20º congresso brasileiro de sociologia belém, pa gt 06

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1 20º Congresso Brasileiro de Sociologia 12 a 17 de julho de 2021, UFPA Belém, PA GT 06 - Formas e Experiências Culturais Periféricas A invenção do futuro: percursos de trabalho no campo cultural na periferia de São Paulo Marta de Aguiar Bergamin Profª Drª de Sociologia da Sociologia e Política Escola de Humanidades São Paulo, Junho de 2021

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20º Congresso Brasileiro de Sociologia

12 a 17 de julho de 2021, UFPA – Belém, PA

GT 06 - Formas e Experiências Culturais Periféricas

A invenção do futuro: percursos de trabalho no campo cultural na periferia de São Paulo

Marta de Aguiar Bergamin

Profª Drª de Sociologia da

Sociologia e Política – Escola de Humanidades

São Paulo, Junho de 2021

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1. Trabalho e a politização da vida pela

cultura1

A sociabilidade do trabalho como percurso de vida se constrói a partir

de bases conhecidas, no geral, apresentadas ao longo da infância, no mais

tardar na adolescência. Aqui temos uma consolidação das posições sociais o

que acaba por desenhar a própria reprodução social. Podemos localizar nesse

processo a reprodução social da desigualdade brasileira que apresenta marcas

de gênero e raciais na sua composição de classe. Ao olhar para o mundo do

trabalho com essa lente vislumbra-se que alguns rompimentos com os percursos

familiares podem carregar potências de transformação. Ao mexer peças nesse

tabuleiro da reprodução da desigualdade encontra-se caminhos que podem levar

a outras composições sociais. Não há outro modo de romper os dispositivos que

sustentam a desigualdade social que não passe por uma dissociação com a

sociabilidade primária. A primeira geração a fazer um curso universitário,

trabalhar com coisas muito diferentes do que os percursos familiares e de

proximidade – experenciando novas experiências de percursos mais longos de

estudos e novas perspectivas de trabalho, e aqui nessa reflexão olhando

especialmente os trabalhos de militância na cultura. Se estamos no universo

periférico, as emergências de composição da renda, redes de sociabilidades,

lugares de moradia, são presunções de como essas “escolhas” de trabalho se

compõe.

Romper, superar, mudar percursos familiares não são possibilidades

abertas a todos. As faíscas que inauguram novos interesses de trabalho

acontecem pela apresentação e abertura de possibilidades de estudos,

1 Esse texto compõe a pesquisa da autora: “Percursos de trabalho na periferia da cidade de São Paulo: trabalhos e trabalhos paralelos na produção da vida, a produção do comum”, financiada pela Fundação Escola de Sociologia e Política, PIPED – Programa de Incentivo à Pesquisa Docente.

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profissionais e/ou de militância por pessoas de proximidade. Para isso são

mobilizados afetos.

Como foi para Fernando Ferrari, 44, Co-deputado da Bancada

Ativista, na gestão Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo atual (2019-

2022). Quando aterrizou em outro estado na casa dos seus tios no Ceará para

passar um tempo, esses lhe apresentaram a leitura. Os livros de conteúdo

político abrem para ele interesse que permaneceu produzindo sentidos por toda

a vida, que o moveu a fazer um curso universitário em Ciências Sociais e depois

militar na área da cultura em diversas esferas, como faz até hoje.

A mobilização afetiva parece ser o fundamento que estruturou toda

sua trajetória militante e profissional. A recepção da família em outro estado em

um momento que apresentou dificuldades extremas na adolescência, acende um

lampejo político para si. O primeiro livro lido, apresentado por esses tios, foi Feliz

ano velho, de Marcelo Rubens Paiva; depois a biografia de Che Guevara, que

abre as portas para a América Latina e a política local, como afiram Fernando

em entrevista. Essa ligação da política com a cultura produz uma militância que

parece ter vindo desse lampejo apresentado pelos afetos familiares sólidos. A

ligação afetiva de quem passou por muitas casas, com constantes mudanças

para locais familiares e não familiares, numa vida que apresentou bastante

instabilidade na infância possibilitou abertura de frestas para certa mobilidade

social vinda dos trabalhos militantes na cultura que Fernando se dedicou na

periferia da zona sul de São Paulo.

Caminhos trilhados a partir da mobilização de afetos. Parece

determinante para a composição de novos percursos de trabalho que afetos

proximais sejam transformados conduzindo perspectivas na construção do

futuro. Para mudanças sociais é preciso modificar os afetos que circulam, como

diz SAFATLE (2015). Se pensarmos as trocas das sociabilidades nessa chave

chegamos a configurações do lugar social do trabalho mobilizando também as

subjetivações em uma composição espaço-temporal. Compartilhamos um

mesmo contexto geracional com certas amarrações que conduzem as trajetórias

laborais. Cabe pensar em reproduções com marcas familiares, mas também

geracionais como uma composição da desigualdade.

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Nessa medida, a reconversão que BORDIEU (2007), assim como

LUCKMANN e BERGER (1978) afirmam como mudança de filiação religiosa ou

de condição de vida, pode ser lida aqui na constituição dos novos percursos de

trabalho. Uma reconversão de vida a partir do corte com trabalhos

desqualificados, com pouco reconhecimento social e que não formam uma

produção de sentido forte.

Como para Aline Maria, 36, filha de doméstica, que era levada pela

mãe ao trabalho algumas vezes, onde brincava com canetinhas, lápis de cor, a

brincadeira preferida, em um dos escritórios que fazia faxina. Foi conhecer

trabalhos mais politizados depois de entrar no curso universitário de Artes

Visuais nas Belas Artes, em São Paulo. Curso que entrou com bolsa PROUNI –

a primeira da família a começar um curso universitário, que ainda não conseguiu

terminar. Um trabalho em uma ONG lhe abriu a atenção para essa dimensão da

vida: “Me vi limitada”. A politização da vida e do trabalho foi chegando nesse

momento e depois com a sua chegada na Casa da Mulher do Campo Limpo,

trabalhando com Dona Neide Abati, liderança antiga da zona sul de São Paulo,

que até hoje está à frente da União Popular de Mulheres do Campo Limpo, e

com seu companheiro Rafael Mesquita, 36, que foi coordenador do Banco União

Sampaio. Hoje, Aline mora em um sítio com Rafael e os 3 filhos, produzindo

alimentos orgânicos, em nova mudança da vida, como veremos adiante.

Para ela, essa dimensão política que foi ganhando com as

experiências a conectaram com a comunidade, abrindo um mundo que se

encerrava nas questões cotidianas de família e trabalho. As questões sociais e

raciais aparecem um pouco mais tarde com essas experiências de trabalho

ligadas a uma dimensão política da periferia que trouxeram aberturas

importantes que levou para suas vivências, também de trabalhos. Sua visão de

mundo foi se transformando: a vida na periferia, a dimensão política da

existência, sua negritude e também a militância nas lutas cotidianas para

disputar um mundo melhor para todos, realizada nas dimensões laborais que se

seguiram às primeiras aberturas identitárias e de formação.

A mudança de vida de Aline, com sua mudança para um sítio e

produção de orgânicos está também ainda em conexão para o casal a uma

posição política de composição da vida, com a conexão formada nas

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experiências do Banco Comunitário União Sampaio. Sair da cidade grande para

produzir comida para a periferia, foi uma busca por organizar a vida a partir de

outras estruturas. Com maior autonomia de renda e de trabalho que os projetos

no terceiro setor na periferia não permitem. Formando conexões culturais a partir

da alimentação saudável e da segurança alimentar que já vinham fomentando

desde as ligações com o povo Guarani e as relações com os povos de terreiro

que os projetos da Agência Solano Trindade foram constituindo. A Agência

Popular de Cultura Solano Trindade, iniciada em 2011, foi um projeto que saiu

como um braço do Banco Comunitário União Sampaio, que Rafael Mesquita

coordenava desde seu início no Campo Limpo, numa leitura da produção cultural

efervescente da zona sul já naquele momento. Uma produtora cultural da

periferia que unisse em rede os atores sociais e as experiências já existentes

para fomento de novas formações, era a proposta inicial da Agência. Aline fala

da experiência da 31ª Bienal de São Paulo que ela participa auxiliando a

curadoria da Agência Solano Trindade na participação, que fez parte da

programação off Bienal daquele ano:

“E aí nesse caminho com os povos indígenas, que veio do

Rafa pela sociologia (...) e sua ligação com os povos originais do

Brasil e sua admiração profunda pelos povos indígenas, um dos

primeiros programas que a gente fez foi visitar a aldeia Tenondé Porã.

Então, fui conhecer a Jirá, fomos na casa de reza. A gente ia bastante

lá, fora das atividades de trabalho. E a gente viu nessa relação uma

potência muito grande, realmente das pessoas conhecerem,

saberem, diminuir o preconceito com esses povos. Se beneficiar

dessa relação e não ver os indígenas só como um povo a ser

admirado e preservado. É preciso conviver com eles. Então, nesse

convívio a gente começou a olhar mais essa coisa do ambiente, da

terra, da água. Da espiritualidade também que essa relação traz com

a terra. E dai, inevitavelmente a gente começou ir atras de falar das

minorias, dos povos tradicionais, do conhecimento do candomblé, dos

povos tradicionais que a gente achava necessário dentro do nosso

trabalho fazer a discussão sobre a proteção, convivência, da

diversidade, de tudo isso” (Aline Maria).

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Aline estava contando a influência desse contato na sua formação.

Tanto na produção cultural e, também, nas escolhas de vida que tomaram. E

detalha um pouco sua percepção da participação da Agência Solano Trindade

naquela edição da 31ª Bienal de São Paulo em 2014, onde articularam todo o

conhecimento que estavam buscando em apresentações na exposição:

“E juntamos uma coisa com a outra. Então dentro do

evento da Bienal, com o tema: “Como falar de coisas que não

existem”, o Pablo [Lafuente], que era um dos curadores da Bienal,

queria trazer essa discussão das minorias, de colocar pessoas para

falar, espaços de fala. Várias coisas que foram colocadas no debate.

Foi um projeto muito legal porque foram mais de 25 atividades que

aconteceram na Bienal, um em cada final de semana. De quinze em

quinze dias tinha sarau. E em todas essas atividades a gente colocou

em contato o povo da periferia, o povo indígena e o povo tradicional

de candomblé. Em todos esses encontros eles estavam lá,

comercializando produtos, artesanatos, se apresentando com o coral.

Foi muito maravilhoso! E foi muito intenso. Foi um ano assim muito

intenso de convívio, de contato” (Aline Maria, entrevista em

21/08/2020).

A cultura foi se tornando na periferia .de São Paulo, na zona sul da

cidade, nas três últimas décadas um complexo de lutas e campos de trabalho.

Trabalho que em alguns casos representam uma reconversão social pela quebra

com as trajetórias sociais mais comuns na periferia: um trabalho reconhecido

pelo senso comum como algo viável para se obter renda imediata. E os trabalhos

ligados à cultura nem sempre representam fontes de renda imediata ou de

reconhecimento social de trabalho nesses territórios onde prevalecem a

emergência. Mas, para quem abraça um trabalho principal, ou mesmo um

trabalho além do trabalho, na área da cultura pode constituir uma fonte de

organização da vida, uma organização política da vida, assim é para muitos

militantes e ativistas desse campo: fonte de produção de sentido. A produção de

sentido numa chave psicanalítica é se manter numa atividade psíquica libidinal,

com atividade mental produtiva. A falta de atividades que produzam uma

significação subjetiva forte pode possibilitar o adoecimento tanto físico (parte

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importante das doenças são psicossomáticas), quanto psíquico (DEJOURS

2000 e 2017). Nessa medida, essa atividade psíquica de produção de sentido

através do trabalho na área da cultura é fundamento para uma vida social

criadora de identidades sociais potentes para movimentar as sociabilidades

locais. Uma política da vida.

Já para Dêssa Souza, 39 anos, cantora e atriz, a relação com a arte

foi se formando na adolescência, com os amigos do colegial, mas algumas

referências familiares deixaram uma centelha inicial, além de sua família musical

e ficaram guardadas numa memória afetiva que é um fundamento das suas

escolhas profissionais. Até chegar ao grupo musical Preto Soul e seus grupos

teatrais, compondo o Bando Trapos (localizado no Espaço cultural Cita, na Praça

do Campo Limpo) e seguindo uma carreira solo de cantora durante a pandemia.

“Crescemos nesse contexto assim, a relação de começar

a fazer arte, eu nunca tive, eu falava que queria ser fotógrafa. Meus

tios, meu tio e minha tia, são muito referência para mim. Eram

pessoas muito empreendedoras e ambos fotógrafos de festa, então

eu tinha essa relação com a máquina fotográfica profissional, aquelas

mais antigas, achava magnífica, eu achava bonita, foi a primeira coisa

que quis ser na vida. Falava que queria ser estilista também, queria

desenhar moda” (Dêssa, cantora e atriz).2

Dêssa até assumir um trabalho artístico como profissão levou o

trabalho de desenhista na marcenaria dos tios e do avô, onde trabalhou quase

uma década desde sua formatura no curso de ensino médio em “Técnico em

edificação”.

“Me desliguei da marcenaria dos meus tios. Teve um

momento em que estava meio a meio. Fazia desenho de marcenaria

em casa e metade da minha grana era desenho de marcenaria e a

outra metade era shows e coisas que a gente fazia, assim. E ai

quando engravidei da Ceci, engravidei da Ceci em começo de 2009,

2 As entrevistas e conversas com os participantes da pesquisa foram realizadas entre julho de

2019 e novembro de 2020. Os percursos de trabalho foram traçados com as trajetórias familiares e as composições de trabalhos, percorrendo especialmente os percursos da última década.

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aí que falei: - Agora que não vou arrumar emprego fixo, não. Decidi

que ia trabalhar por conta. Aí fiquei dividida. “Frilando” com desenho

e sendo cantora, só; não trabalhava com teatro, até 2011. Foi quando

rolou a ocupação do Cita, que você conheceu” (Dêssa).

Trabalhar na cultura tem uma força que Dêssa mostra na

possibilidade que conquistou de trabalhar prioritariamente com arte, como

cantora e como atriz. Nesse caso, não foram rompimentos com uma essência

familiar, já estavam presentes ali, ao que parece, ligações artísticas que se

desenvolvem como “vocação”. A infância e as referências da vida vão sendo

fundamentos das escolhas futuras de trabalho.

Parece bastante interessante buscar compreender o sentido do

trabalho com vínculos de produção de identidades. Uma ligação que engancha

uma produção de sentido forte também pelo caráter político nessa articulação

identitária da vida com o trabalho. Os trabalhos ligados à cultura na periferia de

São Paulo ganharam um lugar social de ativismo e militância para muitas

personagens ligadas ao campo cultural, produzindo novas conformações de

trabalho como possibilidades para os mais jovens. Entrelaçamentos de lutas

cotidianas periféricas que conecta diversos ativismos e fazem recolocar as

inserções no mundo do trabalho.

Essa tonificação de uma imaginação social, muitas vezes bloqueada

na periferia, passa por essa ligação entre trabalho e luta. Os trabalhos nas áreas

culturais muitas vezes não são a remuneração principal dos agentes, são

trabalhos fora do trabalho (WEBER, 2009), muitas vezes, e podem fazer

transmutar experiências laborais nas franjas sociais para além dos discursos do

“empreendedorismo de si” – tão em voga nesses tempos de überização do

trabalho, e que aparecem como farsa de práticas que são só submissas a uma

vida social desprovida de sentido. O ativismo cultural/político, nessa medida,

pode ser observado como trabalho, mostrando as faíscas que as conversões de

sociabilidades produzem na periferia, para que a significação forte da produção

subjetiva faça parte da vida de trabalho de quem habita esses territórios mais

distantes do centro.

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Pensar na constituição de outras formas de trabalho perfaz, então, um

polo diverso do mundo do labor na luta por outra inserção social que saia de uma

constituição meramente filiada à produção neoliberal da vida social, que acaba

determinando aos mais pobres (TELLES, 2010), um lugar submisso à

reprodução social da pobreza. Nessa medida, o campo cultural que se forma

como identidade social ganha essa dimensão política, por colocar o conflito como

motor da vida na periferia, nos moldes da constituição de RANCIÈRE (1996).

Uma definição desse campo seria a posição de colocar uma racionalidade

política no jogo, com disputas sobre o mundo comum, perfazendo esse campo

político. A reivindicação de fazer parte do mundo comum conduz a quebra da

ordem estabelecida que busca, na instauração do conflito, mudanças. Disputar

recursos, disputar narrativas, mudar práticas. O campo da cultura pode se

apresentar nas suas dimensões militantes como campo de luta política por

transformar modos de vida, através da circulação de novos afetos na construção

de campos distintos de trabalho e, portanto, de vida Comum. A invenção de

trabalhos, é certa invenção de futuro.

A pesquisa realizada buscou, através do olhar para algumas

personagens militantes/ativistas da área da cultura da zona sul da cidade de São

Paulo em seus percursos de trabalho na última década, localizar como

constituíram para si outros formatos de trabalho. São militantes com bastante

visibilidade nos seus campos de atuação e podem influenciar a comunidade com

seus trabalhos e novos formatos laborais – o que é aqui uma hipótese para

análise desse contexto. Mostrar como esses trabalhos ao realizar sentidos

subjetivos fortes, que vieram de ligações identitárias, acabam inaugurando

sentidos políticos do trabalho. O trabalho remunerado principal, trabalho de

remuneração secundária, trabalhos paralelos, trabalhos voluntários, trabalhos

coletivos, economia solidária, ativismos e militâncias. Uma infinidade de formas

laborais que se opõem (por vezes frontalmente, por vezes incorporando

aspectos e formas neoliberais de vida e trabalho) a um complexo de elementos

sociais estabelecidos de forma corrente – que no geral se reproduzem sem

grandes questionamentos, mas que são também as formas sociais de

reprodução da pobreza. Ao encontrar uma contraposição mudanças podem

ocorrer.

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O rebaixamento bastante significativo da renda do trabalho nos anos

2010, vai mostrando que o trabalho nessa segunda década encontra desafios

para enfrentamento da desigualdade estrutural brasileira. E na década de 2020

novos desafios se impõem surgiram com a pandemia de Covid-19 que mostrou

a face mais cruel da reprodução da pobreza, com mais mortes nos bairros

periféricos da cidade de São Paulo, desemprego alto, überização do trabalho,

inflação incidindo mais para os mais pobres; mas também de produção de novas

desigualdades de gênero e racial. A desigualdade está estabelecida

historicamente em patamares bastantes altos no país, aqui 28% das riquezas

estão concentradas nos 1,0% mais ricos do país (SOUZA, 2019) e com certa

estabilidade na série desde o século XX até a pandemia do Coronavírus, com

grande capacidade para embaralhar ainda mais esta disposição.

A vida cotidiana perde com o espraiamento de uma “nova razão do

mundo” neoliberal (DARDOT e LAVAL, 2016), por sua força estrutural e política

que também avança continuamente na configuração social do trabalho. Nesse

novo momento do neoliberalismo o precariado (STANDING, 2013), classe

heterogênea, com trabalhos precários, intermitentes, informais, de baixa

qualificação e baixa remuneração se espraia e se torna fonte importante de

trabalho na periferia numa sociedade em crise. A überização (ABÍLIO, 2017 e

2020) se apresentou como característica desse novo trabalho, acesso menor de

direitos sociais, trazendo menor previsibilidade, menor capacidade de planejar

os médios e longos prazos, também representam agora com o acréscimo da

participação algorítmica maiores controles do trabalho.

Os trabalhos ativistas/militantes se constroem, então, como

inspiração para se contrapor aos trabalhos que seguem reproduzindo a

desigualdade quando recusam engajamentos compulsórios dos processos

neoliberais de reprodução social. Para superar o rebaixando da subjetividade do

trabalho da população com esses trabalhos que conferem baixa significação,

especialmente reincidente nas periferias das cidades, o incentivo a novas formas

de trabalho surge tecendo ligações identitária, esse campo da cultura pode se

mostra capaz de construir esses horizontes.

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2. Trabalho e cultura: política e identificação

social para além da reprodução da pobreza

São as sociabilidades que produzem afinidades eletivas da vida

social. O ponto aqui é que as escolhas individuais de trabalho seguem os

movimentos da sociedade, das comunidades de afinidade, especialmente

familiar (o que é mais conhecido, mais referente). E, vão, a partir de uma

formação subjetiva aceitando as configurações momentâneas do que são os

trabalhos possíveis de serem realizados. Nessa medida, a chegada da

überização do trabalho, a constituição desse exército de trabalhadores

brasileiros nos aplicativos de entrega e carona compartilhada, que rapidamente

se firmam como alternativa para gerar renda rapidamente, foram fomentados nos

anos anteriores em que o empreendedor foi exaltado de todas as formas. Além

do contexto de crise e desemprego alto, que desde 2015 afetam o mercado de

trabalho diretamente.

Em uma perspectiva macro há uma chamada neoliberal bastante

alargada que arrasta as experiências de trabalho para o seu movimento. O

grande capital global aposta nesses trabalhos com rebaixamento de renda para

aferir mais lucros ou novos lucros. A competição do capital financeirizado com a

renda do trabalho tornou essa competitividade brutalmente desfavorável ao

trabalho (STANDING, 2013; LAZZARATO, 2017). Vários mecanismos bastante

perversos foram produzindo um endividamento da população que prende os

pobres nesses trabalhos disponíveis. Em momentos de crise isso significa a

completa desqualificação do trabalho, nenhum aceso à direitos, um

aprisionamento por dívida que torna as decisões comprometidas com essa

dimensão que acaba organizadora dos planejamentos do cotidiano. O curto

prazo é a regra.

Nesse contexto de regressão do estado de Bem Estar Social nos

Estados Unidos e países Europeus a cultura vai se transformando em um sólido

negócio de construção do urbano com o crescimento e avanço do

neoliberalismo, que foi uma busca por encontrar a expansão dos lucros que o

fordismo não traria mais. As revitalizações urbanas a partir dos anos 1980

passam, em grande medida, pela cultura. Certa concepção de cultura um tanto

elitizada, é bem verdade (ARANTES, 2000), mas que vai ela também sofrendo

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transformações. A cultura nesse primeiro momento vai se tornando o mote para

grandes investimentos públicos e privados que vão correspondendo a interesses

da especulação imobiliária, da gestão dos negócios das cidades com promoção

de grandes eventos culturais que entram nos calendários das cidades.

Por outro lado, a cultura ganha uma dimensão importante

globalmente, como chama atenção FRASER (2002), em um momento pós-

fordista do neoliberalismo há uma expansão de nichos de consumo e, nesse

novo contexto, as identidades do trabalho saem da centralidade para a formação

de outras identidades formadoras. Tem um deslocamento da redistribuição para

o reconhecimento.

Aqui podemos iluminar aspectos dessa conversão do trabalho em

algo importante na composição do lugar social que ocupa. A institucionalização

dos movimentos sociais, que representou uma profissionalização da

militância/ativismo foi também aliada de uma busca identitária. Para o feminismo,

os movimentos feministas negros, movimentos de associativismo de bairros,

para movimentos de cultura, essa constituição política é uma forma de produzir

outras sociabilidades que abarcam novos afetos políticos implicados. Afetos

esses que encontram no trabalho formas de canalizar sentidos.

Mas a cultura, por outro lado, vira também um dispositivo econômico

nessa perspectiva de afirmação de identidades. Nas mudanças dos mercados

de trabalho e modos de se trabalhar no século XXI esta perspectiva aparece

numa nova composição de trabalho mais autônomos, mais flexíveis, mas

também mais precários (SILVA, 2018). Como mostra a pista de AGAMBEN

(2009) é preciso profanar os dispositivos estabelecidos para ganhar esses novos

contornos tão importantes para a composição de uma vida mais interessante,

mais conectada com afetos construtivos do comum.

Nossas personagens se inserem na militância ativando chaves

identitárias e foram na última década moldado as possibilidades de trabalho a

partir da construção política, não sem dificuldades das atuações profissionais da

periferia, construindo dia a dia suas lutas sociais. Para Dêssa, suas decisões de

novos caminhos profissionais têm passado pela construção da maternidade,

mas também das lutas feministas, que para ela produzem um engajamento de

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sentido para as novas escolhas artísticas. Dêssa impulsiona uma vontade de

estar mais fortemente conectada com processos em ligação com um feminino e

muda mais recentemente de grupo musical para construir uma ligação maior com

mulheres no palco, já que na banda que inicia sua carreira de cantora são

homens que compõem o grupo.

Como nos conta Aline, que no trabalho de curadoria da Agência

Solano Trindade produziu a participação de coletivos da zona sul em 25

atividades na programação paralela da 31ª Bienal Internacional de São Paulo,

em 20143. Nesse trabalho integraram vários aspectos vivenciados ao longo da

trajetória da Agência. Aderbal Ashogun foi mestre de cerimônia da instalação

Treme Terra Esculturas Sonoras, na abertura da Bienal daquele ano, unindo a

espiritualidade das religiões de matriz africanas com as apresentações do coral

Xondaro, do povo Guarani, da aldeia Tenondé Porã, dos jovens Guaranis.

A conexão com uma convivência que trazia a diversidade da periferia

foi formadora para ela dessa relação de militância para abranger uma maior

união entre os que habitam as periferias. Até a decisão de ir morar em um sítio

com a família e mudar completamente a vida. Mantendo uma ligação política

com a terra e a comunidade do entorno e a periferia de São Paulo.

As experiências de cultura na periferia foram se alargando na cidade

de São Paulo, ganhando novos formatos, novos reconhecimentos. Na zona sul

da cidade podemos localizar esse movimento com os saraus, o Sarau da

Cooperifa completa 20 anos em 2021, o reconhecimento nacional dos Racionais

Mcs. Outros movimentos ligados à Agência Solano Trindade, como o Sarau do

Binho, experiências que foram dando corpo à produção de cultura da periferia

nessas últimas décadas. São transformações bastante importantes.

Enquanto os movimentos de cultura iam crescendo novas formas de

financiamento foram sendo fomentadas a partir das lutas dos movimentos de

cultura da periferia da cidade de São Paulo nesse período. Umas das faces

dessa moeda foi a concepção de cultura se alargando para fora do centro, a

produção cultural também estava na periferia e pôde começar a se expressar de

forma menos elitista, inclusive percorrendo um sentido inverso: saindo da

3 Sobre esse tema ver BERGAMIN (2015).

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periferia rumo ao centro. Fernando Ferrari encampou essa disputa pela Lei de

Fomento à Cultura da Periferia (Lei 16.496/16,), até chegar a Co-deputado da

Mandata ativista, na Assembleia Legislativa de São Paulo, desde 2019, na

primeira experiência de mandato coletivo do Brasil.

É importante dizer que as políticas de descentralização dos

financiamentos que foram fomentadas nos governos Lula (2003-2010) deram

possibilidades de formação desse campo cultural em outras bases nas periferias

brasileiras. Até então, as políticas de cultura vinham da Lei Rouanet, com

iniciativas do setor privado endossadas pela lei ancorada no incentivo fiscal, nos

governos de FHC, sem grandes recursos públicos de fomento à cultura sendo

empregados (CALABRE, 2014).

Nessa medida, esse fomento disputa um alargamento de uma

economia da cultura onde a periferia do país começa a participar mais

efetivamente nessa fase seguinte com a gestão de Gilberto Gil no MinC (2003-

2008). O Programa Ponto de Cultura, lançado pelo MinC, participa desse início

do processo de descentralização dos financiamentos culturais pelo país. Essa

descentralização foi fundamental para ir modificando as lógicas que estruturam

o campo, de qual é o lugar social da produção de cultura. Questionando uma

elitização exagerada do campo para fazer chegar financiamentos, formação de

público, produção de outros lugares sociais sequer considerados como

produtores de cultura – carregando toda uma disputa de qual cultura é legítima

para acessar financiamentos. Esse processo longo e irregular promoveu, sim,

mudanças, alargando as concepções de cultura periférica.

A cultura está no núcleo de uma série de processos do centro e das

periferias. A trajetória do Fernando Ferrari, militante da área da cultura, primeiro

com a formação do Sarau da Vila Fundão e atuando nas frentes de cultura

periféricas que buscaram aprovar o lei que instituiu o Programa de Fomento à

Cultura para a Periferia de São Paulo, Lei Municipal nº 16.496/2016.

“Daqui para frente é trabalho nas vielas, favelas,

mobilização para pressionarmos a Câmara. Ou o debate da

descentralização do orçamento entra na cabeça de nossas quebradas

e dos fazedores de cultura ou nossa juventude vai continuar sendo

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massacrada pela violência”, diz o articulador cultural Fernando

Ferrari, 38, professor e membro da Rede Popular de Cultura Mboi

Campo Limpo, da zona sul da cidade” (Fernando Ferrari, apud LIMA,

2016).

Como diz TOMMASI (2012) a partir da análise com jovens

participantes de um grupo de hip hop:

“Para nenhum deles a questão da sobrevivência está

resolvida. (...) Mesmo diante de adversidades, a vontade de levar à

frente o trabalho do grupo, a vontade de escapar ao destino de ser

trabalhador barato ou bandido, é forte. Quem disse que somente os

filhos da classe média sonham com um trabalho gratificante e com

viver daquilo de que gostam e que sabem fazer? (...) ‘Sofremos pela

falta de grana para nos manter fazendo o que gostamos de fazer, ou

seja, viver de hip-hop’ (Eliênio)” (TOMMASI, 2012, pg 112).

As complexidades da vida social periférica estão colocadas. O campo

da cultura se abriu na periferia da zona sul de São Paulo, carregando todos

esses intrincados processos de produção (financiamentos, público, artistas,

fazeres). Mas, sobretudo, se abre como mercado de trabalho. Um lugar social

de disputas políticas, sem dúvida; a vida na periferia exige luta. E alargar campos

de produção cultural e de trabalho como princípio, compõe as lutas políticas para

romper com a reprodução das desigualdades raciais, de gênero e sociais. Os

jovens foram se interessando por essas expressões culturais. Fernando

transformou sua trajetória individual, depois de muita luta política pela cultura,

compondo uma vida com trabalhos intermitentes, e consegue permanecer em

São Paulo em um trabalho organizado como Co-deputado, era sua última

possibilidade de ficar na cidade. Decide disputar o mandato na Bancada Ativista,

sem representar um grupo específico, mas viu essa participação como uma

atuação que pudesse lhe manter nesse ativismo e fazer uma representação

desse movimento agora como Co-deputado.

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3. As escolhas de trabalho: políticas do afeto

O encontro com Rafael Mesquita no Festival Percurso 2019,

organizado pela Agência Solano Trindade, Festival que entrou no calendário de

feiras e atividades da zona sul, movimentando vendas e contatos para os

empreendedores, rendeu uma longa conversa. Rafael estava cuidando da venda

de orgânicos nesse sábado de encontros do chamado Perifa Talks na Casa da

Agência Solano Trindade.

A mudança de vida radical de Rafael e sua companheira Aline Maria

veio com a mudança para um sítio há alguns anos, se afastando das atividades

mais cotidianas da Casa da Mulher do Campo Limpo, do Banco Comunitário

União Sampaio e da Agência Solano Trindade. O Banco Comunitário União

Sampaio foi montado na Casa da Mulher por conta do trabalho que Rafael já

desenvolvia lá. A Incubadora de Cooperativas da USP e o NESOL, que eram as

entidades que estavam encarregadas de escolher quem poderia receber um dos

quatro Bancos Comunitários que foram montados na cidade de São Paulo

inicialmente, escolhem a União Popular de Mulheres para essa empreitada por

conta do trabalho que o Rafael desenvolvia lá. O Banco União Sampaio foi a

experiência mais interessante naquele momento dentro desse projeto4. O Banco

Comunitário ganhou visibilidade e conquista uma boa inserção na comunidade,

que começa a contar com os empréstimos na moeda social para realizar

pequenas reformas, montar empreendimentos ou ampliar os já existentes.

Nesse desenvolvimento Rafael tinha um papel de liderança com bastante

visibilidade na zona de sul de São Paulo, que foi sendo assumido ao longo do

tempo e passa a circular no bairro e pela zona sul fazendo articulações. Muitos

projetos e experiências foram realizados nesse período. Aline conta que muitas

pessoas viram com estranheza a mudança deles para um sítio, lugar mais

afastado e fora de São Paulo por conta da importância de Rafael naquele

momento.

Mas o cotidiano das atividades políticas e da busca incessante por

financiamentos para os projetos que permitiam os funcionamentos desses

empreendimentos sociais esgarçou as relações para Rafael: “Cansei de ser

4 Cf. BERGAMIN, 2011.

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pedinte”, me disse. Ele fala num cansaço de ser eternamente pedinte, como se

torna quem trabalha no terceiro setor na periferia de São Paulo. Para fazer os

projetos é sempre preciso lutar por financiamentos, disputar os editais, contar

com a boa vontade de possíveis parceiros. O cansaço dessa articulação

constante, sem finais de semana, sem folgas, pesou.

Rafael trocou essas atividades e foi morar num sítio e hoje produz

verduras orgânicas que vende com entregas com um carro na região do sítio e

em São Paulo. Produz também uma cerveja artesanal, a cerveja da Roça. Ao

narrar suas empreitadas como sitiante vai elaborando as novas formas do fazer

político, com um deslocamento, mas continua produzindo uma vida política na

ligação com a terra e as questões alimentares, sustentabilidade da produção,

uso da água.

Quando saiu de cena era uma grande liderança da zona sul. A

formação da Agência Solano Trindade foi idealizada no período de maior

ascensão do Banco Social na comunidade. Um grupo de jovens (e outros atores

sociais não tão jovens) que participavam dos saraus do Campo Limpo, grupos

de teatro, de música, poetas, artistas, fotógrafos, produtores que já trabalhavam

com essas atividades e encontraram eco na ideia de formação de uma Agência

que pudesse articular essas atividades. Da idealização da Agência à sua

realização foram feitas a partir de políticas locais. Aquele momento era de muita

invenção. Havia grande sensibilidade social e a percepção de como direcionar

as atividades culturais – que eram abundantes já nesse momento, fez nascer a

agência de produção cultural periférica. Essa articulação formou e fez crescer

coletivos de cultura. São coletivos de trabalho, trabalhos fora do trabalho,

trabalhos profissionais, trabalhos amadores, ou outros de tantos tipos. Mas, de

qualquer modo, trabalhos que possuem uma característica comum: produzem

sentido para quem os realiza. Um sentido que estimula os jovens a estar junto

com esse grupo maior e ganhar um espelhamento que supera a socialização

primária (familiar) e articula possibilidades de realizar algo diferente como

trabalho. Trabalhos que fugiam do trabalho vulgar que não travam acesso para

uma subjetividade forte que organize a vida subjetiva e depois o cotidiano em

uma vida mais coletiva ou com maior conexão ao que se gosta de realizar como

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atividade laboral. Nessa medida, a experiência ganha possibilidade de inspirar

outras trajetórias, não é pouca coisa!

Nesse novo momento do casal Aline e Rafael a política não

desaparece da sua concepção de trabalho. Ele conta que está articulado com os

outros sitiantes vizinhos rodízios de trabalho em mutirão. Uma vez por semana

não trabalham no próprio sítio rodando em mutirão o trabalho nos sítios vizinhos.

A perda desse dia de trabalho no próprio sítio é compensada com a chegada no

sítio, a cada 20 semanas, dos outros 19 sitiantes. Rafael conta da força da

coletividade e que isso inspira a pensar em outras possibilidades de articulação

política que pode unir a força dos produtores para pensar em proteger as águas

da região para produção agrícola e consumo, vendas coletivas, além de outras

articulações políticas.

Outra figura de muita visibilidade por seu trabalho na zona sul da são

Paulo é Thiago Vinícius, 31, que assumiu a condução da Agência Solano

Trindade e mantém a casa, com um restaurante, estúdio de gravação e assumiu

um lugar de bastante proeminência tanto nas atividades cotidianas da casa,

quanto no contato com a mídia e outras atividades que realiza. Ganhou um

prêmio internacional agora em 2021, de jovem empreendedor em gastronomia,

do World’s 50 Best, ganhou o 50 Next, para jovens empreendedores que

contribuem para a gastronomia no mundo 2021. Seu papel como produtor

cultural articula redes de pessoas e projetos pela cidade e pelo país.

Interessante como a política e a cultura podem estar em muitos

lugares, tanto no campo como na cidade. As construções do comum vão se

espalhando mobilizando outras lógicas, outras formas de vida. Como diz Krenak

(2019), as pessoas foram tiradas das florestas e jogadas nesse modo de vida

sem coletivos, sem o lugar de origem. Dialogicamente olhamos outras culturas

para modular inspiração. A natureza, antes apartada, pode formar nova união, a

partir de produção sustentável e produção de uma vida mais comunitária. A

natureza, como alerta KRENAK (2019), sem essa separação que acabamos

fazendo, que vai produzindo poluição, apartamento da natureza e da nossa

natureza humana. E ao reintroduzi-las pode constituir uma política do comum

(NEGRI e HARDT, 2016; DARDO e LAVAL, 2017).

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Pensar a vida a partir da alimentação e da produção de comida

também confere para Rafael e Thiago sentidos na parceria que vão

configurando. A produção dos orgânicos se tornou um ponto de partida para uma

nova forma de vida, ligada à terra. Articular a política com uma base produtiva

lhe pareceu importante para Rafael e o restaurante que Thiago mantém com sua

mãe Tia Nice, ampliam as significações para ambos. A busca nesse momento é

ampliar a produção e organização das vendas da produção local (sua e de outros

sitiantes), fazendo chegar os orgânicos na periferia.

Comidas, sabores, empreendimentos sociais alargam as concepções

de cultura a para a periferia. Novas práticas aumentam as possibilidades de

trabalho. Será preciso inventar. Inventar trabalhos. Thiago Vinicius que faz toda

uma articulação entre o Campo Limpo e o Capão Redondo, mexendo algumas

peças para essa invenção.

Considerações finais

O acesso à cidade se constituí pelo trabalho. Moldando o acesso à

própria vida social, trazendo imbricações fundamentais. A vida social estruturada

pelo trabalho remunerado e não remunerado acaba por definir a própria

sociedade, tanto suas criações, quanto suas desigualdades. As sociabilidades,

de forma bastante alargada, estão cativas das formas de trabalho vigentes em

cada fração espaço-temporal e caminham para um labor com graves

modificações contemporâneas, que embora ainda ocupe lugar importante na

composição das identidades sociais, está acentuando cada vez mais uma

desigual distribuição criativa da sociedade. A produção de sentido se enfraquece

à medida em que a criação decaí. Os algoritmos se apropriam de forma cada

vez mais rápida dos saberes sociais tornando os trabalhos desprovidos de

qualquer sentido. Um pós-taylorismo algorítmico traduz a tragédia de tornar as

multidões desimportantes por exercerem trabalhos tão simples, tão

desqualificados. O lugar social do trabalho precisa ser reinventado.

O trabalho que produz um sentido forte precisa ter certas

características coletivas e individuais. A principal questão deste momento do

neoliberalismo que atravessamos passa por um entendimento de como produzir

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novas formas de vida. De como nos territórios periféricos da cidade aquecem a

criação dessas formas de vida mais conectadas, mais familiares a cada um.

A produção de renda como emergência pode ser vencida sem

recorrer a esse empreendedorismo de si totalmente individualizado, com

controles severos do tempo, além da extensão das jornadas de trabalho exigidas

para essa renda mínima para sobrevivência. Nessa redução brutal da renda do

trabalho, se diminui o alcance da subjetivação do trabalho individual e coletivo.

Em tempos de trabalhos sem sentido manter atividades laborais que

produzam subjetividade e significação é luta. Uma luta política que o campo da

cultura tem construído na periferia de São Paulo. Como disse Dêssa em uma

participação numa live em 2020: “não tem como atravessar a cidade sem ser

atravessada por ela”.

Trabalhar com o que gosta, com o que produz sentido e significação

forte para vida na periferia é uma epifania política. Algo a ser realizado como luta

na cidade.

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