20080624 a vitoria de collor

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A VITÓRIA DE COLLOR: UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA Gilberto Velho As recentes e tão esperadas eleições presidenciais, com seu dispu- tado desfecho mobilizaram intensamente, como não poderia deixar de ser, quase toda a população do Brasil. Gostaria de levantar algumas questões que estão mais diretamente ligadas à preocupação e a uma tradição de trabalho voltadas para a dimen- são cultural, simbólica da sociedade brasileira. Com isto, quero deixar claro, não descarto outras análises e enfoques. Creio que é necessário conside- rar o conjunto de valores e atitudes que, de alguma forma, contribuíram para a vitória de Fernando Collor de Melo. É muito fácil explicar o voto das "camadas de baixa renda" em Col- lor como sinal de ignorância, atraso ou alienação. Deve-se, primeiramen- te, assinalar que encontramos na História do Brasil uma longa galeria de personagens que desemboca no presidente eleito. São os heróis salvado- res, tocados por carisma, que mobilizaram, cada qual em circunstâncias específicas, a paixão e admiração de vastos setores da sociedade nacional. Getúlio, Carlos Lacerda, Jânio, Brizola são, entre outros, exemplos de atua- lização de crenças e valores associados ao milenarismo e messianismo 1 . De certa forma Pedro I foi de maneira dramática, no seu tempo, a própria encarnação de D. Sebastião. No mundo luso-brasileiro é o sebastianismo que representa, de modo intenso e sistemático, a crença em indivíduos excepcionais, destinados a redimir, salvar o povo de opressores, da injus- tiça e dos abusos 2 . D. Sebastião, rei de Portugal, da Casa de Aviz, desa- parece em 1578 em Alcácer Quibir lutando contra os mouros. Depois de dois anos de disputas dinásticas, período em que Portugal está sob a re- gência do Cardeal D. Henrique, tio do rei, dá-se o início do chamado Do- mínio Espanhol que perdurará até 1640, com a ascensão da casa de Bra- gança. Não tendo sido encontrado o corpo do jovem monarca, elaboram- se lendas, histórias e versões sobre a sua prometida e desejada volta. Atribuíram-se a D. Sebastião características e poderes sobre-humanos de (1) Sobre milenarismo ver o livro clássico de Nor- man Cohn The Pursuit of the Millenium, Londres, Paladin, 1972. Sobre mes- sianismo ver, entre ou- tros, os livros Messianis- mo no Brasil e no Mundo, de Maria Isaura Pereira de Queirós, São Paulo, Edusp, 1965, e Messianis- mo e Conflito Social, de Maurício Vinhas de Quei- rós, Rio de Janeiro, Civi- lização Brasileira, 1966. (2) Ver, de J. Lúcio de Azevedo, A Evolução do Sebastianismo, Lisboa, Li- vraria Clássica Editora, 1944. 44

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  • A VITRIA DE COLLOR: UMA ANLISE ANTROPOLGICA

    Gilberto Velho

    As recentes e to esperadas eleies presidenciais, com seu dispu-tado desfecho mobilizaram intensamente, como no poderia deixar de ser, quase toda a populao do Brasil.

    Gostaria de levantar algumas questes que esto mais diretamente ligadas preocupao e a uma tradio de trabalho voltadas para a dimen-so cultural, simblica da sociedade brasileira. Com isto, quero deixar claro, no descarto outras anlises e enfoques. Creio que necessrio conside-rar o conjunto de valores e atitudes que, de alguma forma, contriburam para a vitria de Fernando Collor de Melo.

    muito fcil explicar o voto das "camadas de baixa renda" em Col-lor como sinal de ignorncia, atraso ou alienao. Deve-se, primeiramen-te, assinalar que encontramos na Histria do Brasil uma longa galeria de personagens que desemboca no presidente eleito. So os heris salvado-res, tocados por carisma, que mobilizaram, cada qual em circunstncias especficas, a paixo e admirao de vastos setores da sociedade nacional. Getlio, Carlos Lacerda, Jnio, Brizola so, entre outros, exemplos de atua-lizao de crenas e valores associados ao milenarismo e messianismo1. De certa forma Pedro I foi de maneira dramtica, no seu tempo, a prpria encarnao de D. Sebastio. No mundo luso-brasileiro o sebastianismo que representa, de modo intenso e sistemtico, a crena em indivduos excepcionais, destinados a redimir, salvar o povo de opressores, da injus-tia e dos abusos2. D. Sebastio, rei de Portugal, da Casa de Aviz, desa-parece em 1578 em Alccer Quibir lutando contra os mouros. Depois de dois anos de disputas dinsticas, perodo em que Portugal est sob a re-gncia do Cardeal D. Henrique, tio do rei, d-se o incio do chamado Do-mnio Espanhol que perdurar at 1640, com a ascenso da casa de Bra-gana. No tendo sido encontrado o corpo do jovem monarca, elaboram-se lendas, histrias e verses sobre a sua prometida e desejada volta. Atriburam-se a D. Sebastio caractersticas e poderes sobre-humanos de

    (1) Sobre milenarismo ver o livro clssico de Nor-man Cohn The Pursuit of the Millenium, Londres, Paladin, 1972. Sobre mes-sianismo ver, entre ou-tros, os livros Messianis-mo no Brasil e no Mundo, de Maria Isaura Pereira de Queirs, So Paulo, Edusp, 1965, e Messianis-mo e Conflito Social, de Maurcio Vinhas de Quei-rs, Rio de Janeiro, Civi-lizao Brasileira, 1966.

    (2) Ver, de J. Lcio de Azevedo, A Evoluo do Sebastianismo, Lisboa, Li-vraria Clssica Editora, 1944.

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    santidade e, basicamente, o papel de redentor que redimiria os pobres e oprimidos. Em Canudos, no Contestado e em outros movimentos sociais no Brasil identificam-se claramente manifestaes sebastianistas dentro do quadro messinico e milenarista. A figura do jovem rei e sua representa-o de santo guerreiro aproximam-no do prprio So Sebastio e de So Jorge, muito presentes na religiosidade popular luso-brasileira. Aparece, s vezes, misturada com Carlos Magno, os doze pares de Frana etc. As histrias e lendas de lutas contra os mouros, com seu forte carter mani-questa, aproximam os personagens e santos citados. Por mais que possa incomodar historiadores, antroplogos e gegrafos, no preciso muito esforo para perceber que mouros e marajs tambm podem ser aproxi-mados no imaginrio popular, como depoimentos na imprensa durante a campanha eleitoral permitiram vislumbrar, lembrando talvez enredos de escolas de samba. Sabemos da persistncia em boa parte do interior e em cidades pequenas de crenas, festas e rituais que evocam seja a luta de cristos contra mouros, seja, de um modo geral, a interveno de pode-res sobrenaturais e miraculosos em favor dos pobres e oprimidos. Na lite-ratura de cordel, em narrativas de todos os tipos, personagens histricos se fundem com figuras fantsticas em combate contra foras malignas. Em poca de seca, escassez, fome, dificuldades em geral, ressurge ciclicamen-te a esperana de uma terra prometida, abenoada onde "correro o leite e o mel" e a justia ser instaurada. Assim Collor de Melo se encaixa como uma luva dentro deste universo de heris salvadores. Estes, insisto, en-contram terreno particularmente frtil em perodos de crise, deprivation, anomia, desorganizao, como assinalam diversos autores. Sem dvida a comunicao de massa, sustentada por interesses especficos, refora as tradies, maquilando e elaborando a figura do heri salvador. O estilo jovem guerreiro sendo acentuado, viagens de jatinho, aparies sbitas sugerindo o dom da ubiquidade, o ar de vtima/mrtir ameado "no me deixem s" , tudo isso formulado com maior ou menor grau de cl-culo e deliberao, concorre para a construo de personagem extraordi-nrio, possivelmente sobre-humano. Importantssimos dentro deste pro-cesso foram os momentos de participao de Frei Damio na campanha de Collor , far tamente divulgados por todo o pas, reforan-do a presena de uma religiosidade popular no evento eleitoral. Tambm digno de ateno o fato de a campanha, com seus recursos de mdia eletrnica e pirotecnia audiovisual, procurar realar o binmio juventude-modemidade. Os adversrios eram lanados na vala comum da poltica velha, superada. Isto faz todo o sentido, aparecendo como um reforo do anncio dos "Novos Tempos". At que ponto tudo isso ex-pressa um "Brasil Arcaico" ou uma dimenso forte, intensa e atual da cul-tura e da sociedade brasileiras? Tendo a acreditar que, pelo menos, no se deve subestimar a capacidade de permanncia desse sistema de cren-as e valores, sem dvida antigo porque secular, mas que reaparece com vigor atualizando paradigmas, eventualmente com novas roupagens, em situaes de crise e de transio. Rotul-lo de atrasado, alienado etc. no

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    o exorciza nem dilui seu peso e importncia. So percepes e vises de mundo densas e complexas cuja especificidade historiadores e antrop-logos tm procurado captar. Vale salientar que no universo de camadas mdias urbanas tambm encontramos presentes elementos salvacionistas. No Rio de Janeiro, por exemplo, as referncas a Lacerda so esclarecedo-ras, estabelecendo-se notvel continuidade com Collor, cuja vitria nes-tes setores configurou-se com nitidez no segundo turno.

    Eleitores de Maluf, Afif, muitos de Covas, outros de Ulysses e Aure-liano juntaram-se no apoio ao candidato do PRN, j com forte apoio nas bases populares acima mencionadas. Basicamente esses setores sentiram-se ameaados pela candidatura Lula da Frente Popular. O tradicional me-do do comunismo, de hipottico ataque propriedade, experincias trau-mticas com greves e paralisaes, tudo isso reuniu indivduos e grupos cujo espectro ideolgico passa por direita assumida at reformistas mode-rados, incluindo conservadores mais ou menos esclarecidos, liberais de vrios matizes etc. claro que encontramos eleitores de Lula nas camadas mdias. Os exemplos mais evidentes esto na juventude, nos estudantes particularmente, e no meio artstico-intelectual. Mesmo neste ltimo se-tor no foram pouco significativos os apoios a Collor, quebrando uma pre-tendida unanimidade. Os discursos e declaraes de Lula falando de clas-se mdia expressavam, provavelmente, a viso dos setores de classe tra-balhadora do ABC paulista. Emprego, habitao, ir praia nas frias anuais, ir ao restaurante no fim de semana e tomar uma cerveja ao sair do servio atende talvez s demandas bsicas de boa parte dos trabalhadores, mas no d conta das aspiraes diferenciadas de um universo de camadas m-dias complexo, heterogneo, com estilos de vida e padres de consumo no s mais elevados, mas, sobretudo, mais diversificados. Essa viso ho-mogeneizante da "classe mdia" tambm afastou parte desse eleitorado. Por outro lado, no foi apenas o receio de uma poltica esquerdizante que fez com que a candidatura Lula tivesse dificuldade de passar no s no universo de camadas mdias como em outros setores. Aqui acredito que defrontamo-nos com um fenmeno cultural de natureza mais abrangen-te, constituinte da prpria sociedade brasileira. Trata-se da viso hierar-quizante desta sociedade que j foi discutida e analisada por diferentes au-tores, sob diferentes pontos de vista, como Gilberto Freyre, Florestan Fer-nandes e Roberto da Matta3. A questo bsica a da superioridade "na-tural" dos indivduos de casta superior sobre os de casta inferior. Assim Collor de Melo, claramente membro da elite brasileira, filho e neto de po-lticos de atuao nacional, seria inevitavelmente melhor do que Lula, mo-desto migrante nordestino, operrio e lder sindical em So Paulo. Esta superioridade em princpio, se manifesta atravs de uma apresentao do self, de uma maneira de falar, de vestir, de tcnicas do corpo, de sinais externos de participao em um ethos de casta privilegiada. Os erros ou escorreges de portugus de Lula, mais ou menos gritantes, sempre servi-ram de confirmao para essa viso, enquanto os de Collor eram ignora-dos ou minimizados. O debate final, com toda a sua dramaticidade, apre-

    (3) Ver, por exemplo, de Gilberto Freyre Casa Grande e Senzala for-mao da famlia brasilei-ra sob o regime da econo-mia patriarcal, 16. ed., Rio de Janeiro, Jos Olmpio, 1973; de Florestan Fer-nandes O Negro e o Mun-do dos Brancos, So Pau-lo, Difel, 1972; de Rober-to da Matta Carnavais, Ma-landros e Heris uma sociologia do dilema bra-sileiro. Rio, Zahar, 1978.

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    sentou em um palco privilegiado o confronto entre indivduos de dife-rentes castas. Se no primeiro debate o simples fato de Lula ter enfrentado de igual para igual o candidato do PRN j seria surpreendente e meritrio, no segundo o que se passou confirmaria a crena nessa "ordem natural". Cansado, abatido possivelmente pela truculenta campanha que envolveu sua vida particular, Lula parecia, diante da aparente confiana e/ou arro-gncia do opositor, referendar a crena de que um trabalhador no pode-ria ser melhor candidato a presidente do que um membro da elite. Mais uma vez um universo previamente socializado em uma viso de mundo hierarquizante tinha confirmadas suas idias sobre o lugar dos indivduos na sociedade.

    verdade que a eleio foi muito disputada, com uma diferena de cerca de 5% de vantagem do primeiro para o segundo. Lula teve 31 milhes de votos, um resultado mais que expressivo. Sua campanha arre-banhou multides em comcios impressionantes. Os valores da cidadania, da igualdade, sem dvida se difundem pela sociedade, assim como uma crescente conscincia da necessidade de mudanas e reformas mais pro-fundas. importante, no entanto, procurar perceber os limites e caracte-rsticas especficas de diferentes vises de mundo que existem no Brasil. Vale a pena tambm ver como se combinam em diferentes momentos e situaes. Nesse sentido foi expressivo o depoimento de uma empregada domstica carioca: "Ia votar no branco. Mas o patro disse para votar no preto. A eu segui o patro". Entenda-se: a empregada domstica, negra, pretendia votar em Collor, que classifica de branco, mas vota em Lula, classificado de preto, por sugesto do patro. Assim o candidato da classe trabalhadora, ligado s causas da cidadania, acaba sendo votado dentro de um tpico esquema de clientelismo e patronagem. Este caso no ne-cessariamente excepcional. Revela, de um lado, mais uma vez a viso hie-rarquizante que divide a sociedade em castas, aqui representadas por bran-co e preto. Por outro lado, a eleitora de Collor transforma-se em eleitora de Lula dentro dos mecanismos tradicionais, de forma aparentemente pa-radoxal, da sociedade brasileira.

    Estas experincias em questo so exemplos de alguns dos desa-fios com que os pesquisadores tm que se defrontar para melhor com-preender fenmenos culturais e sociolgicos do Brasil contemporneo.

    Gilberto Velho antrop-logo do Museu Nacional.

    Novos Estudos CEBRAP

    N 26, maro de 1990 pp. 44-47

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