2005 silva estudo das praticas mortuárias

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dissertaao de mestrado

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  • 1

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUEOLOGIA

    ARQUEOLOGIA DAS PRTICAS MORTURIAS EM STIOS PR-HISTRICOS DO LITORAL DO ESTADO DE SO PAULO

    Sergio Francisco Serafim Monteiro da Silva

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Arqueologia, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Arqueologia

    Orientador: Profa. Dra. Dorath Pinto Ucha

    So Paulo

    2005

  • 2

    INDICE

    RESUMO............................................................................................................................................. 4 INTRODUO................................................................................................................................... 9 CAPTULO 1 - ARQUEOLOGIA DAS PRTICAS MORTURIAS: QUESTES E

    HIPTESES DE PESQUISA.............................................................................................. 24

    1.1 - Os vivos e os seus mortos: a vez da antropologia e da sociologia da morte.................. 24 1.2 - Arqueologia das Prticas Morturias: tendncias e perspectivas................................... 38 1.3 - O Corpo: atributos biolgicos......................................................................................... 43 1.4 - Sepultamentos humanos: agrupando corpo,cova e acompanhamentos funerrios........ 52 1.5 - Os Rituais Funerrios na Arqueologia............................................................................ 56 1.6 - Etnografia das prticas funerrias: inferncias (im)prescindveis para a arqueologia.... 71 1.7 - Estudos comparativos sobre prticas morturias: perspectivas...................................... 102

    CAPTULO 2 - OS SAMBAQUIS PIAAGUERA , BURACO E OS STIOS TENRIO E

    MAR VIRADO....................................................................................................................... 116

    2.1 - Consideraes iniciais..................................................................................................... 116 2.2 - Aspectos gerais dos stios............................................................................................... 120 2.3 - Variabilidade estrutural/variabilidade scio-cultural: questes para o futuro................ 130

    CAPTULO 3 - MATERIAIS, MTODOS E TCNICAS............................................................. 134

    3.1 - Tipologia e mtodos arqueolgicos................................................................................ 134 3.2 - Classificao dos acompanhamentos funerrios: tipos, atributos................................... 145 3.3 - Caracterizao dos materiais.......................................................................................... 150 3.4 - Variveis culturais e biolgicas: formas de representao analtica das prticas

    morturias...................................................................................................................... 153

    3.5 - Descrio e anlise dos artefatos.................................................................................... 160 3.6 - Sexo e idade.................................................................................................................... 162

    CAPTULO 4 - O CORPO NO CONTEXTO ARQUEOLGICO............................................... 169

    4.1 - Uma multiplicidade de enterramentos............................................................................ 169 CAPTULO 5 - ACOMPANHAMENTOS FUNERRIOS E OUTRAS ASSOCIAES......... 209

    5.1 - Os acompanhamentos funerrios entre as amostras....................................................... 230 5.1.1 - Lticos............................................................................................................................. 238

    5.1.1.1 - Os lticos no contexto funerrio de Piaaguera............................................................... 238 5.1.1.2 - Os lticos no contexto funerrio de Tenrio................................................................... 243 5.1.1.3 - Os lticos no contexto funerrio de Mar Virado............................................................. 248 5.1.1.4 - Os lticos no contexto funerrio de Buraco................................................................... 251

    5.1.1 - Ossos de animais............................................................................................................ 254 5.1.2.1 - Ossos de animais no contexto funerrio de Piaaguera.................................................. 255 5.1.2.2 - Ossos de animais no contexto funerrio de Tenrio....................................................... 257

  • 3

    5.1.2.3 - Ossos de animais no contexto funerrio de Mar Virado................................................. 261 5.1.2.4 - Ossos de animais no contexto funerrio de Buraco...................................................... 262

    5.1.3 - Dentes de animais........................................................................................................... 267 5.1.3.1 - Os dentes de animais no contexto funerrio de Piaaguera............................................ 268 5.1.3.2 - Os dentes de animais no contexto funerrio de Tenrio................................................. 271 5.1.3.3 - Os dentes de animais no contexto funerrio de Mar Virado........................................... 274 5.1.3.4 - Os dentes de animais no contexto funerrio de Buraco................................................ 276

    5.1.4 - Conchas.......................................................................................................................... 280 5.1.4.1 - As conchas no contexto funerrio de Piaaguera........................................................... 281 5.1.4.2 - As conchas no contexto funerrio de Tenrio................................................................ 283 5.1.4.3 - As conchas no contexto funerrio de Mar Virado.......................................................... 288 5.1.4.4 - As conchas no contexto funerrio de Buraco................................................................ 289

    5.1.5 - Outras associaes: ocre, fauna, carvo e estruturas das covas..................................... 293 CAPTULO 6 - INFORMAES BIOARQUEOLGICAS......................................................... 330

    6.1 - Sexo e Idade.................................................................................................................... 330 6.2 - Caractersticas dos dentes............................................................................................... 343

    6.2.1 - Perda dentria................................................................................................................. 344 6.2.2 - Desgaste dentrio........................................................................................................... 347

    6.3 - Outras caractersticas: estatura e osteopatologias........................................................... 353

    CONCLUSES................................................................................................................................... 355 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.............................................................................................. 361 ANEXOS

  • 4

    RESUMO

    O objetivo deste trabalho analisar comparativamente as parcelas operacionais das

    prticas morturias entre sociedades pescadoras-coletoras que viveram no litoral centro-

    norte de So Paulo entre em 5040 a 1381BP.

    Foram estudados os dados morturios dos stios Piaaguera, Tenrio, Mar Virado e

    Buraco. Entre a Baixada Santista e o litoral norte, um significativo nmero de

    sepultamentos foi escavado por arquelogos da Universidade de So Paulo entre em 1962 a

    2004. Foram formuladas 57 variveis culturais e biolgicas distribudas entre 203

    inumaes.

    O Captulo 1 apresenta as estratgias tericas gerais e especficas em arqueologia das

    prticas morturias. As caractersticas estruturais e ambientais dos stios arqueolgicos

    foram esboadas no Captulo 2. O Captulo 3 inclui as terminologias e classificaes para a

    descrio dos sepultamentos e seus contedos. Nos Captulos 4 e 5 so comparados os

    dados morturios e descritos os contextos arqueolgicos dos sepultamentos: corpo,

    acompanhamentos funerrios e outras associaes. No Captulo 6 apresentada uma sntese

    sobre a distribuio dos sexos e grupos etrios entre os stios e sobre as modificaes

    diversas nos esqueletos, patolgicas ou no.

    Apresentamos uma sntese das variaes e similaridades no interior de instncias

    especficas das prticas morturias entre os stios e seus reflexos quanto as dinmicas

    socioculturais envolvidas, carreadas intencionalmente ao sistema de smbolos morturios

    pelas sociedades dos vivos.

    PALAVRAS-CHAVES: Arqueologia da Morte, prticas morturias, pescadores-coletores-

    caadores pr-histricos, simbolismo funerrio

  • 5

    ABSTRACT

    The objective of this work is to analyze the operational portions of the mortuary

    practices comparatively among fisher-gatherer societies that lived in the coast center-north

    of Sao Paulo (5040 to 1381BP).

    Between the Santos and the northern coast, a significant number of burials was

    excavated by archeologists of the University of Sao Paulo enters in 1962 to 2004. They

    were studied the mortuary data of the archaeological sites Piaaguera, Tenorio, Mar Virado

    and Buracao: 57 cultural and biological variables were formulated distributed among 203

    inhumations.

    The Chapter 1 presents the general and specific theoretical strategies in Archaeology

    of the Mortuary Practices. The structural and environmental characteristics of the

    archeological sites were sketched in the Chapter 2. The Chapter 3 includes the terminologies

    and classifications for the description of the burials and their contents. In the Chapters 4 and

    5 the mortuary data are compared and described the archeological contexts of the burials:

    body, attendances mortuaries and other associations. In the Chapter 6 a synthesis is

    presented on the distribution of the sexes and age groups among the sites and about the

    several pathological or non-patologic modifications in the skeletons.

    We presented the synthesis of the variations and similarities inside specific instances

    of the mortuary practices between the four groups and their reflexes the the involved

    sociocultural dynamics, carted intentionally to the system of mortuary symbols by the

    societies.

    WORD-KEYS: Archeology of the Death, mortuary practices, prehistoric fisher-gatherer

    societies, symbolism mortuary

  • 6

    AGRADECIMENTOS Ao Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de So Paulo pelo apoio

    pesquisa; aos Professores Doutores: Dorath Pinto Ucha, orientadora e precursora dos

    estudos em arqueologia das prticas morturias no Estado de So Paulo; Rogrio Nogueira

    de Oliveira, Jos Leopoldo F. Antunes, ambos do Departamento de Odontologia Social da

    Faculdade de Odontologia da USP.

    Aos tcnicos e estagirios dos Laboratrios do MAE, em especial ao fotgrafo

    Wagner Souza e Silva e a Daniella M. Amaral, aos funcionrios dos Servios de

    Conservao, Documentao, Seo de Ps-Graduao e Biblioteca do MAE/USP.

    Aos amigos e colegas arquelogos e etnlogos por suas consideraes e auxilio na

    pesquisa, entre eles: Paula N. Barbosa, Silvia C. Piedade, Silvia L. Campos e Sandra N.

    Amenomori; por breves mas significativos auxlios: Paulo De Blassis, Levy Figuti, Manoel

    Gonzalez, Elaine Hirata, Astolfo G. de M. Araujo, Rafael Bertolomucci, Gilson Rambelli,

    Maria Mercedes M. Okumura, Walter A . Neves, Vernica Wesolowski, Denise Gomes,

    Douglas H. Ubelaker.

  • 7

    Em memria do amigo,

    Dr. Carlos Delmonte Printes

    Aos meus amados,

    Cida e Henrique

  • 8

    O mais inquietante no que se devolva uma beleza morte e que se d a ela um ar de representao. Todas as sociedades sempre o fizeram. Elas sempre enfeitaram a abjeo da morte natural, abjeo social da decomposio que esvazia o corpo dos seus signos, de sua fora social de significar, para no ser mais do que substncia e que, ao mesmo tempo, precipita o grupo no terror de sua prpria decomposio simblica. preciso ornamentar a morte, cobri-la de artificialidade, a fim de escapar a esse momento insuportvel da carne entregue apenas a si mesma, e que cessou de ser signo. J os ossos desnudos e o esqueleto selam a reconciliao possvel do grupo, pois recuperam a fora da mscara e do signo. Mas h entre os dois , essa passagem abjeta pela natureza e pelo biolgico que preciso conjurar a qualquer preo pelas prticas sarcofgicas (devoradoras de carne), que so na realidade prticas semirgicas. Toda tanatopraxia, tambm nas nossas sociedades, portanto analisada como vontade de conjurar esse sbito desperdcio de signos que se abate sobre o morto, de impedir que subsista, na carne a-social do morto, algo que nada signifique.

    Jean Baudrillard, 1996:239

  • 9

    INTRODUO

    Human remains: the archaeology of death or the archaeology of life?

    Um estranho paradoxo relacionado ao estudo arqueolgico dos remanescentes fsicos

    dos mortos chamou a nossa ateno1: os ossos e seus acompanhamentos funerrios prestam-

    se muito mais para revelar informaes sobre a vida dos homens e das suas sociedades do

    que sobre sua morte e extino. A arqueologia da morte no se relaciona melhor do que uma

    arqueologia da vida quando a questo est nos remanescentes humanos. Assim, convm

    lembrar da eficcia de uma arqueologia que trate das prticas funerrias dos vivos sobre os

    mortos, das contraditrias e diversificadas expresses dos comportamentos morturios

    gerados entre as populaes pr-histricas.

    Durante a vida o ser humano valoriza seus pertences, alimentos e agrados, mas

    quando morre, deseja que todos eles o acompanhem, sendo oferecidos ao seu duplo2 , que

    continua. A vida dos mortos est imbricada na dos mortais, sendo-lhe anloga e

    estabelecendo, atravs das prticas funerrias e sua sequncia, trocas simblicas

    normalmente inperceptveis ao arquelogo:

    Archaeologists do not observe the entire sequence of a burial rite.(...) Symbolism

    associated with the liminal transformation of the body, and the segregation of the mourners,

    1 PEARSON, M P. The Archaeologyof Death and Burial.Texas A&M University Press, College Station, p.3, 2002. 2 O conceito antropolgico de duplo remete-se as palavras sombra e reflexo que designam simultneamente o morto. uma representao que diz respeito aos mortos e ao mundo dos espritos. O duplo, termo designativo de fantasmas, espritos, constitui uma forma de contedo individualizado da morte. Trata-se de uma resposta do vivo na sua tendncia de salvar sua integridade para muito alm da decomposio do corpo: a sobrevivncia pessoal garantida atravs da existncia de um espectro, um morto que vive a sua prpria vida, como vivo. O duplo o Eidolon, Ka, Genius, Rephaim, Fravashi, corpo astral, a alma, que no somente a reproduo postmortem do indivduo falecido, mas uma cpia do mesmo enquanto vivo que o acompanha durante toda a sua existncia, duplicando-o e sendo percebido, sentido, ouvido e visto pelo mesmo. (MORIN, E . O Homem e a Morte. Biblioteca Universitaria, Publicaes Europa-America, Portugal,p.125-130, 1970)

  • 10

    may therefore be carried over into the grave and thus preserved archaeologically. Such

    symbolism may include the adornment of the corpse (...) (BARRETT, 1999:397)

    Entretanto, a partir do que os arquelogos puderam descrever e reconstruir, torna-se

    possvel "explicar" o "passado", especialmente sobre essas respostas ao fenmeno morte

    entre populaes extintas.

    Hbitos culturais, doenas degenerativas e determinados traos de prticas

    morturias so alguns dos aspectos de interesse tanto arqueolgico3 quanto

    bioarqueolgico4, sobremaneira recuperveis atravs do estudo sistemtico dos

    sepultamentos humanos. Associando caracteres culturais ou scio-culturais com traos

    biolgicos torna-se possvel estabelecer marcadores diferenciais entre grupos que deixaram

    vestgios de formas de assentamento e comportamentos simblicos, relaes de afinidade,

    obrigaes e traos de animosidade (Barrett, 1999).

    O termo Arqueologia da Morte5 ou Arqueologia das prticas morturias, aqui

    empregado, indica e define a linha de pesquisa adotada para analisar e interpretar dados

    morturios, informaes encontradas no contexto arqueolgico que remetam s prticas

    morturias - parte dos rituais funerrios - de grupos humanos extintos, as respostas dos

    mesmos diante do fenmeno da morte. Esse termo ( Chapman, Kinnes e Randsborg, 1981;

    3 Como em BEMENT, L C. Hunter-Gatherer Mortuary Practices during the Central Texas Archaic, University of Texas Press, Austin, 1994; PEARSON, M P, The Archaeology of Death and Burial, Texas A&M University Press, College Station, 2002; UBELAKER, D H. The Ayaln Cemetery. A Late Integration Period Burial Site on the South Coast of Ecuador. Smithsonian Contributions to Anthropology, Washington, n. 29, 1981; CHAPMAN, R, KINNES, I, RANDSBORG, K. (eds) The Archaeology of Death. Cambridge: Cambridge University Press, 1981; TAINER, J A Mortuary Practices and the Study of Prehistoric Social Systems. In: SCHIFFER, M B (ed.) Advances in Archaeological Method and Theory. Academic Press, v.1, p. 105-141, 1978 e BINANT, P. La Prehistoire de la Mort. Les premires spultures en Europe. Editions Errance. Collection des Hesperides, Paris, 1991, entre os mais significativos trabalhos 4 Para no citar centenas de bons trabalhos, temos os significativos estudos de LARSEN, C S Bioarchaeology: Interpreting Behavior from the Human Skeleton. Cambridge, Cambridge University Press, 1997 e os manuais de WHITE, T D, FOLKENS, P A, Human Osteology. Academic Press, New York, 2000; UBELAKER, D H. Human Skeletal Remains: Excavation, Analysis, Interpretation, Washington DC, Taraxacum, 1989; BUIKSTRA , J E, UBELAKER, D H. Standards for Data Collection from Human Skeletal Remains. Fayetteville, Arkansas Archaeological Survey Report N. 44, 1994; BASS, W. Human Osteology: A Laboratory and Field Manual. Columbia Missouri Archaeological Society, 1995 e BROTHWELL, D R. Digging Up Bones. Ithaca, Cornell University Press, 1981.

  • 11

    Duday, Tillier e Vandermeersch, 1988; Pearson,2002) designa um conjunto de modelos

    interpretativos voltados ao estudo das prticas morturias que surgiu a cerca de vinte anos

    em decorrncia da necessidade de uma reflexo e de mtodos adaptados ao estudo das

    prticas funerrias pr-histricas. Foi a partir da frequncia e da tendncia de se buscar

    bases para uma nova abordagem nessa rea resultante do redimensionamento do objeto e do

    aperfeioamento de tcnicas analticas que aspectos socio-culturais passaram a ser

    pesquisados tendo como foco de estudo no somente os dados materiais, mas aceitando a

    incluso impositiva dos dados biofsicos - como sexo, idade e determinadas modificaes

    sseas e dentrias - e determinadas parcelas das cincias biolgicas. Assim, os esqueletos

    humanos tambm constituem objetos de reflexo arqueolgica.6

    Para Bement(1994:17), o estudo das prticas morturias consiste na reconstruo de

    variveis biolgicas, incluindo idade, sexo e traos herdados, e variveis culturais, incluindo

    a localizao e morfologia da cova, a forma de processamento do corpo e os

    acompanhamentos funerrios. A identificao das formas de variveis culturais e biolgicas

    definem programas funerrios ou padres de sepultamento de uma determinada sociedade

    inserida em um perodo de tempo de longa durao.

    Esse termo inclui, ainda, as investigaes arqueolgicas e etnogrficas das prticas

    morturias (Ucko, 1969; Tainter, 1975; Thomas, 1975; Morris, 1992; Saxe, 1970, 1971;

    Brown, 1971; Tainter, 1978; OShea, 1984; Binant, 1991 e Beck, 1951). Discusses sobre a

    histrica e definies de estudos especialmente voltados as prticas morturias em grupos

    etnogrficos devem-se a Binford (1971), Saxe(1970) e Bartel (1982). No devemos

    esquecer as pertinentes reflexes de Schiavetto(2003)7 sobre a inevitvel presena do

    5 A " archologie de la mort" discutida em BINANT, P. La Prehistoire de la Mort (Les premires spultures en Europe), Collection des Hesperides, Editions Errance,Paris, p. 15-16, 1991. 6 AMBROISE, D, PERLS, C. Note sur lanalyse archologique des squelettes humains. Revue archologique du Centre, v.14, fascculos 1-2, p. 561-585, 1975. 7 SCHIAVETTO, S N de O . A Arqueologia Guarani - construo e desconstruo da identidade indgena. Fapesp, Annablume ed. Srie Antropologia, p.41, 2003.

  • 12

    simbolismo, provavelmente inexistente nos objetos das cincias naturais, e que permeia toda

    produo da cultura material humana. Agora, devemos nos perguntar: e os aspectos menos

    visveis das culturas?

    Pelo uso de documentao etnogrfica torna-se possvel inferir que diferenas nos

    ritos morturios - feitos de aes e pensamentos/sentimentos - esto vinculadas a diferenas

    de afiliao e formas de organizao social entre grupos humanos (Bement, 1994:18).

    Hipoteticamente, os modos de sepultamento variam de acordo com a idade, sexo, status

    social relativo dentro da unidade social e pelo parentesco e afiliao social entre os

    membros no interior de uma sociedade ou na prpria sociedade. Entretanto, convm

    ressaltar que Binford(1971:15) sugeriu essa hiptese tendo em vista uma abordagem

    antropolgica fundada em significativa documentao etnogrfica sobre sociedades

    observadas in vivo 8; que Ucko (1969)9 j alertava sobre a possvel discrepncia entre as

    interpretaes dos arquelogos prehistoriadores e os reais significados de ocorrncias como

    a cremao, as oferendas, e a orientao do corpo e da cova, verificados em contexto

    etnogrfico.

    Tecnicamente, os costumes funerrios provm da deposio potencialmente

    indesejvel do corpo do morto. Ritualmente, os ritos morturios consistem na execuo de

    um nmero de atos simblicos que podem variar de duas formas: na forma de smbolos

    empregados e no nmero e espcie de referentes dados recognio simblica (Binford,

    1971:16). So os componentes tcnicos e rituais dos costumes funerrios (Bement,

    1994:18). Em grupos extintos, sem vnculos scio-culturais ou biolgicos com grupos

    etnograficamente recuperveis, torna-se invivel a aplicao comparativa direta e no

    8 Esse antroplogo etnlogo preocupa-se com questes como as formas de adaptao ecolgica e indcios de reflexos sociais mensurveis a partir da anlise de artefatos por meio da analogia etnogrfica e sua metodologia hipottico-dedutiva. 9 UCKO, P. Etnography and archaeological interpretation of funerary remains. World Archaeology, n. 1, p. 262-280, 1969.

  • 13

    inferida desse modelo de anlise das prticas morturias que inclui o conhecimento de

    atributos de cada persona social reconhecidos no interior do grupo social.

    Aes simblicas traduzidas em atividades rituais - prticas funerrias - atuando em

    um determinado objeto - o corpo do morto - resultam em produtos observveis no contexto

    arqueolgico. Para os arquelogos, esses produtos conhecidos incluem fatores ambientais,

    culturais e biolgicos (Bement, 1994:19). Uma parcela desconhecida da estrutura social

    pode ser observada enquanto um produto dado pelos seus remanescentes arqueolgicos. O

    investimento gerado por relaes sociais de participantes vivos, nesse caso, inobservvel,

    mas verificvel arqueologicamente. Esse produto das aes desenvolvidas sobre o morto, no

    caso a deposio e disposio do corpo, que observvel, possui uma parcela inobservvel

    que inclui o comportamento dos vivos gerado pelo fenmeno da morte (Bartel, 1982:54).

    Assim, o arquelogo pode fazer consideraes sobre os aspectos tcnicos, operacionais

    sobre o comportamento funerrio dos vivos resultantes da deposio do corpo.

    Os rituais funerrios esto relacionados com o sepultamento humano. Nesse

    contexto, distinguem-se inumao, sepultamento secundrio e cremao, formas particulares

    de "ritos de passagem". Essas formas particulares incluem ritos de separao e de

    incorporao, caracterizadores de momentos de estabilidade social (Barrett, 1999).

    Desde a dcada de 1970, o estudo das prticas funerrias tem representado um

    componente de uma teoria de mdio alcance, com representantes na New Archaeology, na

    procura de relaes invariveis entre os remanescentes arqueolgicos estticos e os

    comportamentos dinmicos das sociedades extintas (Pearson, 2002). Nas ltimas trs

    dcadas, o advento da bioarqueologia (Larsen, 2002) resulta em estudos de dieta,

    diferenciao gentica e distribuio geogrfica das patologias, em modelos interpretativos

    de formas de mobilidade adaptativa e na anlise de alteraes esquelticas por hbitos

    posturais e de origem biocultural.

  • 14

    Alm de serem empregadas enquanto reflexos da estruturao interna das

    sociedades, segundo Bement(1994), as prticas morturias podem ser estudadas no mbito a

    etnoarqueologia quanto a identificao de relaes intergrupais, nas quais grupos locais se

    renem em agregaes corporativas, durante os rituais funerrios, deixando suas impresses

    em conjunto no contexto arqueolgico (Jirikowic, 1990; Bloch e Parry, 1982; Woodburn,

    1982; Hertz, 1960). Assim, determinadas formas de disposio dos membros superiores e

    inferiores de um corpo podem revelar possveis diferenas entre grupos no interior de um

    mesmo cemitrio (Pearson, 2002). A combinao das posies dos corpos com as

    disposies dos acompanhamentos funerrios em anlises estatsticas multivariadas (Pader,

    1982)10 pode definir quais variaes ocorreram em cada cemitrio, precisando a existncia

    de pequenos grupos dentro das populaes sepultadas. Torna-se possvel comparar stios

    cemitrios dentro de uma determinada rea geogrfica e como se diferenciam

    cronologicamente e socialmente (Sinclair e Troy, 1992)11.

    A distribuio espacial dos sepultamentos em um stio arqueolgico, seus graus de

    disperso e concentrao e forma de distribuio na estratigrafia horizontal, podem indicar

    depsitos lineares, concntricos ou segmentados (Pearson , 2002:12), auxiliando na anlise

    de diferenas sociais, cronolgicas e de organizao da rea destinada ao cemitrio em dado

    stio arqueolgico. Desse modo, em alguns casos, podem ser inferidos indicadores de

    segregao de gnero e status, da distino entre indivduos normais e desviantes (Shay,

    1985)12 .

    10 Ver o trabalho de Ellen Pader sobre cemitrios pagos Anglo-Saxes do Leste da Glia (PADER, E J . Symbolism, social relations and the interpretation of mortuary remains. Oxford, BAR Supplementary Series 130, 1982). 11 SINCLAIR, P, TROY, L. Current information technology applications to archaeological data from Lower Nubia. In. REILLY, P, RAHTZ, S. (ed) Archaeology and the information age a global perspective. Routledge, New York, p.188-211, 1992. 12 SHAY, T. Differentiated treatment of deviancy at death as revealed in anthropological and archeological material. Journal of Anthropologiical Archaeology, 4: 221-241, 1985.

  • 15

    Os dados arqueolgicos de origem morturia tambm auxiliam na obteno de

    informaes sobre as relaes entre os gneros - as categorias feminino e masculino,

    socialmente construdas (Hastorf, 1998; Arnold e Wicker, 2001). O arquelogo deve ater-se

    as sugestes dos perfis de sexo e idade entre populaes funerrias. A distribuio

    demogrfica das curvas de vida e de morte indicam perodos de mortalidade infantil e por

    sexo, no caso dos indivduos adultos. Sepultamentos de crianas podem estar agrupados

    separadamente dos de adultos, assim como agrupamentos etnicos, membros de afiliaes

    religiosas e membros vinculados a determinadas prticas de subsistncia. Esses aspectos

    envolvem diferenas na orientao da cova, preparao da mesma e disposio e tipo dos

    acompanhamentos funerrios(Pearson, 2002) e mesmo a correlao com inferncias de

    carter etnogrfico.

    A identificao de grupos intra-cemitrio, por exemplo, requer tcnicas estatsticas

    como a anlise de agrupamentos (cluster), de coordenadas principais, componente principal

    e testes de significncia (Drennan, 1996 e Shennan, 1988)13. Torna-se conveniente, por

    exemplo, segundo Renfrew e Bahn (1993:184), a identificao e anlise da distribuio de

    frequncias, por sexo e idade, em histogramas, de objetos de difcil ou demorada

    elaborao, difceis de se obter e provenientes de reas de captao de matrias-primas

    distantes: as "unidades de riqueza". Desse modo, quando podemos controlar a obteno e

    processamento dos dados morturios desde o planejamento de uma escavao:

    (...)Se pueden aplicar sofisticadas tcnicas cuantitativas al anlisis de la

    distribucin de los artefactos en un cementerio, incluyendo el anlisis factorial y el de

    conglomerados(Renfrew e Bahn, 1993:184)

    Outro aspecto importante no estudo de stios com vestgios funerrios relaciona-se

    ao estudo das mudanas na dinmica dos cemitrios pela datao do momento em que os

  • 16

    mortos comearam a ser sepultados e dos perodos caractersticos de abandono da rea para

    fins morturios, isto , dos intervalos de tempo mximos e mnimos de ocupao do stio

    para fins morturios.

    Interessa ao arquelogo no exatamente o modo como os artefatos associados a um

    sepultamento foram confeccionados ou a qual tipo pertencem, mas as comparaes entre

    esses materiais provenientes de stios de uma mesma regio, cronologicamente diferentes e

    que possibilitem a identificao de mudanas em tradies de oferendas e de organizao

    dos sepultamentos. Essa cultura material, especfica do contexto funerrio, apresenta-se no

    corpo (adornos, vestimentas), so do corpo (postura) ou esto fora dele (utenslios,

    armamentos). Elementos do contexto no-funerrio devem sempre ser analisados

    cronologicamente em conjunto com a cultura material especificamente funerria.

    Em resumo, os dados morturios, uma vez registrados em stios arqueolgicos,

    podem propiciar respostas sobre questes da arqueologia das prticas funerrias voltadas a

    diferenciao e similaridade dos aspectos tcnicos ou operacionais dos sepultamentos. Os

    vestgios funerrios propiciam dados morturios em contexto arqueolgico, fora deste, no

    laboratrio ou em conjunto que revelam importantes informaes sobre a variao dos

    acompanhamentos funerrios, cronologia, idade e sexo, formas de assentamento,

    subsistncia e indicadores de diversidade e complexidade social14 e de continuidade ou

    mudana social15.

    O estudo dos sepultamentos humanos constitui uma das formas de arqueologia

    voltada ao conhecimento das sociedades que os formaram. , antes de continuarmos em

    nossa aparente e enfadonha colcha de retalhos, descritiva e processualista marginal, uma

    13 DRENNAN, R D. Statistics of archaeologists: a commonsense approach. New York, Plenum Press, 1996; SHENNAN, S J. Quantifying Archaeology. Edinburgh University Press, 1988. 14 BOURQUE, B J (ed). Diversity and Complexity in Prehistoric Maritime Societies. A Gulf of Maine Perspective. Plenum Press, New York, 1995. 15 Ver SHENNAN, S J. Settlement and social change in central Europe 3500 - 1500 DC. Journal of World Prehistory , 7: 121-161, 1993.

  • 17

    arqueologia comprometida em retomar questes sobre a sua prpria importncia scio-

    poltica: as questes indgenas direcionadas a territorialidade e identidade ou etnicidade, de

    gnero e as questes forenses de carcter poltico. Constitui, desse modo, fonte de

    rememorao e busca de solues a problemas das sociedades do presente. Assim, o estudo

    dos vestgios funerrios em seus contextos de deposio leva-nos muito mais a elucidar

    aspectos da vida cotidiana e das prticas dos vivos do que sobre as circunstncias da morte

    (Pearson, 2002).

    Vamos analisar neste trabalho as similaridades e discrepncias das prticas

    morturias entre populaes extintas de pescadores-coletores, cujos assentamentos

    originaram depsitos diferenciados na costa litornea de So Paulo: os stios Piaaguera,

    Tenrio, Buraco e Mar Virado, escavados entre 1962 e 200516. Para isso foram

    estabelecidas variveis culturais e biolgicas que pudessem ser analisadas e comparadas em

    conjunto. Reforamos as proposies de Morris e Chapmann sobre a composio dos

    sepultamentos humanos e a possibilidade de anlise integrada do corpo, acompanhamentos

    e caracteres da cova e da deposio funerria.

    Os atributos simblicos ou rituais das prticas funerrias no podem ser recuperados,

    mas inferidos/sugeridos ou criados pelo arquelogo com base em descries etnogrficas.

    Os vestgios das prticas funerrias constituem traos de um funeral maior e este um trao

    dos sistemas sociais. Assim, quaisquer tipos de informaes sobre caractersticas das

    sociedades extintas, em especial sobre suas respostas em relao ao fenmeno morte e

    iminncia de desagregao e extino do grupo, podem ser dadas ao nvel das inferncias

    sobre prticas rituais, obtidas de descries etnogrficas e regras gerais do comportamento

    humano diante de situaes anlogas e recorrentes. A partir dos restos humanos e seus

    16 Ver as teses de mestrado e doutorado dos arquelogos Dorath Pinto Ucha e Caio Del Rio Gracia, ambos do IPH e MAE-USP, bem como os dirios e relatrios das escavaes efetuadas por Luciana Pallestrini no stio

  • 18

    acompanhamentos funerrios, bem como sua forma de deposio, podemos inferir as

    caractersticas tcnicas, operacionais do comportamento funerrio intra e inter stios.

    Para isso, elaboramos dados morturios a partir da documentao, bibliografia e das

    sries de vestgios humanos e de cultura material funerria escavados nos sambaquis

    Piaaguera, Buraco e nos stios Tenrio e Mar Virado, situados na Baixada Santista e

    litoral Norte de So Paulo, respectivamente. Buraco e Mar Virado constituem

    remanescentes de estratgias de assentamento, subsistncia e do universo simblico de

    pescadores-coletores em ambiente insular: ilhas de Santo Amaro e do MarVirado. Sero

    analisados caracteres culturais e biolgicos conjuntamente, visando a identificao de

    marcadores especficos de similaridades e diferenas no interior das prticas funerrias

    desses grupos.

    A reconstruo das parcelas operacionais das prticas funerrias nas amostras dos

    litorais Centro e Norte de So Paulo, datadas inicialmente entre 5040 e 1381 BP, visa

    comparar esse tipo de prtica exclusivamente pela integrao dos dados morturios. Sero

    empregadas 54 variveis culturais e 3 biolgicas em cada um dos 203 indivduos das

    deposies funerrias vlidas para as anlises.

    Essas variveis incluem caractersticas registradas em contexto arqueolgico

    referentes as deposies funerrias e aos seus contedos(Pearson, 2002:5-11): as inumaes

    ( a cova e sua estrutura, a posio do corpo, disposio dos membros, orientao, caracteres

    biofsicos), cremaes, acompanhamentos funerrios (adornos, oferendas de restos

    alimentares, artefatos pessoais ou rituais).

    Os temas voltados as prticas funerrias entre populaes pescadoras-coletoras

    litorneas tem sido pouco explorados na literatura nacional. Tanto os atributos culturais,

    quanto os biolgicos, representados pelos vestgios funerrios, raramente so

    Buraco entre 1962 e 1963 e as recentes pesquisas na Ilha do Mar Virado, coordenadas pela arqueloga Dorath

  • 19

    correlacionados entre si e entre sepultamentos de um ou mais stios arqueolgicos. Em

    grande parte dos estudos, as prticas funerrias constituem uma das parcelas do sistema

    social, auxiliando na sua suposta compreenso. Os sepultamentos em si perfazem nichos de

    preservao da parcela mais pesquisada e comparada dos vestgios funerrios em

    bioarqueologia: os restos humanos. Estes so, predominantemente, estudados fora de seus

    contextos deposicionais: devem gerar dados biolgicos especficos, a partir de amostras

    estatisticamente significativas para estudos microevolutivos ou casos mpares que envolvam

    paleopatologias raras. Ainda, o ambiente encontra-se representado nos elementos de cultura

    material funerria, como as espcies de animais marinhos e terrestres cujos ossos, valvas e

    dentes foram empregados para a confeco de artefatos, utilitrios, de adorno ou

    cerimoniais. As formas de escolha, captura e processamento de determinadas espcies, o

    gasto energtico nessas atividades, a mensurao das reas de captao de recursos

    originais, entre outros aspectos , podem tornar-se refletidos nos vestgios funerrios e

    mensurveis estatisticamente.

    Na literatura arqueolgica brasileira, encontramos estudos voltados especificamente

    para as prticas funerrias, quer sejam sobre seus potenciais de interpretao ou crtica sob

    um vis historiogrfico (Becker, 1994; Montardo, 1995; Gaspar, 1994-95; Silva, 2001;

    Ribeiro, 2002)17. Assim, para Gaspar(1994-95), os ritos funerrios constituem parcela de

    anlise para a determinao dos limites de um sistema scio-cultural ( como o sistema

    scio-cultural nico dos pescadores, coletores caadores litorneos). Auxiliaria na distino

    de grupos tnicos pr-histricos, na construo de etnicidades extintas, como sinais

    diacrticos (determinados tipos de traos culturais que devem se opor a outros de mesmo

    P. Ucha. 17 BECKER, I I B. Formas de enterramento e ritos funerrios entre populaes pr-histricas. Revista de Arqueologia, So Paulo, v.8, n. 1, p.61-74, 1994; MONTARDO, D L O . Prticas funerrias das populaes pr-coloniais e suas evidncias arqueolgicas (reflexes iniciais). Tese (Mestrado), Departamento de Histria, PUC-RS, 1995; GASPAR, M D. Espao, ritos funerrios e identidade pr-histrica. Revista de Arqueologia,

  • 20

    tipo para garantir a distino entre os grupos tnicos). No conjunto exclusivo das prticas

    rituais, as parcelas tcnicas das prticas morturias auxiliam no reconhecimento de um

    sistema scio-cultural amplo. Nesse sentido, o domnio funerrio deve apresentar resistncia

    mudana, sofrendo pouca ou nenhuma alterao, mesmo diante de restries ambientais

    ou tecnolgicas. Seria possvel? Parece utpico homogeneizar as formas de produo de

    conhecimento arqueolgico no Brasil e no restante do mundo visando a resposta de

    problemticas especficas. Mas em alguns aspectos concordamos:

    (...) " a importncia da perda de um homem, mulher ou criana pode apenas ser

    depreendida pelo hbito de enterr-los no mesmo espao de moradia, em alguns casos

    extatamente sob a cabana, provavelmente, resultado da inteno de, apesar de morto,

    mant-lo integrado vida social(...) Alguns ossos de corpos j totalmente desarticulados

    eram reinterrados, talvez para acompanhar os recm-chegados nomundo subterrneo".

    (GASPAR, 1994-95:229)

    Os estudos sobre as prticas funerrias em populaes pr-histricas que consideram

    dados morturios de origem cultural e biolgica, correlacionados ou no, esto

    representados por uma gama maior de publicaes. (Kneip e Machado, 1992, 1993;

    Machado, 1993; Machado, Silva e Sene, 1991, 1993; Ucha, 1970, 1973; Machado, 1990;

    Machado, Arajo, Confalonieri e Ferreira, 1981-82; Sene, 1998; Schmitz e Verardi, 1994)18

    .

    So Paulo, v.8, n.2, p. 221-237, 1994-1995; RIBEIRO, M S. Uma abordagem historiogrfica da arqueologia das prticas morturias. Dissertao (Mestrado), Departamento de Histria, FFLCH-USP, So Paulo, 2002 18 KNEIP, L M, MACHADO, L M C. A cremao e outras prticas funerrias em stios de pescadores-coletores pr-histricos do litoral de Saquarema, RJ. Anais da VI Reunio Cientfica da Sociedade de Arqueologia Brasileira, Rio de Janeiro, CNPq, FINEP, UNESA, v.2, p. 459-467, 1992; KNEIP, L M, MACHADO, L M C. Os ritos funerrios das populaes pr-histricas de Saquarema, RJ: Sambaquis da Beirada , Moa e Pontinha. Documento de Trabalho, Rio de Janeiro, n.1, p. 1-76, 1993; MACHADO, L M C. Tendncias continuidade e mudana em ritos funerrios de populaes pr-histricas do estado do Rio de Janeiro. In: BELTRO, M C. Arqueologia do Estado do Rio de Janeiro. Niteri, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro, p.111-118, 1995; MACHADO, L M C, SENE, G A M, SILVA, L P R. Estudo preliminar de ritos funerrios do stio do Caju, RJ. Anais da VII Reunio Cientfica da Sociedade de Arqueologia Brasileira, UFPB, Joo Pessoa , Paraba, p. 75-90, 1993; MACHADO, L M C, SILVA, L P R, SENE, G A M. Padres morturios e adaptao ecolgica. Tradio Una, RJ, Anais da VI Reunio da Sociedade de Arqueologia

  • 21

    Outro nvel dos estudos arqueolgicos empreendidos sobre os vestgios das prticas

    funerrias est refletido na anlises osteolgicas para a diagnose de sexo, clculo da idade

    da morte, paleopatologias/paleoepidemiologias, paleodieta e paleodemografia, relacionadas

    ou no entre si e que representam a maior parte da produo bibliogrfica nacional e

    internacional.

    O estudo das prticas morturias em populaes litorneas pr-histricas, sob o

    aspecto comparativo, como os empreendidos em Bourque(1995), devem considerar as

    deposies funerrias, seus contedos culturais e biolgicos, bem como um instrumental

    terico de apoio a formulao de hipteses e esquadrinhamento dos problemas inerentes aos

    vestgios funerrios extrado da etnografia, de ensaios antropolgicos e sociolgicos sobre o

    fenmeno da morte e suas manifestaes de carcter universal. Outro aparato de apoio

    pesquisa est nas terminologias e classificaes referentes aos contedos dos sepultamentos

    e que sero definidos nos captulos que seguem.

    No captulo 1 foram apresentadas as principais questes e hipteses gerais e

    especficas que nortearam nossa pesquisa. Os pressupostos da antropologia e da sociologia

    da morte foram revisitados, conceitos sobre morte, cultura material, rituais funerrios e

    etnografia das prticas funerrias. Questes advindas de contextos sistmicos ou de vida

    propiciados pelas pesquisas etnogrficas indicam a variabilidade e aspecto proteiforme das

    instncias operacionais dos funerais entre as populaes indgenas tradicionais no Brasil.

    Muito embora apresentada de forma extensa, a tabela de instncias prticas dos rituais

    funreos dos povos indgenas, indica alguns nveis que muito bem podem servir de reflexo

    Brasileira, UNESA, Rio de Janeiro, v.2., p. 476-483, 1991; UCHA, D P. Arqueologia de Piaaguera e Tenrio, anlise de dois tipos de stios pr-cermicos do litoral paulista. Tese (Doutorado), Rio Claro, FFLCH, 1973; MACHADO, L C M. Sobre as prticas funerrias de cremao e suas variaes em grutas do norte e noroeste de Minas Gerais, Revista do CEPA, Rio Grande do Sul, v.20, n. 17, p. 235-247, 1990; MACHADO, L M C; ARAJO, A J G, CONFALONIERI, U; FERREIRA, L F. Estudo prvio de prticas funerrias e o encontro de parasitos humanos na Gruta do Gentio II, Una, MG, Arquivos do Museu de Histria Natural, v. 6 e 7, p. 207-219, 1981-82; SCHMITZ, P I, VERARDI, I, Antropologia da morte. Praia das Laranjeiras: um estudo de caso. Revista de Arqueologia, So Paulo, v.8, n.1, p. 91-100, 1994.

  • 22

    para nosso trabalho, futuras interpretaes arqueolgicas, novos direcionamentos na coleta

    de amostras e dataes, assim como para novas estratgias de escavao.

    Esta abordagem implica em considerar aspectos encontrados em campo com

    possveis significados scio-culturais, ambientais, de explicitao das relaes dos homens

    com seus mortos e o seu reflexo oriundo da sobre seus modos de vida e relaes com o

    meio ambiente, com a paisagem em toda a sua dinmica19.

    O captulo 2 apresenta uma curta reviso sobre os aspectos gerais dos stios

    estudados, sua estruturao interna, composio e aspectos das escavaes.

    No captulo 3 so abordados aspectos sobre as tipologias e os mtodos

    arqueolgicos, as formas de classificao dos acompanhamentos funerrios e elaboradas as

    variveis culturais e biolgicas que foram trabalhadas estatisticamente para comparar

    determinadas parcelas tcnicas das prticas morturias entre as amostras.

    Caractersticas sobre o corpo no contexto arqueolgico como formas de deposio,

    posies dos esqueletos, disposio dos membros, orientao e caractersticas estruturais

    das covas foram tratadas no captulo 4.

    O captulo 5 apresenta os conceitos referentes aos acompanhamentos funerrios e

    associaes congneres. A partir da descrio quantitativa os artefatos so agrupados em

    lticos, sseos, em dentes de animais, conchas e outras associaes como ocre, carvo, fauna

    e esqueletos de animais. Trata-se do captulo que mostra os tipos, quantidades, disposio e

    distino sexual e etria dos acompanhamentos dos mortos nas quatro amostras.

    No captulo 6 so acrescentados e revistos aspectos relacionados ao gnero, classes

    de idade e breves caracteres dentrios e osteopatolgicos. Buscamos caracterizar de forma

    sinttica e por casusticas a populao funerria das amostras. Assim, foram considerados

    19 A perspectiva da percepo humana sobre a paisagem costeira, em especial as ilhas na regio do litoral norte de So Paulo foi estudada em AMENOMORI, S N. Paisagem das ilhas, as ilhas da paisagem: a ocupao dos

  • 23

    aspectos estritamente relacionados a cada amostra, como as quebras dentrias e desgastes

    extramastigatrios de Piaaguera e as osteopatologias evidenciadas em Tenrio, Mar Virado

    e Buraco.

    O captulo 7 contm nossas interpretaes, discusso e concluses sobre as variveis

    analisadas. Incluem-se as explicaes sobre as similaridades encontradas entre os

    sepultamentos, seus distanciamentos e os possveis significados no mbito das instncias

    operacionais das prticas funerrias de populaes extintas que habitaram o litoral de So

    Paulo, reflexos das interaes dos homens com o fenmeno da morte, com universos

    simblicos peculiares e das relaes entre si e com as dimenses da natureza.

    grupos pescadores-coletores pr-histricos no litoral norte do Estado de So Paulo. Tese (Doutorado). Museu

  • 24

    CAPTULO 1 - ARQUEOLOGIA DAS PRTICAS MORTURIAS: QUESTES

    E HIPTESES DE PESQUISA

    1.1 - Os vivos e os seus mortos: a vez da antropologia e da sociologia da morte:

    Tanto a preocupao pela morte quanto pelos mortos encontra expresso na

    sepultura ou nas prticas religiosas que incluem o tratamento do morto20. As sepulturas

    contm os mortos com seus utenslios; os vivos, mantm alimentos, armas, desejos, caadas,

    raivas, uma vida corprea. O utenslio e a morte surgem na vida pr-histrica de forma

    simultnea e contraditria:

    (...) a morte, tal como o utenslio, afirma o indivduo, prolongando-o no tempo como o

    utenslio no espao, se esfora igualmente por ou adaptar ao mundo, exprime a mesma

    inadaptao do homem ao mundo e as mesmas possibilidades de conquista do homem em

    relao ao mundo (Morin, 1970:24).

    A morte entre as populaes pr-histricas, na perspectiva sociolgica de

    Morin(1979), constitui-se enquanto sono, viagem, um renascimento, doena, acidente,

    malefcio, de uma entrada ou passagem para a morada dos antepassados, ou tudo ao

    mesmo tempo. Morte uma transio, uma etapa dentro de um longo caminho de

    de Arqueologia e Etnologia da Universidade de So Paulo. So Paulo, 2005. 20 Ver lista compilada por Herskovits referente ao esquema de itens culturais "universais" (HERSKOVITS, M J. Antropologia Cultural, Man and his works, Ed Mestre Jou, So Paulo, v2, p.8, 1964.)

  • 25

    transies. O momento da morte no est relacionado somente a idia de ps-vida, mas

    tambm a processos do viver, crescer e gerar descendentes. Assim, a morte refere-se vida,

    quela recentemente perdida pelo ente falecido21. Torna-se repleta de metforas de vida

    pois, em si, modifica a ordem natural e esperada da vida. O indivduo morto transportado e

    tratado com rituais especficos, inumado, queimado, mumificado. A morte pr-histrica

    no tem "ser", "essncia", acontece e negada enquanto signo de aniquilamento da espcie.

    Entre a morte e a crena na imortalidade existe propriamente uma rea sombria e terrvel: a

    do funeral.

    A vida continua de gerao em gerao e, em muitas sociedades, essa continuidade

    que lembrada nos rituais funerrios. A continuidade da vida uma realidade mais palpvel

    do que a realidade da morte. Consequentemente valores da vida, da sexualidade e fertilidade

    podem dominar o simbolismo dos funerais22. As conformaes universais da cultura

    indicam a presena de reaes emocionais e associaes simblicas vinculadas morte.

    Nesse aspecto, o estudo da morte oferece a possibilidade de reconstruo de traos

    caracterizadores da cultura.

    Analogias etnogrficas podem ser prximas ou distantes. As analogias prximas

    referem-se a comparaes feitas com um grupo tnico conhecido linguisticamente,

    etnologicamente e historicamente. As formas caractersticas assinaturas arqueolgicas ou

    antropolgicas de uma rea cultural ou tradio podem ser percebidas por meio dos

    contrastes e similaridades entre os grupos comparados, tornando-se claras em estudos

    reconstrutivos23. No universo da arqueologia contamos com um objeto vestigial,

    fragmentrio, sobre o qual nos debruamos com aparatos etnolgicos, antropolgicos, das

    cincias exatas e biolgicas, da estatstica e da especulao, mais, da observao amparada

    21 METCALF, P, HUNTINGTON, R. Celebrations of Death. The Anthropology of Mortuary Ritual. Cambridge University Press, p. 108, 1979. 22 METCALF e HUNTINGTON, ob. Cit. 1979, p.108.

  • 26

    em frgeis estruturas de hipteses. Mas como estudar ritos morturios de populaes

    extintas sem o amparo antropolgico/etnogrfico, mesmo que inferencial na construo de

    novas hipteses de pesquisa ? Hertz(1960) parece propor um modelo inicial.

    Em trs nveis explanatrios, Hertz(1960)24 expem diferentes aspectos dos ritos

    funerrios perceptveis durante o registro etnogrfico dos acontecimentos:

    Esquema 1 - Explanaes genricas dos diferentes aspectos dos ritos funerrios de

    Hertz(1960) para grupos etnogrficos.

    A primeira explanao refere-se a presena de uma escala de ritos especficos que

    expressam parcelas da ordem social do grupo. Esta escala vincula-se diretamente as relaes

    existentes entre os vivos e o funeral e entre o cadver e o sepultamento por meio de

    associaes simblicas e psicolgicas. A segunda explanao de Hertz refere-se ao

    envolvimento entre os vivos e o morto, que implicam na extino gradual da persona social

    23 METCALF e HUNTINGTON, ob. Cit. 1979. 24 HERTZ, R. A Contribution to the Study of the Collective Representation of Death. In: NEEDHAM, R, NEEDAHM, C (trad). Death and the Right Hand. New York, Free Press, 1960.

    O esprito eo morto

    Envolvimento entre os vivos e o morto,

    extino gradual da persona social

    Os vivos e o funeral

    Escala de ritos como expresso da ordem social

    O corpo e o sepultamento

    Escatologia, relao metafsica entre o corpo e o esprito expressa em

    formas de ritos

  • 27

    do falecido: a presena da idia de esprito - alma, ghost, duplo - vinculada ao morto e

    existncia do funeral comandam as relaes entre os vivos ao morto e seu esptrito. A ltima

    explanao sugerida por Hertz25 para a interpretao das relaes entre os vivos e os mortos

    nas sociedades humanas refere-se a presena de relaes escatolgicas, metafricas

    existentes entre o corpo e seu esprito, expressas nas formas dos ritos funerrios. Todas

    essas explanaes buscam estabelecer conexes entre caractersrticas recorrentes nas

    sociedades humanas que se encontram diante do fenmeno (natural) da morte. Os vivos

    participam com os funerais , o sepultamento e a idia de esprito, enquanto queo o morto,

    objeto das aes dos vivos, constitui um dos extratos fsicos (ou no) dessas etapas.

    Antes mesmo de continuarmos a explanao sobre as dimenses do conceito morte,

    includo na conscincia realista da mesma fornecida pelo dado pr-histrico e etnogrfico,

    temos que considerar as contribuies tericas de Bendann (1969), Morin(1970) e Thomas

    (1993).

    Bendann (1969)26 estabeleceu determinadas questes pertinentes ao estudo analtico

    dos ritos funerrios. Referindo-se aos mesmos como fenmeno de distribuio mundial,

    conectado com certos elementos humanos comuns atravs da prpria morte, as vrias

    atitudes em relao a ela, o terror pelo fantasma do falecido, a significncia do

    sepultamento, a atitude especfica diante do corpo e o problema da vida aps a morte. Desde

    que a pessoa falecida partiu para o domnio do imperscrutvel e incompreensvel, seu corpo

    foi associado com a dimenso do misterioso e do estranho e vai ser representado na mesma

    categoria dos troves, relmpagos, terremotos, espritos e outros fenmenos naturais e

    mgicos.

    25 METCALF e HUNTINGTON, 1979, ob cit. P. 83. 26 Professor da Universidade de Chicago e de Colmbia desde 1914. Sua obra de referncia em estudos sobre os costumes morturios inclui a referncia BENDANN, E. Death Customs. An analytical study of burial rites. Dawsons of Pall Mall, London, 1969.

  • 28

    A partir da idia de fazer uma extensa pesquisa nas reas da Melansia, noroeste da

    Sibria, Austrlia e ndia, Bendann procurou estudar o fenmeno mundial da morte

    enquanto um contenedor de um carcter que se apresenta com similaridades e diferenas

    perceptveis entre os grupos humanos dessas regies do planeta. Certas caractersticas dos

    comportamentos humanos diante da morte, quando comparadas entre essas reas,

    mostraram-se comuns, como as causas da morte, os significados do sepultamento, o terror

    pelo esprito do morto, as atitudes especficas diante do corpo, os taboos, o poder do nome

    do falecido, as festas para o morto. Alguns desses elementos so permeados por variaes

    psicolgicas entre os indivduos e os grupos.

    Atravs do esquadrinhamento de Bendann(1969) sobre similaridades e diferenas no

    interior das prticas morturias na amostra por ele delimitada, podemos estabelecer as

    seguintes categorias de anlise que refletem parcialmente aspectos dos eventos

    arqueolgicos de origem funerria:

    1 Origens da morte (mitos de origem); 2 - Causas da morte; 3 Formas de deposio do morto; 4 Temor pelo esprito ou fantasma do morto; 5 Formas de tratamento dado ao cadver; 6 Funeral; 7 Habitao funerria (cabana, tenda, simulacro de habitao construdo sobre a cova); 8 Destruio da propriedade (plantao, bens, animais) do falecido; 9 Formas de purificao (pelo fogo, gua, referentes aos vivos e aos mortos); 10 O poder dado ao nome do morto; 11 Festas ou banquetes funerrios; 12 Crenas na vida aps a morte; 13 Taboos (estatutos de pureza e perigo referentes as prticas funerrias); 14 A participao feminina no ritual fnebre; 15 Concepes morturias de origem totmica (animais, plantas, entidades naturais); 16 Culto aos mortos (visitaes, cerimnias de recordao, oferendas ps-funeral). As questes relacionadas aos mitos de origem da morte em populaes tradicionais e

    pr-histricas (Mtraux, 1947; Bendann, 1969; Thomas, 1993)27 vinculam-se a morte fsica

    27 Mtraux, ob cit 1947, p. 25-30; Bendann, ob cit, 1969: p.21-30 e Thomas, ob cit, 1993: p. 26-30.

  • 29

    e morte biolgica, escatologia e significado do mundo, ao renascimento e regenerao, ao

    antinatural:

    (...)En todas as tribus sudamericanas que conecemos, el fenmeno de la muerte est

    interpretado como el abandono del cuerpo por el alma o almas que lo animaban. Esta

    separao no se produce ms que en circunstancias particulares, no consideradas como

    inevitables cualquiera que sea la causa directa de la muerte, est se atribuye casi siempre a

    un maleficio (Mtraux, 1947:25-26).

    Nesse caso, o mundo concebido como fonte de vida (Thomas, 1993:33) e a morte

    como antinatural, causada por malefcios. Mas o que especfico da morte? A separao da

    alma do corpo, a rigidez cadavrica, parada cardaca, falncia da funo respiratria, a

    decomposio cadavrica? Encontramos sempre uma pluralidade na delimitao do que

    especfico da morte: a morte ao nascer; a morte que consequncia da ao do meio,

    especialmente as enfermidades infecciosas, que atingem crianas e adolescentes; e a morte

    devido ao envelhecimento natural, morbidez senil esperada, contrria as outras mortes. Em

    populaes tradicionais, "arcaicas" (Thomas, 1993:34), a morte identificada a presena de

    determinados signos como a falncia total do corao e pulmes e logo o aparecimento da

    rigidez cadavrica: a alma ou princpio vital partem do corpo.

    O ato de morrer, com tudo o que ele implica, se converte sempre em uma realidade

    sociocultural. Assim, o morto faz surgir, tanto no plano da conscincia individual, quanto

    grupal, conjuntos complexos de representaes fantasias coletivas, jogos de imaginao:

    sistemas de crenas ou valores e provoca comportamentos coletivos e individuais

    atitudes, condutas, ritos codificados mais ou menos rigorosamente, segundo os casos,

    lugares e momentos oportunos.

  • 30

    A morte social (Thomas, 1993:53), com ou sem morte biolgica efetiva ocorre

    quando uma pessoa deixa de pertencer a um determinado grupo, seja por limite de idade,

    perda de funes, por sofrer atos de degradao, proscrio, desterro, desaparecimento e

    esquecimento social. Esse tipo de morte se d por perda da recordao, de memria coletiva

    da pessoa pelo seu grupo social, por excluso, por idade, socialmente reconhecida. Uma

    multiplicidade de ritos procuram sempre sanar o problema da decomposio, sendo

    construdos para favorecer a passagem do morto seu duplo, ghost, esprito, alma, sombra

    para o mundo dos espritos.

    O morrer, entre os povos pr-histricos (entenda-se povos etnogrficamente

    registrados), como um fato antinatural, uma doena, um acidente ancestral hereditrio,

    uma maldio de um feiticeiro ou deus, uma falha ou um mal (Morin, 1970:26). E, "de fato,

    a morte simultneamente natural e anticultural"28: sempre que um ndio morre, no apenas

    seus prrpios parentes, mas a sociedade como um todo, so lesados. Mas uma dvida da

    natureza surge em relao aos homens que em resposta (mori) elaboram o funeral e

    consequentemente, o sepultamento. Construdo entre o momento da morte e o da aquisio

    da imortalidade, constitui-se de um conjunto de prticas que consagram e determinam a

    mudana de estado do morto existe um carcter inicitico no funeral. instrumento de

    institucionalizao de um complexo de emoes, refletindo as perturbaes profundas que

    uma morte provoca entre os vivos (Morin, 1970:27). Essas "perturbaes profundas" , de

    carcter funerrio, denominadas "luto" , so determinadas pelo terror despertado pelo

    processo de decomposio cadavrica do corpo entre os vivos. Assim, essa decomposio

    apressada atravs de processos redutivos do cadver como a cremao, descarnamento e

    limpeza intencional dos ossos e mesmo por endocanibalismo. Pode ser, tambm, evitada a

    28 LVI-STRAUSS, C. Tristes Trpicos. Edies 70, Lisboa, p.218, (1955)1973.

  • 31

    putrefao por meio da mumificao ou, ainda, servir para afastar ou distanciar, com a

    criao dos cemitrios. O corpo, para Morin(1970), um problema:

    A impureza do corpo em decomposio determina (...) o tratamento fnebre do

    cadver (Morin, 1970:28).

    As noes de pureza e perigo perpassam o problema do cadver em sua iminente

    putrefao:

    Grande parte das prticas funerrias e ps-funerrias visa proteger contra o

    contgio da morte, mesmo quando essas prticas apenas pretendem proteger contra o

    morto, cujo espectro malfico, ligado ao cadver que apodrece, persegue os vivos: o estado

    mrbido em que se encontra o espectro`no momento da decomposio no mais do que a

    transferncia fantstica do estado mrbido dos vivos (Morin, 1970:28).

    Temos que, a impureza do morto a sua putrefao, sanada atravs do luto. Surge

    um elemento determinante:

    Perdo de luto Durao da decomposio cadavrica

    O complexo traumatismo da morte/ conscincia do acontecimento da morte/ crena

    na imortalidade constitui as perturbaes funerrias (dos vivos). Uma resposta a presena da

    putrefao e busca da imortalidade se d pela afirmao da individualidade do morto (pelos

    vivos) para alm da morte. Simultneamente constituem a conscincia humana da morte

    (Morin, 1970:34). Entretanto, a afirmao do indivduo (realidade humana primeira)

    normalmente colide com a afirmao do seu grupo social. Nesse aspecto, as

  • 32

    individualidades reconhecidas so os bens pessoais, adornos, a habitao, objetos do

    indivduo em sociedade.

    Assim, a etnologia indica que os mortos tem sido circundados por prticas referentes

    a sua prpria sobrevivncia sob a forma de fantasma, sombra ou ao seu renascimento e

    imortalizao. As prticas realizadas sobre os cadveres vinculam-se a crena numa vida

    postmortem. O dado primeiro e fundamental da morte entre os seres humanos a sepultura:

    Os mortos musterianos so enterrados; amontoam-se pedras sobre os seus despojos,

    cobrindo particularmente o rosto e a cabea. Mais tarde, parece que o morto

    acompanhado pelas suas armas, ossadas, alimentos. O esqueleto besuntado com uma

    substncia cor de sangue. As pedras funerrias esto l para proteger o morto dos animais

    ou para impedir de reaparecer entre os vivos? O cadver humano j suscita emoes que se

    socializam em prticas fnebres e a conservao do cadver implica um prolongamento da

    vida. O no abandono dos mortos implica a sua sobrevivncia (Morin, 1970:24-25)

    Quanto aos cultos e prticas morturias, estes se apegam ao mundo biolgico e o

    ultrapassam. Etnologicamente, na viso psicanaltica e da psicologia infantil aclamadas por

    Morin (1970:103), o conceito da morte entre os povos pr-histricos o cosmomrfico, o da

    morte-renascimento, mediante o qual o morto renasce em um vivo, animal ou criana:

    E isto j desde o paleoltico antigo, em que o esqueleto est encurvado na posio

    fetal (renascimento), mas coberto de ocre e depois acompanhado dos seus objetos pessoais,

    o que implica incontestavelmente o duplo (Morin, 1970:103).

  • 33

    Tanto a morte-renascimento por transmigrao quanto a morte-sobrevivncia do

    duplo constituem crenas, sistemas da morte, etnologicamente universais e estudadas por

    psicanalistas e psiclogos infantis. As crenas nos duplos (espritos) vinculam-se idia de

    renascimento do antepassado sob a forma de recm-nascido. Os duplos que sobrevivem por

    um perodo de tempo vo para o lugar dos antepassados, retornando recm-nascidos:

    provoca-se a morte com um nascimento, nasce-se no mundo a partir da morte de um esprito

    em seu mundo. Mortos e vivos encontram-se, nas sociedades etnograficamente registradas,

    em simbiose, mstica e concreta: o indivduo s ele mesmo devido aos antepassados que

    revivem na sua presena (Morin, 1970:104), reencarnam (Bendann, 1969:162). Os

    banquetes funerrios realizados pelos vivos durante as cerimnias fnebres um mecanismo

    ritual que explora a morte fecundante29.

    A morte enquanto passagem do morto ao mundo do alm, dos antepassados, torna-se

    uma iniciao:

    No decurso das cerimnias fnebres h toda uma gama de prticas que visa a

    iniciar o morto vida pstuma e a garantir-lhe a passagem seja para novo nascimento, seja

    para a sua vida de duplo(...) Essas prticas ocorrem ao lado dos repastos fnebres e das

    outras prticas que fazem das cerimnias fnebres o fenmeno total no qual florescem

    todas as crenas, todos os traumatismos da morte(Morin, 1970:112).

    Quando os vivos depositam armas e alimentos junto dos mortos, atribuem-lhes uma

    natureza corprea, buscando manter suas integridades diante da decomposio cadavrica.

    29 Durante uma refeio de carcter totmico, de aspecto sacrificial, um substituto animal do antepassado degustado pelo grupo. Tais ceias visam regenerar a carne dos vivos atravs das virtudes fecundantes do morto, assegurando seu renascimento. As oferendas ou ddivas oferecidas ao morto para que este se alimente, quando constitudas de animais, implica em sacrifcios .(Morin, ob cit 1970, p 109 e 110).

  • 34

    O morto um duplo, ou seja, o mago de toda a representao arcaica30 que diz respeito aos

    mortos, um acompanhante do vivo durante toda a sua existncia. Quanto aos indivduos

    mais velhos, por vezes, so sepultados vivos, com um pouco de energia vital, para que o

    duplo no se torne muito senil (Morin, 1970: 129).

    Acompanhamentos funerrios, tendo em vista que o duplo do vivo possuiria

    atividades prprias aps a morte, de acordo com seu cotidiano durante a vida, representam

    alimentos, armas, bens pessoais, e mesmo suas vivas, escravos e animais. A casa do morto

    reflexo da habitao do vivo.

    As formas de tratamento dos cadveres na perspectiva antropolgica perfazem

    temtica recorrente em Thomas(1993), Bendann(1969) e Morin(1970). Inicialmente, as

    formas de deposio diferem-se em inumao e incinerao: esses tipos no chegam a se

    opor quando as cinzas so preservadas e inumadas. Simplesmente a cremao representa um

    papel similar ao da decomposio cadavrica: constitui etapa de "reforo" que elimina

    rapidamente a fase impura do apodrecimento, libertando rapidamente o duplo, fantasma, o

    ghost do morto31 .

    A atitude universal com o corpo do falecido mtica e sobrenatural, e o contato com

    ele alarmante. Os mtodos de sepultamento, de deposio do morto dependem de fatores

    diversos como o sexo, a idade, as afiliaes, as doenas, o status (Bendann, 1969:84):

    1 orientao do corpo afetada pela diferenciao hierrquica.2 diferena sexual. 3 diferena etria. 4 cerimnias fnebres conectadas com o esprito do cl.5 tipos de deposio funerria determinados pelo esprito do cl.6 orientao do corpo identificada com a afiliao clnica.7 relaes fratridas, clnicas. 8 relaes de parentesco, familiares. 9 sepultamento de acordo com a classe e subclasse do morto.10-cerimnias fnebres conectadas com o grupo local.11 relaces com as lendas locais: conexo entre o mundo do morto e a orientao do corpo; conexo entre os mitos de origem e a 12- conexo entre os mitos relativos aos ancestrais totmicos e sepulturas em rvores.Dependncia da classe do morto. 13 influencias das condies morais. 14 conexo entre o mtodo de sepultamento e o culto ou adorao ao sol.15- deposio dos ossos relacionada a crenas em animais.16 conexo com infraes sociais. 17 conexes com a reputao do morto. 18 conexo com a divinizao do morto.

    30 Morin, ob cit 1970, p. 126. 31 Morin, ob cit 1970, p. 131; Bendann, ob cit 1969, p. 57.

  • 35

    19 associaes com consideraes ticas. 20 cerimnias conectadas com o status social do morto.21 influncia na deposio funerria das condies ambientais.22 deposio influenciada pelas condies fsicas do morto.23 orientao do morto correlacionada com a sua habitao em vida.24 conexo com o local de nascimento ou de origem do morto.25 deposio influenciada pelas exigncias da ocasio.26 a maneira de escavar a cova conectada com a concepo do lugar de descano ou tmulo do morto. 27 deposio afetada pela localizao das propriedades do morto.

    Os itens 2, 3, 8, 14, 21 e 22 podem ser, de certa forma, considerados como fatores

    observveis durante a escavao arqueolgica e por anlises laboratoriais. O

    estabelecimento de correlaes entre as formas de deposio e esses fatores, em conjunto,

    pode indicar caractersticas prprias das prticas morturias da sociedade em estudo. Fatores

    outros como a causa da morte (por ao de espritos malficos, por idade avanada, por

    violncia, homicdio), tabu vinculado ao sexo, a classe social, status, sinais de cultos post-

    funerrios e de demarcaes da rea da cova podem ser, em termos, inferidos na

    interpretao arqueolgica de prticas morturias especficas. A desigualdade existente nas

    vrias instncias scio-culturais da sociedade dos vivos continua a subsistir na morte.

    O processo de decomposio cadavrica delimita o perodo de luto e dos tratamentos

    fnebres. Aps o mesmo, o osso, os fragmentos sseos so um produto mstico que

    representa a sobrevivncia do duplo , uma efgie que ir suportar o culto funerrio. As

    preocupaes vinculadas putrefao do corpo so amenizadas com a inumao (elemento

    maternal terra), associando-se idia de ressurreio dos corpos. J a tendncia crematista,

    com a destruio imediata do corpo, busca a purificao, espiritualizao mais rpida,

    transmigrao ininterrupta das almas (Morin, 1970:133).

    As prticas morturias vinculam-se idia do duplo e do cadver , ambos

    simultneamente. Existe a supresso da decomposio e a permisso da decomposio

    natural:

  • 36

    Quadro 1 - Interferncias na decomposio do corpo, tratamento e produtos dessas

    intervenes e propsitos dessas prticas para os vivos (modificado de Morin, 1970:134)

    Prtica morturia relacionada decomposio cadavrica - relao duplo/cadver (Morin, 1970)

    Interferncias na decomposio do corpo Tratamento do corpo e produtos Significados da interferncia para os vivos

    A 1 embalsamamento mmia, mumificao A 2 endocanibalismo ossadas

    A supresso da decomposio

    A 3 cremao cinzas

    Conservao de um resduo indestrutvel para o culto

    B 1 isolamento do cadver, exposio ossada B decomposio natural B 2- sepultamento -ossadas32

    Impureza, lutos, funerais duplos

    Esse esquema inclui a prtica morturia em relao ao cadver (com seu duplo).

    Quanto mais reduzido for o espao ocupado pelos vivos, mais perto estaro os mortos nas

    sociedades pr-histricas (Morin, 1970:135). O temor dos mortos resultou no

    distanciamento das sepulturas em relao as habitaes dos vivos. Os mortos podem ter

    alojamentos idnticos aos dos vivos (frica) ou um local apropriado (tumba, mausolu) ou

    mesmo uma cidade prpria (cemitrio, necrpole). Esse local para onde o morto (ghost,

    duplo) parte o da aldeia dos mortos, a cabana dos seus parentes vivos, as ilhas da

    Felicidade (Tuma), ou ilhas da morte, caras aos povos martimos (Omagnas do Alto

    Amazonas, ilhas Salomo, ilhas Trobriand, entre os Daiaques de Bornu)33.

    A cremao, como um mtodo de deposio do morto, deve-se a motivos

    especficos. Serve como uma forma bastante efetiva de prevenir um possvel retorno do

    morto; esse mtodo dissipa a poluio causada pelo morto; protege o corpo da ao doa

    animais; o fogo desvia o morto das maquinaes e influncias dos espritos perversos; um

    meio de favorecer o aconchego e conforto no mundo futuro (terra do alm); enfim, a queima

    elimina o processo de transformao, um processo prejudicial, danoso para os vivos e o

    32 Esses casos incluem as inumaes de corpos descarnados e hiperfletidos, amarrados, em recipientes , cestos, redes, carapaas - os feixes de ossos - cuja verificao se faz em duas instncias: em campo e em laboratrio: a disposio dos ossos (desarticulao, hiperflexo) e marcas de corte que alcanaram os ossos nas reas de insero muscular. 33 Morin, ob cit. 1970, p.138. O autor distingue entre sociedades "primitivas", "pr-histricas", "povos arcaicos" e "civilizaes evoludas", similarmente ao termo "complexidade" social.

  • 37

    morto34. O uso do fogo nesses casos constitui um dos rituais de purificao35, parte

    significativa dos costumes morturios em diversos grupos humanos. So vrias as

    cerimnias morturias diretamente correlacionadas com formas definidas de organizao

    social. Nesses casos a identificao de certas formas culturais como as atividades religiosas

    e ritualsticas incitam a emergncia de valores sociais especficos36.

    Dimenses do fenmeno morte entre populaes pr-histricas so perceptveis no

    contexto arqueolgico sempre de forma fragmentria e inferencial atravs de parcelas

    especficas, tcnicas, das prticas morturias. A partir dessas parcelas, fragmentos de outros

    nveis e resultados de prticas culturais podem ser percebidos, como a existncia de

    adornos, instrumentos vinculados as prticas de subsistncia (caa , pesca, coleta), de

    processamento de alimentos e artefatos (batedores, polidores, raspadores, os prprios

    dentes, uso do fogo) as relaes com o meio ambiente (reas de captao de recursos, tipos

    de fauna e flora explorados). Pois, como geradora de uma das provas de humanizao, a

    sepultura, a

    (...) morte situa-se exactamente na charneira bioantropolgica. a caracterstica

    mais humana, mais cultural do anthropos. impossvel conhecer o homem sem lhe estudar

    a morte, porque, talvez mais do que na vida, na morte que o homem se revela. nas suas

    atitudes e crenas perante a morte que o homem exprime o que a vida tem de mais

    fundamental (...) o caminho da morte deve levar-nos mais fundo na vida (...) (Morin,

    1970:11, 16).

    E so essas as contribuies da antropologia e sociologia ao nosso estudo, que segue.

    34 BENDANN, ob.cit. 1969, p. 50. 35 BENDANN, ob. Cit, 1969, p.121. 36 BENDANN, ob cit. 1969, p. 281.

  • 38

    1.2 Arqueologia das Prticas Morturias: tendncias e perspectivas

    Quando o primitivo cumula o morto de signos, f-lo para lev-lo a transitar o mais rpido possvel para o seu estatuto de morto para alm da ambiguidade entre o morto e o vivo

    testemunhada precisamente pela carne que se desfaz. No se trata de devolver o morto ao vivo: o primitivo entrega o morto sua diferena, pois a esse preo que eles podero

    reconverter-se em parceiros e permutar seus signos. Baudrillard, 1996:239

    O encontro de restos humanos no contexto da escavao gera o interesse entre

    arquelogos, antroplogos e bilogos e resulta na produo de conhecimento arqueolgico

    sobre a morte. A interdisciplinaridade37, nas fases de obteno e elaborao analtica dos

    dados, concomitante as novas descobertas tecnolgicas e cientficas, caracteriza os estudos

    dessa categoria de vestgio. Ossos humanos esto associados a presena de sepultamentos

    humanos, estruturas complexas que envolvem vestgios de cultura material relacionados as

    prticas funerrias que por sua vez vinculam-se ao fenmeno morte e suas implicaes

    socio-culturais, etnicas, ambientais, naturais, individuais e simblicas38.

    Estudos voltados morte na arqueologia incluem os comportamentos morturios

    (formas de deposio e tratamento do cadver), os acompanhamentos funerrios (artefatos

    depositados com o morto durante o funeral), a distribuio espacial do cemitrio

    (localizao, insero ambiental, perodo de uso), mortalidade (causas da morte), patologias

    e anomalias (caractersticas de morbidez que afligiam as populaes) e a dieta e indicadores

    37 Ver a aclamao das novas tecnologias cientficas na arqueologia nos manuais de Cincias Arqueolgicas editados por Brothwell (BROTHWELL, D R, HIGGS, E (eds) Science in Archaeology. Thames and Hudson, London, 1963; BROTHWELL, D R, POLLARD, A M (eds) Handbook of Archaeological Sciences. John Wiley & Sons, New York, 2001) 38 Incluem-se aqui os comportamentos simblicos , comportamentos que comprovam as aptides do indivduo para diferenciar no seio do que percebido uma ordem de realidade irredutvel s coisas e que permite o manejo generalizado destas. Toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas simblicos, na primeira fila dos quais se situam a linguagem, as regras matrimoniais, e, entre outras, a religio (PONTALIS, L e. Vocabulrio de Psicanlise, Martins Fontes, So Paulo, p.481, 1995.).

  • 39

    de sade. Assim, as sepulturas contm um potencial de estudo voltado ao conhecimento

    sobre o corpo, as prticas funerrias, as relaes entre os gneros, formas de subsistncia,

    trabalho, demografia, prticas de canibalismo, cremao, suicdio, sacrifcios humanos,

    sistemas de trocas e casamentos e sobre as formas de interao humana com o meio

    ambiente (Bement, 1994). Atravs dos sepultamentos possvel inferir informaes

    sobre a densidade das populaes pr-histricas. Contribuem duas classes de pesquisadores;

    os biogegrafos e paleobilogos por um lado e os antroplogos e arquelogos por outro.

    Esses pesquisadores empregam mtodos por meio dos quais torna-se possvel estabelecer

    caractersticas demogrficas dessas populaes: tcnicas arqueolgicas voltadas a

    identificao, quantificao e dimensionamento das reas de habitao; estudo da tecnologia

    e da alimentao; anlises estratigrficas; o estudo das alteraes causadas pelos grupos

    humanos pr-histricos nos complexos vegetal e animal e as inferncias geogrficas

    resultantes do estudo das tcnicas e dos recursos disponveis bem como sua comparao

    com populaes atuais semelhantes (Cardoso e Brignoli, 1990)39.

    O estudo do corpo, exumado de sua cova e destitudo de seus adornos e demais

    acompanhamentos, encontra-se no pice na pirmide da produo de conhecimento

    (bio)arqueolgico, aspecto claramente refletido na bibliografia apresentada por Larsen

    (2002) ou na forma encontrada por Bement (1994) para designar o captulo de seu Hunter-

    Gatherer Mortuary Practices during the Central Texas Archaic que trata dos restos

    humanos: Bioarchaeology.

    Entretanto, a anlise dos restos humanos pode estar voltada ao seu aspecto

    deposicional e comparao estrutural40 no contexto do stio, associado as caractersticas

    39 CARDOSO, C F, BRIGNOLI, H P. Os Mtodos da Histria (Introduo aos problemas, mtodos e tcnicas da histria demogrfica, econmica e social). 5 Ed. Graal. Rio de Janeiro, Biblioteca de Histria, v.5, p. 146-147, 1990. 40 BINFORD, S. A structural comparison of disposal of the dead in Mousterian and Upper Paleolithic. In. Southwestern Journal of Anthropology, n.24, p. 139-151, 1968; HARROLD, F. A comparative analysis of

  • 40

    vestigiais cultura material - das prticas funerrias realizadas pelos vivos sobre os mortos.

    A realizao dessas prticas implica, em contexto arqueolgico, na presena de sinais

    indicativos de outras caractersticas scio-culturais e ambientais, vinculadas as formas

    subsistncia, as trocas simblicas em relao a morte, tecnologia, relao de gneros e

    aspectos demogrficos. Trata-se do estudo arqueolgico dos vestgios funerrios inseridos

    em seus contextos de deposio que no deixa de incluir contribuies tericas da

    antropologia, etnografia e tecnocientficas da biologia e tafonomia41 .

    Com o advento das sociedades modernas, os mortos deixaram cada vez mais de

    existir, de ocupar o espao simblico do grupo dos vivos: saem da intimidade domstica

    para os cemitrios42. A morte entre os antigos simultaneamente familiar, prxima e

    atenuada: uma morte domesticada43.

    este tipo de morte que encontramos entre os pescadores-coletores pr-histricos

    que ocuparam a plancie litornea brasileira. Entretanto, a existncia de densas reas com

    sepultamentos em ilhas e a presena da cremao44 so indicativos de uma busca pelo

    distanciamento dos vivos em relao aos mortos. No stio Mar Virado, a presena de

    cremaes suscita a possibilidade de rituais funerrios que incluam banquetes coletivos e a

    separao das reas de ocupao dos vivos em relao aos espaos dos mortos.

    Eurasian Paleolithic burials. World Archaeology, n.12, p.195-211, 1980; BINANT, P. Les pratiques funraires au Palolithique suprieur et au Msolithique. Archeologia Les Dossiers, n.66, p.15-18, sept. 1982. 41 Ver BAUD, C A, La Taphonomie: la transformation des os aprs la mort. Archeologia Les Dossiers, n.66, p.33-35, sept. 1988 42 BAUDRILLARD, J. A Troca Simblica e a Morte. Edies Loyola, So Paulo, p. 173, 1996. 43 Um aspecto da antiga familiaridade com a morte o da coexistncia dos vivos e dos mortos. Os nossos conhecimentos das antigas civilizaes pr-crists foram produzidos, em grande parte, pela arqueologia funerria, atravs da cultura material encontrada nos tmulos (ARIS, P. Sobre a Histria da Morte no Ocidente desde a Idade Mdia. Ed Teorema, Lisboa, p.25, 1989) 44 Para Boudillard, a incinerao do morto constitui resultado de um decoro que probe toda referncia morte, reduo do cadver a um mnimo de vestgios, idia vinculada a higienizao da morte, do impuro, da doena, do extrangeiro nas sociedades modernas (BAUDRILLARD, J. A Troca Simblica e a Morte. Edies Loyola, So Paulo, p. 241, 1996)

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    A Arqueologia das Prticas Morturias parece no passar de uma instncia da

    Arqueologia que contribui tecnicamente para a produo de uma Histoire de la mort na

    viso dos historiadores45. Assim:

    As atitudes diante da morte e a relao entre os vivos e mortos no esto separadas

    de processos histricos mais amplos, da porque cada pas- talvez cada " regio cultural"

    teve uma cronologia prpria das mudanas. (REIS, 1991: 78)46

    O tratamento dispensado ao corpo, ou os remanescentes arqueolgicos desse

    tratamento constitui uma das parcelas de competncia da Arqueologia das Prticas

    Morturias. Quando a morte resulta de causas definidas, detectveis nos restos humanos,

    como doenas epidmicas, leses mortais e morte fetal , o contexto arqueolgico pode

    revelar traos de diferenciao no tratamento dado ao morto.

    O destino dado ao corpo, a idade, o sexo e o status do morto podem diferir quanto ao

    tratamento do cadver nas sociedades humanas. As causas da morte - por violncia,

    homicdio, por suicdio, por velhice, parto ou durante a gravidez, por molstias epidmicas,

    acidente ou guerra - resultam em tratamentos diferenciados do corpo, com rituais ou

    ausncia deles47. O tratamento varia: aquele dispensado aos mortos durante epidemias, aos

    cadveres de esposas grvidas, aos natimortos ou s crianas que morrem logo aps o

    nascimento, ao inimigo morto, ao estrangeiro e ao escravo.

    Quanto remoo do cadver alguns termos tcnicos so imprescindveis. A

    inumao ou sepultamento consiste na prtica de ocultar o cadver sob ou abaixo do nvel

    do solo ou sob monte de terra, madeira, ossos ou pedras, acima do nvel do solo. A inclui-se

    o mtodo do enterro ou enterramento. A cremao a prtica de reduzir o cadver pela ao

    45 Ver OEXLE, O G. A Presena dos Mortos. In: Braet, H, VERBEKE, W (ed.) A Morte na Idade Mdia. Ensaios de Cultura, Edusp, So Paulo, p.28-78, 1996. 46 REIS, J J . A Morte uma Festa. Companhia das Letras, So Paulo, 1991. 47 Ver o GUIA PRTICO DE ANTROPOLOGIA, Comisso do Real Instituto de Antropologia da Gr-Bretanha e da Irlanda, Ed Cultrix, So Paulo, p.162-171, 1971.

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    do fogo, em pira cinerria ou no. A exposio do corpo a prtica de abandon-lo, exposto

    s intempries, a fim de ser destrudo pelos animais. Similarmente pode ocorrer a imerso

    na gua. A preservao a prtica de preservar o corpo. D-se pela dessecao, fumigao

    ou uso de materiais preservativos, atravs do embalsamamento e processos anlogos. A

    Decomposio artificial uma prtica que implica no uso de mtodos artificiais para

    acelerar a decomposio e consequente reduo do cadver. Isso se d pelo uso do calor,

    dissecao das partes moles - descarnamento -, uso de animais, como formigas e peixes.

    Tanto a preservao quanto a decomposio artificial (incluindo a cremao) podem resultar

    em restos humanos que podero ser depositados em recipientes, amarrados, expostos e/ou

    enterrados.

    Entre a morte e a destinao do cadver podem ser empregados mtodos

    consecutivos como a inumao seguida de cremao ou inumao e posterior

    desenterramento e acondicionamento - em urna, cesto, rede, carapaa, peles, nichos - ou

    exposio dos ossos.

    O enterro ocorre em local especial de sepultamento reservado ao grupo local, ao cl

    ou famlia, nas proximidades, sob ou ao lado da habitao. Caracteriza-se pelo tipo de

    tmulo, cova ou tumba, sua forma e materiais construtivos. O corpo pode ser envolvido em

    peles ou esteiras, em determinadas posio e orientao.

    A exumao e disposio secundria do cadver implica na prtica da inumao e

    subsequente exumao, colocando-se os ossos em outro local ou