Ruy – Pela quantidade de persona-gens e instituições de Ipanema fazen-do coisas ao mesmo tempo ou duran-te um longo período, Ela é Carioca nãopoderia ser uma história contínua; sópoderia existir em verbetes, como nu-ma enciclopédia. Já o Carmen eu que-

ria que fosse também um panoramada imigração portuguesa no começodo século XX, dos cos-tumes do Rio nos anos20 e 30 e de Nova Yorke Hollywood nos anos40 e 50.

JORNAL DA ABI – OANJO PORNOGRÁFICO FOI

SEU PRIMEIRO TÍTULO NO

SEGMENTO BIOGRÁFICO.VOCÊ CONVIVEU COM NÉL-SON RODRIGUES NO COR-REIO DA MANHÃ? ELE TEM ALGO A VER COM

SUA FORMAÇÃO DE CRONISTA?

Ruy – Infelizmente, não, porque ele

não ia lá, mandava a coluna pelo con-tínuo. Convivi com Nélson no aparta-mento do José Lino Grünewald, em Co-pacabana, e nos almoços que os ami-gos davam para ele no Bigode do MeuTio, restaurante de seu filho Joffre, naTijuca. Eu diria que o Nélson me influ-enciou muito, mas de modo geral.

JORNAL DA ABI – ALGUM OUTRO O MARCOU?

Ruy – Os cronistas mais marcantespara mim, além dos inevitáveis Rubem[Braga], Fernando [Sabino] e Paulinho[Mendes Campos], foram o (CarlosHeitor) Cony e o Millôr (Fernandes).Mas, assim como o Nélson, acho quesou mais articulista do que cronista.Cronista de verdade é a Heloisa Seixas,minha mulher.

JORNAL DA ABI – QUAL É A REPRESENTATI-VIDADE DE NÉLSON RODRIGUES NA DRAMATUR-GIA BRASILEIRA?

Ruy – Como dramaturgo, nuncahouve dúvida: é o maior, sempre foi. Masacho Nélson subvalorizado como contis-ta. Por dezenas de contos de A Vida comoEla é, considero-o um dos maiores da lín-gua; e, como romancista, é só ler O Ca-samento e Asfalto Selvagem. Mas, voltan-do ao Anjo Pornográfico, uma das coisasque mais me empolgaram no trabalhofoi a possibilidade de descrever o fun-

cionamento das reda-ções dos jornais cariocasnos anos 20. Para isso,tive informantes mara-vilhosos: o Nássara, oBarbosa Lima Sobrinho,o Evandro Lins e Silva...Todos, aliás, conhece-ram bem o Mário Rodri-gues, pai do Nelson.

JORNAL DA ABI – CAR-MEN: UMA BIOGRAFIA É SEMPRE CITADO COMO

OBRA DE REFERÊNCIA.

Ruy – Ela já tinha sido alvo de várias

“Sempre adorei serjornalista; os livrosaconteceram semque eu pedisse ouesperasse por isso.”

Com 19 anos, Ruy cobriu a posse de Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras.

O biógrafoe o “anjopornográfico”NélsonRodrigues,com o qualRuy nuncatrabalharanuma redaçãode jornal. Elesconviveramem encontrosocosionais,durante adécada de 70,com amigoscomuns.

CEC

ILIO C

ALDEIR

A/PREN

SA 3

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biografias e nenhuma delas me deixa-ra satisfeito. Concentravam-se demaisna parte da sua vida nos EUA e deixa-vam de lado sua também fabulosa car-reira no Brasil. E eu sei porque fizeramisso: uma coisa é você contar a carreirada Carmen em Hollywood — há umamontanha de material, os estúdios decinema guardaram tudo — e outra, bemdiferente, é você reconstituir a vida delana Lapa, dos 6 aos 16 anos, entre 1915e 1925. Isso é que é difícil! Talvez por issonenhum livro antes do meu dera impor-tância a esse período.

JORNAL DA ABI – VOCÊ É MINEIRO, MAS

APAIXONADO PELO RIO.

Ruy – Não nasci no Rio – aliás, maisprecisamente, na Lapa – por uma ques-tão de meses. Meu pai, que era minei-ro, veio para o Rio em 1929, com 19

anos, e foi direto para a Lapa, onde fezde tudo. Há fotos dele no Carnaval, napraia etc., sempre cercado de garotas.Em 1940, ele deu um pulo a Minas Ge-rais e voltou casado com minha mãe.Eles abriram uma pensão diurna, queservia almoço para a vizinhança, noLargo da Lapa, em frente à Igreja Nos-sa Senhora do Carmo da Lapa, bem aolado do que é hoje o restaurante Ernes-to – e que, na época, era um cabaré. Emmeados de 1947, os negócios não iammuito bem e um parente do meu pai oconvidou a assumir uma loja em Cara-tinga, cidade mineira que ele não conhe-cia. Ele topou e em fevereiro de 1948 eunasci lá, onde não tinha ninguém alémdo meu pai e da minha mãe. Já no Rio,devia ter uns 50 tias e primos espalha-dos pelo Flamengo, Lapa, Copacabana,Cascadura e Rocha Miranda.

JORNAL DA ABI – COMO FOI A VOLTA DA

FAMÍLIA?

Ruy – Meu pai ganhou o grande prê-mio da Loteria Federal e recebeu umabolada de dinheiro. Comprou a loja,

construiu prédios em Caratinga e fica-mos por lá. Mas o Rio continuou sen-do a referência. Com a facilidade de vi-ajar – havia avião dia sim, dia não, parao Rio –, vínhamos várias vezes por ano,para passar longas temporadas. Minhas

memórias de infância se dividem entreMinas e o Rio do meu pai, em ruas comoa Barão do Flamengo – onde ficávamosno apartamento de uma sobrinha dele,no lindo Edifício Minister –, o Catete,

a Cinelândia, a Praça Tiradentes.Até que em 1965 voltamos de vez,mas aí já por minha causa.

JORNAL DA ABI – POR ISSO O RIO É OCENÁRIO DA MAIORIA DE SUAS OBRAS?

Ruy – Como eu disse, jamais co-nheci direito outro cenário. Pegueios bondes todos, o Tabuleiro da Bai-ana e a Praia do Flamengo ainda

com a amurada, antes do Aterro. Can-sei de ir com meu pai à Leiteria Bol, naMem de Sá. Fui ao Maracanã pela pri-meira vez aos 10 anos, em 1958, para as-sistir a um Flamengo x Botafogo. Naque-le mesmo ano, pedi ao meu pai que me

NESTE MOSAICO, ALGUMAS PAIXÕES DE RUY CASTRO Em todas as viagens, Ruy nunca deixa de ler o jornal local. Na foto tirada na Itália no ano 2000, ele descobre que, às vésperas doSéculo 21, ainda existe um jornal chamado Il Secolo XIX (coincidentemente, publicação onde trabalhou o pai do jornalista Mino Carta).Cercado por livros e discos, em seu acervo há

preciosidades como este LP de Doris Day, uma de suas musas. O cinema, outra de suas paixões que surgiu também na infância, permanece até hoje. Na foto tirada em Paris, eleaparece de bicicleta na frente de cartazes de alguns de seus filmes favoritos. E finalmente, feliz com a manhchete da Ultima Hora: Flamengo era o Campeão Brasileiro de 1980.

“O samba é tudo. Sou grandeouvinte do samba produzidonos anos 30 e 40, sem o qualnão teríamos a bossa nova.”

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levasse à Rádio Continental, porque que-ria conhecer o Waldir Amaral. Nós fo-mos, mas ele tinha saído.

JORNAL DA ABI – QUAL É O CERNE DA SUA

RELAÇÃO COM A CIDADE?

Ruy – Já morei fora um bom tempo:três anos em Lisboa e 16 em São Pau-lo. E nunca passei um dia sem ler osjornais do Rio, acredita? Minha rela-ção com a cidade é visceral: faço tantoparte dela quanto ela de mim.

JORNAL DA ABI – E VOCÊ ACHA QUE ELA AIN-DA FAZ JUS AO TÍTULO DE CIDADE MARAVILHO-SA, AQUELA DESCRITA EM SEU “ROTEIRO LÍTE-RO-MUSICAL”?

Ruy – Claro. Os roteiros de Rio Bos-sa Nova foram elaborados em 2006 e es-tão todos aí. Neles, cito dezenas de lu-gares ótimos. Já pensou no privilégio decomer um delicioso brunch no jardim doMuseu do Açude, no Alto da Boa Vis-ta, no meio daquelas obras de arte doCastro Maya, ouvindo ao vivo o Quar-teto em Cy? Ou escutar um quinteto deBossa Nova num quiosque da Lagoa, demãos dadas com a namorada e com asestrelas sobre a sua cabeça? Onde maistem isso no mundo? As pessoas quemais resmungam que “o Rio acabou” sãoas que menos saem hoje de casa, porquejá estão muito velhas e pararam de be-ber, de fumar e de outras coisas. É mui-ta pretensão dizer que o Rio bom era odo “nosso tempo”, não?

JORNAL DA ABI –QUATRO DE SEUS LIVROS

ABORDAM A BOSSA NOVA.AINDA HÁ HISTÓRIAS SO-BRE O TEMA QUE NÃO

FORAM CONTADAS?

Ruy – Todo diadescubro alguma coi-sa diferente. É um uni-verso muito rico.

JORNAL DA ABI – VOCÊ CONSIDERA A BOS-SA NOVA O MAIOR FENÔMENO MUSICAL BRA-SILEIRO?

Ruy – Sim. É favor não confundircom o tropicalismo, que, segundo opróprio Caetano (Veloso), foi um fenô-meno jornalístico.

JORNAL DA ABI – E O SAMBA?

Ruy – O samba é tudo. Sou grandeouvinte do samba produzido nos anos30 e 40, sem o qual não teríamos aBossa Nova. Aliás, o que eu gosto mes-mo de ouvir é Carmen Miranda, Chi-co Alves, Mário Reis, Almirante, Síl-vio Caldas, Luiz Barbosa, Ciro Mon-teiro, Dircinha Batista, Araci de Al-meida e grupos vocais como os Anjosdo Inferno, Quatro Ases e Um Coringae Os Cariocas. Cresci ouvindo esse re-pertório, cantado por meu pai, que seacompanhava ao violão. Já minha mãegostava de Dick Farney, Lúcio Alves,Bing Crosby, Sinatra, Doris Day, bigbands, boleros, tangos, valsas deStrauss e canções francesas. Ou seja,tive a sorte de conviver desde cedocom essa “tempestade de ritmos”.

"Uma imagem vale mais do que milpalavras". É com esse conhecido ditadoque surgiu o projeto Álbum deRetratos, da Editora Memória Visual.A coleção é formada por doze livrosdivididos em quatro séries de diferentestemas, que traduzem e homenageiam,numa biografia fotográfica, dozepersonagens da cultura brasileira pormeio do acervo pessoal de fotos de cadaum. As imagens estampam o talento deinfância, a cidade, o encontro com otrabalho, a trajetória e a história de vida depersonalidades como Zezé Motta, BetteMendes, Ferreira Gullar, Jards Macalé, CacáDiegues, Lan, Ruy Castro e Villas-BôasCorrêa. A partir das fotos, cada um deuseu testemunho pessoal a cada película,conduzindo a história e formando asfotobiografias, que levam a intimidade decada um deles aos leitores.

No livro de Villas-Bôas Corrêa, oveterano jornalista fala sobre a trajetóriapolítica do Brasil com inusitadasensibilidade. Mas são seus dois filhos,Marcelo e Marcos Sá Corrêa, os

JORNAL DA ABI – O JAZZ TAMBÉM TEM

MERECIDO SUA ATENÇÃO...

Ruy – Porque os brasileiros da minhageração não tinham como não ser mi-nimamente atingidos por ele. Já nasce-mos ouvindo alguma coisa que, no fun-

do, é jazz. E não adianta fe-char as janelas, calafetar asfrestas, desligar os apare-lhos, enfiar algodão nosouvidos e mergulhar na ba-nheira: ele vai penetrar de

qualquer jeito. Não me refi-ro exatamente à música deNova Orleans, ao swing ou aobebop, mas ao jazz como umsubstrato rítmico que marcou

a melhor música popular dosEUA. O norte-americano médionão sabe o que é jazz, mas o so-taque jazzístico permeou toda a

música popular feita em seu país na pri-meira metade do século XX. Influen-ciou também a música brasileira, e issodesde o Pixinguinha. Por sorte, o sam-ba é muito forte: absorve qualquer in-fluência e continua a ser ele mesmo.

JORNAL DA ABI – A MPB TAMBÉM É UM

SÍMBOLO DA CULTURA NACIONAL?

Ruy – Sem dúvida. Pode-se contarmuito melhor a história do Brasil porintermédio de sua música popular doque por seu cinema, teatro ou a próprialiteratura.

JORNAL DA ABI – O ALDIR BLANC RECLAMA

E DIZ QUE NÃO CONSEGUE VIVER DE DIREITO AU-TORAL, APESAR DE PRODUZIR MUITO. É MAIS

FÁCIL VIVER DE LITERATURA DO QUE DA MÚSI-CA NO BRASIL?

Ruy – Não sei. Não vivo de literatu-ra. Vivo de escrever.

JORNAL DA ABI – SEU LIVRO ERA NO TEM-PO DO REI: UM ROMANCE DA CHEGADA DA

CORTE ESTÁ SENDO ADAPTADO PARA O TEATRO,

COM MÚSICAS DO ALDIR E DO CARLOS LYRA.COMO ESTÁ SENDO ESSE TRABALHO?

Ruy – Não estou interferindo, por-que a presença do autor só atrapalha.O romance tem de sofrer alterações emnome do espetáculo e acho isso normal,mas não quero estar por perto. Só seique o libreto – produzido por HeloísaSeixas – está ficando sensacional e queo Carlinhos e o Aldir já têm várias can-ções prontas. A estréia está previstapara meados de 2009, talvez no CarlosGomes, na Praça Tiradentes.

JORNAL DA ABI – FICÇÃO OU NÃO-FICÇÃO?EM QUAL VOCÊ SE SENTE MAIS À VONTADE PARA

ESCREVER?

Ruy – Na não-ficção, porque estoumais habituado. Mas quando me aven-turo pela ficção – o que acontece qua-se que de dez em dez anos –, acho apai-xonante a liberdade de inventar situ-ações, criar diálogos e penetrar na men-te dos personagens. Ao biógrafo, issoé rigorosamente proibido, obviamen-te. A graça da biografia está em desco-brir fatos que estavam enterrados hádécadas, no fundo de uma gaveta ou damemória de alguém.

JORNAL DA ABI – QUE LIVROS NÃO PODEM

FALTAR EM UMA BIBLIOTECA?

Ruy – Os que dêem grande prazerde ler.

HISTÓRIASICONOGRÁFICAS

responsáveis por abrir a vida do pai aomostrar sua paixão por cavalos, sua criaçãonuma fazenda de árvores frutíferas e suaresponsabilidade de ordenhar as vacas.

Já o volume sobre Ruy Castro foiproduzido a partir da garimpagem feitapela mulher Heloisa Seixas no baú derecordações do jornalista. O resultadopode ser visto nos detalhes de sua casa,de suas viagens,na coleção de discos detodos os formatos, de filmes e de livros –muitos – de várias épocas.

As fotos que ilustram esta entrevistapertencem ao acervo pessoal de RuyCastro e a maioria foi publicada no livroque conta sua história iconográfica.

FOTOS DO ACERVO PESSOAL DE RUY CASTRO

Ao lado de sua esposa, Heloisa Seixas, o jornalista cuida de sua coleção de felinos. Abaixo, um auto-retrato onde se destaca seu farto sorriso.

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42 Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

SEIS DÉCADAS NOSBASTIDORES DO PODER

VILLAS-BÔAS CORRÊA

O decano do jornalismo político brasileiro falasobre seu trabalho, analisa a cobertura política feitaatualmente e conta histórias dos bastidores da vida

política colhidas em mais de meio século de imprensa.

POR CLÁUDIA SOUZA

os 85 anos – comemorados no último dia2 de dezembro – o jornalista carioca LuizAntonio Villas-Bôas Corrêa, o mais im-portante cronista da vida política bra-sileira, começou a fazer a cobertura dosbastidores do poder quase sem querer.

Em 1948, quando ainda trabalhava para A No-

tícia, ele foi designado para ir ao bairro da Gló-ria e pegar o “boneco” de um suicida. Como nãoachou o tal “boneco”, entrou em uma cabine te-lefônica de um pequeno hotel para avisar seuchefe na Redação. Naquele tempo, as ligaçõeseram tão ruins que a pessoa precisava quase gri-tar para se fazer entender. E, como fazia mui-to calor no dia, a balburdia era total com asportas das cabines abertas. Apesar disso, foiassim que Villas-Bôas Corrêa acabou escutan-do a conversa de um vizinho que relatava a seusócio as dificuldades enfrentadas para fecharuma venda de dormentes para a Estrada de Fer-

ro Central do Brasil e a pressãosofrida para envolver propina nonegócio. A conversa ainda envol-via o irmão do Vice-Presidenteda República Nereu Ramos e oMinistro da Viação e Obras Pú-blicas Clóvis Pestana.

Percebendo o que acontecia,Villas-Bôas Corrêa se apresentouem seguida ao homem. A repor-tagem ganhou as primeiras pági-nas do jornal por vários dias, re-percutiu com estrondo em todoo País e garantiu a entrada do jor-nalista na reportagem política emsua fase de ouro. Desde então nãosaiu mais de lá. “Sou o último sobrevivente da ge-ração que cunhou o modelo de reportagem polí-tica que ainda hoje se pratica”, diz com proprie-dade Villas-Bôas Corrêa, o mais antigo analista

político em atividade no Brasil.Quando fala assim, ele não

exagera. Repórter por excelên-cia – Villas já trocou cargos dechefia e de direção para estarno “olho do furacão” –, o vete-rano jornalista sempre mante-ve o espírito crítico e observa-dor, transformando-se em mo-delo de análise imparcial aliadaao ineditismo e credibilidade.Casado com Regina Maria deSá Corrêa, é pai de Marcos SáCorrêa, também jornalista, eMarcelo Sá Corrêa, produtormusical. Em entrevista ao Jor-

nal da ABI, ele fala um pouco sobre esse trabalho,analisa a cobertura política feita atualmente e con-ta histórias dos bastidores da vida política colhi-das em mais de meio século de imprensa.

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MARCELO CARNAVAL/CPDOC-JB

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44 Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

JORNAL DA ABI – COMO FOI O INÍCIO DE SUA

CARREIRA NA IMPRENSA?

Villas-Bôas Corrêa – Eu me formeiem 1947 pela Faculdade Nacional deDireito. Era funcionário público do Ser-viço de Alimentação da PrevidênciaSocial (Saps) e estava casado desde o4º ano da faculdade. Meu segundo fi-lho nasceu de cesariana e eu não tinhacomo pagar os 13 contos de réis das des-pesas com o hospital. Na verdade, sótinha cinco ou seis contos de réis parao parto normal. Com o salário de fun-cionário público, jamais conseguiriasaldar a dívida. Então, tive a idéia detentar um emprego na imprensa juntoao meu sogro, o jornalista Bittencourtde Sá, na época aposentado. Ele me ori-entou a procurar o colega Silva Ramos,homem forte do jornal A Notícia, de pro-priedade de Cândido de Campos. Apequena Redação ficava na Avenida RioBranco, entre as Ruas da Carioca e Setede Setembro, mas o jornal era compos-to e impresso nas oficinas do Diário deNotícias, próximo à Praça Tiradentes.“Bittencourt de Sá está dizendo aqui quevocê é Bacharel em Direito. Mas isso nãoquer dizer que você seja totalmenteanalfabeto. Tira o paletó e começa”,disse Silva Ramos ao ler o bilhete deapresentação. Esta foi a minha forma-ção acadêmica em Jornalismo.

JORNAL DA ABI – QUAIS ERAM SUAS ATIVI-

DADES NO JORNAL?

Villas-Bôas – Comecei na imprensaem 1948, escrevendo pequenas notas.Ao lado de José Rodrigues, nosso úni-co fotógrafo, cobria diversas pautas pordia, inclusive policiais. Os jornais eramdivididos em matutinos e vespertinos.No primeiro grupo, entre outros, esta-vam o Correio da Manhã, maior jornalda época, o Diário Carioca, onde surgi-ram inovações como o copidesque e olead, e O Jornal. Entre os vespertinos,figuravam O Globo e A Notícia.

JORNAL DA ABI – QUAL FOI A SUA PRIMEI-RA MATÉRIA IMPORTANTE?

Villas-Bôas – Eu tinha ido ao bairroda Glória para pegar o “boneco” de umsuicida. Entrei num pequeno hotelprocurando uma cabine telefônica paraavisar ao pessoal da Redação que nãoexistia o tal “boneco”. Como as ligaçõestelefônicas eram ruins, as pessoas gri-tavam para serem ouvidas. Além dis-so, por causa do forte calor, as portasdas cabines telefônicas ficavam aber-tas. Foi neste cenário que acabei escu-tando a conversa de um homem quenarrava a um provável sócio do Para-ná as dificuldades que vinha enfrentan-do para fechar a venda de dormentespara a Estrada de Ferro Central do Bra-sil e as pressões que sofria para aceitarpropina. O negócio, dizia ele, envolviao tabelião Hugo Ramos – irmão do en-tão Vice-Presidente da República Ne-reu Ramos – e o Ministro da Viação eObras Públicas, Clóvis Pestana. O ho-mem avisou ainda que no dia seguin-te denunciaria o caso ao General Can-robert Pereira da Costa, então Minis-

tro da Guerra e candidato à Presidên-cia. Encerrada a ligação, apresentei-meao sujeito, que se chamava Ivo Borci-oni. Combinei que o acompanharia noencontro com o General na qualidadede advogado dele. Foi a única vez emque o diploma de Direito me serviupara alguma coisa. (risos)

JORNAL DA ABI – HOUVE GRANDE REPERCUS-SÃO DA MATÉRIA QUE ESCREVEU DEPOIS DISSO?

Villas-Bôas – Após tomar conheci-mento do fato, o Canrobert nos garan-tiu que encaminharia a denúncia aoPresidente da República, General Euri-co Gaspar Dutra. Encerrado o encontro,parti para a Redação comboiando o IvoBorcioni. “Escreve!”, aconselhou-meSilva Ramos ao saber os detalhes dahistória. A reportagem ganhou as man-chetes e páginas principais da Notícia aolongo de vários dias, com estrondosa

repercussão em todo o País. Com ape-nas seis meses de Redação, passei dire-to para a reportagem política.

JORNAL DA ABI – QUAL ERA O CENÁRIO

POLÍTICO DA ÉPOCA?

Villas-Bôas – Foi a fase de ouro dareportagem política. Um período mar-cado por grandes debates parlamenta-res, imediatamente após a Constituin-te de 1946. Com o fim da ditaduraVargas e dos anos de violenta censuraà imprensa, havia crescente interessepor assuntos políticos e vendia-semuito jornal com este tema.

JORNAL DA ABI – QUAL ERA A SUA ROTINA

DE TRABALHO?

Villas-Bôas – Durante 12 anos, meulocal de trabalho foi a Câmara dosDeputados, no Palácio Tiradentes.Como não havia gabinetes privativos,à exceção da Presidência e de algumaslideranças, o ambiente facilitava o con-

vívio. Os jornalistas passavam o diaacompanhando o processo político e osdebates. O primeiro escalão dos jornaiscobria as subcomissões; o repórterveterano, em geral, acompanhava ascomissões; e o segundo ou terceiroescalão cobria o plenário, onde acon-tecia o real jogo do poder. Os grandesjornais, em sua maioria, se subdividi-am em udenistas e antigovernistas. OPSD representava o partido do Gover-no, com estrutura fincada nas basesrurais e no legado da ditadura. NereuRamos, Gustavo Capanema e IsraelPinheiro eram os grandes oradores. AUDN, partido libertário, dos bacharéis,dos lenços brancos, reunia em seusquadros figuras como Prado Kelly,Carlos Lacerda, Afonso Arinos. Os re-pórteres buscavam isenção e imparci-alidade diante desta divisão, respeitan-do a orientação do jornal. Um modelo

de reportagem política foi se impondoa partir da nossa luta por um espaçoneutro e independente. Eu, por exem-plo, nunca declarei voto, nem em casa.Nunca assinei manifesto; nunca entreiem partido; nunca declarei apoio a nin-guém — requisitos fundamentais paraa minha credibilidade como analista.

Jornal da ABI – Em que período osenhor começa a trabalhar em O Dia?

Villas-Bôas – Eu trabalhei durante 30anos em A Notícia e me aposentei em1979. Bem antes disso, no início dadécada de 50, o Chagas Freitas assumiuA Notícia e decidiu lançar o matutinoO Dia, cujo primeiro secretário era ojornalista Santa Cruz Lima, que costu-mava repetir a máxima: “Jornal é pri-meira página, o resto não interessa!”.Afeito ao estilo popular, ele fazia ques-tão de ostentar na capa um cadáver, umcaso de amor violento e espiritismo:“Ô, Villas, esse negócio de reportagem

política, PSD, UDN... Isto é coisa pragrã-fino. Vê se inventa aí uma coisamais popular”, sugeriu.

JORNAL DA ABI – FOI A SENHA PARA OS

COMANDOS PARLAMENTARES?

Villas-Bôas – Sim. Na verdade, seguia idéia do Heráclito Sales, que, ao ladodo Deputado Café Filho, visitava locaispúblicos sem aviso prévio. Adaptei paraum perfil mais popular e criei os Co-mandos Parlamentares.

JORNAL DA ABI – COMO O SENHOR PAUTA-VA AS MATÉRIAS?

Villas-Bôas – Selecionava o assuntoe convidava três parlamentares, em ge-ral dois deputados e um senador. Ospolíticos estavam sempre à disposição,até porque aproveitavam para cavarvotos também. Fui onde quis sem nun-ca ser barrado; percorri favelas, peni-tenciárias, delegacias, sempre denun-ciando os problemas da população.Aquiles Camacho, um grande fotógra-fo, foi contratado para aquele trabalho.As visitas aconteciam às quartas-feirase a matéria saía no domingo. Em pou-co tempo, os Comandos se tornaram umenorme sucesso. Passei a receber inú-meras denúncias e ganhei muita credi-bilidade dentro do jornal. Vários casosresultaram em CPIs e demissões.

JORNAL DA ABI – QUAIS FORAM OS EPISÓ-DIOS DE MAIOR REPERCUSSÃO?

Villas-Bôas – Certa vez, recebi umadenúncia de maus-tratos e violência emum abrigo para moças no Engenho deDentro, que era vinculado ao Serviço deAssistência a Menores (Sam). Convideio então Ministro da Justiça TancredoNeves para me acompanhar ao localcom dois deputados. O Ministro levou

o Chefe da Casa Militar edois policiais. Encontra-mos um cenário dantes-co. Moças de todas as ida-des, algumas grávidas, seamontoavam em umambiente insalubre. Tan-credo, horrorizado, exigiu

a presença da diretora do abrigo, que foitrazida de casa. Aparentemente, não ha-via sinais de violência, até que uma dasmoças se aproximou e, em tom de vozbaixo, pediu que eu olhasse embaixo deum colchão. Encontramos vários porre-tes, alguns com marcas de sangue e ca-belos grudados. O fotógrafo fez as ima-gens e o Tancredo fechou o local na hora.

Os Comandos Parlamentares aconte-ceram em um momento em que existi-am alguns códigos para se entrar emfavelas, mas tudo era resolvido comtranqüilidade. Os moradores nos rece-biam, comentavam os casos, convida-vam para almoçar, traziam lanche. Ja-mais tivemos receio de sofrer qualquertipo de agressão. Naquela época, valelembrar, não havia ponto de drogas, sójogo do bicho.

JORNAL DA ABI – O AMBIENTE DE TRABALHO

TAMBÉM ERA MAIS TRANQÜILO?

Villas-Bôas – Sim. As redações anti-

“Eu nunca declarei voto, nem em casa. Nunca assinei manifesto;nunca entrei em partido; nunca declarei apoio a ninguém —requisitos fundamentais para a minha credibilidade como analista.”

VILLAS-BÔAS CORRÊA SEIS DÉCADAS NOS BASTIDORES DO PODER

Villas com o Deputado Café Filho, aguerrido participante dos Comandos Parlamentares.

REPRO

DU

ÇÃO

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45Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

gas eram muito alegres e bem meno-res. A maioria dos jornais ficava noCentro da cidade, o que nos aproxima-va. Tínhamos o hábito de sair da Câ-mara direto para um bar que ficava naRua São Bento, embaixo do DiárioCarioca. Ali a gente se preparava paraenfrentar a noite, pois o fechamentodos jornais era muito tarde.

JORNAL DA ABI – SUA ATUAÇÃO NO JORNAL

DO BRASIL VEM DE LONGA DATA. COMO FOI ATRAJETÓRIA NESTE VEÍCULO?

Villas-Bôas – Trabalhei duas vezes noJB. Saí a primeira vez em 1961, quan-do houve a mudança da capital paraBrasília e fui convidado a trabalhar nasucursal de lá. Como também trabalha-va na sucursal carioca do Estadão, fuiconversar com eles, que me convence-ram a ficar com o seguinte argumen-to: “Se você pensa que o Rio de Janei-ro vai esvaziar, está enganado. Basta vero exemplo de Washington, nos EUA. ORio continuará a ser um centro políti-co importante e nós vamos manter asucursal exatamente como está”. Evi-dentemente, as equipes que cobriam ostrabalhos na Câmara e no Senado tive-ram que partir, mas a política no Riode Janeiro sobreviveu durante um lon-go tempo, especialmente com o Sena-dinho, ao contrário da Câmara, que foidesativada. Como o Senado ficava noCentro, perto dos hotéis, os senadorese deputados que fugiam de Brasíliabatiam o ponto por lá. Era um lugar quea gente freqüentava habitualmentepara conversar, pegar informações,fazer matérias e entrevistas. Só retor-nei ao Jornal do Brasil mais tarde, como Walter Fontoura na Direção e o Pau-lo Henrique Amorim na Chefia. Nes-sa época, vivia desesperado, porquetinha saído do Estadão devido à fusãodo jornal e estava desempregado há

cinco meses. Até que, certo dia, o Pau-lo Henrique me convidou para ir à casadele, no Leblon. A reunião foi à noitee a casa estava cheia. Por volta de umada manhã, fui me despedir. Ele meacompanhou até o portão e disse:“Olha, Villas, eu te chamei aqui porqueo Walter Fontoura me autorizou a con-vidar você…”, começou. “Aceito!”, res-pondi. “Mas, peraí, Villas, você nãosabe nem o que é!” E eu garanti: “Nãofaz mal. Se for para ser varredor daRedação, eu aceito.” (risos)

JORNAL DA ABI – MAS O SENHOR NÃO VOL-TOU COMO REPÓRTER. A NOVA EXPERIÊNCIA

FOI BOA?

Villas-Bôas – O convite era para aChefia de Reportagem da editoria dePolítica. Um cargo que eu não queria,mas aceitei na hora. Algum tempodepois, o Paulo comentou comigo queestava procurando um lugar para oXico Vargas: “Pode dar meu cargo!”, fuilogo dizendo. “Mas...”, ele se espantou.“Estou louco para largar a Chefia. Soujornalista, quero ser repórter, queroescrever!”, expliquei. “Você está falan-do sério, Villas?” Estou até hoje. (risos)Ao longo de quase 20 anos, o jornalmudou muito, atravessou séria crise,trocou de dono, e eu continuo por lá,escrevendo três artigos por semana.

JORNAL DA ABI – O QUE DETERMINOU ACRISE NO JB?

Villas-Bôas – Assim como os outrosjornais, o JB acreditou no milagre bra-sileiro que toda a mídia propagou e saiuinvestindo loucamente. Um exemplofoi aquela sede suntuosa. Certa vez, umjornalista italiano foi visitar o prédioe, depois de percorrê-lo inteiro, já naportaria, perguntou: “Além do Jornal doBrasil, o que mais vocês editam nesteprédio?” E o cicerone respondeu: “Mais

nada”. Ao que o italiano comentou:“Ih... vai quebrar”.

JORNAL DA ABI – COMO ERA A SUA ROTINA

DE TRABALHO NA TV?

Villas-Bôas – Em televisão, trabalheia partir de meados da década de 60, pri-meiramente no Jornal de vanguarda,que foi de vários canais e saiu do ar coma decretação do AI-5, apesar de ter pa-trocínio. Atuei também na TV Bandei-rantes e depois na Manchete, do inícioda década de 90 até o fechamento daemissora. Eu analisava a pauta e esco-lhia um assunto para fazer os comen-tários. Não comunicava a ninguém otema e falava sempre de improviso.Esta experiência de liberdade de esco-lha seria impossível nos dias de hoje.

JORNAL DA ABI – EM RELAÇÃO AO JORNA-LISMO POLÍTICO, QUAIS FORAM AS PRINCIPAIS

MUDANÇAS QUE O SENHOR VIVENCIOU?

Villas-Bôas – A transferência da ca-pital do País para Brasília foi a principalmudança neste cenário. A inauguraçãoda cidade foi um circo. Quando a im-prensa chegou por lá, não havia lugarpara morar, nem para trabalhar. Foi di-fícil transferir os quadros de funcioná-rios. Na prática, representou o fim da

cobertura de páginas inteiras sobre amovimentação do plenário, das comis-sões, da política em geral. O modeloprecisou ser reformulado e surgiram asmatérias especiais, introduzidas poruma nova geração de repórteres emBrasília, como Fernando Pedreira, Car-los Chagas e Evandro Carlos de Andra-de. Uma fase inicial de efervescência quedurou até os governos de Jânio Quadrose João Goulart, que tinham péssimasrelações com a imprensa. O Jânio nãoconversava com ninguém, mas tinhaum bom assessor de imprensa; o Jangosó falava com os jornalistas que conhe-cia. Em seguida, chegaram os militares,em sua maioria inacessíveis.

JORNAL DA ABI – COMO O SENHOR ENFREN-TOU O PERÍODO DA DITADURA E A CENSURA

IMPOSTA À IMPRENSA?

Villas-Bôas – Ressalto a minha ex-periência no jornal O Estado de S. Pau-lo, no qual ingressei no final da déca-da de 50 e me aposentei em 79, atuan-do como chefe da editoria de Políticae, mais tarde, na Direção da SucursalRio. Tenho orgulho de ter trabalhadono período da ditadura no Estadão, queteve corajosa postura de resistência, es-pecialmente ao rechaçar a autocensu-

Villas trabalhou no JB,saiu, voltou como

Chefe de Reportagemda editoria de Política,mas queria mesmo é

ser repórter. Naprimeira chance, ele

entregou a Chefia.

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46 Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

ra. Era necessário ter grande habilida-de profissional para driblar a repressãoe buscar a melhor maneira para infor-mar o leitor. Inicialmente, o Estadãodeixou espaços em branco no lugar dasmatérias censuradas. Como esta práti-ca foi proibida pelos censores, o jornalpassou a publicar versos de Os Lusíadas,de Camões, no lugar das matérias cen-suradas. O Jornal da Tarde, também doGrupo Estado, chegou a estampar de-senhos de flores nos espaços censurados,mas os leitores não entenderam o avi-so e acharam que se tratava de um re-curso estético. Então, o JT passou apublicar Os Lusíadas e receitas de bolose doces nos espaços vazios.

JORNAL DA ABI – O SENHOR ATUOU NA

COBERTURA DE CAMPANHAS POLÍTICAS DE FIGU-RAS IMPORTANTES. QUAL ERA A ESTRUTURA

DESTA ATIVIDADE NA ÉPOCA?

Villas-Bôas – Trabalhei nas campa-nhas de Juscelino Kubitschek, JuarezTávora e Jânio Quadros, entre outras.Minha participação foi mais intensa nacampanha do Jânio, porque atendia aum interesse político do jornal. Naque-la época não havia marketing, pesqui-sa eleitoral, televisão. O termômetroda situação era medido pelas articula-ções políticas e os comícios. Contudo,este tipo de avaliação muitas vezes in-corria em erros.

JORNAL DA ABI – COMO O SENHOR ANALI-

SA A EVOLUÇÃO DO JORNALISMO BRASILEIRO

NAS ÚLTIMAS SEIS DÉCADAS?

Villas-Bôas – Hoje, nós vemos estacoisa curiosa que é fazer jornal semjornalista. Os chefes das editorias dePolítica, por exemplo, trabalham comalgumas sucursais e agências e meiadúzia de repórteres em Brasília. A co-bertura do Rio é irrelevante. Não se

cobre Assembléia Legislativa, não secobre Câmara de Vereadores. “Ah, masaquilo é uma porcaria”, retrucam. En-tão vai lá e cobre a porcaria, faz umasessão crítica. Mas não; simplesmen-te preferem colocar a tampa na lata delixo sem jogar o lixo fora. Alguns jor-nais ainda tentam fazer uma cobertu-ra mais ampla, mas acabam caindo noexagero e transformam a matéria emuma coisa monótona com quatro, cin-co páginas. O leitor tem outras ativi-dades em sua vida, não pode passar odia inteiro lendo jornal.

JORNAL DA ABI – ATÉ A DÉCADA DE 60NÃO EXISTIA A EXIGÊNCIA DO DIPLOMA PARA

EXERCER A PROFISSÃO DE JORNALISTA. NA

SUA OPINIÃO, QUAL O PAPEL DOS CURSOS DE

COMUNICAÇÃO?

Villas-Bôas – Para quem tem a voca-ção, o curso certamente ajuda. Masnenhuma faculdade vai transformarem jornalista um indivíduo que nãotem a garra necessária à profissão. Épreciso ainda ter intimidade com a lín-gua portuguesa e o computador paraenfrentar o mercado de trabalho, quehoje está muito mais difícil.

JORNAL DA ABI – O QUE MUDOU NESTE

MERCADO?

Villas-Bôas – Quando eu comecei naimprensa, havia cerca de 17 jornais noRio. Hoje o número de veículos caiudrasticamente e as redações ficarammuito enxutas. A internet, outra mu-dança, é uma ferramenta que veio paraficar, mas o jornalista não pode depen-der apenas deste instrumento. A infor-mação virtual não substitui a impren-

sa escrita. Na minha área, porexemplo, tenho que me valer dostelefonemas para Brasília, da lei-tura de jornais e das conversascom várias pessoas para fechar aminha análise. Uma rotina mui-to diferente do tempo em que euchegava na Câmara às 14h e sósaía às 18h, abarrotado de infor-mações. O jornalista de hoje nãosai de casa, prefere apurar tudo pelainternet ou pelo telefone. Como aRedação diminuiu, recebe uma pau-ta enorme com quatro ou cinco ma-térias, não tem tempo para fazê-lase se vê obrigado a apurar tudo deafogadilho. Além disso, o jornal dedomingo sai no sábado. E o de sá-bado sai que dia? Como a maiorparte dos jornais são dirigidos porempresários e não por jornalistas,a Gerência de Marketing e a Publi-cidade impõem a hora do fechamen-to e tudo o mais em função do cai-xa. Este modelo precisa ser reformu-lado com urgência. O jovem que estáse formando hoje faz parte da gera-

ção laptop e tem a chance de remontaruma rede nacional que devolva à im-prensa o status de cobertura nacional.

JORNAL DA ABI – HÁ 60 ANOS ACOMPA-NHANDO A CENA POLÍTICA NO BRASIL E NO

MUNDO, DE QUE FORMA O SENHOR ANALISA ARECENTE VITÓRIA DO SENADOR BARACK OBA-MA NAS ELEIÇÕES NORTE-AMERICANAS?

Villas-Bôas – Recebi a notícia comotodo o mundo. Um fato inacreditável,que justificou eu ter vivido o tantoquanto vivi para presenciar a vitóriado primeiro negro à Presidência dos Es-tados Unidos. Um negro assumido,com sua bela família. A eleição acon-teceu de forma natural, pois ele nãofoi eleito por ser negro ou branco, e simpor ser o Obama.

JORNAL DA ABI — O SENHOR ESTÁ COME-MORANDO SEIS DÉCADAS DE CARREIRA NO

MESMO ANO EM QUE A ABI FESTEJA O CENTE-NÁRIO DE FUNDAÇÃO.

Villas-Bôas – Tenho uma relação cu-riosa com a Casa. Lembro da gestão deHerbert Moses, que tinha postura con-veniente para enfrentar as agruras doEstado Novo. Ele se dava muito bemcom Getúlio, agregava uma boa rede derelacionamentos e esteve sempre aten-to aos casos de violência imposta a umaimprensa sob a censura do Departamen-to de Imprensa e Propaganda (Dip).Acompanhei à distância a grande fasede Barbosa Lima Sobrinho, de quem eugostava muito e que também me que-ria bem. Sem falar no filho, FernandoBarbosa Lima, com quem trabalheidurante muito tempo. Destaco aindao Presidente Prudente de Morais, neto,meu companheiro no Estado de S.Pauloe a quem eu adorava. Maurício Azêdo,também meu colega no Estadão, é oPresidente perfeito para esta fase daAssociação. Mantém uma linha polí-tica extremamente coerente, que refle-te as tendências majoritárias da clas-se e não impede a conversa, o diálogo.Uma administração exemplar.

JORNAL DA ABI – SUA TRAJETÓRIA RECEBEU

RECENTEMENTE UMA BELA HOMENAGEM, COM

O LANÇAMENTO DE UMA FOTOBIOGRAFIA PELA

COLEÇÃO ÁLBUM DE RETRATOS. COMO É ESSA

PUBLICAÇÃO?

Villas-Bôas – A publicação foi orga-nizada por meus filhos, o jornalistaMarcos Sá Corrêa e o produtor musi-cal Marcelo Sá Corrêa. As fotos esta-vam guardadas há muitos anos, den-tro de uma mala. Algumas revelam umBrasil e um jornalismo que já não exis-tem mais.

JORNAL DA ABI – O SENHOR É AUTOR DE

CASOS DA FAZENDA DO RETIRO (1981), CON-VERSA COM A MEMÓRIA – A HISTÓRIA DE

MEIO SÉCULO DE JORNALISMO PÚBLICO

(2002) E PALÁCIO TIRADENTES – FIEL À DE-MOCRACIA (2002). ALÉM DE PREPARAR UMA

NOVA PUBLICAÇÃO, A QUE OUTRAS ATIVIDADES

ESTÁ SE DEDICANDO?

Villas-Bôas – Estou organizando olançamento do meu blog e realizandouma pesquisa para escrever sobre oserros grotescos cometidos pelos nossosdirigentes, que resultaram nas suces-sivas crises que assolaram o País, apartir de Getúlio e do Estado Novo.

Numa matéria que ocupou quase duas páginas, publicada no dia 9 de dezembro de 2008,e que teve destaque na primeira página, o Jornal do Brasil prestou uma homenagem aos

60 anos de carreira de seu colunista e mais antigo jornalista político em atividade no País.

Ao lado de Maurício Azêdo, Presidente da ABI, só elogios à sua administração à frente daCasa: “Reflete as tendências majoritárias da classe e não impede a conversa, o diálogo”.

VILLAS-BÔAS CORRÊA SEIS DÉCADAS NOS BASTIDORES DO PODER UC

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47Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

austo Wolff é desses raríssimos bra-sileiros que merece o epitáfio: “Tra-

balhou até morrer”.Já sofrendo de algumas seqüelas do

quadro que o matou, as letras do te-clado por vezes se embaralhavam,mas Fausto não desistia e ouvia-sesua voz a um quarteirão de distância:

– Cadê a porra do F?Devo muito ao Fausto. Quando eu ainda estava

na fase de leitura capa e espada, Charlie Chan,Sherlock Holmes e tal, um amigo do prédio ondemorávamos, na Maia Lacerda, coração do Está-cio, me convidou pra ouvir long-plays de jazz nacabine da Loja Palermo, que ficava no Largo daCarioca. De lá, fomos parar na Livraria Civiliza-ção Brasileira, Rua Sete de Setembro. Não sabiaque essa tarde mudaria minha vida. Na Palermo,comprei um LP do Oscar Peterson (aquele no quala primeira faixa do lado A é uma sutilíssima in-terpretação de Corcovado), com a foto do triono palco e me apaixonei pela cintilante bateria.E na Civilização, meio duro, acolhendo as dicasdo amigo Gilberto, comprei Tijolo de Segurança,

PONTO FINAL

sar um fim de ano com ele e Mônica, em seu apê,na Avenida Atlântica. Orgulho-me de ter sidoo primeiro a chegar e o último a sair. Revi o Clau-dius, o Pamplona, o Chico Paula Freitas, só gen-te fina. Na hora dos fogos, Fausto virou duas ca-deiras para a janela e disse, peremptório:

– Senta aqui, porra!Ficamos bebendo, sem dar muita

bola para aquela meia hora de luzes eesporro. Quando o show pirotécnicoterminou, Fausto deu uma levíssimabalançada ao levantar e foi descansar ra-pidinho. Uns quinze minutos depois,reapareceu de copo em punho, virou

duas cadeiras pra janela e me chamou de novo:– Senta aqui, porra! Vamos ver os fogos juntos!Até hoje, tamanha a força que Fausto me ins-

pirava, fico pensando se ele havia esquecido dosfogos ou se estava determinado a permanecer ali,bebendo, até o fim do ano que começava. Souateu, mas se houver outra vida, já tenho a fraseque direi ao rever o Fausto:

– Vim ver os fogos, porra!E cantaremos a Internacional.

do Carlos Heitor Cony, e o Acrobata Pede Descul-

pas e Cai, do Fausto Wolff. Devorei os livros. Deu-se o rito de passagem e a meninice foi (quase) de-finitivamente embora, Sandokan, o Pimpinela Es-carlate, O Gavião dos Mares e tantos outros he-róis cederam lugar aos personagens dos roman-cistas brasileiros, na Coleção Vera Cruz, da mes-ma Civilização. Jamais quitaremos a dí-vida contraída com Ênio Silveira.

Depois conheci o Fausto no Pasquim.Ele carregava vários livros: Parque Górki,de Martin Cruz Smith, no original, e ou-tros em francês e alemão. Jaguar estavasentado, de calça Lee e botas, sobre umapilha enorme de revistas estrangeiras, com umatesoura na mão, acho que organizando uma es-pécie de arquivo. Minha amizade crescente comFausto estreitou-se com a troca de opiniões quan-do escrevíamos na revista Bundas, no Pasquim 21

e no Caderno B. Fausto tinha sempre uma pala-vra de estímulo, mas não deixava passar cochi-los e sabia bater duro.

Muitos contarão histórias fantásticas sobreo Fausto. Tenho a minha. Mari e eu fomos pas-

FAUSTO EOS FOGOS

POR ALDIR BLANCESPECIAL PARA O JORNAL DA ABI

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