20080619 os corpos silenciados

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  • Os corpos silenciados

    ELZA BERQU

    46 NOVOS ESTUDOS N 3

  • Estima-se que mais de 94 milh es de casais estejam esteri l izados, em nossos dias, incapazes de procriar ou com chances que variam de zero at valores ainda desconhecidos de voltarem a gozar do direito de ter fi lhos.

    Quando se considera que em 1970 a cifra era de 20 mi lh es de casais, perce- be-se o enorme aumento (taxa geo- mtrica de crescimento de 13,8% ao ano) do contingente populacional que, ano a ano, vai tendo necessidade, pelas mais variadas raz es, de muti lar seu corpo e seu esprito para fazer frente s perspectivas de vida que se lhe ofere- cem.

    As estatsticas falam de casais, mas quando se desce ao detalhe para saber se se trata de esterilizao tubria ou de vasectomia, ento o que se suspeitava confirmado: so as mulheres as esteril i- zadas. Sobre os homens, as informa es so mais limitadas, e no raro o silncio toma conta das tabelas quando se lhes pergunta o peso que tem o sexo mas- cul ino nas esteri l iza es real izadas.

    Embora j no fim do sculo passado tivessem sido feitas nos Estados Unidos as primeiras cirurgias, quer de laquea- dura tubria, quer de sec ao e ocluso do dueto do testculo, na segunda metade deste sculo que a esteriliza o ganha posi o como um meio anticon- cepcional. nos ltimos cinco anos pas- sa a ser vista como o mais importante recurso inibidor da fertilidade devido sua al ta ef icincia: praticamente cem por cento.

    So vrios os determinantes dessa situa o. Todos eles so permeados ou decorrentes da presso no sentido de, no mais curto espao de tempo, blo- quear o aumento da popula o de mais baixa renda. Impedir o crescimento do nmero dos pobres para que no exis- tam mais pobres. Bela inten o!

    Ideologicamente, equacionou-se o desenvolvimento como fun o direta do ritmo de crescimento populacional (este decorrente, em grande medida, da que- da da mortalidade que teve incio em perodos distintos nas vrias regi es do Terceiro Mundo, marcantemente nas trs ltimas dcadas). A partir dessa "cientfica" constata o, organismos internacionais tomaram a si a tarefa de, por todos os modos, exercer inf luncia para desacelerar esse ritmo de cresci- mento.

    Polpudas verbas foram destinadas para f inanciar a es diretamente controlistas em inmeras regi es do

    mundo, onde a motiva o para conter o aumento populacional j estava presen- te nos governos ou em influentes seg- mentos da sociedade. Simultaneamente, programas mais ou menos discretos de estmulo ao planejamento fami li ar foram sendo includos como parte integrante de outros programas, princi- palmente no campo da sade materno- infanti l, em pases com ou sem uma pol tica populacional explcita, como o Brasil.

    Dados oficiais internacionais infor- mam que, em 1978, 85,4% dos recursos destinados "assistncia internacional" na rea de popula o, num total de aproximadamente 351 mi lh es de d lares, foram aplicados em programas de planejamento fami liar, cabendo ape- nas 8,8% para a investiga o cientfica na mesma rea.

    As esperanas controlistas foram pos- tas na plula anticoncepcional , desde 1956 vista como o mtodo mais vivel e econ mico para programas de massa. Porm os resultados em mui tos pases no levaram os nveis de fecundidade a atingirem, a curto e mdio prazos, o descenso esperado. A euforia inicial encontrou l imites, tambm, dados os efeitos colaterais, alguns bastante graves e amplamente citados na literatura especial izada, a que poderia estar exposto o organismo feminino.

    Isto determinou o abandono def ini- tivo ou a supresso temporria daquele meio inibidor da fecundidade por fra es considerveis das mulheres, comeando pelas de classes mais favorecidas. Embora a investiga o cientf ica na rea dos anovulat rios tenha feito progressos significativos, ain- da no foram superadas muitas das contra-indica es deste tipo de trata- mento clnico.

    Assim sendo, nmero cada vez maior de mulheres passou a adotar os dis- posi tivos intra-uterinos ou voltou aos mtodos mais tradicionais, denomina- dos naturais (no Japo, por exemplo, o condon - a conhecida "camisinha" atualmente o mtodo mais popular).

    Mas os riscos de concep o (entre 10 e 20%) a que esto sujeitas as usurias desses mtodos freq entemente as levam prtica do aborto, como forma de p r fim a uma gravidez no desejada. A institucional izao do aborto induzi- do real em muitos pases, como forma de solucionar a clandestinidade e suas conseq ncias. Recorde-se a belssima campanha poltica na Itlia para ratifi- car, pela vontade popular, o aborto legal uma vez que como mtodo inibi-

    Os pobres se reproduzem muito e aumentam sua pobreza. Coitados!

    JULHO DE 1982 47

  • Algo definitivo

    para deter a pobreza:

    esteriliza o

    dor considerado uma proposta vi vel em l timo caso.

    Todavia, nas regi es predominante- mente cat licas, esta institucionaliza o encontra barreiras, deixando, assim, um contingente de mulheres que obrigado a se valer do aborto clandestino ou que acaba por ter um f i lho n o desejado.

    Persistem altas taxas de fecundidade, s vezes anotando-se descensos discre- tos, em muitos pases asi ticos e africa- nos e em alguns da Am rica Latina. Do ponto de vista do "equilbrio internacio- nal", preciso, portanto, "que n o se perca mais tempo, ainda mais que agora loucos naturalistas resolveram reavivar m todos antigos ou aplicar descobertas modernas que podem dar s mulheres meios naturais muito simples de regular sua fecundidade: necessita-se de algo definitivo", bradam os adeptos da "or- dem", os moral istas da imoral idade.

    E a a esteri liza o. O m todo ideal para p r freio na assim chamada "pater- nidade ou maternidade irrespons vel". Laparoscopia, minilaparatomia, lapara- tomia cl ssica, colpotomia, culdoscopia e, possivelmente, outras tantas "copias" e "tomias" s o real izadas hoje, em brevssimo tempo e necessitando cada vez menos de hospital iza o.

    At pouco tempo, em muitos pases, ainda vigoravam certas restri es pr - tica indiscriminada das esteril iza es (observa o quanto idade mnima da mulher, exist ncia de um n mero mni- mo de filhos etc.), com o fim de simul- taneamente proteger a reprodu o da esp cie contra os programas de massa e evitar abusos interferidores no bem-es- tar individual e coletivo.

    Panorama brasileiro

    No Brasi l, n o se disp e de dados a nvel nacional sobre o n mero de mulheres j esterilizadas. Sabe-se, entre- tanto, que em alguns Estados brasileiros este m todo se tornou bastante fre- q ente. No Rio Grande do Norte e em Pernambuco, por exemplo, em 1980, 17% e 19%, respectivamente, das mulheres casadas e com idades entre 15 e 44 anos j estavam esteri l izadas.

    Estas cifras s o maiores que a de S o Paulo, que apresentava, em 1978, 16%. No Rio Grande do Norte, a plula e a esteril iza o competem pelo primeiro lugar como meios inibidores, enquanto em Pernambuco e no Piau a esteri li- za o j a "preferida" das mulheres.

    Onde se real izaram essas inter- ven es? S o os hospitais estaduais,

    municipais ou do INPS, onde as mulheres do Nordeste v m encerrar def ini tivamente sua vida procriativa: 93% das esteriliza es no Piau, 86% no Rio Grande do Norte e 77,5% em Per- nambuco, enquanto em S o Paulo os referidos hospitais respondem por 60% dos casos. Informa es disponveis para S o Paulo mostram tamb m que de 1965 a 1978 a esteriliza o feminina dobrou, passando de 7 a 14% do contin- gente feminino estudado.

    Nesta mesma dire o, , por m, mais alarmante o fato da acelera o dessa pr tica: em Pernambuco, das esteril i- za es feitas, 9% ocorreram antes de 1971, 27% no perodo 1971/75 e 65% hlas! entre 1976 e 1980. Quando se contrasta o Grande Reci fe com o interior do Estado, o panorama anterior praticamente n o se al tera.

    Levando-se em conta que o C digo Brasileiro de tica Mdica condena a esteriliza o, a n o ser em casos excep- cionais (Captulo VI Da Responsabili - dade M dica , artigo 52, "A esteri l i- za o c ondenada, podendo, entretan- to, ser praticada em casos excepcionais, quando houver precisa indica o, referendada por dois m dicos, ouvidos em confer ncia"), a pergunta que os dados acima sugerem se crvel pen- sar em t o grande quantidade de "si- tua es de exce o" que justifiquem as interven es realizadas.

    Como ocorre com o planejamento familiar, est -se deixando nas m os dos m dicos a palavra final sobre ter ou n o ter fi lho, quando e como.

    evidente que segmentos da cate- goria m dica adotaram, definitivamente, a esteriliza o feminina como anticon- cepcional, pois apenas raz es de sa de n o seriam suf icientes para justi f icar tantas esteri liza es. A menos que se admita que as condi es de sa de da popula o feminina deterioraram-se de tal modo que elas se tornaram can- didatas apl ica o do C digo Bra- si leiro de tica Mdica.

    Sabe-se, por outro lado, que o abu- so das ces reas no territ rio nacional acabou por facil itar ou determinar a indica o de uma esteriliza o. No primeiro caso, a ces rea oferecia o momento apropriado para a opera o tub ria, j decidida anteriormente pelo m dico e pela mulher; no segun- do, a repeti o de uma ces rea duas ou tr s vezes (muitas e muitas vezes, sem nenhuma necessidade e sem conhecimento pr vio, pela mulher, do seu significado) acabava por induzir

    48 NOVOS ESTUDOS N 3

  • uma paciente a evi tar, de forma def i- ni tiva, uma futura gravidez.

    Este abuso, que elevou de 15 para 30% a propor o de ces reas no Bra- si l de 1971 a 1980, aumento que se veri f icou em praticamente todos os Estados (S o Paulo passou de 18 para 36%), c ertamente um dos determi- nantes do crescimento da esteri li - za o em nosso pas. Apesar de os dados de S o Paulo indicarem que 25% das esteri liza es no ocorreram no p s-parto imediato, o que leva a pensar na extens o ainda mais abusiva dessa pr tica.

    Ali s, parte a responsabi l idade especf ica que cabe aos m dicos, que n o pode ser negada, necess rio que se diga que a estrutura assistencial que termina por afunilar e colocar sobre o m dico a responsabil idade pelo acon- selhamento ou, na pr tica, por uma decis o de gravssima import ncia, no lugar do seu paciente. O prestgio do aconselhamento m dico, seu lugar na estrutura tc nica da Previd ncia Social, por exemplo, seu monop l io no nefan- do sistema da medicina de grupo con- correm fortemente para isso.

    A ambig idade das Igrejas sobre a esteriliza o, na pr tica lavando as m os quando transferem para o m dico o aconselhamento sobre cada caso o que n o ocorre, por exemplo, com o aborto, onde o an tema estigmatiza as praticantes , tamb m um dado importante dessa quest o.

    Autor itar ismo total

    Estes flashes deixam claro que o Brasil n o escapou do tipo de planeja- mento fami l iar em curso em tantas outras regi es, cuja meta reduzir o mais rapidamente possvel a fecundida- de da popula o mais pobre, ainda que a um custo psicol g ico e sociocul tural elevadssimo. H , em primeiro lugar, um gravssimo problema de sade pbli- ca.

    Mas talvez o mais importante ainda n o seja isto. Uma mulher ou um homem que, para preservarem a pr pria sad e f sica e mental , ou por quest es de eugenia, n o queiram correr o risco de gerar uma prole comprometida fsica ou psiquicamente podem perfeitamente estar praticando um ato de liberdade ao submeterem-se a uma ci rurgia que anule aqueles riscos. Decidem amar sem p r em risco sua rela o e sem tamb m comprometer vidas que n o pediram para ser criadas. N o se pode acei tar in l imine a condena o; longe dos moralistas que recriminam o aborto

    induzido e a esteril iza o, a massifi- ca o desse procedimento, onde o gros- so da popula o empenha o futuro com enorme desconhecimento do seu signifi- cado, que constitui um grave problema de moral p bl ica, de moral do Estado, de moral pol tica. Um caso dram tico de nega o da l iberdade. A esteril iza o o m todo atrav s do qual o controle institucional deliberado pode atingir um grau perfei to e total de autori tarismo.

    Discute-se muito, na esfera acad mi- ca, sobre a reversibilidade da esteri li- za o. Quer seja ou venha a ser revers- vel, para muitas mulheres e homens tra- ta-se de um futuro morto, porque a ela se submeteram ou foram submetidos quando as tc nicas eram outras e cuja revers o pode n o ser mais possvel .

    Pode-se conf iar em opera es feitas por uma medicina ul tramercanti l izada ou pelos infames hospitais de conv nio, onde a sa de medida pelos quil - metros de esparadrapo para constar nas faturas a cobrar do INPS?

    Ainda que se suponha que muito em breve a reversibilidade cir rgica esteja garantida do ponto de vista tc nico, ser que, com a mesma facilidade com que convence hoje uma mulher a tornar-se est ril, ela convencer as institui es e as autoridades a reverterem o processo no momento em que quiser voltar a ser f rti l? Haver ent o a mesma facil idade para desligar ou deslaquear ou. . . as tubas? Ou ter o de enfrentar as enor- mes filas, como j o fazem, para tentar resolver problemas bem menos s rios?

    Para as menos favorecidas, cuja "pa- ternidade e ou maternidade respons - vel" determinou dois fi lhos e uma esteriliza o aos vinte e cinco anos, mas cujo desemprego posterior gerou con- di es de vida que a levaram a perder o lt imo rec m-nascido, s restar a f i la ou a ado o do f i lho de algu m ainda em piores condi es. Para as mais favorecidas, a luxuosa clnica particular e, no caso de impossibil idade de rever- s o, uma viagem a um dos grandes centros e luzes, som, a o: um beb de proveta!

    Mais uma vez est o equivocados os que pensam que um procedimento cir rgico pode curar o sistema brasileiro de suas enfermidades cr nicas e agudas. Ou talvez, pensando melhor, o sistema carea, precisamente, de uma grande cirurgia: n o esta mi da, cotidiana, que se abate sobre os corpos indefesos das mulheres e dos homens pobres. Mas uma grande cirurgia social, para manter o jarg o, que finalmente de luz uma sociedade mais justa e mais igualit ria.

    B IBL IO GR AF IA Anurio Estat st ico do Bra- sil . 1971-198O. FIBGE. BARON, Barnett, F.- Inter- national funding for social science research on popula- tion: trends and issues. Wor- king Paper n 12. February 1981. Internationa! Program, The Population Council. BERQU , ELZA e OYA. Diana T. A esteriliza o feminina, in A fecund idade em S o Paulo. CEBRAP - Editora Brasileira de Cincias. So Paulo, 1977. BONGAARTS, J. The proximate determinants of natural fertility". draft of pa- per to be published in Dete rm inan ts o f Fe rtility in Develop ing Countries : a sum - m a ry of know ledge, Nationa l Academy o f Sc iences , W ash- ington. N A K A M U R A . M i l to n S . e F O N S E C A , J o a q u i m de Pau la B . Pesqu isa es tadua l de sade m a te rno - in fan t il. PESM I/PUCC /78. Camp inas , S o Pau lo . Jane iro, 1979, 2 ed i o . N O R T M A N . D o ro th y L . S te r i l iza t io n a n d th e b ir th ra te . W o rk ing P ape r n 6 . A ug us t , 1980 . C en te r fo r Po licy S tud ies . The Popu la- t io n C ounc il. R O D R IG U E S , W . e t a l i i Apresenta o ge ra l das pes - qu isas de sade ma terno-in - f a n t i l e p l a n e j a m e n t o fam ilia r. R eun io sob re t ipos de fam lia e fec un d ida de . IU S S P . S o P au lo A gos to , 1981.

    Novos Estudos Cebrap SP . v 1, 3, p. 46-49, julho 82

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