2009-ressignificação produtiva do setor artesanal na decada de 1990
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
Ana Beatriz Martins dos Santos Seraine
RESSIGNIFICAO PRODUTIVA DO SETOR ARTESANAL NA DCADA DE 1990:
o encontro entre artesanato e empreendedorismo
Campinas 2009
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1Ana Beatriz Martins dos Santos Seraine
RESSIGNIFICAO PRODUTIVA DO SETOR ARTESANAL NA DCADA DE 1990:
o encontro entre artesanato e empreendedorismo
Tese de Doutorado em Cincias Sociais apresentada ao Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, como parte dos requisitos para obteno do ttulo de doutor em Cincias Sociais. Orientador: Prof. Dr. Valeriano Mendes Ferreira Costa.
Campinas 2009
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2 FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP
Seraine, Ana Beatriz Martins dos Santos Se65r Ressignificao produtiva do setor artesanal na dcada de 1990: o
encontro entre artesanato e empreendedorismo / Ana Beatriz Martins dos Santos Seraine. - - Campinas, SP : [s. n.], 2009.
Orientador: Valeriano Mendes Ferreira Costa. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.
1. Programa do Artesanato Brasileiro (PAB). 2. Polticas pblicas. 3. Trabalho. 4. Setor informal (Economia). 5. Artesanato. 6. Artesanato Brasil. 7. Artesanato - Piau. 8. Empreendedorismo. I. Costa, Valeriano Mendes Ferreira, I. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo. (cn/ifch)
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5Aos meus pais, Jos (in memoriam) e Ana; Ao meu esposo, Wilson Seraine;
Aos meus filhos: Mateus, Ana Clara e Wilson Neto; Aos meus irmos: Luiz Virgnio, Osmar, Jnior, Marcos Paulo, Rossana e Rmulo.
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7AGRADECIMENTOS
Ao meu Deus, Senhor da minha vida; a Jesus Cristo, meu Salvador e ao Esprito Santo, minha fora;
Virgem Maria que, em todos os momentos, esteve sempre ao meu lado, com seu carinho de me, intercedendo por todas as minhas necessidades e dificuldades;
s instituies de ensino superior e de fomento que proporcionaram a realizao deste trabalho: UFPI, UNICAMP e CAPES atravs do PQI;
Ao Professor Doutor Valeriano, a orientao acadmica, o estmulo, a pacincia e, sobretudo, a amizade;
Ao Prof. Dr. Fernando Loureno e ao Prof. Dr. Josu Silva (UNICAMP), a contribuio significativa no exame de qualificao;
Aos coordenadores do programa PQI/Unicamp-Ufpi: Prof. Dr. Shigenoli Miyamoto, Prof. Dr. Washington Bomfim, Profa. Dra. Dione Moraes, Profa. Dra. Maria Ldia Medeiros, Profa. Janete Paranhos;
Aos entrevistados, a colaborao;
Ao PRODART, na pessoa da Rose, a presteza e a colaborao indispensvel;
Clia Almeida e demais funcionrios da Biblioteca do Planalto (DF), a ajuda na aquisio de material de pesquisa e a confiana;
Gisela, bibliotecria da UFPI, a inestimvel ajuda;
s funcionrias do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Unicamp, Maria Rita e Gil, a disponibilidade e solicitude;
Aos colegas da Ps, e em especial, Ana Paula, Edna e Raimundo Junior;
Aos amigos da comunidade ufpiana que, na mesma poca, montaram acampamento em Campinas Raimundo Junior, Francisco Willians e famlia (Tina e Ana Clara), Ricardo Allagio. Obrigada por tudo;
Ao Prof. Fernando Dib Tajra, com quem muito aprendi por ter sido sua aluna; Aos colegas do Departamento de Cincias Sociais/UFPI, a compreenso e o apoio,
Ao Prof. Dr. Francisco Veloso (UFPI), suas observaes na leitura do meu projeto de pesquisa para o doutoramento;
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8Aos professores e professoras do CCHL, o incentivo, ao testemunhar suas experincias vividas quando escreveram suas teses, ao dizer: eu tambm passei por isso, assim mesmo, a gente consegue chegar l; Ao meu querido Wilson, o apoio incondicional e incentivo... Obrigada por ter acreditado em mim;
Aos meus filhos to amados Mateus, Ana Clara e Wilson Neto , o amor, o carinho e a compreenso, por tudo que passamos juntos e tambm pelo que no vivemos quando precisei ficar longe de casa;
minha me, Ana, meu tesouro valioso;
minha amiga-irm Dione, mineira de Montes Claros, a nossa linda amizade fraterna... Que permaneamos sempre assim;
Aos amigos do Flat do Baro: Terezinha Alvim, mineira de Ouro Preto, uma jia rara; Djalma, maranhense, um encanto de pessoa; ao Dennys, mineiro de Uberlndia e o Sr. Geraldo.
Dra. Ivana Mara e sua filha Juliana (fisioterapeuta), os cuidados a mim prestados, em todos os sentidos;
Ao Anchieta, Prof. Nelson, Ilza, cada qual, a seu modo e rea de trabalho, a contribuio para apresentao dessa tese;
Fraternidade Toca de Assis, meu percurso para ficar bem mais perto de Deus.
Ao querido amigo Padre Deodato, o bem que me faz;
Aos meus familiares, o amor e o respeito;
A todos meus amigos e amigas que contriburam direta e indiretamente para que fosse possvel chegar at aqui.
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9Diz a sabedoria popular que no se deve dar o
peixe, mas ensinar a pescar. Entretanto, o bom
senso indica que, em casos de fome, deve-se sim
dar o peixe, para o faminto ter as condies
mnimas de aprendizagem. Tambm no se
consegue capacit-lo a pescar sem dar-lhe crdito
para comprar a vara, linha e anzol, ou at mesmo
um barco. Tudo isso sem um rio piscoso um
ambiente institucional e macroeconmico
propcio a microempreendimentos no adianta
muita coisa....
Fernando Nogueira da Costa
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RESUMO
Ao considerar a realidade de pauperizao, somada ao aumento do desemprego e ao movimento
de desassalariamento, impe-se ao Estado brasileiro o desafio de promover a incluso social e,
conseqentemente, reduzir a pobreza. Nesta conjuntura, observa-se a tentativa de o governo
federal enfrentar tal realidade socioeconmica quando, a partir da dcada de 1990, adota como
estratgia institucional a Ideologia do Empreendedorismo e, na inteno de dinamizar
determinados setores produtivos da economia, com o intuito de minimizar a pobreza, passa a
incentivar a criao dos micros e pequenos negcios, estimulando o trabalho por conta prpria.
Exemplifica essa tentativa o propsito de o governo federal transformar o arteso em
empreendedor. O presente trabalho de pesquisa situa-se no campo das Polticas Pblicas,
destacando aquela destinada ao fomento da produo artesanal - Programa do Artesanato
Brasileiro (PAB) criado em 1991. Face ao exposto, pretende-se analisar o PAB, a partir de sua
concepo, institucionalidade e implementao, segundo a contribuio terica de Bo Rothstein.
Toma-se como evidncia emprica da execuo do PAB, no Piau, o segmento artesanal
ceramista, desenvolvido no Bairro Poty Velho, localizado na zona Norte de Teresina, capital do
Estado.
Palavras-chaves: Polticas Pblicas. Trabalho por conta prpria. Setor informal. Artesanato. Artesanato no Brasil. Programa do Artesanato Brasileiro (PAB). Rothstein.
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ABSTRACT
Taking into account the reality of impoverishment and social exclusion, together with the increasing of unemployment and with the diminishing of wage earning, it is imposed to the Brazilian State the challenge to promote the social inclusion and, consequently, reduce poverty. It is in this scenario that it is observed the attempt by the Federal Government to face such a socioeconomic reality when, from the Nineties, it adopts the ideology of Enterprising as institutional strategy. Aiming for making certain productive sectors more dynamic, and so minimize poverty, they begin to encourage the opening of micro and small businesses, stimulating autonomous (self governing) work. An example of this attempt is the intention of the Federal Government, in the Nineties, of transforming the artisans into businessmen. The present research work deals with public policies, mainly that one aimed for stimulating craftsmanship production - Brazilian Craftsmanship Program (Programa do Artesanato Brasileiro (PAB) established in 1991. What is made in the present work is the analysis of such program from its conception, institutionality and implementation according to the theoretical contribution of Rothstein. It is taken as empirical evidence the execution of PAB in Piau, the ceramic craftsmanship activity developed in Poty Velho district in the North Zone of Teresina, the capital of the State.
Keywords: Public Policies. Autonomous Work. Informal Work. Craftsmanship. Craftsmanship in Brazil. Brazilian Craftsmanship Program (Programa do Artesanato Brasileiro (PAB). Rothstein.
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LISTA DE FIGURAS E GRFICOS
Figura 1 Organograma do MDIC 142
Grfico 1- Artesos cadastrados no PRODART - Gnero 185
Grfico 2- Artesos cadastrados no PRODART - Localizao: capital e interior 185
Grfico 3- Artesos cadastrados no PRODART - Relao capital x gnero 185
Grfico 4- Artesos cadastrados no PRODART - Interior x Gnero 185
Grfico 5- Artesos cadastrados no PRODART - Localizao x Homem 186
Grfico 6- Artesos cadastrados no PRODART - Localizao x Mulher 186
Grfico 7- Artesos cadastrados no PRODART - Relao gnero x localizao 186
Grfico 8- Artesos cadastrados no PRODART - Matria-prima utilizada 187
Grfico 9- Artesos cadastrados no PRODART - Matria-prima utilizada na capital 188
Grfico 10- Artesos cadastrados no PRODART - Matria-prima utilizada no interior 189
Grfico 11- Artesos cadastrados no PRODART - Relao matria-prima x localizao 190
Grfico 12- Artesos cadastrados no PRODART - Relao gnero x ano de
cadastramento 191
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1- Dimenses de polticas pblicas 125
Tabela 2- Modelos de implementao e sua base de legitimidade 128
Tabela 3- Dimenses de poltica pblica 148
Tabela 4- Programa do Artesanato Brasileiro (PAB) 150
Tabela 5- Tarefas e tcnicas para cada forma organizacional 154
Tabela 6- Seis modelos diferentes para alcanar legitimidade no
processo de implementao 158
Tabela 7- Diagnstico do segmento artesanal piauiense (1992-1993) 168
Tabela 8- Quantidade de municpios piauienses com artesos cadastrados 191
Tabela 9- Artesos cadastrados no PRODART por municpio e microrregies 191
Tabela 10- Tipologia do Modelo Burocrtico 226
Tabela 11- Tipologia dos Modelos Profissional e Usurio-Orientado 226
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SUMRIO
Introduo 21
Captulo 1 Artesanato como expresso do trabalho por conta prpria 31
1.1 Trabalho por conta prpria como manifestao do mercado no-formalizado, do setor marginal e do setor informal 40
1.2 Trabalho por conta prpria como encarnao do empreendedorismo em novas bases 63
Captulo 2 Incluso do segmento artesanal na agenda pblica brasileira 77
2.1 Polticas pblicas dos anos de 1950 e 1960: mbito estadual e regional. 78 2.2 Poltica dos anos de 1970: criao do Programa Nacional de Desenvolvimento do Artesanato (PNDA). 86 2.3 Poltica dos anos de 1980: continuidade do PNDA. 93 2.4 Poltica dos anos de 1990: criao do Programa do Artesanato Brasileiro (PAB). 98
Captulo 3 Anlise de Polticas Pblicas: um campo de estudo 115
3.1 Modelo de Rothstein para anlise de polticas pblicas 124 3.2 Aplicao do modelo de Rothstein para anlise do Programa
do Artesanato Brasileiro 129 3.2.1 Rastreamento do PAB 130 3.2.2 PAB: desenho, organizao e legitimidade 146
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Captulo 4 Polticas pblicas de apoio ao segmento artesanal piauiense 161
4.1 O PAB no Piau. 178 4.2 O impacto do PAB na atividade ceramista no Bairro Poty Velho. 197
Concluso 219Obras Consultadas 229Anexos 243
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INTRODUO
A problemtica da pobreza, conjugada com o agravamento do desemprego, vem
suscitando no s na esfera pblica, mas tambm nas organizaes da sociedade civil, uma
grande preocupao. De acordo com dados divulgados pela Organizao Internacional do
Trabalho (OIT), atravs de seu estudo intitulado Tendncias Mundiais de Emprego, evidencia-
se o crescimento do desemprego mundial, considerado por alguns como sendo uma das grandes
chagas do capitalismo hodierno.
Dados do relatrio anual da OIT1 mostravam que a nova projeo para 2008, contraposta
com a situao de 20072, apontava, apesar da taxa de desemprego manter-se constante em 6%,
que o nvel de desemprego mundial ainda continua elevado (189,9 milhes), com a perspectiva
de alcanar patamares maiores3. Faz-se importante destacar, segundo o citado documento, que,
apesar do crescimento da economia e do emprego, existe um significativo dficit de trabalho
decente no mundo, especialmente entre os pobres. De 10 pessoas empregadas, quatro tm
empregos vulnerveis, seja como trabalhadores familiares auxiliares ou trabalhadores por conta
1 Global Employment Trends 2008. Organizao Internacional do Trabalho, Genebra. Disponvel em: . Acesso em: 30 jan. 2008. 2 Em 2007, segundo a OIT, houve um crescimento econmico de 5,2% que produziu uma estabilizao dos mercados de trabalho, com mais pessoas empregadas e um aumento de 45 milhes de postos de trabalho. No entanto, no houve um impacto significativo sobre o desemprego. Em 2007, 61,7% da populao mundial em idade de trabalhar estava empregada, o que corresponde a cerca de trs bilhes de pessoas. 3 O documento da OIT salienta que a desacelerao do crescimento nas economias industrializadas, imputada crise dos mercados de crdito e aos elevados preos do petrleo, at o momento, tem sido equilibrada pelo que ocorre particularmente na sia, onde permanece forte o crescimento da economia e do emprego. Contudo, tal documento adverte que uma maior desacelerao do crescimento prevista para 2008 poderia elevar a taxa de desemprego no planeta em at 6,1 por cento o que acarretaria que outros 5 milhes de pessoas no teriam emprego.
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prpria. Nos pases perifricos estes dois grupos so os que habitualmente costumam ter
trabalhos informais, precrios, que os tornam mais susceptveis pobreza4.
No Brasil, essa realidade pode ser sentida no enorme contingente de pessoas, espalhadas
por todo o pas, sem emprego, revelando um universo em torno de 8,3 milhes de pessoas. O
quadro se agrava ainda mais quando, alm do excessivo estoque de desempregados5, o pas
recebe, todos os anos, 2,3 milhes de novos pretendentes a um emprego, geralmente jovens.
Tentar compreender esta realidade lanar-se, sem dvida, num debate que contempla
trs questes bsicas: a natureza capitalista da sociedade brasileira, a alta concentrao de renda
existente nesta sociedade e o processo de reestruturao produtiva que elimina postos de trabalho
e precariza relaes laborais. Interessa reter, para fins desta anlise, que o modo capitalista de
produzir, ao instituir uma identificao entre trabalho assalariado e emprego formal, oportunizou
o surgimento de uma civilizao fundada no emprego, cuja forma de integrao reconhecida
socialmente o trabalho assalariado formal, paradigma este que passa, no estgio atual do
capitalismo mundial, por um processo de reconfigurao, em geral, conhecido como
reestruturao produtiva. Assiste-se hoje, assim, a um movimento de desassalariamento, com a
ampliao das ocupaes autnomas ou trabalho por conta prpria.
A dcada de 1980 inaugurou um novo modelo de desenvolvimento cuja natureza residia
no deslocamento do vetor de desenvolvimento do mbito do Estado para o mercado. Dentro desta
ruptura de paradigma que se enlaa a um pensamento hegemnico pautado na superioridade dos
mecanismos de mercado para resolver problemas de governo, estagnao econmica e pobreza,
identifica-se, na ideologia do empreendedorismo, pressupostos e princpios que se articulam ao
padro de desenvolvimento orientado para o mercado, pois remete ao fomento de um tipo de
prtica econmica (ocupao produtiva e gerao de renda) que incentiva o trabalho por conta
prpria enquanto alternativa para responder aos desafios que se colocam em razo da crise do
mundo do trabalho, que h muito se sustentava no paradigma do trabalho assalariado formal, no
setor produtivo-industrial.
Um novo cenrio de transformaes econmicas comea, com efeito, a ser montado. O
Brasil compe tal cenrio, j que se observa grande celeridade nas mudanas tecnolgicas e a
4 A OIT estima que aproximadamente 487 milhes de trabalhadores ainda no ganham o necessrio para superar junto com suas famlias a linha de pobreza de um dlar dirio por pessoa e que, em mdia, 1,3 bilho de trabalhadores continuam abaixo da linha de dois dlares dirios. 5 So indivduos que se encontram numa situao involuntria de no-trabalho, por falta de oportunidade de trabalho, ou que exeram trabalhos irregulares com desejo de mudanas (DIEESE, 2003).
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incorporao, pelas empresas, de outro padro produtivo, sustentado na flexibilizao do
trabalho6. que os governos nacionais, a partir do mandato de Fernando Collor (anos 90),
assumem, naquele contexto, uma agenda de reformas econmicas estruturais com a admisso de
polticas de liberalizao econmica, a privatizao de empresas estatais e a transferncia de
responsabilidades de proteo social do Estado para a sociedade. Cabe destacar que, nesse
processo de reestruturao econmica mundial e de reformas liberalizantes nos pases em
desenvolvimento, o Estado deixa de ocupar o papel central na promoo do desenvolvimento
econmico. Exige-se desta esfera de poder um tosquiamento de seu espectro de ao para
permitir ao mercado atuar com mais liberdade. Estabelecido isto, questiona-se: afinal, o que ficou
reservado ao Estado? A este coube implementar as reformas orientadas para o mercado. Estas,
por sua vez, tiveram como razo de ser o princpio de transferir o maior nmero de atividade
possvel para o mbito do mercado e minar, at o limite, as distores no funcionamento deste,
provenientes da interveno do Estado7.
Nesta situao de agravamento do desemprego, somado ao movimento de
desassalariamento, o desafio posto ao Estado o de combater o aumento da pobreza. Tem-se em
vista uma problemtica realidade que reconhece a existncia de uma contradio entre a
proposio de criar empregos e o capitalismo que est provocando desemprego. Diante de tal
panorama, cabe ao Estado, dentre outras intervenes, elaborar polticas pblicas que produzam
novas formas de trabalho (ou ressignifiquem antigas) e de gerao de renda que envolva o
trabalho por conta prpria, como tambm cooperativas e atividades que valorizem a cultura.
s vistas dessa conjuntura de mudanas estruturais no mercado de trabalho e no modelo
de desenvolvimento (at a dcada de 1970, centrado no padro fordista e no Estado) que ganha
corpo a ideologia do empreendedorismo, esta tomada como estratgia capaz de promover
desenvolvimento econmico e incluso social. O empreendedorismo designa um novo padro de
comportamento dos agentes econmicos em relao a uma economia e sociedade em processo de
mudana, caracterizando a chamada economia empreendedora que, dentre suas bases, destacar-
se-ia a busca dos pequenos empreendimentos e, dentro destes, o empreendedor como um
importante agente na criao de novos negcios.
6 As propostas de reestruturao produtiva tm-se fundamentado em medidas de reduo de custos e de busca da flexibilizao do trabalho. Elas consistem em: reduo temporria ou permanente dos salrios diretos, dos adicionais sobre os salrios e dos benefcios sociais; flexibilizao da jornada de trabalho; formas atpicas de contratao, a exemplo dos trabalhos temporrios, em tempo parcial ou em domiclio; e a terceirizao. 7 VELASCO E CRUZ, 2004, p. 48-49.
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Partindo dessa compreenso e considerando as possibilidades de auferio de renda, a
ateno que a produo artesanal passa a receber a partir da dcada de 1990, por parte do governo
federal e organizaes da sociedade civil, tem demonstrado a inteno de transformar o
artesanato8 em uma atividade econmica sustentvel que gere renda e ocupao para a populao.
No campo do empreendedorismo, impe-se, pois, capitalizar o potencial da produo
artesanal, no intento de proporcionar novos rumos para esta atividade, pois se antev nesse
encontro artesanato e empreendedorismo a possibilidade de gerao de ocupao e de renda,
de reduo da pobreza, da criao de condies de melhoria da qualidade de vida local e da
manuteno viva de expresses culturais das comunidades envolvidas. Neste pensamento, a
ideologia do empreendedorismo seria a ferramenta apropriada para fazer o deslocamento do
artesanato de subsistncia para o artesanato de mercado.
, portanto, com a elevao do contingente de indivduos desempregados e desocupados,
num contexto de instalao do desemprego estrutural, que comeam a despontar estratgias
elaboradas pelo Estado atravs da criao de polticas pblicas que objetivem estimular o
trabalho por conta prpria regular, no intuito de garantir ocupao e trabalho- renda, o que
indubitavelmente pode vir a repercutir na diminuio do conjunto de desempregados e
desocupados, isto , do exrcito industrial de reserva (para utilizar uma linguagem clssica).
Para dar cabo a essa iniciativa, o Estado utiliza a ideologia do empreendedorismo como um
instrumento adequado e capaz de fomentar o trabalho por conta prpria de carter regular, seja
promovendo a abertura ou o incremento de negcios e, mais ainda, identificando nichos de
mercado. Este ltimo aspecto perceptvel quando o poder pblico comea a imprimir uma
roupagem de negcio sustentvel para atividades produtivas dantes colocadas no ostracismo,
reconhecidas como marginais e que passam a desfrutar de um status alinhado ao mercado
competitivo e de elevada capacidade de converso. Pode-se citar como exemplo desta estratgia a
assuno da atividade artesanal.
No Brasil, o artesanato sempre foi considerado uma atividade produtiva menor, inserido
no mbito dos programas de assistncia social, tratado sob uma perspectiva paternalista, como
8 Preliminarmente, qualquer tipo de trabalho realizado manualmente, em oposio aos executados utilizando mquinas, ou em srie, exige habilidade, destreza e engenho. De acordo com Eduardo Barroso Neto (2001), o artesanato difere-se das atividades ditas manuais, posto que o primeiro exige habilidade, apuro tcnico e arte; o segundo, as atividade ditas manuais, refere-se a um trabalho repetitivo com baixo valor cultural agregado, que exige habilidade e destreza, porm prescinde de uma capacidade artstica e criativa capaz de interferir e modificar cada nova pea trabalhada. Nestes termos, pode-se afirmar que o artesanato um trabalho manual, mas nem todo trabalho manual pode ser considerado artesanato.
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atesta a primeira poltica federal para o setor, o Programa Nacional de Desenvolvimento do
Artesanato (PNDA), criado em 1977. No entanto, a partir da dcada de 1990, este programa passa
a obter a ateno do poder pblico e privado, porm revestido de outro significado no mais
limitado a uma atividade produtiva, sem expresso econmica, de apenas complementao de
renda, ou s para a formao de mo-de-obra, mas sim passa a ser visto como uma atividade
produtiva com potencial econmico e social, isto , um nicho de mercado com significativa
capacidade de insero no mercado competitivo de mbito nacional e internacional. A
problemtica : por que a concepo da poltica para o artesanato muda? Pressupe-se que uma
das razes desta mudana de enfoque venha ser resultado de uma presso social advinda do
elevado nmero de desempregados e desocupados no mercado de trabalho brasileiro e a mudana
de paradigma do modelo de desenvolvimento. O que se infere que tal mudana de enfoque no
veio no sentido de valorizar o artesanato enquanto uma atividade em si, mas no sentido de
transformar o artesanato numa alternativa de gerao de trabalho-renda diante do elevado ndice
de desemprego e desocupao, em razo do estmulo ao trabalho por conta prpria, assumindo os
contornos do empreendedorismo.
Nesse contexto, ganham corpo, notadamente, nas agncias e em alguns programas de
desenvolvimento como os referidos, o discurso e a prtica do empreendedorismo que,
sociologicamente, podem ser pensados, nos termos de Ribeiro (1992), como noo, ideologia,
utopia ou sistema ideacional9. Ressalte-se que, no processo de incorporao deste sistema de
ideao o empreendedorismo, pelo Estado , suas idias no se impem por si s, pois elas so
traduzidas, adaptadas de acordo com interesses e convenincias, mesmo porque as idias no so
importadas abstratamente de acordo com seu pacote original, mas so incorporadas de acordo
com determinado contexto e interesses. De fato, esse discurso e essa prtica do
empreendedorismo podem referir-se desde a uma tentativa de sistematizao institucional
(conjunto de agncias e programas governamentais) at a um conjunto de idias que orienta e
legitima a ao dos atores sociais, muitas vezes ainda de forma um tanto abstrata para eles
prprios. O empreendedorismo aqui entendido, portanto, como ideologia ou sistema de ideao
organizativo de novas bases de incluso social na era da reestruturao produtiva ou do fim do
trabalho.
9 De acordo com Gustavo Ribeiro, o termo sistema ideacional remete a idia de um conjunto de diferentes apelos de legitimidade sobre distintas questes que so percebidas como centro para a reproduo da vida social (RIBEIRO, 1992, p. 11).
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A atividade artesanal compreende uma determinada forma de produo que se distingue
de outras por ser tradicional e voltada, eminentemente, para a subsistncia, num contexto de uma
arte marginal, pois foi sempre encarada como uma fonte residual de complementao da renda
familiar ou individual. Compreende-se por artesanato tradicional aquela atividade ligada ao modo
de vida do local, s matrias-primas disponveis em seu entorno, aos conhecimentos transmitidos
pelos mais velhos, por meio de ensino informal, com padres estticos desenvolvidos a partir da
vivncia da prpria comunidade.
Entretanto, o artesanato, por demanda de uma nova lgica do mercado e do consumo,
desponta como um nicho de mercado10, o que possibilita at mesmo a insero de uma economia
local no mercado globalizado. Neste sentido, nos marcos do empreendedorismo, transformar a
atividade artesanal numa atividade produtiva durvel, imprimindo a ela uma capacidade
empreendedora que busque a conquista e a expanso de novos mercados, pelo aumento de sua
capacidade de comercializao e a possibilidade de gerir a prpria produo, torn-la uma
atividade economicamente vivel. Por este prisma, a produo artesanal traduz-se numa
estratgia de garantia de trabalho e renda11 e, conseqentemente, num mecanismo de
minimizao da pobreza, alm de contemplar ainda uma poltica cultural, incluindo-se a
questes de identidade, auto-estima, tradio e modo de vida de populaes e localidades.
exatamente neste campo, entre os mercados e o artesanato12, que o Estado surge e
opera, no momento mesmo em que elabora polticas pblicas voltadas para produo artesanal,
entendendo aqui as polticas pblicas como um processo de deciso, onde se determinam os
princpios, as prioridades, as diretrizes que organizam programas e servios nas diferentes reas
que afetam a qualidade de vida do cidado. Neste plano, merecem referncia os dados do
Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior (MDIC), no ano de 2003, ao
apontar que o segmento artesanal envolveu 8,5 milhes de pessoas movimentando algo em torno
10 Lacunas de necessidades no atendidas pelas grandes empresas e pela produo em massa. 11 De acordo com a Organizao Mundial de Turismo, enquanto a indstria automobilstica brasileira precisa de R$ 170 mil para gerar um emprego, com apenas R$ 50 reais possvel garantir matria-prima para um arteso. 12 Apesar de no ser enfocado neste projeto, h de se considerar a relao entre a produo artesanal e o mercado turstico. Segundo Maria Snia Pinho, esta relao pode ser uma unio oportuna e favorvel, mas, para isto, preciso ter clareza que esta unio no uma souvenizao do produto artesanal, risco que se corre de fato, considerando que a indstria do turismo pode ocasionar uma nova massificao de produtos artesanais, ao promover a produo de souvenirs descaracterizados (PINHO, 2002, p. 172), o que se costuma designar industrianato. Isto aponta ainda para um debate em torno da conceitualizao de artesanato. Segundo a mesma autora, preciso observar que existem os artesanatos e o artesanato popular. Os primeiros referem-se a um conjunto de objetos, em sua maioria padronizados, denominados genericamente de trabalhos manuais. J o artesanato popular consiste em produtos de qualidade, com identidade de origem, autntico e de razes originais.
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de R$ 28 bilhes por ano. Convm enunciar, a propsito dessas questes, que objeto de anlise
deste trabalho o Programa do Artesanato Brasileiro - PAB, criado em 1991, no mbito do extinto
Ministrio da Ao Social - MAS13. Com a publicao do Decreto n 1.508, de 31/5/1995, o PAB
passou a vincular-se ao Ministrio da Indstria, do Comrcio e do Turismo - MICT14 que, pela
sua competncia, foi sucedido pelo Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio
Exterior MDIC15, atualmente, gestor do PAB.
O PAB um programa que, na sua concepo, visa gerar oportunidades de trabalho e
renda, promovendo o artesanato nos nveis nacional e internacional. Sua diretriz a organizao
e fortalecimento da produo artesanal brasileira e, para tal, estimula a sua comercializao e
promoo como importante atividade econmica do pas. Para alcanar tal intento, o Programa
estimula o aproveitamento das vocaes regionais levando preservao das culturas locais e
formao de uma mentalidade empreendedora (grifo nosso) [...] (BRASIL, MINISTRIO...,
2002), preparando assim o arteso e a artes para um mercado competitivo. O desenho
institucional e a atuao do PAB obedecem ao modelo intergovernamental no qual repassada a
gesto de tal poltica para rgos ou coordenaes responsveis pelo fomento ao segmento
artesanal nos estados e no Distrito Federal. No Piau, o Programa de Desenvolvimento do
Artesanato Piauiense (PRODART) o responsvel pela implementao do PAB no Estado.
O Programa do Artesanato Brasileiro (PAB), a partir de sua concepo e
institucionalidade, enquanto uma amostra do conjunto de programas incentivadores da prtica
empreendedora, aqui analisado evidenciando a sua implementao no Piau, focando o
artesanato ceramista16 desenvolvido no bairro Poty Velho, zona norte da capital, Teresina.
No tocante metodologia, pretendem-se mostrar a natureza deste trabalho, como tambm
os caminhos considerados pertinentes para alcanar os objetivos propostos. A natureza da
pesquisa do tipo terico e emprico e, em termos de quadros de referncia (Bruyne, 1991),
13 O PAB foi institudo pelo Decreto s/n de 21 de maro de 1991, na poca do Presidente da Repblica Fernando Collor e da Ministra da Ao Social Margarida Procpio. 14 Tal Decreto dispe sobre a subordinao do PAB. Neste perodo, a Presidncia da Repblica estava sob o comando de Fernando Henrique Cardoso e o Ministrio da Indstria, do Comrcio e do Turismo, sob a responsabilidade de Reinhold Stephanes. 15 O MDIC foi criado pela Medida Provisria n 2.123-27 de 27 de dezembro de 2000, no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, tendo como primeiro ministro Alcides Lopes Tpias. 16 Segundo o PRODART, as peas de cermica produzidas no Piau so bastante diversificadas. Tm-se cermicas artsticas, utilitrias, vitrificadas, com pinturas especiais e cermica branca (a princpio, feita com um barro escuro que, depois de cozido, transforma-se em cermica branca). Os municpios produtores so: Teresina (bairro Poty Velho), Floriano, Campo Maior, Oeiras, Monsenhor Gil, So Joo da Varjota, So Raimundo Nonato e outras localidades. Para desenvolver essa atividade, os (as) artesos (s) utilizam tornos movidos pelos ps.
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situa-se num campo de anlise compreensiva, trabalhando com dados de natureza quantitativa e
qualitativa, dentro da compreenso de que a dicotomia antes realada entre estas duas abordagens
j fora, h muito, superada.
Nesta pesquisa, a abordagem quantitativa conduziu a um tipo de anlise baseada em
mensuraes e no cruzamento de dados estatsticos e, por sua vez, a abordagem qualitativa
encaminhou uma forma de anlise na qual foram utilizados mecanismos interpretativos e de
descoberta de relaes e significados. Os modos de coleta de dados17 utilizados foram: anlises
documentais18, para a coleta de dados secundrios, e entrevistas19, para a coleta de dados
primrios. Quanto ao uso das entrevistas20 foram utilizados os seguintes tipos: a) estruturada21 e
17 A coleta de dados ampara-se num conjunto de tcnicas cada uma das quais correspondendo a regras peculiares de utilizao. Vrias tcnicas podem e devem frequentemente ser empregadas numa mesma pesquisa para reunir um feixe de dados ao mesmo tempo disponveis, acessveis e conformes a seu objeto de investigao (BRUYNE, 1991, p. 209) 18 Trata-se de uma tcnica de coleta de dados que se utiliza de documentos provenientes de fontes privadas e/ou oficiais (relatrios, estatsticas, direta ou indiretamente pertinentes, referindo-se se instituio ou situao estudadas) com o objetivo de realizar seja uma anlise qualitativa do contedo (satisfazer a necessidade de uma recuperao e crtica histrica e de autenticidade), seja uma anlise de contedo qualitativa (escolha de textos, determinao das unidades). A pesquisa documental neste trabalho proporcionou: a) ter acesso s informaes oficiais que caracterizam a incurso do empreendedorismo nas agendas governamentais; b) conhecer a histria, concepo e estruturao do PAB, a nvel federal e estadual; a implementao do PAB no Piau atravs do Programa de Desenvolvimento do Artesanato Piauiense (PRODART). 19 A entrevista pode ser definida como um processo de interao social entre duas pessoas na qual uma delas, o entrevistador, tem por objetivo a obteno de informaes por parte do outro, o entrevistado [...] enquanto instrumento de coleta de dados, a entrevista, como qualquer instrumento, est submetida aos cnones do mtodo cientfico, um dos quais a busca de objetividade, ou seja, a tentativa de captao do real, sem contaminaes indesejveis nem da parte do pesquisador nem de fatores externos que possam modificar aquele real original (HAGUETTE, 1987, p. 75-6). De acordo com Bruyne (1991) a entrevista (oral) pode ser: i) estruturada (protocolo fixo); ii) livre, sobre um tema geral; iii) centralizada num tema particular (lista-controle); iv) informal e contnua; v) panel, entrevistas repetidas; vi) em profundidade indireta. 20 Para este trabalho de pesquisa adotou-se como critrio para a seleo dos informantes (aptos e dispostos a responder) o dos respondedores representativos. Foram realizadas quatro entrevistas pela pesquisadora com os seguintes sujeitos: i) tcnica do PRODART; ii) arteso-fundador da primeira associao de artesos do estado, Associao dos Artesos Profissionais Autnomos do Piau APAPI, Sr. Antnio Carlos de Oliveira; iii) ex-Secretrio de Estado, Sr. Francisco de Assis Carvalho e Silva e iv) artes- fundadora e ex-presidente (dois mandatos) da Associao dos Artesos em Cermica do Bairro Poty Velho (ARCEPOTY), a Sra. Raimunda Teixeira da Silva, mais conhecida como Raimundinha. 21 Este tipo de pesquisa foi feita com a tcnica do PRODART e com o ex-Secretrio de Estado. A primeira, por representar uma instituio governamental, decidiu-se no divulgar o seu nome, com intuito de preserv-la. A sua escolha justificou-se pelo fato de ser funcionria do PRODART desde a sua criao e assim considerou-se uma informante representativa para dar informaes e opinies sobre a implementao da poltica para o setor artesanal no Piau, sobretudo o PAB. Tal entrevista foi realizada no dia 17 de abril de 2007 na sede do PRODART. A segunda entrevista realizada com o Sr. Carvalho e Silva tem como justificativa o fato dele constituir-se na poca, incio da dcada de 1980, a pessoa representativa para relatar o incio da poltica estadual para o artesanato, portador de informaes com significao das respostas sobre fatos e acontecimentos para a criao do PRODART, pois este foi institudo em sua gesto administrativa como Secretrio Estadual do Trabalho e Ao Social. Esta entrevista foi realizada dia 10 de maio de 2007 em sua residncia.
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b) informal e contnua22.
Partindo do pressuposto de que, a partir da dcada de 1980, inaugurou-se um novo
modelo de desenvolvimento cujo vetor principal deslocou-se do mbito do Estado para o
mercado, que se ajusta ao pensamento hegemnico firmado na superioridade dos mecanismos de
mercado para resolver problemas de governo, estagnao econmica e pobreza, e de que a
ideologia do empreendedorismo passa a ser reconhecida pelo poder pblico e organizaes do
setor privado como uma estratgia apropriada para alavancar o padro de desenvolvimento
orientado para o mercado, ao enfatizar e estimular o trabalho por conta prpria e os micro e
pequenos negcios, levantou-se como hiptese deste trabalho de pesquisa a seguinte formulao:
a poltica pblica federal para o setor artesanal brasileiro na dcada de 1990 visava transformar o
arteso em empreendedor.
Assim sendo, o objetivo geral deste trabalho entender o processo em que o
empreendedorismo se infiltra na agenda poltica do governo brasileiro, observando a
incorporao deste sistema de ideao na formulao das polticas pblicas destinadas ao setor
artesanal. Para tal, perpetrou-se uma anlise do Programa do Artesanato Brasileiro (PAB) a
partir de sua concepo e institucionalidade, como amostra do conjunto de programas que
enfatizam a prtica empreendedora no segmento artesanal.
Esta tese est organizada em quatro captulos. O primeiro trata da questo do artesanato
enquanto atividade produtiva que se enquadra na categoria trabalho por conta-prpria. O
segundo traz um apanhado histrico a respeito da incluso do segmento artesanal na agenda
pblica brasileira, mapeando as iniciativas do poder pblico brasileiro a partir de 1950 at o PAB.
No captulo seguinte, o qual discorre sobre as polticas pblicas como campo de pesquisa, adota-
se o modelo proposto por Bo Rothstein (1998) para analisar o PAB. Por fim, o quarto captulo
versa sobre as polticas pblicas de apoio ao setor artesanal piauiense. Num primeiro momento,
elabora-se um resgate histrico sobre o apoio pblico recebido por tal segmento no estado. Em
seguida, procede-se anlise do PAB no Piau, considerando a sua implementao no estado,
22 Este tipo de pesquisa, por ser capaz de fornecer um relato em profundidade apropriado para se obter informaes sobre acontecimentos e mudanas de atitudes, de influncia e de vida. Assim elegeu-se para tal modo de coleta, a tcnica dos respondedores representativos o primeiro do setor artesanal e a segunda da comunidade arteso ceramista do Poty Velho. Tais entrevistas foram realizadas, respectivamente, com o senhor Antonio Carlos de Oliveira em, 19 de abril de 2007, na sua loja, no PRODART e com a senhora Raimunda Teixeira da Silva, no dia 9 de maro de 2006, na Oficina de Artesanato, no bairro Poty Velho.
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assumindo como evidncia emprica, para tal, o caso do setor ceramista do bairro Poty Velho,
localizado na capital.
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CAPTULO 1 ARTESANATO COMO EXPRESSO DO TRABALHO POR CONTA PRPRIA
As origens do artesanato parecem coincidir com o prprio surgimento do trabalho
humano, uma vez que o homem primitivo transforma a natureza para disp-la a seu servio.
Assim sendo, pode-se considerar que o artesanato nasce com as primeiras armas, com os
utenslios domsticos, com a confeco das vestes primitivas, os adornos etc. Ao dispor de
recursos e habilidades construdos no decorrer do tempo, o homem capaz de atender suas
demandas de sobrevivncia e, assim, neste processo dialtico no qual modifica o seu meio e,
concomitantemente, modifica-se a si mesmo, o homem cria a tecnologia e se lana para novas
transformaes.
Antes de mencionar a definio de artesanato, para efeito deste trabalho, precede tecer
algumas consideraes preliminares. Primeiramente, a questo de que diante das vrias propostas
de definio encontradas na literatura sobre artesanato possvel elencar alguns elementos
comuns do que venha a ser artesanato, a saber: i) que o artesanato consiste num tipo de trabalho
fundamentalmente individual, o que no invalida a interveno de vrias pessoas durante o
processo de produo de determinados objetos; ii) que o artesanato deve produzir um objeto
novo, fruto da transformao de matrias-primas naturais e em pequena escala; iii) que tal
atividade seja capaz de demonstrar uma destreza e habilidade particular de quem a produz e,
desta forma, afastar-se de uma simples atividade manual; iv) que consiste em um processo de
produo pautado em tcnicas tradicionais e rudimentares.
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Em segundo lugar, a querela bastante interessante no campo do artesanato: a que versa
sobre a distino entre artesanato e trabalhos manuais. Com bem afirma Barroso Neto (2001), o
artesanato diferencia-se das atividades ditas manuais medida que as ltimas consistem em um
tipo de atividade fundamentalmente repetitiva que exige destreza e habilidade, contudo prescinde
de uma capacidade artstica e criativa, isto , destituda de um valor cultural23.
Nessa seara de discusso faz-se pertinente evocar a contribuio de Pinho (2002) quando
observa a existncia de artesanatos e o que ela denomina artesanato popular genuno.
Este ltimo consiste em produtos de qualidade, com identidade de origem e mercado de consumo, ainda que escassos [...], pela alta qualidade destes produtos, e em funo do amplo crescimento dos mercados de comercializao que a cada dia mais se interessam por produtos diferenciados e autnticos o artesanato popular tradicional tem plenas possibilidades de progresso (2002, p. 171).
Na outra ponta da discusso, encontra-se o que a autora denomina artesanatos que se
referem aos chamados trabalhos manuais que, segundo sua experincia e vivncia de campo
neste setor, indicam que por volta de 70% da populao dos artesos esto submetidos aos
chamados trabalhos manuais24.
O que se pode concluir desta discusso, conforme explicitado anteriormente, que todo
artesanato um trabalho manual, porm nem toda atividade manual pode ser considerada
artesanato. Neste sentido, para efeito deste trabalho, o artesanato ser considerado toda atividade
na qual se transforma matria-prima natural em produto, prioritariamente de forma manual,
executada em ambiente domstico ou em pequenas oficinas, postos de trabalho ou centros
associativos, utilizando tcnicas e meios (mquinas e ferramentas) de natureza rudimentar e
23 Faz-se pertinente esclarecer que embora tratando o artesanato como expresso do trabalho por conta prpria\ trabalho informal, no se desconhece a abordagem de artesanato pela sua dimenso artstica e como um bem simblico num mercado de bens simblicos (Bourdieu, 2004). Tal compreenso auxilia para elucidar a diferena entre artesanato e trabalho manual, haja vista que o artesanato uma pea material - resultado de um trabalho manual-, porm possuidor de um valor simblico, isto , tem um sentido, que pode ser diferente para quem faz a pea e para quem a consome. Num mercado de bens simblicos a troca de mercadorias vai para alm da dimenso material do objeto. 24 Para a autora, as pessoas envolvidas nos trabalhos manuais so assim concebidas: trata-se de mo-de-obra pouco qualificada tecnicamente, que encontrou como alternativa complementar de renda a atividade artesanal (PINHO, 2002, p. 171-172). Nesta mesma perspectiva, Barroso Neto (2001) tambm considera que uma atividade manual em geral uma ocupao secundria, utilizando-se o tempo disponvel ou ocioso, com o objetivo principal de complementar a renda familiar, enquanto o artesanato a atividade principal de que o produz. O principal valor agregado de um produto resultante de uma atividade manual o tempo e a pacincia empregados em sua confeco, sendo irrelevante ou secundrio seu valor cultural (2001, p. 4).
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tradicional, que no venham a abortar a criatividade e a habilidade individual e que o sujeito
produtor participe, diretamente, de todas ou quase todas as fases da confeco do produto.
Ao estabelecer critrios de identificao para os produtos considerados artesanais, tal
definio demarca o que pode ser concebido como artesanato, excluindo-se trabalhos manuais
outros que no se encaixam na citada definio. Assim sendo, devem ser excludos da concepo
de artesanato os trabalhos manuais desprovidos de uma dimenso cultural popular ou tradicional,
ou seja, aqueles que na totalidade seguem receitas ou modelos e, sem muita dificuldade, so
copiados, no possuindo uma identidade que assegure sua originalidade. , portanto, a partir
destas consideraes que se situa, por exemplo, o setor cermico como um tipo de artesanato
(conforme a definio anunciada acima) que se caracteriza por utilizar recursos naturais locais,
ter seus conhecimentos historicamente repassados por tradio oral ou aprendizado direto,
possuir um carter utilitrio ou funcional do produto, alm, claro, de consistir numa expresso
cultural e fator de identidade.
O artesanato pode ser observado e classificado de diversas maneiras, dependendo do
critrio tipolgico adotado: finalidade do produto, tipo de matria-prima25, importncia cultural26,
escala de produo27 etc.
interessante ressaltar que na maioria das tipologias para classificar o artesanato no se
observa uma separao entre artesanato e trabalhos manuais. No Mapeamento do Artesanato
Paranaense (1994), apesar de o ttulo referir-se a artesanato, encontram-se na sua classificao,
alm dos tipos mais comuns (artesanato popular, artesanato artstico, artesanato utilitrio),
categorias do tipo:
[...] Trabalhos Manuais - objetos confeccionados a partir de materiais diversos. Geralmente obedecem a receitas ou moldes e so facilmente copiados. Podem ser utilitrios ou decorativos. [...] Industrianato - objetos cuja matria-prima industrializada e sua produo feita em srie, utilizando, na maioria das vezes, moldes, formas ou mquinas. A criao pode ser direcionada por ondas temporrias de consumo. Sua cpia pode ser praticada, por no possuir identidades que garanta sua originalidade. Pode ser utilitrios ou decorativos (Paran, SEASC, 1994, p. 5).
25 As principais matrias-primas utilizadas no artesanato brasileiro so: barro, couro, fibras vegetais, fios (algodo, linho, seda), madeira, metais, pedra etc. 26 Tipos: arte popular, artesanato indgena, artesanato tradicional, artesanato conceitual, artesanato de referncia cultural, produtos tpicos (BARROSO NETO, 2001, p. 24-30). 27 Tipos: artesanato domstico (manualidades), artesanato utilitrio (semi-industrial), artesanato de grande escala (industrianato) (BARROSO NETO, 2001, p. 31-33).
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O que se pode inferir diante das diversas formas de tipologia do artesanato que, por um
lado, tem-se uma abordagem que no diferencia artesanato de trabalhos manuais, isto , como se
tratasse de uma mesma coisa; por outro, apesar de considerar tnue tal fronteira, distingue
artesanato de trabalhos manuais, conforme j elucidado anteriormente. Qual a repercusso destas
formas de percepo na elaborao de polticas pblicas para o setor? Por que o termo artesanato
vem se configurando num mote impessoal, num termo genrico, que se torna sinnimo de
trabalhos manuais? Por que a necessidade de designar artesanato um punhado de objetos que, sob
determinados critrios, no se adquam a tal termo? Ser que tal termo embota uma legitimidade
ao produto feito mo no mercado de consumo e assim tudo passa a ser encarado como
artesanato?
Aps tais consideraes sobre artesanato, deslocar-se-, a partir de ento, a ateno para a
compreenso da categoria trabalho por conta prpria.
Partindo do pressuposto de que existe uma segmentao na produo, tem-se que esta se
apresenta na forma variada de ramos, de processos produtivos e de trabalho, de maneiras de
organizar a produo e o trabalho, de postos de trabalho e atividades, bem como de
caractersticas, capacitaes e habilidades dos indivduos. Neste sentido, h diversas maneiras
pelas quais os indivduos participam da produo. Evidentemente que muitos fatores, de ordem
macro e micro, interferem no modo de participao dos indivduos no processo produtivo.
As formas de participao do indivduo na esfera produtiva, basicamente, podem ser
detalhadas da seguinte forma: empregador, empregado assalariado e trabalhador por conta
prpria. Considerando o que prope Cacciamali (1983), o trabalhador por conta prpria um
nvel intermedirio entre aquele que detm a propriedade dos meios de produo e seu comando
(proprietrio/empregador) e aquele que, desprovido dos meios de produo ou instrumentos de
trabalho, vende o que possui, ou seja, sua fora de trabalho (empregado assalariado).
A propsito do se concebe como trabalhador por conta prpria, no se pode deixar de
creditar obra de Prandi (1978)28 a referncia do tema. Como categoria, o conta prpria abriga
diferentes tipos de trabalhadores para os quais
28 O seu objetivo era analisar o papel dos trabalhadores por conta prpria em uma sociedade capitalista perifrica, como categoria articulada ao processo de acumulao e, portanto como elemento integrante do processo de reproduo da sociedade, sob o capital (PRANDI, 1978, p. 19).
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o desempenho de tarefas, no mbito da diviso social do trabalho, depende quase que exclusivamente do dispndio da fora de trabalho prpria a que se alia, muitas vezes, o uso da fora de trabalho de membros da famlia , necessitando de baixa ou quase nula capitalizao. So os artesos, os pequenos vendedores, notadamente ambulantes, os ocupados em servios de reparao e pequenos consertos, as prestadoras de servios pessoais [...] Completam a categoria [...] os profissionais liberais e os tcnicos no submetidos a assalariamento. (PRANDI, 1978, p. 25).
Para este autor, trabalhador por conta prpria era aquele que no possua qualquer
vnculo empregatcio, nem como empregado, nem como empregador. Por essa razo, ele se ope
ao trabalhador assalariado. Esclarece Prandi que tal oposio , sobretudo, o resultado de
maneiras distintas de insero na estrutura produtiva, nas quais tambm evidenciam como essas
duas categorias trabalhador por conta prpria e trabalhador assalariado esto submetidas ao
capital.
Com a consolidao do sistema capitalista, muitos apostaram no desaparecimento, seno,
uma significativa reduo da quantidade de trabalhadores por conta prpria. No entanto, o que a
prpria histria mostrou foi que o trabalhador por conta prpria permaneceu e se enredou nas
brechas do sistema de produo capitalista.
No conjunto dos trabalhadores por conta prpria h uma diferenciao importante que
precisa ser destacada: os trabalhadores por conta prpria regulares e os irregulares. So
trabalhadores por conta prpria regulares aqueles cujo trabalho no vivido temporariamente
pelo agente, assumindo a feio de trabalho autnomo regular29 [...] (1978, p. 33). Neste
segmento, segundo o autor, podem-se encontrar trabalhadores por conta prpria regulares que
exercem atividades de remunerao alta e de remunerao baixa. Os primeiros dizem respeito aos
pequenos proprietrios, comerciantes e profissionais liberais. Os segundos constituem-se de uma
massa humana inerme e pauperizada, agregada, no plano das condies de existncia, ao conta
prpria irregular, alimentando-se da promessa mais longnqua do salrio (1978, p. 34). So,
portanto, desprovidos de capital mnimo ou de habilitao profissional que possam modificar sua
condio de vida.
Por sua vez, os trabalhadores por conta prpria irregulares vivem uma situao de
trabalho instvel e precria, geralmente espera de um trabalho assalariado, projetando assim
como expectativa futura o assalariamento (1978, p. 33).
29 [...] o trabalhador por conta prpria, em situao regular, tende a enxergar-se como grupo independente dos interesses dos trabalhadores assalariados, podendo inclusive participar, no plano material, das camadas menos favorecidas (PRANDI, 1978, p. 33).
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A sobrevivncia do trabalhador por conta prpria est intimamente relacionada a duas
condies bsicas: i) estar em condies de produzir para o mercado, de posse de seus prprios
meios de produo; ii) seus produtos ou servios serem socialmente necessrios, isto , haver
demanda para aquele produto ou servio especfico.
O estudo sobre o trabalhador por conta prpria tenta mostrar que, apesar de este no se
constituir numa expresso de produo capitalista, ele tem uma funo socioeconmica, ao seu
modo, para o processo de acumulao e reproduo do sistema capitalista e que tal forma de
trabalho no aparece somente como uma alternativa ao assalariamento, mas como uma forma
complementar que possibilita aumentar o rendimento necessrio ao suprimento das necessidades
familiares haja vista a depreciao salarial. Desta forma, como atividade complementar, o
trabalho por conta prpria pode ser exercido como tarefa secundria por um trabalhador
assalariado ou por membros de sua famlia esposa e filhos.
Outro aspecto a ser considerado e mostrado por Prandi (1978) quanto ao rendimento
mensal dos trabalhadores por conta prpria. Em contraponto ao trabalhador assalariado,
argumenta que salrio e renda-trabalho correspondem a duas manifestaes distintas o suficiente
para demonstrar a diferena sociolgica entre trabalho assalariado e trabalho por conta prpria.
Ambos salrio e renda-trabalho fazem parte de classes diferenciadas de conceitos. O salrio
a expresso monetria da parcela de valor que paga ao trabalhador em troca da venda da sua
fora de trabalho [...] pertence ao mundo capitalista. (1978, p. 76). J a renda-trabalho a
expresso do valor produzido pelo desgaste da fora de trabalho do prprio proprietrio dos
meios de produo30 (1978, p. 76) e, em essncia, no pertence ao mundo capitalista. No
entanto, h algo que os une tanto salrio quanto renda-trabalho se materializam na forma de
dinheiro. Neste sentido, eles se reduzem, no mercado,
a uma mesma categoria, que permite comprar outras mercadorias e servios necessrios reposio e reproduo, em ambos os casos, da fora de trabalho consumida no processo de trabalho (...) Sob este aspecto o salrio e a renda-trabalho podem ser tomados como grandezas idnticas que expressam, igualmente, o meio objetivo pelo qual as necessidades prprias sobrevivncia podem ser satisfeitas (1978, p. 76).
30 No caso do trabalhador por conta prpria, podem estar sendo consumidos, alm da fora de trabalho do prprio responsvel, fora de trabalho de membros da famlia sem remunerao, bem como seus meios de trabalho (PRANDI, 1978, p. 82).
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Levando-se em conta que o trabalhador por conta prpria e o assalariado, ambos de
remunerao baixa, esto sujeitos, na sua vida cotidiana, em tese, s mesmas necessidades de
sobrevivncia, cabe interrogar se o trabalho por conta prpria, para seu agente, uma escolha ou
simplesmente uma imposio decorrente da escassez relativa de insero no mercado de
trabalho31. Essa dicotomia opo/imposio bastante relativa. Acredita-se que ambos os casos
so verdadeiros, claro, dependendo do grupo socioeconmico que se est considerando. H,
certamente, uma parcela de trabalhadores por conta prpria por escolha, em razo da no
adaptao ao trabalho subordinado, da expectativa de obter retornos maiores, por acreditar que o
conjunto de suas habilidades pouco valorizado pelo mercado formal. Para outra parcela, tal
forma de ocupao aparece como a sada para garantir a sobrevivncia, em funo de vrias
razes: natureza do seu trabalho (por exemplo, o artesanato); dificuldades de ingresso no
mercado de trabalho ou de reemprego formal; inatividade, como o caso de aposentados e
pensionistas que recebem rendas insatisfatrias. Em algumas situaes, o trabalho por conta
prpria assume uma posio de transio, ou melhor, de uma condio de espera para o
assalariamento.
O que importante para este estudo, no esboo dessas questes, independentemente de
escolha ou imposio, considerar que o trabalho por conta prpria, como bem afirma
Cacciamali (2002), uma categoria tpica do setor informal e, mais ainda, que se encontra
inserido no mercado de bens e servios, gerando uma ocupao com o objetivo de se auto-
empregar. Destaquem-se aqui os grupos que operam com um baixo ndice de produtividade em
relao s empresas capitalistas, que se caracterizam por possuir pouco capital,
conseqentemente a sua lgica de
atuao no mercado prende-se sobrevivncia, obteno de um montante de renda que lhes permita sua reproduo e de sua famlia, no tendo como meta explcita acumulao ou a obteno de uma rentabilidade de mercado, inclusive porque no possuem nem volume de capital nem de trabalho organizado [...] (2002, p. 6-7).
Diversas so as atividades possveis de serem realizadas pelo trabalhador por conta
prpria, no entanto, a mesma ocupao pode ser executada sob diversas gradaes e tipos de
locais e meios de trabalho que, acoplado a outros elementos, influenciam os requisitos
31 No Brasil, a partir dos anos de 1980, e especialmente nos anos de 1990, o setor informal vem recebendo um fluxo de trabalhadores em virtude da escassez de empregos no setor formal, especialmente bons empregos(CACCIAMALI, 2002, p. 7).
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necessrios, as condies de trabalho e os nveis de renda auferveis32 (CACCIAMALI, 1983, p.
64). Com o intento de captar essa diversidade, Cacciamali elaborou a seguinte classificao:
conta prpria com estabelecimento, conta prpria com ponto fixo e conta prpria sem ponto. O
conta prpria com estabelecimento est assim sistematizado:
i) o estabelecimento entendido como um local separado do domiclio, ou acoplado ao domiclio mas (sic) neste ltimo caso fisicamente e especificamente destinado ao trabalho; ii) a ajuda de membros da famlia computada, no caso de sociedade, como conta prpria com estabelecimento; no caso de trabalho subordinado ao conta prpria, como trabalhadores familiares com ou sem remunerao; iii) os ajudantes assalariados no podem superar o nmero de 4 e so computados como assalariados informais (...) A ajuda no exerccio da atividade deve se caracterizar como extenso do trabalho por conta prpria, sob forma de execuo. O conta prpria deve, obrigatoriamente, encerrar em si as atividades de produo e gesto do estabelecimento33 [...] (CACCIAMALI, 1983, p. 64-65).
Para o conta prpria com ponto, Cacciamali dispe o seguinte rol de caracterizaes:
i) ponto um local fsico no domiclio ou fora do domiclio destinado regularmente ao trabalho; ii) os critrios que caracterizam a ajuda como extenso do trabalho do produtor so os mesmos utilizados para o grupo anterior, contudo nessa categoria, em geral, predomina o trabalho familiar (1983, p. 65).
Preceitua a mesma autora, em relao ao conta prpria sem ponto: este conjunto de
trabalhadores no detm nem ponto, nem estabelecimento e dificilmente contam com ajudantes
(1983, p. 65).
Outra forma de abordagem do trabalho por conta prpria apresentada pela Pesquisa de
Emprego e Desemprego (PED)34. Segundo a PED, o trabalhador por conta prpria diz respeito
queles indivduos que trabalham em seu prprio negcio, sozinhos ou com scio(s), que
32 Uma cabeleireira, por exemplo, pode exercer sua atividade em um salo, em casa ou na residncia dos clientes; um vendedor ambulante pode realizar trabalho na rua em local pr-determinado ou deslocar-se pelas ruas ou pelas casas dos clientes. (CACCIAMALI, 1983, p. 64). 33 Se for observado que h um embrio de desagregao entre as atividades de execuo, realizadas pelos ajudantes, e de gesto e controle sobre os ajudantes, pelo conta prpria, esse passa a ser considerado pequeno proprietrio. (CACCIAMALI, 1983). 34 A Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) um levantamento domiciliar contnuo realizado mensalmente (desde 1984), na regio metropolitana de So Paulo, em convnio com a Fundao Sistema Estadual de Anlise de Dados (SEADE) e o Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Scio-Econmicos (DIEESE). Em parceria com rgos pblicos locais, a pesquisa foi implantada no Distrito Federal e nas regies metropolitanas de Porto Alegre, Recife, Salvador e Belo Horizonte.
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possuem ou no os instrumentos de trabalho de que se utilizam, podendo contar com a ajuda de
membros da famlia, ajudantes remunerados eventuais ou no mximo dois empregados
remunerados permanentes. De acordo com a definio da PED, o trabalho por conta prpria
incluiria, alm do trabalhador autnomo, os proprietrios de negcio familiar e os profissionais
universitrios autnomos. Destacando o caso do trabalhador por conta prpria autnomo, aquele
tipo que constitui o ncleo duro na caracterizao do setor informal, segundo a PED, h duas
formas de insero produtiva:
i) autnomo para o pblico: o indivduo que explora seu prprio negcio ou ofcio,
sozinho ou com scio(s), ou ainda com o auxlio de trabalhador(es) familiar(es) e, casualmente,
com algum ajudante remunerado, por prazo determinado. Neste segmento, o indivduo tem
autonomia para organizar o seu prprio trabalho, limitada apenas pelo mercado.
ii) autnomo para empresa: o indivduo que trabalha para determinada(s) empresa(s) ou
pessoa(s), porm no tem uma jornada de trabalho prefixada sob contrato e nem trabalha sob o
controle da empresa. Como o autnomo para o pblico, tem autonomia para organizar seu
prprio trabalho (horrio, forma de trabalho etc.).
Tratar o trabalhador por conta prpria como categoria analtica reconhecer a sua
capacidade explicativa para um determinado fenmeno particular, qual seja, a permanncia
(mesmo no mbito de uma sociedade que adota como modo de produo hegemnico, o
capitalista) de uma forma de insero produtiva que congenitamente nega a maneira capitalista de
produo. O trabalho por conta prpria, evidentemente, no faz parte das relaes de produo
capitalista, mas nem por isso pode tal tipo de trabalho estar situado fora do circuito capitalista de
produo. Ele no pode explicar-se seno como resultado do processo de acumulao capitalista.
Consoante as fontes em que se orienta este trabalho, chega-se considerao de que
trabalhador por conta prpria nomeia o indivduo que possui um negcio e ele prprio toma
conta dele, utilizando seus instrumentos de produo; que poder contar ou no com auxlio,
seja de familiares ou no, com ou sem remunerao, na extenso do seu prprio trabalho; que
poder exercer sua atividade em um estabelecimento, ponto ou mesmo sem local especfico para
tal (sem ponto). Considera-se finalmente que , portanto, dentro do universo trabalho por conta
prpria que o artesanato se inclui e se apresenta como uma de suas manifestaes porque se
refere a um tipo de organizao da produo que no se fundamenta no trabalho assalariado. Por
outro lado, o que vem a distingui-lo de outras formas de trabalho por conta prpria (vendedores
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ambulantes, pequenos comerciantes, prestadores de servios pessoais e de servios de reparao e
pequenos consertos, profissionais liberais etc) a especificidade do seu processo produtivo que
inclui aspectos bem particulares: i) apresenta-se como um trabalho predominantemente manual e
individual; ii) utiliza instrumentos e equipamentos rudimentares; iii) necessita de habilidade,
destreza e criatividade para a execuo do trabalho; iv) trata-se de uma produo de pequena
escala.
1.1 Trabalho por conta prpria como manifestao do mercado no-formalizado, do setor marginal e do setor informal
O processo de construo do mercado de trabalho no Brasil foi percorrido por uma
trajetria da qual se podem destacar, de acordo com Barbosa, trs momentos: o no-mercado de
trabalho do perodo colonial, a criao do mercado de trabalho no perodo de 1850 a 1930 e a sua
nacionalizao e consolidao a partir de 1930. Estas trs fases correspondem a momentos
distintos, porm, inter-relacionados, de uma experincia colonial de no-mercado de trabalho a
uma experincia capitalista de mercado de trabalho, obviamente intercalada por um perodo
(1850-1930) de transio lento e difcil, de configurao de relaes capitalistas de produo.
Desta forma, cabe afirmar que o mercado de trabalho no Brasil no surgiu inopinadamente, mas
padeceu de uma existncia incompleta e segmentada para somente se constituir e nacionalizar
aps-1930.
O mundo do trabalho na economia colonial apresentava a particularidade de um no-
mercado de trabalho, posto que no era dada aos seus atores principais os trabalhadores
escravos a condio de negociar a sua fora de trabalho. O escravo aparece enquanto
propriedade econmica e, sendo assim, no detm a propriedade de sua fora de trabalho. Esta
condio do escravo de ser propriedade de outrem inviabiliza, por completo, a existncia de um
mercado de trabalho, haja vista que este s existe quando o trabalhador vende sua fora de
trabalho. Ao lado dos cativos, havia um contingente de trabalhadores livres os desclassificados
sociais que, em funo do regime de escravido absorver quase a totalidade das atividades
produtivas, eram dispensveis dinmica socioeconmica da poca. Assim sendo, os principais
aspectos do mundo do trabalho na poca colonial e ps-independncia so: a) o setor
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predominante da mo-de-obra era assentado no trabalho escravo35; b) a existncia de uma
populao ativa livre, sendo que pouco mais de 1% pertenciam s elites dominantes coloniais36,
15% ao povo nobre37 e 30% ao povo mecnico38; c) a existncia de uma populao de homens
livres indigentes que vagavam pelas cidades e pelo interior39.
Em 1850, com o fim do trfico negreiro, tem incio o processo de desescravizao e
concomitantemente pululam as inquietaes a respeito da constituio da natureza da mo-de-
obra que ocupar o lugar dos escravos, ou seja, a passagem do trabalho escravo para o trabalho
livre. A interveno do poder pblico na formao do mercado de trabalho no Brasil comea,
desde ento, a partir da proibio efetiva do trfico de escravos (Lei Eusbio de Queirs, de 4 de
setembro de 1850) com a qual se estabeleceu um limite estrutural ao regime escravista. Tem-se,
pois, a partir desta Lei, o desencadear de um conjunto de polticas direcionadas a perpetrar um
processo de desescravizao lento e gradual como tambm para o disciplinamento do trabalho
livre40. Todo esse esforo destina-se a garantir a disponibilidade do trabalho. H de se ressaltar
35 Homens e mulheres que trabalhavam de 16 a 18 horas por dia, possuam vida til de em mdia 15 anos, cujas condies de vida e trabalho eram sub-humanas. Os castigos eram severos, as roupas inadequadas e as habitaes deficientes e pouco higinicas. As crianas comeavam a trabalhar com oito anos de idade, a mortalidade infantil atingia 88% e o nmero de escravos momentaneamente incapacitados variava de 10% a 25% do total, em virtude do desgaste e dos acidentes de trabalho corriqueiros. A sade ficava relegada s Santas Casas, que recolhiam os escravos invlidos, transformados para os fazendeiros em ativos dilapidados, incapazes de gerar renda ou status.Muitos proprietrios libertavam os seus escravos quando os custos de manuteno se elevavam frente a sua capacidade de trabalho. [...] aos escravos era vedado o acesso educao. Em 1872, dos cerca de 1,5 milho de escravos, pouco mais de mil eram alfabetizados, menos de 0,1% do total (BARBOSA, 2003, p. 68-69). 36 Nas cidades, eram compostas pelos corpos de magistratura, finanas, corporaes eclesisticas e militares- cujos membros viviam de salrios e emolumentos grandes comerciantes, prestigiosas profisses liberais como o direito e a medicina que viviam de honorrios. [...] aps a vinda da Corte para o Rio de Janeiro, proliferaram tpicas ocupaes de elite. Eram os cabeleireiros, modistas, mestre de danas e os professores de lngua, que preenchiam os empregos honorficos de carter secundrio (BARBOSA, 2003, p. 71). 37 destacava-se por no realizar nenhum ofcio infamante, devendo ostentar gastos e possuir escravos; fossem assalariados ou autnomos, aspiravam a fidalguia. Ao seu lado, existia uma pequena camada flutuante, que incorporava um certo prestgio professores, pequenos burocratas, contadores, parteiras [...] boticrios, msicos, capites de embarcao. Ainda havia os raros laboriosos que lograram uma situao confortvel [...] ourives, escultores, calafates, pedreiros, alfaiates, marceneiros e os vrios tipos de comerciantes varejistas (BARBOSA, 2003, p. 71). 38 [...] a ral, compondo um todo incoerente e heterogneo, onde o estigma de cor estava sempre a obstar a ascenso social. Viviam de jornais e dirias e se misturavam com os negros de ganho [...] compunha uma populao marginal, parcialmente inativa, concentrada nas cidades, sem classificao ou papel definido na reproduo do sistema colonial [...] composta de operrios e prestadores de servios de todo tipo (BARBOSA, 2003, p. 72). 39 No Brasil colonial, o pertencimento pobreza era diagnosticado a partir do ato de implorar caridade. Como a sociedade escravista mostrava-se inacessvel ao mundo do contrato, encontrava a sua razo de ser nas relaes de tutela. Desta forma, a atividade assistencial mostrava-se exclusiva dos incapacitados para os (sic) trabalho. Os demais eram encarados como vagabundos ou preguiosos por escolha e no devido ao carter compartimentado da estrutura produtiva e social (BARBOSA, 2003, p. 80). 40 Neste sentido, a Lei de Terras, de 1850, restringindo o acesso a terras por meio do seu encarecimento, a regulamentao da mo-de-obra escrava Leis do Ventre Livre (1871) e do Sexagenrio (1855) o controle sobre a
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aqui as idiossincrasias que reverteram esse processo nas regies Nordeste e Sudeste. Na primeira,
h uma territorializao da mo-de-obra, ao utilizar-se o ex-escravo e o antigo morador; na outra,
em funo da procura de trabalho advinda da lavoura do caf, importa-se o imigrante europeu.
Em razo desta heterogeneidade, verifica-se que, mesmo aps a Abolio, o mercado de trabalho
no Brasil apresenta-se incompleto e regionalizado. Tem-se, pois, experincias de relaes de
trabalho no-capitalistas recheadas com o autoritarismo dos patres e outras particulares do
sistema de colonato paulista de quase-assalariamento.
De acordo com Barbosa, o aparecimento do primeiro mercado de trabalho no-abortado
no Brasil constituiu-se, a partir do deslocamento do capital cafeeiro para o setor industrial,
durante as primeiras dcadas do sculo XX, na cidade de So Paulo. Tal mercado de trabalho
nascente caracteriza-se pela ausncia de direitos trabalhistas, instabilidade ocupacional, exrcito
de reserva prvio e elstico ainda no criado pelo capital, mas utilizado por este , exibindo
contingentes de trabalhadores que executavam atividades irregulares ou se alinhavam s
condies de pauperismo, proletarizao do conjunto da famlia recorrendo-se ao trabalho
infantil e de mulheres e flexibilidade salarial , reduo e expanso do nmero de horas
trabalhadas, bem como o pagamento do salrio por pea.
O crescimento em termos quantitativos e qualitativos do incipiente mercado de trabalho
estava, pois, na dependncia de uma transformao de escala e de escopo da prpria reproduo
do capital. A nacionalizao do mercado de trabalho brasileiro como tambm sua territorializao
permanente ps-1930 dependeriam das novas imposies criadas pela reproduo ampliada do
capital em mbito nacional, entre elas a constituio de um rol de direitos trabalhistas e sociais e
as migraes internas, as quais possibilitaram a criao de uma superpopulao relativa, neste
momento gestada para e pelo capital.
A regulao do trabalho41 perpetrada pelo Estado Nacional, calcada em bases autoritrias,
esterilizando a ao sindical, aconteceu de forma fragmentadora, pois
mo-de-obra livre (por meio da lei de Alocao de Servios de 1879), alm das leis provinciais relacionadas s diversas modalidades de subsdio imigrao, foram engendrando modos peculiares de insero num mercado de trabalho emergente possvel para os vrios grupos sociais ex-escravos, antigos libertos, imigrantes e trabalhadores livres nacionais (BARBOSA, 2003, p. 111). 41 A obra reguladora estaria completa em 1942, com a aprovao da CLT e a fixao do salrio mnimo (1940). Com a criao da Justia do Trabalho, desviaram-se paulatinamente os operrios das lutas de rua, tornando-se a justia social um negcio burocrtico, e acarretando a morte da vida poltica, ao menos se nos ativermos s aspiraes de manifestao ativa por parte dos sindicatos (BARBOSA, 2003, p. 271).
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assegurava quando muito a reproduo truncada da maior parte da classe trabalhadora, bem como a manuteno de um subproletariado que mantinha vnculos de subordinao indireta com capital ou ento vivia da realizao de atividades eventuais e precrias, as quais no conformavam um estatuto do trabalho e nem conferiam reconhecimento social (BARBOSA, 2003, p. xvi).
Ao se reviver brevemente o processo de construo do mercado de trabalho no Brasil,
observa-se que o sistema capitalista de produo, ao se expandir, penetrar e dominar diversos
setores da economia coloca um problema importante: como a fora de trabalho ser integrada no
processo produtivo tipicamente capitalista. A tendncia, como foi mostrada pelo tempo atravs de
formas histricas desde o aparecimento do sistema de manufaturas e depois com a grande
indstria foi de universalizar o trabalho assalariado. No entanto, o prprio tempo e as
formaes histricas tambm mostraram outra tendncia, qual seja, a de que na mesma lgica que
traz o trabalho assalariado, vem, articuladamente, mecanismos de criao de desemprego e de
outras maneiras de insero produtiva subemprego, trabalho por conta prpria, etc. Nestes
termos, postula-se que a tendncia estrutural e orgnica do capitalismo em produzir
permanentemente um contingente excedente de trabalho, conforme indicado por Marx, ,
indubitavelmente, o fator mais importante de estruturao das relaes entre capital e trabalho.
Como possvel observar, o mundo do trabalho, nos moldes do sistema capitalista de
produo, dispe, preliminarmente, de dois contingentes de trabalhadores: os inseridos e os no-
inseridos. Os inseridos so aqueles incorporados ao mercado regulamentado de trabalho. Os no-
inseridos correspondem aqueles no incorporados, os que se encontram margem, excludos do
mercado regulamentado de trabalho. Faz-se oportuno esclarecer, para fim desta argumentao, a
compreenso de que o sistema capitalista, por sua prpria natureza constitutiva, possui um carter
no-universalizante de insero social. Desta forma, atribui-se a tal carter o fato de existir
sempre, em menor ou maior proporo, um contingente de trabalhadores no incorporados ao
mercado formal de trabalho, o que vem a traduzir a natureza excludente e segmentadora do
mercado de trabalho no sistema capitalista de produo.
De acordo com o exposto, o processo de construo do mercado de trabalho no Brasil,
segundo os ditames do sistema capitalista de produo, obedeceu a uma lgica estrutural
particular a tal sistema de produo, na qual possvel criar e reproduzir contingentes de
trabalhadores na condio de incorporados e no-incorporados ao sistema. Essas duas condies
apresentaram-se e ainda continuam vivas e atuantes desde a construo (a partir de 1850),
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regulao (ps-1930) e desestruturao (a partir de 1980) do mercado de trabalho brasileiro.
Obviamente que, em cada momento desses, a situao de incorporao, semi-incorporao e no-
incorporao assume contornos dinmicos quantitativa e qualitativamente diferenciados. O
que preciso reter para fins desta anlise que o sistema capitalista de produo, em razo de sua
gentica, representa um modo de produo no-universalizante e gerador de excluso. Isso em
razo da sua dinmica de acumulao que tende a dispor de uma quantidade excedente de fora
de trabalho. Em outras palavras, a existncia de uma quantidade de excedente de mo-de-obra no
capitalismo pode ser explicada a partir da dinmica geral de funcionamento da economia
capitalista42. Cabe salientar que contra essa tendncia que as experincias das polticas de
pleno emprego no ps-guerra foram construdas e obtiveram importante xito durante os anos de
ouro do capitalismo (GIMENEZ, 2001, p. 95).
No caso brasileiro, h ainda algumas questes a serem consideradas no que diz respeito ao
seu processo de industrializao, particularmente ao perodo do chamado desenvolvimentismo.
No muito diferente do que aconteceu na Amrica Latina, foi experimentado pela nao
brasileira um processo de industrializao parcial e dependente. Parcial no sentido de que no
atingiu de forma homognea a maioria dos setores produtivos; dependente em razo de sua
posio submissa em relao aos pases centrais ou avanados. Tal dependncia, com o passar
dos tempos e conjunturas, vai assumindo novos vieses. De acordo com a teoria da dependncia
(CARDOSO, 1977), no incio da fase de industrializao, o processo de dependncia se
manifestava atravs da exportao de matrias-primas e produtos agrcolas e importao de
produtos manufaturados. Tal situao permitia que os pases centrais impusessem limites
industrializao no pas. Quando o setor industrial passou a se constituir de um plo hegemnico
da economia, com a instituio da poltica de substituio de importaes, o que favoreceu a
implantao de um parque industrial nacional, a dependncia assumiu outro contorno. A partir
da, com a instalao do capital estrangeiro nos pases perifricos investindo nos setores
dinmicos da economia, a dependncia se efetua atravs da ingerncia do capital estrangeiro no
pas.
42 Para Marx, a tendncia estrutural e orgnica do modo de produo capitalista em produzir permanentemente um quantum excedente de trabalho , indubitavelmente, o mais importante fator de estruturao das relaes entre capital e trabalho (MARX, 1987).
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O desenvolvimento do capitalismo na Amrica Latina obedeceu, como fora visto, uma
dinmica bastante distinta daquela ocorrida nos pases avanados43. Aqui se tem em conta um
tipo de desenvolvimento (ou subdesenvolvimento) que tem por caracterstica ser superexcludente,
como tambm estar articulado criao e permanncia de relaes de produo de contornos
arcaicos. Tais fenmenos foram inerentes ao desenvolvimento do capitalismo latino-americano.
A explicao para esse tipo de capitalismo ser caracterizado como superexcludente est
justamente amparada no fato de que o ndice de dinamismo industrial de algumas economias
latino-americanas, aps a Segunda Grande Guerra Mundial, gerou um reduzido nmero de
empregos industriais. Uma das razes para isso foi a utilizao de uma tecnologia poupadora de
mo-de-obra.
Quanto outra caracterstica, a de criao e manuteno de relaes de produo de vis
arcaico, observa-se que, em alguns pases, as formas tradicionais de produo no tipicamente
capitalistas, a saber, economia de subsistncia, artesanato e indstria em domiclio, no foram
desarticuladas, outrossim, foram mantidas, assim como originaram novas formas de trabalho que
se inseriram na diviso social do trabalho com carter no tipicamente capitalista, no caso, os
trabalhadores por conta prpria do setor tercirio. No Brasil, o processo de industrializao sofreu
das mesmas agruras que acometeu o continente latino-americano tardio, dependente e
instaurador de uma modernizao conservadora.
importante realar nesta anlise que a industrializao na Amrica Latina, na tica do
mercado de trabalho teve repercusses bastante significativas. Apesar da expanso da capacidade
produtiva da grande indstria nos centros urbanos, o nmero de empregos gerados no obedeceu
mesma proporo, ou seja, a quantidade de vagas criadas no setor foi limitada44. Soma-se a esta
43 O processo de industrializao da Europa em relao ao latino-americano apresenta vrias diferenas importantes. Uma delas de ordem demogrfica: as taxas de crescimento populacional eram bem mais reduzidas do que no perodo da industrializao na Amrica Latina, nos anos 40-50 e tambm as migraes internacionais que iniciaram de forma macia durante o sculo XIX. [...] uma sociedade que apresenta uma taxa de incremento demogrfico diminuta e que exporta excedente populacional, pode, em princpio, diminuir o montante de desocupados ou subempregados (KOWARICK, 1975, p. 63-4). Outro elemento a ser considerado, que se articula com o primeiro, o fato da industrializao europia realizada no sculo XIX no ter produzido um processo migratrio campo-cidade na proporo do que aconteceu na Amrica Latina. Porm, a questo central que o tipo de industrializao que comeou pelo sculo XIX na Europa baseou-se numa tecnologia de uso extensivo capaz de absorver um nmero bem maior de mo-de-obra do que o tipo verificado nos pases latino-americanos no seu processo de industrializao. Aqui a tecnologia j poupadora de fora de trabalho. 44 oportuno esclarecer que, nos anos de 1940, houve um destacado incremento dos empregos industriais em razo, dentre outras, da cessao do processo de substituio tecnolgica devido Segunda Grande Guerra. Em funo deste fato e da elevada procura por produtos industrializados, houve um crescimento do setor secundrio com o aumento do nmero de empregos industriais. Nos anos de 1950, com a utilizao de uma tecnologia poupadora de
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questo a elevada migrao campo-cidade, a favelizao, o desemprego e subemprego, a pauprie
que passa a compor o retrato dos grandes ncleos urbanos. Tem-se, pois, a partir de tal cenrio,
um problema, sendo este o ponto bsico para compreender o fenmeno da marginalidade urbana:
[...] de um lado, as transformaes que ocorrem nas zonas rurais, cuja populao acorre s
cidades, e de outro a baixa capacidade de absorver a fora de trabalho em relaes de produo
tipicamente industriais [...] (KOWARICK, 1975, p. 72). Desta forma, a marginalidade urbana
configura-se quando o processo de industrializao ganha impulso na medida em que seu avano
se opera atravs da tecnologia poupadora de mo-de-obra, num quadro de concentrao e
centralizao econmica cada vez mais decorrentes da dinmica das grandes redes monopolistas
(1975, p. 73).
A realidade socioeconmica que construda a partir de tais elementos vislumbra uma
problemtica que est diretamente relacionada marginalidade urbana, que aquela que trata das
modalidades de insero na diviso social do trabalho. Como a ateno deste estudo recai sobre o
trabalho por conta prpria, tentar-se- localiz-lo partindo de trs estudos que envolvem a
problemtica da no incorporao, porm abrigado em categorias analticas de nomenclaturas
diferenciadas, a saber: mercado no-formalizado, trabalhador marginal e setor informal.
A primeira abordagem recupera o trabalho de Silva (1971) sobre Mercados
Metropolitanos de Trabalho Manual e Marginalidade45. A discusso sobre a marginalidade
tangencial ao que se prope o autor. Este terico reconhece que seu trabalho aborda um tema
presente no pensamento sociolgico latino-americano da poca, a marginalidade ou processo de
marginalizao46, no entanto, este tema se constitui num assunto muito controvertido, no s
mo-de-obra, a criao de empregos industriais sofre uma reduo considervel. J nas dcadas de 1960-1970 h de novo um incremento na taxa de empregos industriais. J nas dcadas de 1980 e 1990, o desemprego comea assumir nveis alarmantes, chegando ao pico, em 1999, quando tal ndice chegou a superar 20% da populao economicamente ativa, isto , mais de 10 milhes de brasileiros (MATTOSO, 2001). 45 Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1971, com a proposta de elaborar um modelo das situaes concretas de trabalho e das condies de organizao do mercado, assumindo como perspectiva a posio dos prprios trabalhadores (SILVA, 1971, p. 6). 46 Na Amrica Latina, foi a partir da Segunda Grande Guerra que o tema da marginalidade urbana surgiu como problema terico e prtico. Com a acelerao das migraes internas, as populaes migrantes passaram a ocupar a periferia das grandes cidades ou suas reas decadentes, originando o que se convencionou chamar bairros marginais.Uma primeira abordagem sobre marginalidade a relacionou com a situao precria das habitaes a que estavam submetidos tais grupos sociais. Desta forma, tal abordagem ganhou contornos de uma problemtica fsico-ecolgica, isto , limitava-se questo de um espao geogrfico, as favelas. Uma segunda abordagem, alm de contemplar a questo fsico-ecolgica, incorpora outro aspecto que a situao de vida desses grupos que habitavam essas reas mundo da pobreza autnomo, em outras palavras, a suposta vivncia dos moradores dos bairros marginais de situaes de vida homogneas que os distinguissem dos vrios segmentos dispostos na base da pirmide social,
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devido complexidade do objeto que em ltima instncia o prprio processo de
desenvolvimento, mas tambm porque, como rea particular de preocupao, relativamente
recente (1971, p. 3).
Para Silva (1971), o mercado apresenta-se determinado por dois tipos de empregador: a
empresa47 e o individuo48 e, como efeito, o mercado de trabalho organiza-se em dois subsistemas
denominados, por oposio: mercado formal (MF) e mercado no-formalizado (MNF). A
caracterstica essencial do MF a proteo legal do emprego que ele assegura. J no MNF, o
trao bsico a distribuio de riscos, atravs da multiplicao de fornecedores de ocupaes
remuneradas (1971, p. 14). Cabe pontuar que, neste contexto, o fato de que o trabalhador n