2009 - mingst karen-princípios de relações internacionais-capítuloii

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  • 1001076656

    KAREN A. MINGST

    PRINCPIOS DE

    RELAES INTERNACIONAIS

    Traduo Arete Simille Marques

    Reviso Tcnica Janina Onuk

    Instituto de Relaes Internacionais da USP

  • Do original: Essentials of International Relations Traduo autorizada do idioma ingls da edio publicada por Norton e Company, Inc. Copyright 2008, 2004, 2002, 1999 by W. W. Norton & Company, Inc.

    2009, Elsevier Editora Ltda. - -

    Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei n^ 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorizao prvia por escrito da editora, poder ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrnicos, mecnicos, fotogrficos, gravao ou quaisquer outros.

    Copidesque: Ivone Teixeira Reviso: Marco Antnio Corra Editorao Eletrnica: Estdio Castel lani

    Elsevier Editora Ltda. Rua Sete de Setembro, 111 -16= andar 20050-006 - Centro - Rio de Jane i ro -RJ - Brasi l Telefone: (21) 3970-9300 Fax: (21) 2507-1991 E-mail: in [email protected] Escritrio So Paulo Rua Quintana, 753/8= andar 04569-011 - Brookiin - So Paulo - S P Tel.: (11)5105-8555

    ISBN 978-85-352-3153-3 Edio original: ISBN 978-0-393-92897-6

    Nota: Muito zelo e tcnica foram empregados na edio desta obra. No entanto, podem ocorrer erros de digitao, impresso ou dvida conceituai. Em qualquer das hipteses, solicitamos a comunicao nossa Central de Atendimento, para que possamos esclarecer ou encaminhar a questo.

    Nem a editora nem o autor assumem qualquer responsabi l idade por eventuais danos ou perdas a pessoas ou bens, originados do uso desta publicao.

    Central de atendimento Tel.: 0800-265340 R u a Sete de Setembro, 111,16 andar - Centro - R io de Janeiro e-mail: [email protected] site: www.campus.com.br

    CIP-Bras i l . Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, R J

    M576p Migst, Karen A. , 1947-Princpios de relaes Internacionais / Karen M ings t ; [traduo Arete Simille Marques], - R io de Janeiro : Elsevier, 2009.

    il.

    Traduo de: Essent ials of International relations, 4th ed. ISBN 978-85-352-3153-3

    1. Relaes internacionais. I. Titulo.

    08-3458. C D D : 327 C D U : 327

  • o contexto histrico das relaes i internacionais contemporneas A

    Quais perodos histncos mais influenciaram o desenvolvimento das relaes internacionais?

    Quais so as origens histricas do Estado?

    Por que o Tratado da Westphalia usado como um padro de comparao para os estudiosos das relaes internacionais?

    Quais so as origens histricas do sistema europeu de equilbrio de poder?

    Como a Guerra Fria pde ser uma srie de confrontaes entre os Estados Unidos e a Unio Sovitica e uma "longapaz"?

    Quais fjram os eventos essenciais que moldaram o mundo ps-Guerra Fria?

    El studantes de relaes internacionais precisam entender os eventos e tendncias I do passado. Os tericos reconhecem que os conceitos essenciais da rea - Estado, .inao, soberania, poder, equilbrio de poder - foram desenvolvidos e moldados por circunstncias histricas. Os polticos pesquisam o passado em busca de padres e precedentes para guiar as decises contemporneas. Grande parte dos antecedentes mais importantes do sistema internacional contemporneo encontra-se na civilizao ociden-tal centrada na Europa.

    Grandes civilizaes prosperaram em outras partes do mundo tambm, claro: ndia e China, entre outras, eram civilizaes extensas e vibrantes muito antes dos eventos his-tricos que estudaremos a seguir. Mas a nfase na Europa justifica-se porque as relaes internacionais, na teoria e tambm na prtica, por bem ou por mal, tm suas razes na experincia europia. Neste captulo, estudaremos em primeiro lugar o perodo ante-rior a 1648 (um ano seminal para estudantes de relaes internacionais), em seguida o mundo ps-westphaliano depois de 1648, ento a Europa do sculo XIX e, por fim, as importantes transies ocorridas no sculo X X .

    A finalidade dessa reviso histrica geral remontar s origens de importantes ten-dncias ao longo do tempo - o surgimento do Estado e da noo de soberania, o desen-volvimento do sistema internacional de Estados e as mudanas na distribuio de poder entre os principais Estados. Essas tendncias causam um impacto direto na teoria e na prtica das relaes internacionais de hoje.

  • 16 I P R I N C P I O S D E R E L A E S I N T E R N A C I O N A I S

    O mundo pr-westphaliano Muitos tericos das relaes internacionais marcam o incio do sistema contemporneo em 1648, o ano do Tratado da Westphalia, que encerrou a Guerra dos Trinta Anos. Esse tratado marca o final do domnio da autoridade religiosa na Europa e o surgimento de autoridades seculares. Com a autoridade secular veio o princpio que proporcionou o alicerce para as relaes internacionais desde ento: a noo da integridade territorial dos Estados - participantes juridicamente iguais e soberanos do sistema internacional. O sistema grego de cidades-Estado, o Imprio Romano e a constante variao entre cen-tralizao e descentralizao da Idade Mdia so, cada um, desenvolvimentos essenciais que levaram nova ordem westphaliana.

    Grcia e o sistema de interaes cidade-Estado

    Os gregos, organizados em cidades-Estados independentes, estavam no auge de seu poder em 400 a.C. e dedicavam-se clssica poltica do poder, como catalogado por Tucdides na Histria da Guerra do Peloponeso. Enquanto os militares das grandes ci-dades-Estados lutavam, os Estados cultivavam relaes econmicas e comerciais entre

    Grcia, 450 a.C.

  • o C O N T E X T O H I S T R I C O D A S R E L A E S I N T E R N A C I O N A I S . . . I 17

    si em um grau sem precedentes. Esse ambiente claramente promoveu o florescimento da forte tradio filosfica de Plato e Aristteles, que estudamos no Captulo 1. Nesse ambiente, as cidades-Estados - cada qual uma unidade independente - cultivavam rela-es pacficas entre si e, ao mesmo tempo, disputavam o poder - precursor do moderno sistema de Estados.

    Roma: o governo de um imprio

    A certa altura, muitas das cidades-Estados gregas foram incorporadas pelo Imprio Romano (50 a.C.-400 d.C) . O Imprio Romano serviu como precursor para siste-mas polticos mais amplos. Seus lderes impunham ordem e unidade pela fora em uma grande extenso geogrfica, abrangendo grande parte da Europa, as pores me-diterrneas da sia, o Oriente Mdio e o norte da frica. Aps conquistarem povos longnquos e diversos, os lderes romanos tratavam de manter as vrias unidades - tri-bos, reinos e Estados - dentro de sua esfera de influncia e garantir que as fronteiras fluidas do imprio permanecessem seguras contra as hordas brbaras do norte e do les-te. De fato, a prpria palavra imprio, do latim imperium, vem da experincia romana. Os lderes impunham vrias formas de governo, de procnsules romanos a burocratas e administradores locais, disseminando a lngua latina at os confins do imprio. Ado-

    O Imprio Romano, 117 d.C.

  • 18 I P R I N C P I O S D E R E L A E S I N T E R N A C I O N A I S

    tavam a prtica de conceder cidadania romana a povos livres em toda a extenso do imprio e, ao mesmo tempo, davam aos governantes locais considervel autonomia para organizar seu prprio domnio.

    Os filsofos romanos forneceram as escoras tericas essenciais ao imprio, bem como futura teoria das relaes internacionais. Em particular. Marco Tlio Ccero (106-43 a.C.) ofereceu um mecanismo para unir as vrias partes do imprio. Ele props que os homens deveriam ser unidos por uma lei entre naes aplicvel humanidade como um todo. Mas essa lei entre naes no impediu Ccero de oferecer mais conselhos prticos aos lderes de Roma: ele enfatizou a necessidade de manter a segurana do Estado expandin-do recursos e fronteiras e, ao mesmo tempo, garantindo a estabilidade interna.^ Acima de tudo, o prprio Imprio Romano e os escritores que gerou forneceram o alicerce para uma entidade geogrfica mais ampla cujos membros, embora conservassem identidades locais, estavam unidos por meio da centralizao do poder.

    A Idade Mdia: centralizao e descentralizao

    Quando o Imprio Romano desintegrou-se no sculo V d .C, o poder e a autoridade tornaram-se descentralizados na Europa, mas outras formas de interao floresceram: viagem, comrcio e comunicao, no apenas entre as elites, mas tambm entre grupos de mercadores e cidados comuns. No ano 1000, trs civilizaes tinham emergido dos escombros de Roma. A primeira foi a civilizao rabe, que possua a maior expanso geogrfica, estendendo-se do Oriente Mdio e Prsia Pennsula Ibrica, passando pelo norte da frica. Unida sob o domnio religioso e poltico do califado islmico, pela lngua rabe e por seus talentos tcnicos e matemticos avanados, a civilizao rabe era uma fora potente. A segunda foi o Imprio Bizantino, localizado mais prximo do ncleo do antigo Imprio Romano em Constantinopla e unido pelo cristianismo. A terceira foi o restante da Europa, onde, com a derrocada do Imprio Romano, a autori-dade central no existia, as lnguas e culturas proliferavam e as redes de comunicao e transporte desenvolvidas pelos romanos estavam comeando a se desintegrar.

    Grande parte da Europa Ocidental reverteu a domnios feudais controlados por se-nhores e vinculados a feudos autorizados a elevar impostos e exercer autoridade jurdica. Os senhores feudais exerciam controle sobre vassalos que trabalhavam para eles em troca do direito de trabalhar a terra e receber proteo. O feudalismo, que colocava a autorida-de na mo de particulares, foi a resposta desordem predominante. Poder e autoridade estavam localizados em nveis diferentes e sobrepostos.

    A instituio preeminente durante o perodo medieval na Europa era a Igreja; prati-camente todas as outras instituies eram de origem local e prtica. Assim, a autoridade estava centralizada em Roma (e em seus agentes, os bispos, dispersos por toda a Europa medieval) ou no feudo local. Ainda assim, mesmo os bispos detinham considervel au-toridade independente, apesar de sua fidelidade abrangente Igreja. A vida econmica tambm era intensamente local.

    No final do sculo VIII, o monoplio do poder pela Igreja foi desafiado por Carlos Magno (742-814), o lder dos francos onde hoje a Frana. Carlos Magno recebeu

  • Os trs imprios do incio d a Idade Mdia

  • ZO I P R I N C P I O S D E R E L A E S I N T E R N A C I O N A I S

    autoridade para unir a Europa Ocidental em nome do cristianismo contra o Imprio Bizantino no leste; o papa o sagrou imperador do Sacro Imprio Romano. Em troca, Carlos Magno lhe ofereceu proteo. A luta entre autoridade religiosa e secular e o de-bate sobre qual deveria governar continuaria por centenas de anos e, periodicamente, alguns escritores externavam suas vises sobre o assunto. Um desses escritores foi Dante Alighieri (1265-1321), que argumentou em Sohre a monarquia que deveria haver uma separao estrita entre a Igreja e a vida poltica.^ Essa questo s foi resolvida trezentos anos mais tarde, no Tratado de Westphalia.

    O Sacro Imprio Romano em si era uma instituio secular fraca; como diz uma famo-sa citao, no era nem muito sagrado nem muito romano e nem muito imprio. Ainda assim, os sucessores de Carlos Magno deram Igreja uma alternativa secular limitada. Contudo, as contradies permaneciam: o desejo de universalismo da Igreja contra a reali-dade medieval de pequenas autoridades, diversas e fragmentadas. Essas pequenas unidades, em grande parte desconectadas umas das outras, com populaes dispersas, serviram para impedir o estabelecimento de uma autoridade governamental centralizada.

    Tendncias semelhantes de centralizao e descentralizao, integrao e desinte-grao poltica tambm estavam ocorrendo em outras reas geogrficas. Na frica, por exemplo, o antigo Reino de Gana (no confundir com o Estado contemporneo) cen-tralizou o poder entre os sculos V e XIII, e nos sculos XIII e XIV o Reino de Mali prevaleceu. Eram poderosos territrios polticos e econmicos; tinham sofisticados sis-temas de arrecadao de impostos e serviam como importantes centros comerciais para os muulmanos do norte da frica, comerciando ouro e sal com seus vizinhos rabes. Ambos eram imprios com exrcitos permanentes, mas designavam governantes tra-dicionais para os distritos longnquos. E, do outro lado do globo, na Amrica Latina, floresceram civilizaes independentes - os maias, de 100 a 900, e os astecas e incas, a partir de 1200.

    O Japo representou outro pas onde a centralizao veio aps um perodo de con-flito armado e autoridade descentralizada. Ao passo que os sculos X V e XVI foram caracterizados em grande parte por tumulto, seguiu-se um perodo de duzentos anos de controle mais centralizado. Durante o perodo Tokugawa, de 1603 a 1868, o Japo foi comandado por um shogun. Foi um perodo de estrita hierarquia de classe, comandado pela casta guerreira dos samurais, seguida por fazendeiros, artesos e comerciantes. Em-bora ocorressem inquietudes e violentas confrontaes em razo das condies econmi-cas desiguais, nenhum desses eventos representou uma ameaa direta ao sistema feudal estabelecido. Contudo, em cada regio, foi a interveno dos europeus que, nos sculos seguintes, desafiou essa ordem.

    Idade Mdia tardia: desenvolvimento de redes transnacionais na Europa e alm

    Embora o debate intelectual ainda no estivesse resolvido, depois do ano 1000 as ten-dncias seculares comearam a solapar a descentralizao do feudalismo e a universaliza-o do cristianismo na Europa. A atividade comercial expandiu-se para reas geogrficas

  • o C O N T E X T O H I S T R I C O D A S R E L A E S I N T E R N A C I O N A I S . . . I 21

    maiores medida que os mercadores comerciavam ao longo de rotas de transporte cada vez mais seguras. Todas as formas de comunicao melhoraram. Novas tecnologias, como moinhos de gua e moinhos de vento, no somente facilitaram a vida diria, mas tambm proveram a primeira infra-estrutura elementar de suporte para economias agr-rias. As municipalidades, como as revigoradas cidades-Estados do norte da pennsula itlica - Gnova, Veneza, Milo, Florena - , estabeleciam relaes comerciais mon-tando locais de encontro em reas estratgicas, cuidando da expedio de artigos co-merciais e at mesmo concordando em seguir certas prticas diplomticas para facilitar as atividades comerciais. Essas prticas diplomticas - estabelecimento de embaixadas com pessoal permanente, envio de cnsules especiais para dirimir questes comerciais e envio de mensagens diplomticas por meio de canais especialmente protegidos - foram as precursoras imediatas da prtica diplomtica contempornea.

    Essas mudanas econmicas e tecnolgicas levaram a mudanas fundamentais nas rela-es sociais. Em primeiro lugar, surgiu um novo grupo de indivduos - uma comunidade transnacional de negcios - cujos interesses e existncia estendiam-se para alm de sua localizao imediata. Esse grupo adquiriu mais experincias cosmopolitas fora do reinado da Igreja e de seus ensinamentos, que at ento tinham dominado a educao com tanta

    Europa, 1360

  • 22 I P R I N C P I O S D E R E L A E S I N T E R N A C I O N A I S

    abrangncia. Os membros individuais desenvolviam novos interesses pela arte, filosofia e histria e, ao mesmo tempo, adquiriam considervel riqueza econmica.

    Eles acreditavam em si mesmos e tornaram-se os individualistas e humanistas da Re-nascena. Em segundo lugar, escritores e outros indivduos redescobriram a literatura e a histria clssicas, e encontraram sustento e revelao intelectual no pensamento grego e romano.

    O filsofo italiano Nicolau Maquiavel (1469-1527), mais do que qualquer outro es-critor, ilustra as mudanas que ocorriam e o fosso que resultou entre o mundo medieval da Igreja e as instituies seculares. Em O prncipe, Maquiavel elucidou as qualidades de que um lder necessita para manter a fora e a segurana do Estado. Percebendo que o sonho da unidade sob o cristianismo era inalcanvel (e provavelmente indesejvel), Maquiavel conclamou os lderes para que articulassem seus prprios interesses polticos. Ele argumentou que, no havendo nenhuma moralidade universal para gui-los, os lde-res devem agir no interesse do Estado sem acatar nenhuma regra moral. Desse modo, a ciso entre a religiosidade dos tempos medievais e o humanismo do final da Renascena foi cruamente esboada.^

    O desejo de expandir ainda mais as relaes comerciais, aliado s in-venes tecnolgicas que tornaram a explorao ocenica mais segura, alimentou um perodo de expanso territorial europia. Indivduos da Espanha e Itlia estavam entre os primeiros desses aventureiros - Cris-tvo Colombo viajou para o Novo Mundo em 1492, Hernn Cortez para o Mxico em 1519, Francisco Pizarro para os Andes em 1533, e todos eles destruram as ordens ind-genas. Durante essa era de explora-o, a civilizao europia espalhou-se para terras distantes. Para alguns tericos so esses eventos - a incor-porao gradual das reas perifricas

    Enn F o c o

    DESENVOLVIMENTOS DECISIVOS ANTES DE 1648

    A soberania das cidades-Estados gregas atinge o auge de seu poder em 400 a.C.; elas executam funes cooperativas por meio de diplomacia e da clssica poltica do poder. O imprio Romano (50 a.C.-400 d.C.) origina o imperialismo, desenvolvendo a prtica da expanso do alcance territorial. O imprio unido pela lei e pela linguagem, porm pennite alguma identidade local. A Idade Mdia (400-1000) testemunha a centralizao da autoridade religiosa na igreja, com descentralizao na vida poltica e econmica. A Idade Mdia tardia (1000-1500) promove o desenvolvimento de redes transnacionais durante a era da explorao.

    subdesenvolvidas economia capita-lista mundial e ao sistema capitalista internacional - que marcam o incio da histria relevante para as relaes internacionais contemporneas.

    Nos anos 1500 e 1600, medida que exploradores e at mesmo colonizadores acorriam ao Novo Mundo, a velha Europa continuava em fluxo. Em alguns lugares decisivos como Frana, Inglaterra, e Arago e Castela na Espanha, o feudalismo estava sendo substitudo por uma monarquia cada vez mais centralizada. O movimento em direo centralizao no ocorreu sem protestos; as massas, descontentes com os impostos cobrados pelos novos Estados emergentes, rebelaram-se e provocaram distrbios. Novos monarcas precisavam

  • o C O N T E X T O H I S T R I C O D A S R E L A E S I N T E R N A C I O N A I S . . . I 23

    dos impostos para montar exrcitos, e usavam esses exrcitos para consolidar seu poder interno e conquistar mais territrio. Outras partes da Europa estavam enredadas na con-trovrsia secular versus religioso, e o prprio cristianismo sofreu a ciso do protestantismo. Em 1648, essa controvrsia avanou passo a passo at a resoluo.

    O surgimento do sistema westphaliano A formulao da soberania - um conceito fundamental nas relaes internacionais con-temporneas - foi um dos desenvolvimentos intelectuais mais importantes que levaram revoluo westphaliana. Grande parte do desenvolvimento da noo encontrada na obra do filsofo francs Jean Bodin (1530-1596). Para Bodin, soberania era o "poder absoluto e perptuo investido em uma comunidade".^ No reside em um indivduo, mas em um Estado; por isso, perptuo. Soberania "a marca distintiva do soberano que no pode, de modo algum, estar sujeito aos comandos de um outro porque ele quem faz as leis para o sujeito, revoga uma lei j existente e emenda leis obsoletas".^

    Embora absoluta, a soberania, segundo Bodin, no ilimitada. Os lderes so limita-dos pela lei divina ou pela lei natural: "Todos os prncipes da Terra esto sujeitos s leis de Deus e da natureza." Tambm so limitados pelo tipo de regime - "as leis constitu-cionais do reino" - , seja ele monarquia, autocracia ou democracia. E, por fim, os lderes esto limitados por pactos, contratos com promessas feitas ao povo da comunidade e tratados com outros Estados, embora no haja um rbitro supremo nas relaes entre Estados.*" Assim, Bodin forneceu o adesivo conceituai da soberania que emergiria do acordo westphaliano.

    A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) devastou a Europa; os exrcitos pilharam o panorama da Europa central, lutaram batalhas e sobreviveram por meio da devastao da populao civil. Mas o tratado que ps fim ao conflito causou um profundo impacto na prtica das relaes internacionais. Em primeiro lugar, o Tratado da Westphalia adotou a noo de soberania. Com uma penada, praticamente todos os pequenos Esta-dos da Europa central conquistaram soberania. O Sacro Imprio Romano estava morto. Os monarcas do Ocidente perceberam que os conflitos religiosos tinham de terminar, portanto concordaram em no lutar nem em favor do catolicismo nem em favor do protestantismo. Em vez disso, cada monarca ganhava autoridade para escolher a verso do cristianismo para si mesmo ou para seu povo. Isso significava que eles, e no a Igreja, detinham a autoridade religiosa sobre os respectivos povos. Esse desenvolvimento im-plicava a aceitao geral da soberania - o soberano gozava de direitos exclusivos dentro de um determinado territrio. Com o papa e o imperador despojados de poder, a noo do Estado territorial foi aceita. O tratado no somente legitimou a territorialidade e o direito dos Estados de escolherem sua prpria religio, mas tambm estabeleceu que os Estados poderiam determinar suas prprias polticas internas livres de presso externa e com total jurisdio dentro de seu prprio espao geogrfico, Alm disso, introduziu o direito de no-interferncia nos assuntos de outros Estados.

    Em segundo lugar, os lderes tinham visto os efeitos devastadores dos mercenrios que lutavam nas guerras. Assim, aps o Tratado da Westphalia, os lderes procuraram

  • 24 I P R I N C P I O S D E R E L A E S I N T E R N A C I O N A I S

    estabelecer seus prprios exrcitos na-cionais permanentes. O crescimento de tais foras levou a um controle cada vez mais centralizado, visto que o Estado tinha de arrecadar impostos para pagar esses militares e os lderes que assumiam o controle absoluto das tropas. O Estado dotado de um exrcito nacional surgiu, sua sobera-nia foi reconhecida e sua base secular

    foi firmemente estabelecida. E esse Estado tornou-se cada vez mais poderoso. Unidades territoriais maiores ficaram em vantagem medida que os armamentos se tornaram mais sofisticados.

    Em terceiro lugar, o Tratado da Westphalia estabeleceu um grupo nuclear de Estados que dominaram o mundo at o incio do sculo XIX: ustria, Rssia, Prssia, Inglater-ra, Frana e Provncias Unidas (a rea que abrange agora Holanda e Blgica). Os mais

    E m F o c o

    DESENVOLVIMENTOS DECISIVOS APS WESTPHALIA

    Desenvolvem-se a noo e a prtica da sotierania. Cresce o controle centralizado das instituies por exrcitos. Surge o sistema econmico capitalista.

    Europa, 1648

  • o C O N T E X T O H I S T R I C O D A S R E L A E S I N T E R N A C I O N A I S . . . I 25

    a oeste - Inglaterra, Frana e as Provncias Unidas passaram por um renascimento econmico sob a gide do capitalismo, enquanto os Estados a leste Prssia e Rssia -reverteram s prticas feudais. No oeste, a empresa privada foi incentivada. Os Esta-dos melhoram sua infra-estrutura para facilitar o comrcio e surgem grandes empresas comerciais e bancos. No leste, ao contrrio, os servos continuaram a trabalhar a terra, e a mudana econmica foi sufocada. Todavia, em ambas as regies predominavam os Estados absolutistas: Lus XIV (1638-1715) no governo da Frana, Pedro, o Gran-de, (1672-1725) no da Rssia, e Frederico II (1712-1786) no da Prssia. At o final do sculo XVIII, a poltica europia foi dominada por mltiplas rivalidades e alianas precrias. Essas rivalidades tambm ocorriam em regies fora da Europa, onde Estados europeus rivais lutavam pelo poder, sendo os mais notveis a Gr-Bretanha e a Frana, na Amrica do Norte.

    O terico mais importante da poca foi o economista escocs Adam Smith (1723-1790). Em Uma inquirio sobre a natureza e causas da riqueza das naes, Smith argu-mentou que a noo de mercado deveria aplicar-se a todas as ordens sociais. Deve-se permitir que os indivduos - trabalhadores, proprietrios, investidores, consumidores -trabalhem em favor de seus prprios interesses sem ser tolhidos pelas regulamentaes do Estado. Segundo Smith, cada indivduo age racionalmente para maximizar seus pr-prios interesses. Quando grupos de indivduos trabalham em prol de seus interesses pessoais, a eficincia realada, e mais bens e servios so produzidos e consumidos. No nvel agregado, a riqueza do Estado e a do sistema internacional so realadas de modo semelhante. O que faz o sistema fiincionar a denominada mo do mercado; quando os indivduos trabalham em prol de seus interesses pessoais racionais, o sistema (o mer-cado) fijnciona sem esforo.^ A explicao de Smith sobre como unidades concorrentes habilitam o capitalismo a funcionar de modo a garantir vitalidade econmica teve um profundo efeito sobre as polticas e opes polticas dos Estados - o que vamos estudar no Captulo 9. Porm, outras idias do perodo tambm causariam drsticas alteraes na governana nos sculos XIX, X X e XXI.

    Europa no sculo XIX Duas revolues anunciaram o sculo XIX - a Revoluo Americana (1776) contra o governo britnico e a Revoluo Francesa (1789) contra o governo absolutista. Cada revoluo foi produto do pensamento iluminista, bem como dos tericos do contrato social. Durante o Iluminismo, os pensadores comearam a ver os indivduos como ra-cionais, capazes de entender as leis que os governam e de trabalharem para melhorar sua condio na sociedade.

    A conseqncia da revoluo: princpios essenciais

    Dois princpios essenciais surgiram como conseqncia das revolues americana e fran-cesa. O primeiro que o governo absolutista est sujeito a limites impostos pelo homem. Em Dois tratados sobre governo, o filsofo ingls John Locke (1632-1704) atacou o

  • 26 I P R I N C P I O S D E R E L A E S I N T E R N A C I O N A I S

    poder absoluto e a noo do direito divino dos reis. Locke argumentou que o Estado uma instituio benfica criada por homens racionais para proteger seus direitos naturais (vida, liberdade e propriedade), bem como seus interesses pessoais. Os homens aderem livremente a esse arranjo poltico. Eles concordam em estabelecer um governo para ga-rantir direitos naturais a todos. O ponto crucial do argumento de Locke que, em lti-ma anlise, o poder poltico est nas mos do povo e no nas do lder ou do monarca. O monarca deriva sua legitmidade do consentimento dos governados.^

    O segundo princpio essencial que surgiu nessa poca foi o nacionalismo, pelo qual as massas identificam-se com seu passado comum, sua lngua, seus costumes e prticas. Indivduos que compartilham tais caractersticas so motivados a participar ativamente do processo poltico como um grupo. Por exemplo, durante a Revoluo Francesa, foi feito um apelo patritico s massas para que defendessem a nao e seus novos ideais. Esse apelo forjou um vnculo emocional entre as massas e o Estado. Esses dois princ-pios - legitimidade e nacionalismo - surgiram das revolues americana e francesa para suprir as fundaes para os polticos dos sculos XIX e X X .

    Paz no ncleo do sistema europeu

    Aps a derrota de Napoleo em 1815 e o estabelecimento da paz pelo Congresso de Viena, as cinco potncias da Europa - ustria, Gr-Bretanha, Frana, Prssia e Rssia -gozaram de um perodo de relativa paz no sistema poltico internacional, denominado Concerto da Europa. No houve nenhuma guerra importante entre essas grandes po-tncias aps a derrocada de Napoleo at a Guerra da Crimia, em 1854, e nessa guerra ustria e Prssia permaneceram neutras. Ocorreram outras guerras locais de curta dura-o nas quais algumas das cinco maiores potncias permaneceram neutras. Unidas por acordos firmados em uma srie de conferncias ad hoc, nenhuma dessas cinco potncias se envolveu em conflitos com qualquer das outras. Reunindo-se mais de 30 vezes antes da Primeira Guerra Mundial, o grupo tornou-se um clube de lderes que pensavam da mesma forma e, por meio dessas reunies, legitimaram a independncia de novos Esta-dos europeus, bem como a diviso da frica entre potncias coloniais.

    O fato de a paz geral ter prevalecido durante essa poca surpreendente, visto que importantes mudanas econmicas, tecnolgicas e polticas estavam provocando alte-raes radicais no panorama. A taxa de crescimento populacional elevou-se muito, e o comrcio surgiu medida que se fortaleciam corredores de transporte. As mudanas polticas foram drsticas: a Itlia foi unificada em 1870; a Alemanha foi formada pela reunio de 39 fragmentos diferentes em 1871; os Pases Baixos foram divididos em Ho-landa e Blgica na dcada de 1830; e o Imprio Otomano desintegrou-se gradativamen-te, resultando em independncia para a Grcia em 1829 e para a Moldvia e a Valquia (Romnia) em 1856. Com tais mudanas em marcha, quais fatores explicam a paz? Ao menos trs fatores explicam esse fenmeno.

    O primeiro que os Estados europeus gozavam de uma solidariedade entre eles ba-seada no fato de serem europeus, cristos, "civilizados" e brancos. Esses traos "os dife-renciavam" - europeus cristos brancos - dos "outros", o resto do mundo. Em razo de

  • o C O N T E X T O H I S T R I C O D A S R E L A E S I N T E R N A C I O N A I S . . . I 27

    Europa, 1815

    R ^ O D A \ - ' NORUEflA E SUCIA V>

    , Rontorada

    I M P R I O

    R U S S O

    seu crescente contato com o mundo colonial, os europeus percebiam mais do que nunca seus prprios aspectos comuns, a singularidade de ser europeu. Isso era, em parte, um retorno unidade vigente no Imprio Romano e sob a lei romana, uma forma secular de cristandade medieval e uma Europa maior, segundo a viso da obra de Kant e Rousseau. O Congresso de Viena e o Concerto da Europa deram forma a essas crenas.

    O segundo que as elites europias eram unidas no medo da revoluo das mas-sas. De fato, no Congresso de Viena, o diplomata austraco BClemens von Metternich (1773-1859), o arquiteto do Concerto da Europa, acreditava que a Europa podia ser mais bem gerenciada se voltasse era do absolutismo. As elites sonhavam com grandes alianas que poderiam reunir os lderes europeus para lutar contra a revoluo que vinha de baixo. Na primeira metade do sculo, essas alianas no foram muito bem-sucedidas. Na dcada de 1830, a Gr-Bretanha e a Frana aliaram-se contra as trs potncias do leste (Prssia, Rssia e ustria) e, em 1848, todas as cinco potncias foram confrontadas pelas massas, que exigiam reformas. No entanto, na segunda metade do sculo, os lde-res europeus agiram de comum acordo e garantiram que as revolues das massas no passassem de Estado para Estado. Em 1870, Napoleo III foi isolado rapidamente por

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    medo de uma revoluo que nunca ocorreu. Assim, o medo da revolta que viria de baixo uniu os lderes europeus, o que tornou menos provveis as guerras entre Estados.

    O terceiro que duas das questes importantes que o grupo nuclear de Estados eu-ropeus enfrentava eram internas: a unificao da Alemanha e da Itlia. Ambas tinham poderosos defensores e oponentes entre as potncias europias. Por exemplo, a Gr-Bre-tanha apoiou a unificao da Itlia possibilitando a anexao de Npoles e da Siclia; a ustria, por outro lado, preocupava-se com a crescente fora da Prssia, e por isso no se ops ativamente ao que poderia perfeitamente ser contra seus interesses nacionais -a criao de dois vizinhos de tamanho considervel pela reunio de vrias unidades independentes. A unificao da Alemanha era aceitvel pela Rssia, contanto que seu interesse na Polnia fosse respeitado, e a unificao alem contou com o apoio da classe mdia dominante da Gr-Bretanha porque ela considerava uma Alemanha mais forte como um potencial contrapeso Frana. Assim, embora a unificao de ambas tenha sido por fim consolidada por pequenas guerras locais, evitou-se uma guerra geral, visto que a Alemanha e a Itlia estavam preocupadas com a unificao territorial.

    A industrializao, um desenvolvimento crtico na poca, era uma faca de dois gu-mes. Na segunda metade do sculo XIX, toda a ateno estava focalizada nos processos de industrializao. A Gr-Bretanha era a lder e ganhava de todos os rivais na produo de carvo, ferro e ao, e na exportao de bens manufaturados. Alm disso, a Gr-Breta-nha tornou-se a fonte de capital financeiro, o banqueiro para o continente e, no sculo X X , para o mundo. A industrializao propagou-se praticamente por todas as reas da Europa Ocidental medida que as massas acorriam s cidades, e empresrios e interme-dirios disputavam vantagens econmicas.

    A Revoluo Industrial forneceu aos Estados europeus a capacidade militar e eco-nmica para dedicar-se expanso territorial. Alguns Estados imperiais eram motiva-dos por ganhos econmicos porque procuravam novos mercados externos para os bens manufaturados e obtinham em troca matrias-primas para alimentar seu crescimento industrial.

    Para outros, a motivao era cultural e religiosa - divulgar a f crist e os modos da "civilizao" branca aos continentes "negros" e alm deles. Para outros ainda, a motiva-o era poltica. Visto que o equilbrio de poder europeu impedia a confrontao direta na Europa, as rivalidades entre Estados europeus desenrolavam-se na frica e na sia.

    Para satisfazer as ambies da Alemanha, as grandes potncias presentes ao Congres-so de Berlim em 1885 dividiram a frica, dando Alemanha uma esfera de influncia no leste (Tanganica), oeste (Camares e Togo) e sul (sudoeste da frica). O imperialis-mo europeu proporcionou uma sada conveniente para as aspiraes da Alemanha como potncia unificada sem colocar em perigo o equilbrio de poder dentro da Europa em si. Ao final do sculo XIX, 85% da frica estavam sob o controle de Estados europeus.

    Na sia, somente o Japo e o Sio (Tailndia) no estavam sob a influncia direta da Europa ou dos Estados Unidos. A China um excelente exemplo de dominao externa. Sob a dinastia Qing, que comeou no sculo XVII, o territrio chins vinha perdendo lentamente poder poltico, econmico e militar h centenas de anos. No s-culo XIX, mercadores britnicos comearam a comerciar com a China em troca de ch.

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    seda e porcelana, pagando com pio contrabandeado. Em 1842, os britnicos venceram a China na Guerra do pio, forando-a a ceder vrios direitos polticos e territoriais a estrangeiros mediante uma srie de tratados desiguais. Estados europeus, bem como o Japo, conseguiram ocupar grandes pores do territrio chins nas quais cada um de-clarava ter direitos exclusivos de comrcio em uma determinada regio. Ento, potncias estrangeiras exerciam "esferas de influncia" isoladas na China. Em 1914, os europeus controlavam quatro quintos do mundo.

    Os Estados Unidos tambm eram uma potncia imperial. Como venceram a Guerra Hispano-americana em 1898, alijando a Espanha das Filipinas, Porto Rico, Cuba e ou-tras ilhas menores, os Estados Unidos adquiriam suas prprias colnias.

    A luta por proeza econmica levou explorao imprudente das reas coloniais, em particular na frica e na sia. Mas as cinco potncias europias no lutaram guerras im-portantes diretamente umas com as outras. Ao final do sculo, entretanto, essa concor-rncia econmica tornou-se desestabilizadora medida que Estados europeus se uniam em dois sistemas de alianas concorrentes.

    Equilbrio de poder

    Como esse perodo de relativa paz na Europa foi gerenciado e preservado durante tan-to tempo? A resposta encontra-se em um conceito denominado equilbrio de poder. No sculo XIX surgiu um equilbrio de poder porque os Estados europeus independen-tes, cada um com poder relativamente igual, temiam o surgimento de qualquer Estado predominante (hegemnico) entre eles. Assim, formaram alianas para contrapor-se a qualquer faco potencialmente mais poderosa, criando um equilbrio de poder. Os tratados assinados aps 1815 foram elaborados no apenas para sufocar a revoluo do povo, mas para evitar a emergncia de um Estado hegemnico como a Frana tinha se tornado sob Napoleo. Gr-Bretanha e Rssia, ao menos prximo do final do sculo, poderiam ter assumido uma posio de liderana dominante - a Gr-Bretanha em ra-zo de sua proeza econmica e capacidade naval e a Rssia por seu relativo isolamento geogrfico e extraordinrio potencial humano - , mas nenhuma delas procurou exercer poder hegemnico porque o status quo era aceitvel para cada Estado.

    Na verdade, Gr-Bretanha e Rssia desempenhavam papis diferentes no equilbrio de poder. Na maioria das vezes, a Gr-Bretanha exercia o papel de equilibradora. Por exemplo, ao intervir em favor dos gregos em sua luta pela independncia dos turcos no final da dcada de 1820, em favor dos belgas durante a guerra da independncia contra a Holanda em 1830, em favor da Turquia contra a Rssia na Guerra da Crimia em 1854-1856 e, mais uma vez, na guerra entre Rssia e Turquia em 1877-1878, a Gr-Bretanha garantiu que os outros Estados no interferissem nesses conflitos e que, desse modo, a Europa permanecesse equilibrada. O papel da Rssia foi o de construtora de alianas. A Santa Aliana de 1815 manteve ustria, Prssia e Rssia unidas contra a Frana revolucionria, e a Rssia usou suas pretenses em relao Polnia para criar um vnculo com a Prssia. Os interesses russos no Estreito de Dardanelos, a estratgica passagem martima que liga o Mar Mediterrneo ao Mar Negro, e em Constantinopla

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    Europa, 1878

    E m F o c o

    DESENVOLVIMENTOS DECISIVOS NA EUROPA DO SCULO XIX

    Das revolues surgem dois conceitos: a regra absolutista sujeita a limitaes e o nacionalismo. Um sistema gerenciado pelo equilbrio de poder traz relativa paz Europa. As elites unem-se por medo das massas, e os assuntos intemos so mais importantes do que a poltica externa. O imperialismo europeu na sia e na frica ajuda a manter o equilbrio de poder na Europa. O equilbrio de poder esfacela-se devido solidificao de alianas, resultando na Primeira Guerra Mundial.

    (hoje Istambul) coincidiam com os da Gr-Bretanha. Assim, esses dois Estados, localizados nas margens da Europa, exerceram papis funda-mentais no funcionamento do siste-ma de equilbrio de poder.

    Durante as trs ltimas dcadas do sculo XIX, o Concerto da Eu-ropa esgarou-se, comeando com a invaso da Turquia pela Rssia em 1877. As alianas comearam a se solidificar medida que o sistema de equilbrio de poder comeou a enfraquecer. Fora da regio europia nuclear houve uma escalada de con-flitos. Em 1830, todos os Estados das

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    Amricas Central e do Sul tinham conquistado sua independncia da Espanha e de Portugal, e os Estados Unidos e a Gr-Bretanha evitaram maior competio europia na Amrica do Sul. Mas as potncias coloniais europias - Gr-Bretanha, Frana, Holanda, Blgica e Itlia - participaram de guerras para conquistar e conservar suas colnias na frica e sia.

    O esfacelamento: solidificao de alianas

    Nos ltimos anos do sculo XIX, esse sistema de equilbrio de poder tinha enfraquecido. Embora antes fossem fluidas e flexveis, com possvel troca de aliados, as alianas tinham se solidificado. Surgiram dois lados: a Trplice Aliana (Alemanha, ustria e Itlia) em 1882 e a Dupla Aliana (Frana e Rssia) em 1893. Em 1902, a Gr-Bretanha rom-peu com seu papel de "equilibradora" e juntou-se ao Japo em uma aliana naval para evitar um conflito entre Rssia e Japo na China. Essa aliana marcou uma importante reviravolta: pela primeira vez um Estado europeu (Gr-Bretanha) recorreu a um Estado asitico Qapo) para frustrar um aliado europeu (Rssia). Alm disso, em 1904, a Gr-Bretanha aliou-se Frana na Entente Cordiale.

    Europa, 1914

  • 32 I P R I N C P I O S D E R E L A E S I N T E R N A C I O N A I S

    O fim do sistema de equilbrio de poder, bem como o final histrico do sculo XIX, veio com a Primeira Guerra Mundial. Os dois lados estavam enredados em lutas entre alianas concorrentes que ficaram ainda mais perigosas em razo da posio da Alema-nha. A Alemanha no ficou satisfeita com as solues decididas no Congresso de Berlim e ainda procurava territrio adicional; se isso significasse territrio europeu, o mapa da Europa teria de ser redesenhado. Como foi uma "retardatria" no ncleo de poder europeu, a Alemanha no recebeu o reconhecimento e o status diplomtico que seus lderes desejavam. Assim, com o assassinato do arquiduque Franz Ferdinand, o herdeiro do trono do Imprio Austro-hngaro em 1914, em Sarajevo, a Alemanha incentivou a ustria a esmagar a Srvia. Afinal, a Alemanha no queria ver a desintegrao do Imp-rio Austro-hngaro, seu maior aliado.

    Sob o sistema de alianas, uma vez disparado o tiro fatal, os Estados honraram os compromissos com seus aliados e mergulharam todo o continente em conflito armado. Como apoiaram a Srvia, os improvveis aliados Rssia, Frana e Gr-Bretanha foram envolvidos; por seu apoio ustria-Hungria, a Alemanha entrou na briga. Esperava-se que a guerra fosse curta e decisiva, mas no foi nada disso. Entre 19l4e 1918, soldados de mais de 12 pases sofreram a persistente degradao da guerra de trincheiras e os horrores da guerra qumica (gases venenosos). Mais de 8,5 milhes de soldados e 1,5 milho de civis perderam a vida. Simbolicamente, o sculo XIX tinha chegado a um desfecho: o sculo de relativa paz terminou em uma confrontao que abrangeu todo o sistema.

    Os anos entreguerras e a Segunda Guerra Mundial o final da Primeira Guerra Mundial testemunhou mudanas crticas nas relaes inter-nacionais. Em primeiro lugar, trs imprios europeus estavam enfraquecidos e, por fim, entraram em derrocada perto da Primeira Guerra Mundial. Com esses imprios foi-se tambm a ordem social conservadora da Europa; em seu lugar surgiu uma proliferao de nacionalismos. A Rssia saiu da guerra em 1917 quando a revoluo explodiu em seu territrio. O czar foi deposto e, a certa altura, substitudo no apenas por um novo lder (Vladimir I. Lenin) mas por uma nova ideologia que teria profundas implicaes para o restante do sculo X X . O Imprio Austro-hngaro tambm esfacelou-se e foi substitu-do por ustria, Hungria, Tchecoslovquia, parte da Iugoslvia e parte da Romnia. O Imprio Otomano tambm foi reconfigurado. Como vinham perdendo gradativamente o poder durante o sculo XIX, os otomanos aliaram-se s potncias da Trplice Aliana. A derrota da Aliana resultou na derrocada final dos otomanos. A Arbia insurgiu-se contra o mando da Turquia, e foras britnicas ocuparam Jerusalm e Bagd. Uma Turquia reduzida foi o Estado sucessor,

    O fim dos imprios produziu a proliferao de nacionalismos, Na verdade, um dos Quatorze Pontos do presidente Woodrow Wilson no tratado que ps fim Primeira Guerra Mundial pregava a autodeterminao, o direito de autonomia de governo de grupos nacionais, O nacionalismo desses vrios grupos (austracos, hngaros) tinha sido estimulado por inovaes tecnolgicas na indstria da impresso que facilitavam e bara-

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    teavam a publicao de material na profuso de diferentes lnguas europias e, portanto, ofereciam diferentes interpretaes da histria e da vida nacional. Todavia, na realidade muitas dessas entidades recm-criadas no tinham nem histrias compartilhadas nem histricos polticos compatveis, e no eram economicamente viveis.

    Em segundo lugar, a Alemanha saiu da Primeira Guerra Mundial como uma potn-cia ainda mais insatisfeita. No somente fora vencida no campo de batalha militar e teve frustradas suas ambies territoriais, mas o Tratado de Versalhes, que encerrou formal-mente a guerra, obrigou a gerao subseqente de alemes a pagar o custo econmico da guerra por meio de reparaes - US$32 bilhes por danos causados durante a guerra. Essa insatisfao criou o clima para o surgimento de Adolf Hitler, que se dedicava a corrigir as "injustias" que tinham sido impostas ao povo alemo.

    Em terceiro lugar, o cumprimento do Tratado de Versalhes ficou nas mos da, por fim, infrutfera Liga das Naes, a organizao intergovernamentai cujo propsito era evitar todas as guerras futuras. Porm, a organizao em si no tinha o peso poltico, os instrumentos jurdicos nem a legitimidade para desempenhar a tarefa. O peso poltico da Liga foi enfraquecido pelo fato de os Estados Unidos, cujo presidente tinha sido o principal arquiteto da Liga, recusarem-se a aderir, preferindo dedicar-se a uma poltica externa isolacionista. A Rssia tambm no aderiu e no foi permitida a participao de nenhum dos vencidos. A autoridade jurdica da Liga era fraca, e os instrumentos de que dispunha para impor a paz eram ineficientes.

    Em quarto lugar, uma viso da ordem mundial ps-Primeira Guerra Mundial foi claramente exposta, mas nasceu morta. Essa viso foi traduzida nos Quatorze Pontos de Wilson. Ele conclamava uma diplomacia aberta - "tratados de paz abertos, com os quais os participantes concordavam abertamente e que, aps firmados, no haveria nenhum en-tendimento internacional privado de qualquer tipo, mas a diplomacia seria sempre franca e realizada vista do pblico".^ O ponto trs era uma reafirmao do liberalismo econ-mico e a remoo de barreiras entre todas as naes que consentissem em manter a paz. E, claro, a finalidade da Liga como "uma associao geral de naes" era garantir que nunca mais houvesse guerra. Mas essa viso no se realiza-ria: nas palavras do historiador E. H . Carr, "o aspecto caracterstico dos 20 anos entre 1919 e 1939 foi a queda abrupta das esperanas visionrias da primeira dcada para o soturno deses-pero da segunda, de uma utopia que pouco levava em conta a realidade para uma realidade da qual todo ele-mento de utopia estava rigorosamen-te excludo".' O liberalismo e seus elementos utpicos e idealistas foram substitudos pelo realismo como a teo-

    DESENVOLViMENTOS DECISIVOS NOS ANOS ENTREGUERRAS

    Trs imprios desmoronaram: a Rssia pela revoluo, o imprio Austro-lingaro por desmembramento e o Imprio Otomano por guen'as externas e tumulto interno. Isso resultou no ressurgimento de nacionalismos.

    A insatisfao da Alemanha com o acordo aps a Primeira Guerra Mundial resultou no fascismo. A Alemanha encontrou aliados na Itlia e no Japo.

    A incapacidade da fraca Liga das Naes de reagir s agresses japonesa, italiana e alem, e inquietao econmica que se alastrava.

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    ria dominante nas relaes internacionais - uma perspectiva terica fundamentalmente divergente; o liberalismo e o realismo so desenvolvidos no Captulo 3.

    Ademais, o mundo do qual emergiram os realistas era um mundo turbulento: a eco-nomia mundial em colapso; a economia alem em franca imploso; a Bolsa de Valores dos Estados Unidos em queda vertiginosa; a invaso da Mancharia pelo Japo em 1931 e do resto da China em 1937; a tomada da Etipia pela Itlia em 1935; o choque entre fascismo, liberalismo e comunismo. Esses eram os sintomas do perodo entreguerras.

    A Alemanha mostrou ser o desafio real. Rearmada por Hitler na dcada de 1930, incentivada por ter ajudado os fascistas espanhis durante a Guerra Civil Espanhola e bem-sucedida em reunir os alemes tnicos de territrios longnquos, a Alemanha es-tava pronta para corrigir as "injustias" impostas pelo Tratado de Versalhes. Por vrias razes, a Gr-Bretanha e a Frana concordaram com o ressurgimento da Alemanha. Em 1938, a Gr-Bretanha concordou em permitir que a Alemanha ocupasse a Tchecoslo-vquia na esperana de evitar uma guerra mais generalizada. Em vo: o fascismo alemo mobilizou as massas em favor do Estado de um modo inusitado. Tirou proveito da crena de que guerra e conflito eram atividades nobres que, por fim, formariam grandes

    Europa, 1939

    Alinhados com o Eixo

    Ainhados com os Afedos

    B.-M Neutros

    O c e a n o

    A t l n t i c o FINLNDIA,

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    civilizaes. Tirou proveito da fora da crena de que certos grupos raciais eram supe-riores e outros inferiores, e mobilizou os desencantados e economicamente fracos em favor de sua causa.

    O poder do fascismo - verses alem, italiana e japonesa - levou aliana intran-qila (e nada sagrada) entre a Unio Sovitica comunista e os liberais Estados Unidos, Gr-Bretanha e Frana, entre outros. Essa aliana pretendia contrapor-se s potncias do Eixo por meio da fora, se necessrio. Assim, quando a Segunda Guerra Mundial explodiu, os que lutavam contra o Eixo agiram em unssono, independentemente de suas divergncias ideolgicas.

    Ao final da guerra, os aliados foram bem-sucedidos. O Reich alemo, bem como o Ja-po imperial, estava em runas ao final da guerra, o primeiro como resultado do poder de fogo tradicional e o ltimo como resultado do novo instrumento da guerra atmica. O fim da Segunda Guerra Mundial resultou em importante redistribuio de poder (agora, os vitoriosos Estados Unidos confrontariam a igualmente vitoriosa Unio Sovitica) e mudaria as fronteiras polticas (a Unio Sovitica anexou os Estados blticos e partes da Finlndia, Tchecoslovquia, Polnia e Romnia; Alemanha e Coria foram divididas; e o Japo foi expulso de grande parte da sia). Cada uma dessas mudanas contribuiu para o novo conflito internacional: a Guerra Fria.

    A Guerra Fria Os lderes "quentes" da Segunda Guerra Mundial, o primeiro-ministro da Gr-Breta-nha, Winston Churchill, o presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, e o pre-mi da Unio Sovitica, Josef Stalin, planejaram a ordem ps-guerra durante a prpria guerra. De fato, a Carta do Atlntico, de 14 de agosto de 1941, previa a colaborao em questes econmicas e preparava um sistema de segurana permanente. Esses planos foram consolidados em 1943 e 1944 e entraram em vigor nas Naes Unidas em 1945. Entretanto, vrios outros resultados da Segunda Guerra Mundial proporcionaram as fundaes para a Guerra Fria que se seguiu.

    Origens da Guerra Fria

    O resultado mais importante da Segunda Guerra Mundial foi o surgimento de duas su-perpotncias - os Estados Unidos e a Unio Sovitica - como os protagonistas primor-diais do sistema internacional e o concomitante declnio da Europa como o epicentro da poltica internacional. Tanto os Estados Unidos como a Unio Sovitica eram potncias relutantes. Nenhuma estava ansiosa para lutar; cada uma entrou na guerra somente aps um ataque direto ao seu territrio. Porm, ao final da guerra, cada uma tinha se tornado uma superpotncia militar.

    O segundo resultado da guerra foi o reconhecimento das incompatibilidades funda-mentais entre essas duas superpotncias, tanto em interesses nacionais quanto em ideo-logia. As diferenas vieram tona imediatamente na questo dos interesses geopolticos nacionais. A Rssia, por ter sido invadida pelo Ocidente em diversas ocasies, inclusive

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    durante a Segunda Guerra Mundial, usou seu novo poder para solidificar sua esfera de influncia nos Estados-tampes da Europa Oriental - Polnia, Tchecoslovquia, Hun-gria, Bulgria e Romnia. A liderana sovitica acreditava que garantir vizinhos amigos em suas fronteiras ocidentais era vital para os interesses nacionais soviticos. Quanto aos Estados Unidos, j em 1947 seus polticos argumentavam que o interesse do pas era conter a Unio Sovitica. O diplomata e historiador George Kennan publicou em Foreign Affairs o famoso artigo "X" , no qual argumentava que, como a Unio Sovitica sempre sentiria insegurana militar, ela conduziria uma poltica externa agressiva. Por conseqncia, conter os soviticos, escreveu Kennan, deveria tornar-se a pedra angular da poltica externa ps-guerra dos Estados Unidos.'^

    Os Estados Unidos colocaram a noo de conteno em ao na Doutrina Truman de 1947. Ao justificar o apoio material Grcia contra os comunistas, o presidente Tru-man afirmou: "Creio que esta deve ser a poltica dos Estados Unidos para apoiar povos livres que esto resistindo tentativa de subjugao por minorias armadas ou presses externas. Creio que devemos auxiliar os povos livres a decidirem seu prprio destino do modo que quiserem."^^ Porm, quase imediatamente os Estados Unidos desistiram da conteno reduzindo drasticamente o contingente de suas foras armadas na esperana de retornar a um mundo mais pacfico. Ento, em 1948, quando os soviticos bloquea-ram os corredores de transporte ocidentais at Berlim, a capital da Alemanha, que tinha sido dividida em setores pela Conferncia de Potsdam em 1945, os Estados Unidos perceberam que seus interesses eram mais amplos. Desse modo, a conteno, baseada em interesses geoestratgicos dos Estados Unidos, tornou-se a doutrina fundamental da poltica externa dos Estados Unidos durante a Guerra Fria.

    Alm do mais, havia grandes diferenas ideolgicas entre Estados Unidos e Unio Sovitica, e essas diferenas confrontavam duas vises contrastantes da sociedade e da ordem internacional. O liberalismo democrtico dos Estados Unidos baseava-se em um sistema social que aceitava o mrito e o valor do indivduo, um sistema poltico que dependia da participao de indivduos no processo eleitoral e um sistema econmico, o capitalismo, que dava oportunidade aos indivduos de procurarem o que era racional em termos econmicos sem nenhuma interferncia do governo. No nvel internacional, isso traduzia-se logicamente em apoio a outros regimes liberais democrticos e suporte a instituies e processos capitalistas incluindo - ponto mais crtico - o livre comrcio.

    A ideologia comunista sovitica tambm afetava a concepo que o pas tinha do sistema internacional e das prticas de Estado. O Estado sovitico adotou a ideolo-gia marxista, que sustenta que, sob o capitalismo, uma classe (a burguesia) controla a propriedade dos meios de produo e usa suas instituies e autoridade para manter esse controle. A soluo para o problema da regra de classe, segundo o marxismo, a revoluo, quando o proletariado explorado toma o controle da burguesia utilizando o Estado para captar os meios de produo. Assim, o capitalismo substitudo pelo so-cialismo. Os lderes da Unio Sovitica consideravam que estavam em estado interino, aps o desmonte do Estado capitalista e antes da vitria do socialismo. Essa ideologia tinha tambm elementos internacionais crticos: o capitalismo tentar expandir-se por meio do imperialismo de modo a gerar mais capital, maiores mercados e maior controle

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    Europa durante a Guerra Fria

    de matrias-primas. Assim, os lderes soviticos sentiam-se cercados por foras militares capitalistas hostis e argumentavam que a Unio Sovitica "no deve enfraquecer, mas fortalecer de todos os modos seu Estado, os rgos do Estado, os rgos do servio de inteligncia, o exrcito, se esse pas no quiser ser esmagado pelo ambiente capitalista".^^ No mbito internacional, acreditavam, o pas devia apoiar movimentos cujas metas fos-sem minar os capitalistas, bem como promover uma nova ordem social.

    As diferenas entre as duas superpotncias foram exacerbadas por percepes incor-retas mtuas. Kennan cita poderosos exemplos de concepes errneas da parte de cada superpotncia:

    O Plano Marshall, os preparativos para a instalao de um governo na Alemanha Ocidental e os primeiros movimentos para a formao da O T A N (Organizao do Tratado do Atlntico Norte) foram considerados por Moscou como o incio de uma campanha para privar a Unio Sovitica dos frutos de sua vitria sobre a Alemanha. A firme ao sovitica na Tchecoslovquia [1948] e a montagem do bloqueio de Berlim, ambas, em essncia, reaes defensivas (...) essa movimentao do Ocidente

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    tambm foi mal interpretada pelo lado ocidental. Logo depois veio a crise da Guerra da Coria - quando os soviticos tentaram empregar uma fora militar satlite em combate civil para proveito prprio guisa de reao deciso dos Estados Unidos de estabelecer uma presena militar permanente no Japo - interpretada por Wa-shington como o incio da investida final dos soviticos para a conquista do mundo, ao passo que a resposta militar ativa dos americanos provocada por essa manobra parecia uma ameaa posio sovitica na Manchria e no leste da Sibria.'"^

    Embora essas percepes errneas no tenham causado a Guerra Fria, certamente adi-cionaram combustvel ao fogo do confronto.

    O terceiro resultado do fim da Segunda Guerra Mundial foi o incio do final do sistema colonial, um desenvolvimento que poucos previram. A derrota do Japo e da Alemanha levou ao fim imediato de seus respectivos imprios coloniais. Os outros colonialistas -incentivados pelo endosso da Carta das Naes Unidas ao princpio da autodetermi-nao nacional, enfrentando a realidade de sua posio econmica e poltica enfraque-cida e confrontados pelos movimentos indgenas pela independncia - concederam a independncia s suas antigas colnias, comeando com a independncia da ndia pela Gr-Bretanha em 1947. A Frana precisou sofrer uma derrota militar na Indochina no incio da dcada de 1950 para levar a descolonizao quela parte do mundo. Tambm os Estados africanos tornaram-se independentes entre 1957 e 1963. Embora o processo de descolonizao tenha ocorrido ao longo de um extenso perodo de tempo, foi uma transio relativamente pacfica. Os europeus, juntamente com seus aliados, os Estados Unidos, estavam mais interessados em lutar contra o comunismo do que em conservar o controle de seus territrios coloniais.

    O quarto resultado foi a percepo de que as diferenas entre as duas superpotncias emergentes seriam dirimidas indiretamente, em estgios com terceiros, em vez de por confrontao direta entre os dois protagonistas. A medida que a quantidade de Estados recm-independentes proliferava no mundo ps-guerra como resultado da descoloniza-o, as superpotncias lutavam pela influncia sobre esses novos Estados como modo de estender seu poder a reas fora de suas tradicionais esferas de influncia. Assim, a Guerra Fria resultou na globalizao do conflito para todos os continentes. As relaes interna-cionais tornaram-se verdadeiramente globais.

    Outras partes do mundo no se limitaram a reagir aos imperativos da Guerra Fria -desenvolveram novas ideologias ou reformularam o discurso dominante da Europa para abordar sua prpria experincia. Em lugar algum isso foi mais verdadeiro do que na Asia. Tanto Ho Chi Minh, do Vietn, como Chou En-lai, da China, viveram na Eu-ropa por um tempo, onde se juntaram a partidos comunistas. Quando voltaram para casa, importaram a ideologia comunista e a reinterpretaram de modo compatvel com as circunstncias nacionais. Por exemplo, na China, o incio da revoluo comunista veio antes da Segunda Guerra Mundial. Escolhendo o campo para dar incio a uma revolu-o de camponeses agricultores, Chou En-lai e seu colega Mao Tse Tung insistiam que a China era uma sociedade semifeudal na qual o proletariado era o campesinato rural. O Partido Comunista chins tornou-se a vanguarda desse grupo, e o Exrcito do Povo

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    seu instrumento de ao guerrillieira. A revoluo de Mao foi bem-sucedi-da: os comunistas tomaram o con-trole da China continental em 1949 e fundaram a Repblica Popular da China.

    Desse modo, a globalizao da poltica ps-Segunda Guerra Mun-dial significou a ascenso de novos contendores pelo poder. Embora os Estados Unidos e a Unio Sovitica retivessem suas posies dominantes, novas ideologias alternativas agiam como poderosos magnetos para as populaes nos Estados independeu-

    E m F o c o

    DESENVOLVIMENTOS DECISIVOS NA GUERRA FRIA

    Surgem duas superpotncias, os Estados Unidos e a Unio Sovitica, divididas por interesses nacionais, ideologias e percepes errneas mtuas. Essas divises projetaram-se em diferentes reas geogrficas. Ocorre uma srie de crises - bloqueio de Berlim (1948-1949), Guerra da Coria (1950-1953), crise dos msseis em Cuba (1962), GueoB do Vietn (1965-1973), invaso do Afeganisto pela Unio Sovitica (1979). Uma longa paz sustentada por intimidao mtua

    tes e em desenvolvimento da frica, sia e Amrica Latina. Mais tarde, na dcada de 1970, esses pases desenvolveram uma nova ideologia econmica resumida no programa da Nova Ordem Econmica Interna-cional.

    A Guerra Fria como uma srie de confrontos

    A Guerra Fria como tal (1945-1989) pode ser caracterizada como 45 anos de tenso e competio global de alto nvel entre as superpotncias, porm sem conflito militar dire-to. O advento de armas nucleares criou um impasse bipolar no qual cada lado agia com cautela e somente uma vez chegou perto do precipcio da guerra direta. Cada Estado desistia de confrontaes particulares, fosse porque seu interesse nacional no era forte o suficiente para arriscar um confronto nuclear ou porque sua determinao ideolgica vacilava luz de realidades militares.

    Ento, a Guerra Fria foi uma srie de eventos que, direta ou indiretamente, coloca-ram as superpotncias uma contra a outra. Alguns desses eventos foram confrontaes a um passo da guerra, enquanto outros ocorreram entre agentes (Coria do Norte versus Coria do Sul, Vietn do Norte versus Vietn do Sul, Etipia versus Somlia) e que, com toda certeza, nem os Estados Unidos nem a Unio Sovitica pretendiam que chegassem ao ponto em que chegaram. Outras confrontaes ocorreram somente em palavras; estas normalmente terminavam em tratados e acordos. Alguns desses confrontos envolviam apenas os Estados Unidos e a Unio Sovitica, porm mais de uma vez os aliados de cada uma das potncias envolveram-se. Assim, a Guerra Fria abrangia no somente con-frontos entre superpotncias, mas confrontos entre dois blocos de Estados: os Estados Unidos, com Canad, Austrlia e grande parte da Europa Ocidental (aliados na Organi-zao do Tratado do Atlntico Norte - OTAN), e a Unio Sovitica, com seus aliados do Pacto de Varsvia, na Europa Oriental. Durante a existncia da Guerra Fria, esses blocos ficaram mais frouxos e, s vezes, os Estados aliados adotavam posies diferentes

  • 4.0 I P R I N C P I O S D E R E L A E S I N T E R N A C I O N A I S

    das da potncia dominante. Porm, em grande parte daquele perodo de tempo, funcio-nava a poltica de bloco. A Tabela 2.1 mostra uma retrospectiva ordenada dos principais eventos relacionados com a Guerra Fria.

    Uma dessas confrontaes diretas de alto nvel entre as superpotncias ocorreu na Alemanha. Logo aps a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha foi dividida em zonas de ocupao. Os Estados Unidos, a Frana e a Gr-Bretanha administravam a parte ocidental; a Unio Sovitica, a oriental. Berlim, a capital da Alemanha, tambm foi di-vidida dessa mesma maneira, mas ficava dentro da Alemanha Oriental, controlada pelos soviticos. Durante o bloqueio de Berlim em 1949, a Unio Sovitica bloqueou o acesso por terra a Berlim, obrigando os Estados Unidos e a Gr-Bretanha a fecharem o espao areo para transporte de suprimentos durante 13 meses. Em 1949, a Alemanha Oriental e a Alemanha Ocidental foram declaradas Estados separados. Em 1961, a Alemanha Oriental ergueu o Muro de Berlim ao redor da poro ocidental da cidade para estancar o fluxo de alemes orientais que tentavam sair do Estado em tumulto; o presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, respondeu com a frase "Ich bin ein Berliner" ("Eu sou um berlinense"), com a qual firmou o compromisso dos Estados Unidos com Berlim a qualquer custo. No foi surpresa que a queda desse mesmo muro, em novembro de 1989, tenha simbolizado o final da Guerra Fria.

    Na sia, a Coria tornou-se o smbolo da Guerra Fria. Tambm ela foi dividida geograficamente entre norte e sul e ideologicamente - entre um Estado comunista e um no-comunista. O primeiro confronto asitico ocorreu em 1950, quando tropas da Coria do Norte, espicaadas pelo exrcito sovitico (que esperava melhorar sua posio defensiva), atacaram a fraca Coria do Sul. Os soviticos nunca lutaram diretamente, mas os Estados Unidos (sob a gide das Naes Unidas) e os chineses (agindo em nome da Unio Sovitica), sim. A ofensiva da Coria do Norte foi repelida e os dois lados fica-ram enredados em um impasse durante trs anos. Por fim, a guerra terminou em 1953. Mas, assim como a crise de Berlim, aquele evento isolado seria seguido durante anos por numerosas escaramuas diplomticas: sobre as bases militares dos Estados Unidos na Coria do Sul, a utilizao da zona desmilitarizada entre o norte e o sul e as tentativas da Coria do Norte de tornar-se uma potncia nuclear mesmo aps o final da Guerra Fria -tentativas que ainda hoje so uma fonte de conflito.

    A crise dos msseis em Cuba em 1962 foi uma confrontao direta de alto nvel entre as superpotncias em outra parte do mundo. A instalao pela Unio Sovitica de msseis em Cuba foi considerada pelos Estados Unidos como uma ameaa direta a seu territrio: nunca nenhum armamento de um inimigo poderoso estivera localizado to prximo da costa dos Estados Unidos. O modo como a crise foi resolvida sugere inequivocamente que nenhuma das partes buscava uma confrontao direta. Os Es-tados Unidos optaram por um bloqueio a Cuba para impedir mais envios de msseis soviticos; o importante que rejeitaram como primeiras opes alternativas militares mais coercitivas - invaso de territrio ou ataques areos - , embora essas opes nunca tenham sido inteiramente descartadas. Por meio de contatos no-oficiais por baixo do pano em Washington e da comunicao direta entre o presidente Kennedy e o premi sovitico Nikita Khrushchev, a crise foi desarmada e a guerra evitada.

  • o C O N T E X T O H I S T R I C O D A S R E L A E S I N T E R N A C I O N A I S .

    Eventos importantes da Guerra Fria

    v e n t o

    1945-1948 A Unio Sovitica estabelece regimes comunistas na Europa Oriental. 1947 Anncio da Doutrina Truman; os Estados Unidos propem o Plano Marshall para a

    reconstruo da Europa. 1948 0 marechal TIto separa a Iugoslvia do bloco sovitico. 1948-1949 Os soviticos bloqueiam Berlim; Estados Unidos e aliados impem o fechamento

    do espao areo. 1949 Os soviticos testam a bomba atmica encerrando o monoplio nuclear dos

    Estados Unidos; os comunistas chineses sob Mao vencem a guerra civil e fundam a Repblica Popular da China; Estados Unidos e aliados forniam a OTAN.

    1950-1953 Guerra da Coria 1953 A morte de Stalin leva a Unio Sovitica a uma crise interna pela sucesso. 1956 Os soviticos invadem a Hungria; Nasser, do Egito, nacionaliza o Canal de Suez

    levando a um confronto com Gr-Bretanha, Frana e Israel. 1957 Os soviticos lanam o Sputnik, simbolizando a competio cientfica entre as

    superpotncias. 1960-1963 Crise do Congo e ao das Naes Unidas para preencher o vcuo de poder. 1960 Avio de espionagem U-2 dos Estados Unidos abatido em territrio sovitico.

    resultando no encerramento da cpula de Paris. 1961 Falha a invaso de Cuba na Baa dos Porcos patrocinada pelos Estados Unidos; o

    Muro de Berlim construdo. 1962 Estados Unidos e Unio Sovitica chegam beira da guerra nuclear aps a

    descoberta de msseis soviticos em Cuba, o que acabou provocando um degelo nas relaes entre as superpotncias.

    1965 Os Estados Unidos iniciam interveno de grande escala no Vietn. 1967 Israel derrota Egito, Sria e Jordnia na Guerra dos Seis Dias; a cpula de

    Glassboro sinaliza a dtente, alvio de tenses entre as superpotncias. 1968 Liberalizao do governo tcheco sustado pela invaso sovitica; assinado o

    Tratado de No-proiiferao Nuclear (TNP). 1972 Nixon visita a China e a Unio Sovitica; Estados Unidos e Unio Sovitica

    assinam o SALT i, tratado de limitao de armamentos. 1973 Os Estados Unidos encerram seu envolvimento militar no Vietn; a guerra entre

    rabes e Israel leva crise de energia. 1975 Guerras entre agentes e anticolonialistas em Angola, Moambique, Etipia e

    Somlia. 1979 0 x do Ir. um aliado dos Estados Unidos, deposto pela revoluo islmica;

    Estados Unidos e Unio Sovitica assinam o SALT II; a Unio Sovitica invade o Afeganisto; o Senado dos Estados Unidos no ratifica o SALT II.

    1981-1989 A Doutrina Reagan proporciona a base para os Estados Unidos apoiarem foras "anticomunistas" na Nicargua e no Afeganisto.

    1983 Os Estados Unidos invadem a ilha de Granada. 1985 Gorbachev inicia refomias econmicas e polticas na Unio Sovitica. 1989 Revolues pacficas na Europa Oriental substituem governos comunistas; cai o

    Muro de Berlim. 1990 A Alemanha reunificada. 1991 Renncia de Gorbachev; colapso da Unio Sovitica. 1992-1993 Rssia e outras antigas repblicas soviticas tomam-se Estados independentes.

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    A Guerra Fria: uma viso de Cuba

    P E R S P E C T I V A S G L O B A I S

    Cuba, como Berlim, foi um dos pontos de ignio da geopoltica durmte a Guerra Fria. Polticos americanos consideravam o governo revolucionrio comunista de Cuba como uma ameaa, e quando a Unio Sovitica instalou misseis em tenitrto cubano o gover-no dos Estados Unidos sentiu que a sobrevivncia nacional estava em jogo. Todavia, do ponto de vista cubano, os Estados Unidos eram um vizinto hostil e a Unio Sovitica um aliado necessrio.

    Em 1959, um bando de guenilheiros liderados por Fidel Castro tomou o poder em Cuba. O novo regime expropriou imediatamente as propriedades americanas e nacionalizou refinarias de petrleo pertencentes a americanos. Como retaliao, os Estados Unidos impuseram um embargo comercial e circulavam mmores de que a CIA estava treinando exilados cubanos para uma ao invasiva contra Cuba. Em 1961, a operao Baa dos Porcos, lanada pelos exilados cubanos na tentativa de depor Castro, confinnou as suspeitas desse governante. A operao falhou: 90 exilados foram mortos e 1.200 capturados. A cumplicidade do governo dos Estados Unidos foi provada quando, mais tarde, resgatou os que tinham sido capturados.

    Em meio a essa confrontao com os Estados Unidos, Castro encontrou um amigo na Unio Sovitica. Vnculos diplomticos formais foram estabelecidos entre os dois pases em 1960.0 incidente da Bua dos Porcos ajudou a cimentar esse relacionamento quando o pre-mi sovitico Khrushchev externou apoio posio de Cuba e avisou que mais interferncia dos Estados Unidos resultaria em um incidente internacional. O anncio feito por Castro em 1961 de que sua revoluo era socialista e que ele sempre tinha sido marxista aprofundou os vnculos de Cuba com a Unio Sovitica.

    Quando a Unio Sovitica props instalar msseis balsticos em solo cubano em 1962, Castro concordou, ansioso por agradar seu aliado na luta contra os Estados Unidos. Cuba considerava os msseis como um agente de inibio contra uma invaso americana, enquanto a Unio Sovi-tica considerava essa ao um meio de compensar seu atraso no programa de msseis. Alm do mais, Cuba "devia" Unio Sovitica, visto que os soviticos estavam fornecendo a Castro outros armamentos e assistncia econmica, e o comrcio com os soviticos estava ajudando a economia cubana a manter-se. O conflito resultante da confrontao entre a Unio Sovitica e os Estados Unidos sobre os msseis em Cuba tomou-se um smbolo da GuenB Fria

    Depois que os soviticos foram forados a desmontar os msseis, Cuba reconheceu que sua melhor defesa era o ataque e disseminou sua ideologia e suporte poltico para pases em desenvolvimento. O regime mudou o foco de sua poltica externa para a promoo da revo-luo em outros pases em desenvolvimento. O colega de longo tempo de Castro, Emesto "Che" Guevara, passou a maior parte da dcada de 1960 tentando fomentar a revoluo na Amrica Latina. Na dcada de 1970, Cuba enviou 36.000 soldados a Angola e um contingente de 16.000 Etipia. Embora os interesses soviticos no fossem to fortes no primeiro caso, o apoio de Cuba ao na Etipia mostra a confluncia das intenes soviticas/cubanas. A expanso do poder de cubanos e soviticos por meio de um Estado agente como a Etipia significava um revs para seu inimigo mtuo, os Estados Unidos, em parte porque seria mais difcil para o Ocidente controlar linhas martimas vitais.

    Para anlise crtica 1. Na Guerra Fria, Cuba era um agente entre os Estados Unidos e a Unio Sovitica? 2. Quais eram os interesses nacionais de Cuba durante a Guerra Fria?

  • o C O N T E X T O H I S T R I C O D A S R E L A E S I N T E R N A C I O N A I S . . . I 43

    O Vietn configurou um teste de tipo diferente. Al i , a Guerra Fria desenvolveu-se no em uma nica crise dramtica, mas em uma guerra civil abrangente na qual o Vietn do Norte comunista e seus aliados chineses e soviticos confrontaram-se com o "mundo livre" - o Vietn do Sul aliado com a Frana, os Estados Unidos e diversos partidrios, entre eles Coria do Sul, Filipinas e Tailndia. Para a maioria dos polticos dos Estados Unidos, no final da dcada de 1950 e incio da dcada de 1960, o Vietn representava mais um teste da doutrina de conteno: a influncia comunista tinha de ser estancada, argumentavam eles, antes de espalhar-se como uma carreira de peas de domin que caem uma aps a outra por todo o resto do sudeste da sia e alm (da surgiu o termo efeito domin). Assim, os Estados Unidos apoiaram os ditadores do Vietn do Sul, Ngo Dinh Diem e Nguyen Van Thieu, contra o regime comunista rival de Ho Chi Minh no norte, que era avalizado pela Repblica Popular da China e pela Unio Sovitica. Po-rm, como o governo e o exrcito do Vietn do Sul no conseguiram cumprir sua parte, os Estados Unidos intensificaram o suporte militar aumentando o contingente de tropas em terra e elevando progressivamente o combate areo no norte.

    Nos primeiros estgios, os Estados Unidos estavam razoavelmente confiantes na vitria; afinal, uma superpotncia com todo o seu aparato militar e fora de trabalho tecnicamente especializada com certeza poderia derrotar um fora guerrilheira mal treinada. Todavia, logo os polticos dos Estados Unidos desiludiram-se, medida que o nmero de baixas americanas aumentava e o pas se desencantava. Os Estados Uni-dos deveriam usar toda sua capacidade militar convencional para evitar a "queda" do Vietn do Sul e afastar o perigo do efeito domin? Os Estados Unidos deveriam lutar at garantir a vitria para o liberalismo e o capitalismo? Ou deveriam livrar-se desse atoleiro impopular? Os Estados Unidos deveriam capitular s foras do comunismo ideolgico? Essas perguntas, colocadas em termos geoestratgicos, bem como ideol-gicos, definiram os anos intermedirios da Guerra Fria, desde o lento incio da Guerra do Vietn, no final da dcada de 1950, at a dramtica retirada dos oficiais americanos da capital do Vietn do Sul, Saigon, em 1975, simbolizada pelos helicpteros que partiam da embaixada dos Estados Unidos enquanto hordas de vietnamitas tentavam agarr-los e escapar com eles.

    O esforo dos Estados Unidos para impedir uma tomada comunista no Vietn do Sul falhou; porm, ao contrrio do que se esperava, o efeito domin no ocorreu. As alianas da Guerra Fria balanaram dos dois lados: a amizade entre a Unio Sovitica e a China havia muito tinha degenerado em uma luta geoestratgica e uma discusso sobre a forma adequada de comunismo, em especial em pases do Terceiro Mundo. Mas o bloco sovitico saiu da Guerra do Vietn relativamente sem arranhes. A aliana ocidental liderada pelos Estados Unidos ficou seriamente abalada porque vrios de seus aliados (incluindo o Canad) demonstraram forte oposio poltica dos Estados Unidos em relao ao Vietn. A estrutura bipolar do sistema internacional da Guerra Fria estava se esfacelando. A confiana em alternativas militares ficou abalada nos Estados Unidos e solapou por mais de uma dcada sua capacidade de comprometer-se militarmente. O poder dos Estados Unidos deveria ser um poder honrado, mas no Vietn no houve nem vitria nem honradez.

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    Quando uma das superpotncias agia, nem sempre o outro lado reagia. Em alguns casos, o outro lado preferia no agir ou, no mnimo, no reagir altura, ainda que pu-desse intensificar o conflito. Por exemplo, a Unio Sovitica invadiu a Hungria em 1956 e a Tchecoslovquia em 1968, ambas Estados soberanos e aliados do Pacto de Varsvia. Os Estados Unidos condenaram verbalmente essas aes agressivas dos soviticos que, em outras circunstncias, poderiam ter sido combatidas com contra-ataque, mas as aes em si passaram em branco. Em 1956, os Estados Unidos, preocupados com a crise do Canal de Suez, ficaram quietos, cnscios de que no estavam bem preparados para uma interferncia militar. Em 1968, os Estados Unidos estavam atolados no Vietn e assedia-dos por tumultos internos e uma eleio presidencial. Portanto, tambm demonstraram relativa complacncia, embora no tivessem gostado quando os soviticos invadiram o Afeganisto em 1979. De maneira semelhante, os soviticos Rcaram quietos quando os Estados Unidos partiram para ao agressiva dentro da esfera de influncia da Unio Sovitica invadindo a ilha de Granada em 1983 e o Panam em 1989. Assim, durante a Guerra Fria, at mesmo aes evidentemente agressivas por uma das superpotncias nem sempre provocaram uma reao da outra.

    Muitos dos eventos da Guerra Fria envolveram os Estados Unidos e a Unio So-vitica apenas indiretamente; agentes lutaram em seu lugar. Em parte alguma isso foi mais verdadeiro do que no Oriente Mdio. Tanto para os Estados Unidos quanto para a Unio Sovitica, o Oriente Mdio era uma regio de vital importncia em razo de seus recursos naturais (incluindo aproximadamente um tero do petrleo existente no mundo e mais da metade das reservas mundiais de petrleo), de sua posio estratgica como centro de distribuio de transporte entre sia e Europa e de sua significncia cultural como bero das trs maiores religies do mundo. No surpresa que, aps a fundao do Estado de Israel em 1948, reconhecido diplomaticamente primeiro pelos Estados Unidos, a regio tenha sido cenrio de confrontao entre superpotncias por meio de agentes: entre Israel, apoiado pelos Estados Unidos, e os Estados rabes da Sria, Iraque e Egito, apoiados pelos soviticos. Durante a Guerra dos Seis Dias, em 1967, Is-rael aniquilou os rabes equipados pelos soviticos em seis curtos dias, conquistando os territrios estratgicos das Montanhas de Golan, Gaza e Margem Esquerda. Em 1973, durante a Guerra do Yom Kippur, a vitria israelense no foi to acachapante porque os Estados Unidos e os soviticos negociaram um cessar-fogo antes de se passarem muitos anos. Porm, durante toda a Guerra Fria, essas guerras "quentes" foram seguidas por aes de guerrilha executadas por todos os participantes. Enquanto o equilbrio bsico de poder era mantido entre Israel (e os Estados Unidos) de um lado e os rabes (e soviti-cos) do outro, a regio ficava por conta prpria; quando esse equilbrio era ameaado, as superpotncias entravam em cena por meio de agentes, para manter o equilbrio. Outras controvrsias assolavam a regio, como ficou evidente aps o final da Guerra Fria.

    Em partes do mundo de menor importncia estratgica, a confrontao por meio de agentes era o modus operandi preferido durante a Guerra Fria. Na frica houve nume-rosos eventos disso. Quando os belgas colonialistas saram abruptamente do Congo em 1960, surgiu um vcuo de poder. A guerra civil explodiu porque vrias faces conten-doras procuravam conquistar o poder e impor ordem no caos. Um desses contendores.

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    O premi congols Patrice Lumumba (1925-1961), pediu ajuda aos soviticos na luta contra os insurgentes apoiados pelo Ocidente e recebeu suporte diplomtico, bem como suprimentos militares. Todavia, Lumumba foi destitudo pelo presidente do Congo, Joseph Kasavubu, um aliado dos Estados Unidos, Outros ainda, como Moise Tshombe, lder da provncia de Katanga, rica em cobre, tambm estava bastante identificado com os interesses ocidentais e lutava por controle. A guerra civil de trs anos poderia ter-se tornado mais uma longa guerra de agentes entre os Estados Unidos e a Unio Sovitica por influncia nesse continente emergente. Contudo, as Naes Unidas evitaram a con-frontao por agentes com o envio de pacificadores supostamente neutros cuja finalida-de primordial era preencher o vcuo e impedir que as superpotncias transformassem o Congo em mais um terreno da Guerra Fria.

    Contudo, em Angola e tambm no Chifre da frica (Etipia e Somlia), os partici-pantes de guerras civis conseguiram transformar suas lutas em confrontaes por agentes da Guerra Fria conseguindo, desse modo, equipamento militar e assistncia tcnica de uma das duas superpotncias. Esses conflitos armados por agentes serviam aos interesses das superpotncias permitindo que elas projetassem poder e apoiassem interesses geoes-tratgicos (petrleo na Angola, rotas de transporte ao redor do Chifre) e ideologias sem confrontarem-se diretamente.

    A Guerra Fria tambm foi lutada e refreada por conversaes, em reunies de cpu-la (encontros de lderes) e em tratados. Algumas reunies de cpula da Guerra Fria alcanaram relativo sucesso: a cpula de Glassboro em 1967 (entre Estados Unidos e lderes soviticos) iniciou o alvio de tenses conhecido como dtente, mas o encontro entre o presidente Dwight Eisenhower e o premi Nikita Khrushchev em Viena, em 1960, terminou abruptamente quando os soviticos abateram uma aeronave espi U-2 dos Estados Unidos sobre o territrio sovitico. Tratados entre as duas partes impuse-ram limitaes de comum acordo s armas nucleares. Por exemplo, em 1972, o primeiro Tratado de Limitao de Armas Estratgicas (SALT I) estabeleceu um limite superior absoluto quantidade de msseis balsticos intercontinentais (MBIC), disps sobre as ogivas nucleares e a retomada da posse de veculos mltiplos independentemente visados (MIRV) e limitou o nmero de stios munidos de msseis antibalsticos mantidos pelas superpotncias. Portanto, as superpotncias realmente gozaram de perodos de acomo-dao quando podiam concordar com princpios e polticas.

    A Guerra Fria como uma longa paz

    Se a Guerra Fria mais lembrada como uma srie de crises e algumas confrontaes diretas e indiretas, por que denominada "longa paz"? O termo em si foi cunhado pelo historiador diplomtico John Lewis Gaddis para dramatizar a ausncia de guerra entre grandes potncias durante a Guerra Fria. Exatamente como uma guerra generalizada foi evitada na Europa do sculo XIX, uma guerra generalizada tambm foi evitada desde a Segunda Guerra Mundial. Por qu?

    Gaddis atribui a longa paz a cinco fatores, sem que nenhum deles, tomado isolada-mente, seja uma explicao suficiente. provvel que a explanao mais amplamente

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    aceita gire em torno do papel da intimidao nuclear. To logo Estados Unidos e Unio Sovitica adquiriram armas nucleares, nenhum estava disposto a us-las, visto que tal ao poria em risco a existncia de ambos os Estados. Esse argumento ser aprofundado no Captulo 8. Uma outra explicao atribui a longa paz diviso de poder entre os Estados Unidos e a Unio Sovitica. Essa paridade de poder resultou em estabilidade no sistema internacional, como ser explicado no Captulo 4. Contudo, uma vez que o advento das armas nucleares ocorreu simultaneamente emergncia do sistema, im-possvel desvencilhar uma explanao da outra.

    Uma terceira explicao para a longa paz a estabilidade imposta pelo poderio econ-mico hegemnico dos Estados Unidos. Como ocupou uma posio econmica superior durante grande parte da Guerra Fria, os Estados Unidos pagaram de boa vontade o preo da manuteno da estabilidade. Proporcionaram segurana militar ao Japo e grande parte do norte da Europa, e sua moeda foi o alicerce do sistema monetrio internacional. Entretanto, embora esse argumento explique por que os Estados Unidos agiram para real-ar a estabilidade econmica no ps-guerra, no explica as aes dos soviticos.

    Uma quarta explanao atribui o crdito pela manuteno da paz no a nenhuma das superpotncias, mas ao liberalismo econmico. Durante a Guerra Fria, a ordem econ-mica liberal solidificou-se e tornou-se um fator dominante nas relaes internacionais. A poltica tornou-se transnacional sob o liberalismo - baseada em interesses e coalizes que atravessavam as tradicionais fronteiras entre Estados - e, assim, as grandes potncias tornaram-se cada vez mais obsoletas. Por conseqncia, a paz da Guerra Fria atribuda dominncia do liberalismo econmico.

    Por fim, Gaddis explora a possibilidade de que a longa paz da Guerra Fria fosse pre-determinada, isto , apenas uma das fases de um longo ciclo histrico de paz e guerra. Ele argumenta que a cada 100 a 150 anos ocorre uma guerra em escala global; esses ci-clos so impulsionados por crescimento econmico desigual. Essa explicao sugere que a Guerra Fria nada mais do que uma marca em um nico longo ciclo e que os eventos ou condies especficos que ocorreram durante a Guerra Fria no oferecem nenhum poder explanatrio.^5

    Seja qual for a combinao "certa" de explanaes, o terico de relaes internacio-nais Kenneth Waltz comentou a ironia da longa paz: ambos. Estados Unidos e Unio Sovitica, "dois Estados isolacionistas por tradio, que sempre exerceram poltica inter-nacional sem tutela e famosos pelo comportamento impulsivo, bem cedo mostraram-se -nem sempre e no em toda parte, mas sempre em casos cruciais - previdentes, alerta, cautelosos, flexveis e controlados".^^ Os Estados Unidos e a Unio Sovitica, previden-tes e cautelosos um em relao ao outro, tambm tornaram-se previsveis e familiares um para o outro. Interesses comuns no crescimento econmico e na estabilidade do sistema sobrepujaram o longo relacionamento como adversrios.

    A era ps-Guerra Fria A queda do Muro de Berlim em 1989 simbolizou o final da Guerra Fria mas, na ver-dade, seu final foi gradual. Mikhail Gorbachev, o premi sovitico na poca, e outros

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    reformistas soviticos tinliam posto em movimento dois processos internos - a glasnost (abertura poltica) e a perestroika (reestruturao econmica) em meados da dcada de 1980. K glasnost abriu a porta crtica do sistema poltico, culminando no surgimento de um sistema multipartidrio e na reorientao macia do Partido Comunista - at ento monopolista. A perestroika minou as fundaes da economia planejada, uma parte essencial do sistema comunista. No incio, Gorbachev e seus reformadores procuraram salvar o sistema; porm, uma vez iniciadas, essas reformas levaram dissoluo do Pacto de Varsvia e renncia de Gorbachev em dezembro de 1991 e desintegrao da pr-pria Unio Sovitica em 1992-1993.

    As reformas internas de Gorbachev tambm resultaram em mudanas na orientao da poltica externa sovitica. Reconhecendo que era necessrio livrar o pas do atoleiro poltico e da drenagem da economia representada pela guerra no Afeganisto e ao mesmo tempo "salvar as aparncias", Gorbachev sugeriu que os membros permanentes do Con-selho de Segurana das Naes Unidas "poderiam tornar-se os garantidores da segurana regional".O Afeganisto foi um teste pelo qual um pequeno grupo de observadores das Naes Unidas monitorou e inspecionou a retirada do contingente de mais de cem mil soldados soviticos eml988el989 - uma ao que teria sido impossvel durante o auge da Guerra Fria. De maneira semelhante, os soviticos concordaram e deram supor-te retirada das tropas cubanas de Angola em 1988. A Unio Sovitica tinha se retirado, diante da comunidade internacional, de compromissos prximos s suas fronteiras, bem como em lugares longnquos. O mais importante que os soviticos concordaram em cooperar em atividades multilaterais para preservar a segurana regional.

    Essas mudanas na poltica sovitica e a eventual derrocada do prprio imprio mar-cam o incio da era ps-Guerra Fria e hoje so assunto de muito estudo na rea de rela-es internacionais. O que explica essas mudanas notveis? As preparaes do Ocidente para a guerra ou seu forte sistema de alianas foraram a Unio Sovitica submisso? O poder e a poltica ocidentais foram responsveis pela derrocada dos soviticos e, por isso, pelo final da Guerra Fria? Foi o poderio militar do Ocidente que levou os soviticos a tornarem-se menos belicosos e menos ameaadores? Ou eventos internos da prpria Unio Sovitica levaram a essa derrocada? Foi culpa do comunismo, uma estrutura eco-nmica que no era prtica? Foi em razo da resistncia dos que se opunham ao comu-nismo na poltica interna sovitica? Ou foi o fato de que o comunismo no somente fracassou mas, na verdade, resultou em mais pobreza e mais represso poltica? Ou foi o fracasso do sistema burocrtico sovitico que levou desintegrao final do pas? Ser que tambm os Estados Unidos esgotaram sua capacidade de prosseguir com a con-frontao global, como afirmam os tericos realistas russos? No h uma resposta nica satisfatria; elementos de cada uma desempenharam um papel.

    O primeiro teste ps-Guerra Fria da denominada Nova Ordem Mundial veio em resposta invaso e anexao do Kuwait pelo Iraque em agosto de 1990. Apesar da relao de longa data entre os soviticos e o Iraque, a Unio Sovitica (mais tarde, Rs-sia), juntamente com os quatro membros permanentes