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2. A exclusão e suas múltiplas faces O tema “inclusão social” ganhou destaque nas últimas décadas e passou a figurar em discursos, projetos, falas oficiais e da sociedade civil. Observando esta tendência, somos conduzidos a uma proposição simples: se torna-se necessário falar em inclusão social é porque há excluídos. Daí emerge então uma pergunta, já não tão simples de responder: por que há excluídos? Na busca de respostas, fazemos o caminho inverso, mapeando as origens deste problema social e buscando compreender como ele se dá. Assim, acreditamos, estaremos nos capacitando a pensar caminhos que possam favorecer a inclusão, uma vez que a indagação que move nossa pesquisa é: que transformações, no sentido de inclusão, estariam ocorrendo no âmbito pessoal, familiar, social, econômico no cotidiano de indivíduos que têm participado de atividades culturais, especialmente ligadas ao cinema? Como o objeto primeiro de nossa pesquisa não são os processos de exclusão em si, mas investigar métodos para superá-los ou minimizá-los pelo acesso à informação, à educação, aos bens culturais como um todo e mais especificamente ao cinema e ao audiovisual, não nos propomos a realizar neste capítulo uma análise profunda da questão. O que buscamos é lançar um olhar sobre as situações de exclusão/inclusão, valendo-nos das perspectivas teóricas de pesquisadores, bem como de relatos de jornalistas e escritores, e de nossas próprias observações do cotidiano, especialmente dos dados observados no campo. Esses discursos revelam diferentes pontos de vista, são tocados por diferentes percepções, diferentes sensibilidades, muitas vezes inspirados e alimentados uns pelos outros, gerando um diversificado e provocador universo de ideias, teorias e proposições. 2.1. Exclusão, um processo multidimensional Aldaíza Sposati considera que os conceitos de inclusão e exclusão se caracterizam por sua fluidez, o que leva a diferentes interpretações. Deste modo,ocorre com frequência uma banalização destes conceitos, minimizando sua gravidade e escamoteando-se sob eles questões éticas, como o “aviltamento do

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2. A exclusão e suas múltiplas faces

O tema “inclusão social” ganhou destaque nas últimas décadas e passou a

figurar em discursos, projetos, falas oficiais e da sociedade civil. Observando esta

tendência, somos conduzidos a uma proposição simples: se torna-se necessário

falar em inclusão social é porque há excluídos. Daí emerge então uma pergunta, já

não tão simples de responder: por que há excluídos?

Na busca de respostas, fazemos o caminho inverso, mapeando as origens

deste problema social e buscando compreender como ele se dá. Assim,

acreditamos, estaremos nos capacitando a pensar caminhos que possam favorecer

a inclusão, uma vez que a indagação que move nossa pesquisa é: que

transformações, no sentido de inclusão, estariam ocorrendo – no âmbito pessoal,

familiar, social, econômico – no cotidiano de indivíduos que têm participado de

atividades culturais, especialmente ligadas ao cinema?

Como o objeto primeiro de nossa pesquisa não são os processos de exclusão

em si, mas investigar métodos para superá-los ou minimizá-los pelo acesso à

informação, à educação, aos bens culturais como um todo e mais especificamente

ao cinema e ao audiovisual, não nos propomos a realizar neste capítulo uma

análise profunda da questão. O que buscamos é lançar um olhar sobre as situações

de exclusão/inclusão, valendo-nos das perspectivas teóricas de pesquisadores,

bem como de relatos de jornalistas e escritores, e de nossas próprias observações

do cotidiano, especialmente dos dados observados no campo. Esses discursos

revelam diferentes pontos de vista, são tocados por diferentes percepções,

diferentes sensibilidades, muitas vezes inspirados e alimentados uns pelos outros,

gerando um diversificado e provocador universo de ideias, teorias e proposições.

2.1. Exclusão, um processo multidimensional

Aldaíza Sposati considera que os conceitos de inclusão e exclusão se

caracterizam por sua fluidez, o que leva a diferentes interpretações. Deste

modo,ocorre com frequência uma banalização destes conceitos, minimizando sua

gravidade e escamoteando-se sob eles questões éticas, como o “aviltamento do

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estatuto universal da condição humana” (Sposati, 1998, p.3). Esta banalização,

segundo a autora, decorre de uma equivocada interpretação: os conceitos de

exclusão/inclusão estariam sendo interpretados como substitutos dos conceitos de

opressão, dominação, exploração, subordinação. Seria uma “mera modernização

da definição de pobre, carente, necessitado, oprimido” (Sposati, 2006, p.2).

Contudo, a questão envolve aspectos menos óbvios que sua relação com a pobreza

ou o desemprego.

Este caráter multifacetado dos processos de exclusão é também abordado

por Rogério Roque Amaro (2000). Amaro identifica seis dimensões principais nas

quais a exclusão se manifesta, considerando que estar excluído pressupõe não

participar plenamente da sociedade, em seus diferentes níveis de organização:

ambiental, cultural, econômico, político e social. Assim, segundo Amaro, se o

indivíduo é fragilizado em sua dignidade e autoestima, sofre a exclusão do “ser”;

se está apartado das “redes de pertença social”, seja família, vizinhança ou outras,

sua exclusão se dá na dimensão do “estar”. Está excluído do “fazer” quando não

tem acesso ao emprego, ao trabalho (remunerado ou não), e do “criar” quando

impedido de concretizar projetos, inventos. A exclusão do “saber” ocorre pela

falta de acesso à informação (escolar ou não), que o capacitem a tomar decisões e

ter consciência crítica. Finalmente, a exclusão do “ter” refere-se ao aspecto do

consumo, inclusive à capacidade de estabelecer prioridades nessa área.

Amaro destaca que em todos estes níveis de exclusão, em decorrência da

importância que a dimensão econômica assumiu nas sociedades industriais,

encontramos fatores econômicos, sejam no âmbito global, sejam no âmbito local

ou nas trajetórias individuais. Sposati (1998) também aponta o modelo econômico

dominante após a segunda metade do século XX – o neoliberalismo (que

abordamos mais detalhadamente adiante)– como fator decisivo, embora não

único, para o recrudescimento dos processos de exclusão.

Giuliana Leal (2008) evidencia e analisa a existência de múltiplas

concepções acerca do que se entende por exclusão social e a aplicação nem

sempre adequada do conceito, por vezes transformado até mesmo num modismo.

Entretanto, observa que estas diferentes visões têm em comum a referência à

vulnerabilidade e à limitação de acesso às conquistas sociais. A autora vê a

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exclusão social dentro de um “conjunto temático” do qual fazem parte

“desigualdade, pobreza, impedimentos à realização da cidadania” (Leal, 2008,

p.7). Leal menciona ainda teorias (especialmente as formuladas por autores que

vivenciaram os horrores praticados pelo nazismo, como Hannah Arendt) que vão

a camadas mais profundas, concebendo a exclusão num contexto extremo, quando

o indivíduo perde a identificação como um ser pertencente à Humanidade.

Algumas definições do problema da exclusão social e delimitações dos grupos

excluídos mostram o caminho percorrido da quebra de vários tipos de laços (mas

principalmente o econômico, dado pelo trabalho e, associadamente, pelo consumo)

até a ruptura desse laço final da humanidade, a qual permite, em última instância,

que pessoas passem a ser vistas como descartáveis. (Leal, 2008, p.100)

Jurandir Freire Costa também aborda esta quebra dos laços de

pertencimento à condição humana. Freire Costa observa que a exclusão não se dá

necessariamente pelo uso da força e destaca a existência de uma violência sutil,

não menos danosa, que também promove processos de exclusão. Trata-se do

alheamento em relação ao outro, que assim deixa de ser reconhecido como um

semelhante. Embora não se caracterize por atitudes agressivas, pelo ódio ou

rivalidade, o alheamento é uma atitude de distanciamento que gera a

“desqualificação do sujeito como ser moral” (Costa, 2001, p.81), ou seja, não

merecedor de respeito. Esta atitude é de tal forma naturalizada que seu agente não

se vê como violento e enxerga o outro apenas como “suporte dos objetos ou

predicados desejados, e o que quer que lhe aconteça é igualmente irrelevante...”

(Costa, 2001, pp.81-82).

Não só os conceitos acerca do que é exclusão, mas a própria expressão

“exclusão social” tem sido objeto de diferentes interpretações e de

questionamento. O professor Jailson de Souza e Silva, fundador e membro do

Observatório de Favelas1, num texto em que analisa a cobertura jornalística sobre

a violência e o olhar da mídia sobre os moradores de favelas, diz:

1 Criado em 2001, o Observatório de Favelas é desde 2003 uma organização da sociedade civil de

interesse público (OSCIP), com sede na Maré (RJ), mas sua atuação é nacional.

http://www.observatoriodefavelas.org.br/observatoriodefavelas/home/index.php - acesso em

10/01/11

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Outra expressão depreciativa é o termo exclusão social. Existe a exclusão adjetiva:

do mercado de trabalho formal, dos cursos mais procurados das universidades, do

acesso ao computador. Mas quando se fala em exclusão social, mais uma vez

transforma-se em substantivo o que é adjetivo. Como se o cidadão pobre estivesse,

na sua totalidade, excluído da ordem social e dos seus direitos. Esta denominação

retira do pobre a sua condição de cidadania, desvaloriza as suas estratégias

cotidianas para se inserir e viver na cidade. Não partilho dessa visão. Concebo a

cidadania como ponto de partida e não como ponto de chegada. Todos somos

cidadãos, a partir de nosso ingresso no mundo, na realidade social, ainda que o

Estado não seja capaz de atender às necessidades do conjunto social, em função de

sua estrutura socioeconômica e da forma com que se organizou historicamente.

(Silva, 2007, pp.94-95)

Esta reflexão casa-se com um ponto crucial abordado por Aldaíza Sposati: o

significado que a exclusão tem para o sujeito. Segundo a autora, a exclusão social

caracteriza-se pela discriminação e atribuição de estigmas e, sendo assim, “seu

exame envolve o significado que tem para o sujeito, ou para os sujeitos, que a

vivenciam” (Sposati, 2006, p.2). Pode-se, a partir daí, pensar algumas questões:

Sentem-se os “excluídos”, excluídos? Que dimensão têm dessa classificação?

Consideram-se cidadãos? Valorizam suas “estratégias cotidianas para se inserir e

viver na cidade”?

Tais concepções e possibilidades nos posicionam num outro ângulo, ao

olharmos os processos de exclusão. É fundamental, por exemplo, observar as

transformações ocorridas no mundo na pós-modernidade. Ainda que não se trate

de um fenômeno social típico da contemporaneidade, já que acompanha o modelo

de produção capitalista desde seus primórdios, foi nas últimas décadas que a

exclusão social assumiu novas formas, novas dimensões e se fez presente de

modo mais contundente. Aldaíza Sposati, observando que o conceito de exclusão

social surge reforçado quando da ocorrência de uma recessão econômica e social,

afirma que “a lógica excludente, inerente à produção capitalista, ganha novos

contornos e se torna uma questão social, cultural e ética” (Sposati, 2006, p.2). A

autora vê a exclusão social, ao final do século XX, assumindo o caráter de um

“conceito/denúncia” (Sposati, 1998, p.2), em função da configuração de uma

sociedade onde o papel do Estado é enfraquecido.

Este apagamento ou enfraquecimento do Estado transfere a outras

instâncias parte do seu papel de traçar e administrar os rumos da sociedade, o que

implica dizer, o poder. Segundo Michel Foucault (1979), o poder é um exercício

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que requer uma correlação de forças, está infiltrado mesmo nas relações pessoais.

Não é uma realidade que possua uma determinada natureza e não é caracterizado

por regras universais. O autor vê o poder para além do “esquema economicista”

(Foucault, 1979, p.176), não estando, portanto, necessariamente associado ao

Estado nem restrito às relações entre os donos dos meios de produção (capital) e a

massa trabalhadora (como na concepção marxista). Foucault entende também que

as relações de poder vão além das relações de força, das guerras. E não cessam

com o fim dos conflitos armados. Diz ele:

E se é verdade que o poder político acaba a guerra, tenta impor a paz na sociedade

civil, não é para suspender os efeitos da guerra ou neutralizar os desequilíbrios que

se manifestaram na batalha final, mas para reinscrever perpetuamente estas

relações de força, através de uma espécie de guerra silenciosa, nas instituições e

nas desigualdades econômicas, na linguagem e até no corpo dos indivíduos.

(Foucault, 1979, p.176)

O pensamento de Foucault é, de certo modo, a releitura de um status

definido pelo escritor russo Leon Tolstoi, quase um século antes:

O poder governamental, mesmo que faça desaparecer as violências internas,

sempre introduz na vida dos homens novas violências, cada vez maiores em razão

de sua duração e de sua força. De modo que, se a violência do poder é menos

evidente do que a dos particulares, porque se manifesta não pela luta, mas pela

opressão, ela, não obstante, existe, e com maior frequência num grau mais elevado.

E não pode ser diferente, porque além do fato de que o poder corrompe os homens,

os cálculos ou a tendência constante daqueles que o detêm terão sempre por

objetivo o máximo enfraquecimento possível dos violentados já que, quanto mais

estes estão fracos, menos esforços são necessários para dominá-los. (Tolstoi,

[1894], 1994, p.172)

Foucault (1979) propõe dois sistemas para analisar os mecanismos do

poder: um representado pelo esquema “contrato-opressão” e outro pelo esquema

“guerra-repressão” ou “dominação-repressão”. No primeiro, o poder é

considerado como “direito originário que se cede” e que, ao se exceder, ao romper

os limites do contrato que o rege, pode tornar-se opressivo. No segundo, já não se

tem mais a violação de um contrato, um abuso dos limites do poder, mas a

“continuação de uma relação de dominação” ou, nas palavras de Foucault, “a

repressão seria a prática, no interior desta pseudo-paz, de uma relação perpétua de

força” (Foucault, 1979, p.177). Este último mecanismo caracteriza-se, segundo o

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autor, pela oposição entre luta e submissão, onde se descortina a tentativa de um

controle social.

Tanto Tolstoi como Foucault falam de distintos tipos de violência no

exercício do poder e as palavras e expressões usadas pelo filósofo francês nos dão

pistas para o entendimento dos processos de exclusão social que vimos analisando

neste Capítulo. O autor faz referências a situações como: “guerra silenciosa”,

“desigualdade econômica”, “desequilíbrio”, “dominação”, “relação perpétua de

força”, “luta e submissão”. De fato, pode-se afirmar que os processos de exclusão,

sejam quais forem, articulam-se com o exercício do poder, este poder de que nos

fala o autor, que é imanente e que ele classifica como “microfísico” (Foucault,

1979).

Esses processos de exclusão tanto podem estar assentados em práticas

violentas, como no alheamento citado por Jurandir Freire Costa (2001, p.81), mas

também na apropriação do discurso e das “verdades” por meio dele proferidas, ou

seja, no poder que emana de e que realimenta o discurso. Analisando

procedimentos de controle e delimitação do discurso (como a interdição),

Foucault (1996, p.21) os associa a sistemas de exclusão e considera ainda que “o

discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de

dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos

apoderar” (Foucault, 1996, p.10).

Essa perspectiva de poder e controle articulados ao domínio do discurso

aplica-se particularmente às sociedades contemporâneas, que marcham ao ritmo

dos tambores da globalização e do neoliberalismo e que têm acesso a uma

avançada tecnologia dos meios de comunicação. Há uma profusão de “discursos

verdadeiros” e as possibilidades de estimular, induzir desde determinados

comportamentos cotidianos (“O que cantar, como andar, onde ir, o que dizer, o

que calar, a quem querer”, como na música de Gilberto Gil)2, até modos de ver o

mundo, estabelecer parâmetros, escalas de valores, são cada vez maiores. Vemos

aqui a submissão de que fala Foucault, em oposição à luta, num ambiente de

“pseudo-paz”.

2Preciso aprender a só ser - http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?id=51 – acesso

05/09/11.

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É inquestionável que não há apenas cumplicidade e passividade por parte

daqueles que recebem as mensagens, os receptores. Há também “resistência e

réplica”, como afirma Jesús Martín-Barbero (2002, p.112), mas para que esta

resistência e esta réplica ocorram, é necessário haver acesso à informação, à

cultura em sua diversidade, à educação, enfim, àquela dimensão da vida em

sociedade que Amaro chama de dimensão do “saber”. E tendo este repertório de

respostas, a partir de suas próprias vivências e de seu aprendizado, é necessário

ainda que o receptor tenha espaço para se manifestar, constituindo-se também

como emissor. Neste aspecto, as novas tecnologias vieram contribuir

grandemente, e mesmo viabilizar a produção e compartilhamento de conteúdos

gerados por coletivos organizados que agregam representantes de diferentes

setores, como líderes comunitários, moradores, agentes culturais, profissionais do

meio acadêmico, permitindo troca de experiências e saberes3.

2.1.1. Os processos de exclusão e a pós-modernidade

No mundo pós-moderno, a liberdade, a garantia dos direitos civis, a

despeito dos avanços sociais e políticos, mesmo nos países mais desenvolvidos do

Ocidente, parece estar em permanente tensão ou permanentemente ameaçada por

essa “guerra prolongada e silenciosa” de que fala Foucault. Vemos na mídia

notícias cada vez mais frequentes sobre manifestações populares protestando

contra o desemprego, a perda de garantias previdenciárias, os altos preços dos

alimentos, as deficiências na saúde, na educação, no transporte. Por outro lado, o

mundo vem sendo sacudido por sucessivas rebeliões, líderes são derrubados,

novos grupos, geralmente assessorados por interesses externos, tomam o controle

3No capítulo 2 abordamos mais detidamente a questão do acesso ao discurso, da posse da

linguagem e a mídia alternativa, representada por blogs, websites, rádios comunitárias, revistas e

jornais impressos, etc,, no contexto das novas relações sociais e das novas tecnologias.

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de nações4. Os mapas vêm sendo modificados para acomodar novas configurações

das fronteiras que separam os países, os grupos étnicos5.

A passagem do século XX para o XXI apresenta-se não como uma época de

mudanças apenas, mas como uma mudança de época, tal o impacto que o avanço

tecnológico – em todas as áreas, da informação à indústria bélica - vem

provocando no cotidiano dos indivíduos. Além dos discursos dos teóricos e

pesquisadores, obras de ficção na literatura, teatro e cinema, repercutem a

fragilidade das relações humanas e das instituições, a fragmentação das

identidades, a vida migrando de um plano real para um plano virtual. As novas

tecnologias trazem indiscutíveis benefícios, como a capacidade de informar,

educar, divertir, mobilizar pessoas em torno de causas humanitárias e lutas pela

democracia6, contudo, elas são frequentemente vistas como um fim em si mesmo

e não como meios para a construção de uma vida mais solidária, mais

compartilhada, mais produtiva. Paradoxalmente, aproximam quem está longe e

não raro distanciam quem está perto.

Não se trata de demonizar os avanços tecnológicos, especialmente na área

de comunicação e informação, ignorar as inúmeras vantagens que trazem, e a eles

imputar a causa de todas as mazelas sociais da contemporaneidade, mas estar

atentos para que seu uso se dê de modo consciente. O que é passível de crítica não

é a tecnologia em si, mas quando é usada, por exemplo, para a criação de

necessidades que levam a um consumo compulsivo, com consequências danosas

não apenas para o indivíduo, mas também para o meio ambiente, seja pelo uso

irresponsável dos recursos naturais, seja pela produção cada vez maior de

resíduos.

A criação de avatares, múltiplos perfis em redes sociais, os canais de chat,

vídeos, geram uma intensa movimentação no mundo virtual. Se por um lado há

4Diversas manifestações populares ocorreram em 2011: no Oriente Médio e norte da África, o

movimento batizado de Primavera Árabe resultou na deposição de antigos regimes. Em vários

países da Europa a população também foi às ruas protestar contra o modelo econômico. 5 Exemplos dessas mudanças são a divisão da Iugoslávia (um processo marcado pela violência,

que se estendeu de 1990 a 2003) e da Tchecoslováquia (1993), que deram origem a outras nações,

repúblicas, territórios autônomos. 6 A revolta civil no Egito (fevereiro/2011) conseguiu mobilizar milhões de pessoas usando a rede

mundial de computadores - http://www.revistaforum.com.br/blog/2011/02/17/internet-foi-

fundamental-na-revolucao-contra-mubarak/ - acesso em 21/02/11

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maior facilidade de comunicação entre as pessoas, não importa quão distante

geograficamente estejam umas das outras, ocorre também que, para muitas delas,

a vida passa a fluir mais intensamente nas telas dos aparatos tecnológicos do que

no próprio cotidiano. Compelido a ficar conectado com o “mundo” 24 horas por

dia, o sujeito pós-moderno frequentemente mergulha numa “vida online”,

enquanto a “vida offline” acontece à sua volta. A velocidade passa a ser um

elemento valioso: privilegia-se a quantidade - de horas conectado à internet, de

minutos necessários para um download ou os oferecidos pelo plano de telefonia

celular -, deixando em segundo plano a qualidade do que é trocado, conversado,

informado, apreendido, durante a conexão.

Gilles Lipovetsky (2007) aborda esta fragilidade nas trocas, esta

efemeridade, e vê no comportamento compulsivo desses indivíduos a busca de

uma “felicidade paradoxal”. Observando criticamente novos hábitos consumistas

que, segundo algumas teses (para ele equivocadas), estariam provocando uma

mudança radical na lógica de consumo, o autor acredita que está cada vez mais

arraigado o princípio da individualidade:

O efêmero recua? O ciclo de vida dos produtos não cessa de diminuir. O fato de se

desenvolverem os setores da educação, das viagens, da comunicação, do bem-estar

corporal e mental significa que o fútil ficou para trás? Não é o que realmente

sugerem os jogos de vídeo, os chats, os disfarces eletrônicos do Eu, a necessidade

de comunicar-se por comunicar-se...(Lipovetsky, 2007, p.125)

Vemos um panorama em que o efêmero substitui o permanente, o mutável

substitui o estável. Contudo, paradoxalmente, a efemeridade dos laços,

instituições, relacionamentos associa-se ao sentimento de uma juventude eterna,

um eterno presente. Deste modo, numa sociedade que cultua a aparência e o vigor

físico como fatores essenciais à felicidade, facilmente erguem-se muros que

segregam as pessoas também em função da idade, revelando uma nova face da

exclusão. Assim, ser um veterano pode significar estar fora do “clube”, ser

ultrapassado, antiquado, sem valor e passível de descarte. Para ser aceitável – e

neste ponto entra o interesse econômico, já que o segmento de idosos aumenta a

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cada dia e detém considerável poder de compra - é preciso dar novos nomes à

chamada terceira idade, é preciso criar eufemismos, como “melhor idade”7.

Este é um ponto também abordado por Lipovetsky, que lança um olhar

crítico sobre a suposta inclusão dos idosos na sociedade contemporânea.

Referindo-se ao mercado consumidor representado pela terceira idade, ao qual são

oferecidos mais e mais produtos, o autor alerta para a necessidade de não se

confundir a lógica comercial com a vida cotidiana, ou seja, “se é verdade que a

época do ostracismo dos ‘velhos’ está terminada, isso não significa de modo

algum que o juvenilismo se desvanece” (Lipovetsky, 2007, p.124). Ou seja, como

num mundo que gira em ritmo frenético não se valorizam mais as experiências

vividas, o saber acumulado, a memória, o idoso será bem vindo ao “clube” desde

que venha na condição de consumidor.

A pós-modernidade apresenta-se, assim, como um universo tecnológico

onde o ritmo veloz de textos, imagens, dos relacionamentos, não favorece a

criação de espaços para a reflexão, para aprofundar, lapidar as relações. Mesmo a

notícia vira entretenimento, uma encenação da realidade, e a opinião privada

assume o papel de opinião pública, como descreve Marilena Chauí. Segundo a

autora, os noticiários de rádio e TV mais desinformam que informam e “as

notícias são apresentadas de maneira a impedir que o ouvinte e o espectador

possam localizá-la no espaço e no tempo” (Chauí, 2006, p.45). Embora o volume

de informação veiculado pelas diversas mídias seja infinitamente maior do que há

algumas décadas, essa massa de dados caracteriza-se pela atopia (ausência de

referência espacial) e pela acronia (ausência de referência temporal) (Chauí,

2006, pp.45-46). Deste modo, a noção de proximidade é deformada, fazendo com

que tragédias acontecidas em outros países (como o ataque às torres gêmeas)

causem grande comoção quando mostradas na TV, enquanto tragédias cotidianas

(como os sem-teto, nas grandes cidades) passem despercebidas. Do mesmo modo,

7 Para Pierre Bourdieu, somos sempre o jovem ou o velho em relação a alguém e estas categorias

historicamente estão relacionadas à transferência de poder. Juventude e velhice seriam construções

sociais decorrentes da disputa entre os jovens e os velhos. A ‘juventude’ é apenas uma palavra é o

título de um artigo de Bourdieu, que gerou, em resposta, o texto A juventude é mais que uma

palavra, no qual os autores Mario Margulis e Marcelo Urresti questionam a abordagem do

sociólogo francês. http://pt.scribd.com/doc/16677551/Pierre-Bourdieu-A-Juventude-e-apenas-

uma-palavra e http://www.n-a-u.org/pontourbe01/PEREIRA-a-2007.html - acesso em 05/01/12

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a relação com acontecimentos anteriores é ignorada, como se os fatos noticiados

não tivessem uma trajetória no tempo, origens e consequências.

Guy Debord (2003) definiu essa sociedade como “A Sociedade do

Espetáculo”, onde já não se busca tanto ser e nem apenas ter, mas parecer; onde a

representação substitui as vivências num jogo de faz-de-conta que ultrapassa os

limites do lúdico. Segundo Debord, “Toda a vida das sociedades nas quais reinam

as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de

espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da

representação" (2003, p.8).

Este cenário irá impactar particularmente o jovem, não apenas por sua

condição biológica/emocional – um ser ainda em construção, em processo de

amadurecimento – mas por ser ele o principal alvo da mídia. Campanhas

publicitárias investem em segmentos cada vez mais jovens8, por motivos óbvios:

além de mais suscetíveis aos apelos da propaganda, eles continuarão consumindo

por muitos anos. Assim, as estratégias de marketing buscam criar hábitos de

consumo, sedimentar um padrão de comportamento direcionando-o para

determinados produtos diante dos milhares oferecidos à sociedade. Neste ponto, é

relevante destacar que, ao contrário do que o senso comum crê, exclusão e

pobreza não andam necessariamente de braços dados. Assim, às dimensões de

exclusão/inclusão analisadas até aqui, acrescenta-se outra, observada num

segmento social insuspeito à primeira vista: as classes média e alta.

Sandra Korman Dib, em sua pesquisa Juventude e Projeto Profissional: a

construção subjetiva do trabalho (2007), traça um painel onde se pode observar

como mesmo as classes mais favorecidas (o universo pesquisado é de jovens

universitários de classe média e alta) estão sujeitas a processos de exclusão –

ainda que sob outros nomes - decorrentes principalmente das transformações e das

novas relações que se estabeleceram no mundo do trabalho nas últimas décadas.

8 Restrições na publicidade para crianças vêm sendo discutidas, com Projetos de Lei tramitando no

Congresso -

http://alinecorrea.com.br/noticias/101/2010/08/30/Deputada_Aline_Correa_sugere_proibir_propag

anda_para_crianca (matéria de 30/08/10) acesso em 05/08/11.

O Instituto Alana realiza pesquisas sobre a influência das propagandas sobre as crianças:

http://www.alana.org.br/banco_arquivos/arquivos/docs/educacao/palestras/a-ilegalidade-da-

publicidade-dirigida-a-crian%C3%A7a.pdf - acesso em 05/08/2011

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Tais transformações exigem uma revisão de conceitos, como avalia a

pesquisadora:

Nesta nova configuração das relações sociais e de produção torna-se necessário

contextualizar alguns conceitos-chave e também atualizar os parâmetros de

reconhecimento dos seus possíveis impactos, especialmente no caso do

desemprego, sobre diferentes grupos de sujeitos. Se há uma patente desigualdade

em relação ao acesso aos bens, aos recursos educacionais, às informações e às

oportunidades nas diferentes classes sociais, cabe questionar se os jovens “em

vantagem” podem ser considerados incluídos. Pode o efetivo acesso a bens e

recursos, por si só, traduzir as possibilidades de inclusão de jovens que, com o

passar dos anos, deixam de questionar como conseguir emprego e trabalho e

passam a adotar a postura do não saber o que desejam? Para tanto, o conceito de

exclusão, fortemente vinculado a essa questão, necessita ser atualizado, dado que

não parece abarcar os jovens “em vantagem” social (Korman Dib, 2007, p.99).

A autora sinaliza a existência de diferentes posições teóricas acerca desta

questão: enquanto para alguns autores há um novo tipo de exclusão, outros

entendem que se trata da mesma exclusão, apenas estendida a outros segmentos

da sociedade. Antes resguardados por uma ordem sócio-econômica, que já não

tem hoje os mesmos alicerces, estes segmentos encontram-se numa situação de

vulnerabilidade social.

Entendendo a exclusão como um processo, podemos dizer que, em certos

casos, a vulnerabilidade é o primeiro estágio, ou o primeiro degrau de uma

descida rumo a patamares mais baixos na sociedade. Sandra Korman Dib e

Giuliana Leal têm opiniões convergentes neste aspecto. Leal acredita que a

vulnerabilidade social é “uma noção importante na temática da exclusão, seja

como elemento participante da configuração da noção de exclusão social, seja

concebida em destaque...”. (Leal, 2008, p.139). Para a autora:

Ao se pensar a exclusão social como quebra e principalmente como fragilização de

laços sociais, o que está em questão são sobretudo processos [...]. Nesses

processos, as pessoas, famílias e/ou grupos sofrem vulnerabilização, isto é, vão se

tornando mais frágeis frente aos riscos de descenção e isolamento social, e cada

vulnerabilidade as torna mais suscetíveis a novas outras. (Leal, 2008, p.139)

Korman Dib, por sua vez, vê o conceito de vulnerabilidade social como uma

alternativa ao de exclusão, configurando-se numa zona intermediária, de caráter

movediço, onde não há fronteiras rígidas, entre a exclusão e a integração:

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... o entendimento da noção de vulnerabilidade social pode ser apresentado como

um importante condutor para a apreensão do conjunto de significados e sentidos

envolvidos no processo de inserção e desenvolvimento profissional dos jovens no

contemporâneo.

No Brasil a vulnerabilidade social, segundo Cunha et al (2003), tem na

precariedade e na instabilidade do trabalho as suas principais fontes. A essas fontes

se juntam o retraimento do Estado e o enfraquecimento das instituições sociais.

Para o autor, a vulnerabilidade social pode ser identificada na debilidade dos

mercados de trabalho; no trabalho assalariado precário; na quantidade de

trabalhadores sem seguridade social e empregos de baixa qualidade; na pobreza e

indigência crescentes; na deteriorização dos indicadores distributivos; no processo

incompleto na equidade de gênero; e as classes médias também são atingidas pela

queda no bem-estar. (Korman Dib, 2007, p.118).

Nos relatos dos jovens entrevistados pela pesquisadora, é recorrente a

referência à perda de um certo padrão de vida, um rebaixamento econômico e

social, em decorrência de problemas associados ao trabalho dos pais. Este

“deslocamento social” (Korman Dib, 2007, pp. 109-110) gera uma instabilidade

na família, uma situação de vulnerabilidade que irá impactar duramente a postura

do jovem diante da vida profissional que se descortina ao fim de seu curso

universitário, e mesmo seu posicionamento no mundo adulto. As incertezas

diante do futuro, reforçadas pela mídia, tornam este jovem um “incluído

provisório” (Korman Dib, 2007, p.106). A exclusão passa a ser uma ameaça, um

perigo à espreita.

Reportando-se ao pensador Gilberto Dupas, a autora faz referência a um

caráter disciplinador do desemprego, já que corroi a força reivindicatória dos

sujeitos, ameaçados pela instabilidade do mercado de trabalho. No caso dos

jovens pesquisados, a autora crê que “poderia se aventar que o que estaria em

risco não seriam as suas reivindicações propriamente ditas, mas sim o apagamento

delas, ou seja, dos planos e ensejos de realização futura” (Korman Dib, 2007,

p.86). Olhando desta perspectiva, cabe indagar se para esse jovem - sujeito a um

sentimento de vulnerabilidade diante do perigo iminente de se ver excluído da

classe social na qual se reconhece - o presente eternizado no mundo virtual

poderia estar se convertendo num meio para fugir de (ou ao menos ignorar) um

futuro nada promissor, onde não se descortinam vivências que justifiquem

comprometimento, experiências pelas quais valha a pena se engajar.

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Esta renúncia a planos e desejos de realização profissional e pessoal, seja

qual for a classe social do indivíduo, não fica impune. Frequentes são os relatos,

científicos ou não, que dão conta de um aumento de doenças da psique, como

ansiedade, pânico e depressão, entre jovens e adolescentes. O psicanalista Esio

dos Reis Filho analisa estes estados de desconforto e a dificuldade de lidar com

eles, na atualidade, referindo-se a uma situação marcada pelo desamparo e falta de

garantias:

Esse "mal-estar", não podendo ser curado, deverá ser permanentemente gerenciado

pelo sujeito. A cultura de cada época e de cada lugar fornecerá o instrumental,

tanto extra como intra-psíquico, para que o sujeito realize esse gerenciamento.

Penso que o surgimento na atualidade, tanto de quadros depressivos quanto de

pânico, está na dependência do gerenciamento desse "mal-estar" constitutivo da

civilização.

A pós-modernidade [...] não tem sido pródiga em propiciar ao sujeito da atualidade

um instrumental eficaz para esse gerenciamento, dificultando a estruturação de um

aparelho psíquico bem integrado, com boa capacidade de simbolização. A vivência

de desamparo e de falta de garantia vai, então, tomando corpo de forma

avassaladora: basta vermos as manchetes dos jornais, nestes tempos tenebrosos de

obscurantismo, fundamentalismos, violência predatória dos mais fortes sobre os

mais fracos, paroxismos de destrutividade estremecendo o planeta. (Filho, 2001)

Para Korman Dib, a insegurança dos jovens e mesmo seu desencanto com

relação a uma carreira que traga realização profissional e pessoal originam-se

desse panorama atual e também da trajetória do estudante na instituição

universitária. Se nas sociedades modernas o trabalho está associado ao sujeito de

tal forma que se cola à sua identidade, a integração desse sujeito no meio social

passa por seu papel na cadeia produtiva, por seu sucesso profissional, pelo êxito

em seus empreendimentos. Daí, o comportamento demonstrado pelos jovens

pesquisados, evidenciando dúvidas quanto à carreira a escolher, apontar para

situações mais graves do que apenas uma insegurança ou mera acomodação

juvenil. Como se sentir confiante se mesmo o grau de instrução já não é garantia

da obtenção de emprego seguro? Como saber o que quer se todos os caminhos se

mostram instáveis?

A autora acredita que a os diferentes discursos sociais, entre os quais estão

os discursos midiáticos, não contribuem para ajudar esse jovem a definir seu

posicionamento diante da vida profissional. Segundo Korman Dib, estes discursos

não apenas levam informação, mas frequentemente também naturalizam as

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mudanças, como se estas fizessem parte de um processo natural, que não precisa

nem deve ser questionado. Ao contrário, o que se deve fazer é seguir as

prescrições para lidar com elas, pois apesar das dificuldades, “ainda assim haverá

emprego para determinados sujeitos que atentarem para algumas recomendações”

(Korman Dib, 2007, p.115).

Jurandir Freire Costa descreve esta aparente normalidade reportada pela

mídia como fruto de uma sucessão de fatos históricos que jogaram por terra

alguns conceitos e ideologias. Segundo o autor, com o fracasso de regimes

totalitários de esquerda, o povo e a elite que detém o poder (político e econômico)

passaram a compartilhar ideias neoliberais:

As elites desfrutam de uma tranquilidade ideológica que não tinham antes. Livres

da oposição política de esquerda, dos combates dos sindicalistas e da contestação

de jovens e intelectuais, elas, por fim, respiram. Tudo parece em ordem, na paz do

mercado e do consumo. O desemprego, o aumento da miséria, a decadência da vida

urbana ou a situação no campo e dos sem-terra são definidos como etapas infelizes

porém provisórias no inevitável e correto rumo do desenvolvimento. (Costa, 2001,

p.83).

Esta situação de “normalidade”, sem alternativas, é, afirma Freire Costa,

continuamente reforçada pelos meios de comunicação.

2.2. O caso brasileiro

Os processos de exclusão, no contexto brasileiro, assumem uma feição mais

grave, com mais barreiras a superar, em virtude das particularidades de nossa

história. Acompanhando a análise de Aldaíza Sposati, que parte dos países do

Primeiro Mundo para chegar ao caso brasileiro, observamos que a Grande

Depressão dos anos 1930 levou a uma nova postura, por parte do Estado, diante

da ocorrência de enormes contingentes de excluídos do mercado de trabalho.

Embora a lógica excludente do modelo capitalista, com a formação de reserva de

mão de obra, não fosse novidade, a gravidade da situação exigia uma ação forte

do Estado, com a adoção de políticas contundentes, visando ao bem estar social

(Welfare State). Assim, a depressão econômica daquela década “provocou a

solidariedade e o modelo social do welfare” (Sposati, 2006, p.1).

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Décadas depois, numa sociedade em que o sistema capitalista já alcançava

outro patamar (neoliberalismo/globalização), observa-se uma reação diferente. Na

análise de Sposati, a segunda depressão econômica, nas últimas décadas do século

XX, “contraditoriamente mediada pelo avanço científico-tecnológico, descentrou

não só o social como a ética e propôs um modelo de Estado de responsabilidades

mínimas” (Sposati, 2006, p.1). O Estado, assim, esquiva-se de sua

responsabilidade social perante o cidadão, transferindo, em muitos casos, este

papel para outras empresas, por meio de privatizações, e para entidades

filantrópicas. Vê-se o fortalecimento das instituições financeiras e o assentamento

da economia mundial em bases fluidas, cambiantes, intangíveis9, num cenário que

levou Boaventura de Sousa Santos (2011) a comparar o sistema financeiro global

ao monstro Adamastor, figura mitológica que aterrorizava os antigos navegadores.

O “Adamastor” contemporâneo, segundo Boaventura Santos, é controlado pelos

grandes investidores, por instituições como o Banco Mundial e o FMI, pelas

agências de avaliação de risco, que “têm o poder de distribuir as borrascas e as

bonanças a seu bel-prazer, ou seja, borrascas para a grande maioria da população

do mundo, bonanças para eles próprios” (Santos, 2011), numa lógica que promove

a concentração de renda nas mãos de uma minoria.

Percebe-se então que, enquanto nos países do Primeiro Mundo houve a

perda de conquistas sociais já assimiladas pela sociedade, no Brasil “este patamar

de universalidade da cidadania não foi ainda consagrado nem na sociedade nem

no Estado” (Sposati, 1998, p.4). Ou seja, o neoliberalismo levou a sociedade

brasileira se distanciar de um estágio de bem-estar que ainda buscava alcançar. O

modelo de Estado mínimo se consolidou, ocorrendo, especialmente nos anos

1990, a privatização de setores estratégicos, como energia e telecomunicações10

.

Serviços como educação e saúde, ainda que garantidos pela Constituição, também

9 Ver pesquisa do Instituto Federal de Tecnologia de Lausanne, Suíça, que revela como se

estrutura o poder global das empresas transnacionais, sobretudo os bancos. Matéria disponível em

http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18798&boletim_id=103

8&componente_id=16627 – acesso em 16/12/11. 10

Entre 1990 e 1994, o Governo Federal desestatizou 33 empresas. A partir de 1995, inicia-se uma

nova fase da privatização, e os serviços públicos (como transporte, rodovias, saneamento, portos e

telecomunicações) começam a ser transferidos ao setor privado. Fonte: BNDES

http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimen

to/especial/Priv_Gov.PDF - acesso em 10/02/2011

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passam a ser oferecidos em larga escala por empresas privadas (planos de saúde e

escolas particulares).

O estudo desenvolvido por Giuliana Leal (2008, p.136) também faz

referência a este descompasso na trajetória do País rumo a um patamar de

cidadania plena, ou próximo disso. A autora destaca os avanços obtidos no pós-

guerra (anos 1950), como crescimento industrial, urbanização e acesso à escola, e,

posteriormente, com a Constituição de 1988, que veio assegurar uma gama de

direitos aos cidadãos. Contudo, observa Leal, a crise econômica, com a inflação

corroendo os salários, comprometeu este processo. Assim, percebemos que, como

num jogo de dados, o processo de crescimento e socialização foi obrigado a

retroceder várias casas, resultando no aumento da pobreza e das desigualdades

sociais e, deste modo, deslocando o “país do futuro” para um futuro mais distante

e incerto.

Ao trazer para a realidade brasileira o tema da exclusão, torna-se necessário,

portanto, lançar um olhar ao passado e ter em mente que estamos falando de uma

sociedade colonizada, marcada desde seus primórdios pelas desigualdades.

Percorrendo a história dos países colonizados no Novo Mundo, vemos, década

após década, século após século, desde a chegada dos europeus ao continente

americano, a gestação de um processo que colocou um grande contingente de

indivíduos à margem das conquistas sociais. Autores diversos, em textos

literários, jornalísticos e acadêmicos, refizeram e refazem essa história, como o

escritor uruguaio Eduardo Galeano. Em As veias abertas da América Latina,

escrito em 1971, Galeano relata como, além da rapinagem praticada pelas Coroas

européias, as riquezas que permaneciam nas colônias eram destinadas ao luxo de

alguns, utilizadas para ostentação, aquisição de latifúndios, construção de prédios

suntuosos. Deste modo, alimentava-se uma ciranda em que os que já tinham bens

mais enriqueciam, em detrimento do desenvolvimento local, do bem estar comum

(Galeano, 1996, p.42).

Não é difícil concluir que a partilha, o sentimento de fazer parte de uma

comunidade, de um povo, de uma nação, ficaram adormecidos ou foram

ignorados. Daí, alguns teóricos terem definido o Brasil como uma nação sem

povo, como analisa o professor Fábio Konder Comparato:

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Quando Tomé de Souza desembarcou na Bahia, em 1549, munido do seu famoso

Regimento do Governo, e flanqueado de um ouvidor-mor, um provedor-mor, clero

e soldados, a organização político-administrativa do Brasil, como país unitário,

principiou a existir. Tudo fora minuciosamente preparado e assentado, em oposição

ao descentralismo feudal das capitanias hereditárias. Notava-se apenas uma lacuna:

não havia povo. A população indígena, estimada na época em um milhão e meio de

almas, não constituía, obviamente, o povo do novel Estado; tampouco o formavam

os 1.200 funcionários – civis, religiosos e militares – que acompanharam o

Governador Geral. Iniciamos, portanto, nossa vida política de modo original:

tivemos Estado, antes de ter povo. Quando este enfim principiou a existir,

verificou-se desde logo que havia nascido privado de palavra. (Comparato, 2010)

Arbitrariedades, conceitos particulares sobre o “fazer justiça”, também

fazem parte de nossa história. Durante a escravidão, o Estado não controlava os

atos violentos cometidos pelos senhores de escravos. As fazendas tinham suas

próprias milícias e essa polícia/justiça paralela era tolerada. Ainda no século XX,

disputas entre famílias no interior, geralmente em conflitos por propriedade de

terras, não raro se resolviam sem a participação das autoridades11

.

Seguindo nosso percurso pela história do Brasil, vemos uma sucessão de

fatos que, se por um lado contribuíram para o crescimento do país, foram muitas

vezes reforçando as desigualdades: a adoção de um sistema de exploração de mão

de obra escrava (indígena e principalmente oriunda da África), a transferência da

Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, a tardia abolição da escravatura que, na

prática, não libertou os escravos da pobreza e dependência, a “importação” de

imigrantes europeus em substituição à mão de obra escrava, a proclamação da

Independência por um membro da Família Real. Seguiram-se a proclamação da

República, revoluções, regimes ditatoriais. Nas últimas décadas, depois dos

avanços econômicos e sociais com que os anos 1950 acenavam, temos o

neoliberalismo e as privatizações.

Jailson Souza e Silva identifica uma hierarquia social brasileira, construída

ao longo da história do país:

11

O filme Abril Despedaçado (Walter Salles, 2001), inspirado no livro homônimo de Ismail

Kadaré, retrata esta realidade, onde famílias rivais cometem assassinatos mutuamente.

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Durante séculos, a principal distinção hierárquica foi estabelecida entre os escravos

– que não custa mencionar terem sido os negros, em geral ‐ e os homens livres; de

forma secundária, mas relevante, se colocava a distinção entre os homens com

posses, em geral propriedades e/ou títulos de nobreza, e os despossuídos. Outros

níveis hierárquicos eram sustentados nas distinções sexuais (em prejuízo das

mulheres) e etárias (em prejuízo das crianças e adolescentes, vistos como seres sem

direitos), além de diversas outras formas de transformação da diferença em

desigualdade. Assim, a sociedade brasileira foi se forjando através da construção

de formas diversas de relacionamentos sociais e de noções de cidadania baseadas,

principalmente, no capital econômico; no cerceamento dos direitos sobre o corpo e

da vontade soberana da grande maioria da população. (Silva, 2010a, p.2)

As migrações e o crescimento desordenado dos centros urbanos constituem

um outro aspecto da exclusão social no Brasil. A seca no Nordeste e a falta de

trabalho nas cidades do interior durante décadas deslocaram milhares de pessoas

para as áreas urbanas, migrantes que em sua maioria não conseguiram colocação

no mercado de trabalho e acabaram engrossando o contingente de favelados,

subempregados, marginalizados. São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, são

metrópoles com forte presença de nordestinos. Para Miguel Carter, professor da

American University, em Washington, uma reforma agrária menos tímida do que

a realizada até agora pelos sucessivos governos teria evitado, em grande escala, a

formação de segmentos excluídos nos centros urbanos e “a manutenção de um

apartheid social que sempre caracterizou o Brasil” (Carter, 2010). Em entrevista

ao Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), quando do lançamento de seu livro

Combatendo a desigualdade social12

, o professor afirma que:

O inchaço das metrópoles brasileiras é porque não se fez reforma agrária. Grande

maioria das pessoas veio do interior do Nordeste, Minas Gerais e outras regiões

empobrecidas onde coronéis dominavam. Oligarquias fortes que não davam chance

de o povo progredir. Imagina se tivesse ocorrido a reforma agrária no tempo do

Jango (década de 60). Hoje teria muito mais gente morando no campo, nas cidades

pequenas do interior, teria tido muito mais agroindústria, teria tido um patamar de

desenvolvimento que aconteceu em partes do sul do Brasil onde teve a presença de

pequenos agricultores que logo geraram indústrias e capitalizaram essas regiões. A

história urbana do Brasil teria sido muito diferente se tivesse ocorrido uma reforma

agrária na década de 60 (Carter, 2010).

Os números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

confirmam as palavras do professor Carter. Conforme dados do censo 2010, a

concentração de habitantes nos centros urbanos, que já era excessiva, aumentou

12

CARTER, Miguel (org.). Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no

Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2010

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nos últimos dez anos, passando de 81,25% para 84,35% 13

. Ainda que isso

signifique que houve maior urbanização no interior do país – e não apenas a

migração para as grandes cidades – a questão preocupante é que a demanda por

emprego nas cidades cresce, enquanto que no campo faltam mãos para plantar.

Como revela o referido censo, das mais de 190 milhões de pessoas que constituem

a população brasileira, menos de 30 milhões vivem em situação rural. É

interessante aqui destacar que há uma crescente demanda por alimentos orgânicos

no mundo e que a agricultura familiar é responsável por grande parte do

abastecimento das populações urbanas14

. Neste contexto, a reforma agrária, como

observa Carter, seria uma forma de reduzir a desigualdade e a exclusão social,

gerando empregos diretos e indiretos no campo.

Outro ponto que emerge dos processos migratórios (especialmente do sertão

nordestino) em direção aos centros urbanos (principalmente do Sudeste) e que

alimenta as situações de exclusão, é a discriminação pelo racismo. Em seu texto,

Aldaíza Sposati observa a existência de uma rigidez na transição da exclusão para

a inclusão social que é “conhecida pela sociedade mundial pelos agravados

conflitos étnicos concretizados em guetos de judeus, ou no apartheid sul-

africano” (Sposati, 2006, p.2). Trazendo esta reflexão para o universo brasileiro,

não raro observamos a existência de comportamento discriminatório, depreciativo,

em relação à aparência, hábitos, sotaque dos brasileiros oriundos do norte e

nordeste do país15

. A autora afirma ainda que aquela rigidez ganha uma nova

versão, mundializada, a qual “tem os muros individuais sutilmente construídos no

cotidiano das relações que se dão na escola, no restaurante, no trabalho, no clube,

etc.” (Sposati, 2006, p.2).

13

Dados disponíveis no website do IBGE - acesso em 04/02/11.

http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1766&id_pagi

na=1 14

Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário-MDA, no caso do Estado do Rio de

Janeiro, 92% dos produtores da região serrana são agricultores familiares que respondem por

28,5% do PIB rural do estado. http://www.mda.gov.br/portal/noticias/item?item_id=6873890 e

http://www.mda.gov.br/plano-safra/ – acesso em 11/02/11 15

Um exemplo é a declaração de uma estudante de Direito de São Paulo, após as eleições

presidenciais de 2010 Ver entrevista do Presidente da OAB-PE:

http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4770733-EI6578,00-

Discriminacao+a+nordestino+nao+e+fato+isolado+diz+OABPE.html - acesso em 10/02/2011. No

cinema, vários filmes abordaram o choque do nordestino com a cidade grande, entre eles “O

homem que virou suco” (João Batista de Andrade, 1981) e “A hora da estrela” (Suzana Amaral,

1985).

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Esses “muros” colocam os indivíduos em espaços delimitados, agrupando-

os em categorias, conforme sua “identidade social” (Goffman, 2008). A sociedade

confere rótulos às pessoas e espera que se comportem dentro de padrões definidos

a priori. Verifica-se então, com frequência, a atribuição de estigmas aos

indivíduos. Na definição de Erving Goffman, estigma é a “situação do indivíduo

que está inabilitado para a aceitação social plena” (2008, p.7). Numa sociedade

como a brasileira, onde historicamente florescem a discriminação e a

desigualdade, é frequente a aplicação de estigmas aos indivíduos considerados

“diferentes”. Aos portadores de estigma – seja em função de sua aparência física

ou de fatores não perceptíveis visualmente - não serão conferidas as mesmas

oportunidades, a mesma credibilidade que àqueles que se encaixam nos modelos

pré-determinados. Os estigmatizados têm sua individualidade eclipsada pelo

interesse social, a fim de manter a “normalidade”.

Goffman faz a distinção entre o que denomina “identidade social real” e

“identidade social virtual”, em função de serem atendidas ou não aquelas

expectativas criadas em relação a determinado indivíduo:

... quando um estranho nos é apresentado, os primeiros aspectos nos permitem

prever a sua categoria e os seus atributos, a sua "identidade social" - para usar um

termo melhor do que "status social", já que nele se incluem atributos como

"honestidade", da mesma forma que atributos estruturais, como "ocupação".

Baseando-nos nessas pré-concepções, nós as transformamos em expectativas

normativas, em exigências apresentadas de modo rigoroso.

Caracteristicamente, ignoramos que fizemos tais exigências ou o que elas

significam até que surge uma questão efetiva. Essas exigências são preenchidas? É

nesse ponto, provavelmente, que percebemos que durante todo o tempo estivemos

fazendo algumas afirmativas em relação àquilo que o indivíduo que está à nossa

frente deveria ser. Assim, as exigências que fazemos poderiam ser mais

adequadamente denominadas de demandas feitas "efetivamente", e o caráter que

imputamos ao indivíduo poderia ser encarado mais como uma imputação feita por

um retrospecto em potencial - uma caracterização "efetiva", uma identidade social

virtual. A categoria e os atributos que ele, na realidade, prova possuir, serão

chamados de sua identidade social real. (Goffman, 2008, p.12)

Substitui-se o sujeito por uma “representação circunstancial de certas

características típicas da classe do estigma, com determinações e marcas internas

que podem sinalizar um desvio, mas também uma diferença de identidade social”

(Melo, 2005). Reverter esta ordem, ou seja, abrir brechas naqueles muros

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simbólicos, significa instaurar uma nova dimensão nas trocas sociais e,

principalmente, afetar as relações de poder.

Os estigmas, assim, são uma das faces da exclusão em nossa sociedade.

Uma exclusão que decorre de diversos fatores, de uma sucessão de eventos que,

camada por camada, foram se sobrepondo, tal como numa rocha a ação do tempo

se sedimenta, formando um desenho onde se pode ler a sua história. A existência

de um contingente de excluídos, em diferentes dimensões, é assim fruto de um

processo histórico, político, social.

2.3. O Estado do Rio de Janeiro e a Cidade Partida

Caminhando para o final do século XX e tornando-se as desigualdades

cada vez mais evidentes, vemos surgir a expressão Belíndia16

para designar um

Brasil de duas faces opostas: uma exibindo a riqueza de uma minoria – a Bélgica

– e outra com pobreza semelhante à existente na Índia. Trazendo esta dicotomia -

um corpo social mutilado por um corte que separa os cidadãos, dividindo-os em

duas categorias - para nosso universo de pesquisa – o município do Rio de Janeiro

e a macrorregião chamada Grande Rio – temos uma metrópole que foi,

apropriadamente, batizada de Cidade Partida, pelo escritor e jornalista Zuenir

Ventura. De sua análise, vemos surgir uma cidade que, já nos anos 1950 – tidos

como dourados, pacíficos, de grande efervescência cultural – gestava as sementes

da violência urbana que explodiria nas décadas seguintes. A segregação que

marca nossa história, no Rio de Janeiro não permaneceria silenciosa, inerte. Sobre

a ocupação dos morros e o crescente domínio, dentro das favelas, de facções

criminosas, diz o autor:

16

A expressão é atribuída ao economista Edmar Bacha que a utilizou em 1974 para “definir o que

seria a distribuição de renda no Brasil, à época (uma mistura entre uma pequena e rica Bélgica e

uma imensa e pobre Índia)”. http://www.economiabr.net/colunas/henriques/belindia.html - acesso

em 19/12/10.

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35

Sem cinturão de segurança ou cordão sanitário para isolar o mundo dos pobres do

mundo dos ricos, o Rio não cedeu ao inimigo apenas a vista mais bonita. Os nossos

bárbaros já estão dentro das muralhas e suas tropas detêm as melhores armas e a

melhor posição de tiro.

Os bárbaros são a grande fonte do mal-estar deste final de século. A exclusão se

transformou no problema social maior. Enquanto dos morros só se ouviam os sons

do samba, parecia não haver problema. Mas agora se ouvem os tiros. Não se trata

de uma guerra civil, como às vezes se pensa, mas de uma guerra pós-moderna,

econômica, que depende das artes bélicas mas também das leis do mercado, é um

tipo de comércio. Por isso não há solução mágica à vista. Sabe-se que é preciso

destruir as “vanguardas” – os que praticam barbaridades, os traficantes de drogas –

numa operação de força implacável. Exterminá-los, porém, talvez seja mais fácil

do que desmontar o circuito econômico que os sustenta e cujas pontas – a produção

e o consumo – não estão nas favelas. (Ventura, 1994, p.14).

O surgimento daquela que é considerada a primeira favela17

carioca, no

morro da Providência, no final do século XIX, é um exemplo significativo desse

processo segregador. Seus primeiros moradores foram os soldados que

combateram na Guerra de Canudos e ficaram a mercê da sorte, ao voltarem para o

Rio de Janeiro. Com a reforma urbana de Pereira Passos, no início do século XX,

a população pobre da cidade foi transferida para morros próximos ao Centro, entre

eles o da Providência, que teve assim sua população aumentada. Como observa

Jailson Souza e Silva (2007), a existência de espaços nobres e populares, tal como

a distinção entres os sujeitos a partir do consumo, se dá mesmo nos países mais

desenvolvidos. O que faz a diferença é a atuação do Estado, sua soberania.

No Brasil, o Estado perdeu, ou nunca teve, a soberania sobre os espaços populares.

Desde a década de 20, no Rio de Janeiro, entregou a ordenação do espaço popular e

a resolução de eventuais conflitos a grupos particulares. Inicialmente, eram pessoas

com autoridade na comunidade, lideranças religiosas ou malandros; depois, as

polícias mineiras e os grupos de extermínio assumiram o controle e, mais tarde, os

grupos de traficantes, que sofrem hoje o ataque das milícias. (Silva, 2007, p.95)

As tentativas de solucionar o problema das favelas, ou melhor, o problema

que as favelas representam para a cidade, vêm da década de 1940 e se expandem

no final da década de 1960. São políticas de habitação e remanejamento que não

estancaram a favelização da cidade do Rio de Janeiro e ficaram aquém das

promessas de dar melhores condições de vida à população mais pobre. Como

observa Cláudia Pereira em sua tese de doutorado Gisele da Favela, foi no

17

O nome favela seria uma associação ao morro da Favela, na Bahia, nome originado de uma

planta nativa, o faveleiro. http://pt.wikipedia.org/wiki/Morro_da_Provid%C3%AAncia – acesso

em 20/12/10

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governo de Carlos Lacerda que surgiram, por exemplo, a Vila Kennedy e a Vila

Aliança, conjuntos habitacionais construídos na zona oeste do então Estado da

Guanabara, para receber os moradores das favelas.

Estas transferências geraram reações opostas, pois as opiniões estavam

divididas entre aqueles que “defendiam esta ação em nome do desenvolvimento

da área urbana da cidade e entre aqueles que se indignavam com o desrespeito aos

direitos de escolha das famílias removidas” (Pereira, 2008, p.37). A Cidade de

Deus, hoje com 36.500 moradores18

, frequentadora assídua do noticiário e

conhecida como CDD, é um exemplo que ilustra com clareza a ineficiência dessas

políticas. Como relata Cláudia Pereira:

A Cidade de Deus era um conjunto habitacional destinado a funcionários públicos.

Seria uma “cidade-modelo” e seu projeto visava povoar Jacarepaguá, uma região

ainda pouco habitada na Zona Oeste da cidade.

Em 1966, já no governo Negrão de Lima, um temporal causou enchentes que

deixaram suas marcas por todos os bairros e, principalmente nas favelas,

desabrigou milhares de pessoas. A Cidade de Deus, neste momento ainda em fase

final de construção, tornou-se, então, uma alternativa para a ocupação daquelas

famílias que haviam perdido, com as chuvas, suas casas e seus pertences. Formava-

se uma comunidade composta por indivíduos que viviam em 63 favelas da cidade.

Era uma população fragmentada social e culturalmente. O Instituto Pereira Passos

contabilizou mais de 38.000 moradores vivendo em 120,58 hectares, de acordo

com dados de 2000.

Com o passar dos anos, o tráfico de drogas, egresso das favelas que ali se

instalaram, passou a atuar na Cidade de Deus. Iniciou-se, então, uma batalha

territorial travada por facções rivais, que buscavam dominar o fornecimento de

drogas para a cidade. A Cidade de Deus, nos anos 1980 e 1990, passou a ser um

símbolo da violência carioca.

Primeiro pelo livro do antropólogo Paulo Lins (2003) e, em 2002, pelo filme nele

inspirado e dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund, a Cidade de Deus teve

os meandros do tráfico retratados de maneira realista. (Pereira, 2008, pp.37-38)

Voltando à questão do estigma, Jailson Souza e Silva (2010b) assim

descreve o processo de segregação que estigmatizou os moradores de favelas:

18

A população da CDD diminui nos últimos anos, embora tenha sido observado um aumento no

número de moradores de outras favelas, conforme o censo IBGE 2010.

http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia/2011/07/01/ibge-populacao-em-favela-carioca-

cresce-acima-da-media.jhtm - acesso em 12/09/11.

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Mundo da incivilidade, “não cidade”, por excelência, nesses territórios o domínio

dos grupos criminosos armados aumentou a percepção da dissociação entre a

favela e o conjunto da cidade. Nesse quadro, ao invés dos moradores serem

reconhecidos como vítimas da situação de violência e a responsabilidade do Estado

pela privatização criminosa do poder de regular a vida social, a criminalização das

favelas e de seus moradores se ampliou (Silva, 2010b).

Há ainda outros muros que se levantam dentro da “cidade partida” - ainda

que não tão visíveis quanto o que separa asfalto e morro – como aquele que corta

a cidade em “fatias” mais ou menos valorizadas: Zona Sul / Zona Norte, praia /

subúrbio. Numa espécie de zona de sombra, o subúrbio carioca19

, de certo modo,

sofre com suas carências por vezes mais que as favelas, pois, por não ser

caracterizado como uma região de excluídos (favelados), não costuma receber

atenção das ONGs e nem da mídia. Entre a Zona Sul e as favelas (das Zonas Sul,

Norte e Oeste), fica esquecido, vítima também de uma segregação silenciosa, não

tão evidente. Deste modo, percebemos que a cidade não se parte apenas em duas,

há outras fraturas no corpo da sociedade, que criam zonas apartadas, excluídas. A

cidade se expande, mas os serviços públicos tornam-se cada vez mais precários,

há uma degradação urbana. O poder público não se faz presente nessas “regiões

de sombra” como se faz nas regiões onde vivem pessoas de maior poder

aquisitivo e de maior visibilidade dentro do país e no exterior.20

O Mapa de Exclusão Social21

construído para a cidade de São Paulo e

mencionado por Sposati (1998, p.6), é um instrumento revelador dessas nuances

da exclusão que se operam numa grande cidade, uma vez que foram utilizados

diferentes indicadores para mapear a distribuição da qualidade de vida naquela

metrópole. Antes de se indagar “quem é excluído?” é necessário estabelecer

parâmetros e definir em que ponto ocorre a fratura social que coloca de lados

opostos incluídos e excluídos. A autora ressalta a inexistência de “referenciais

universais, para a sociedade brasileira, do padrão de inclusão social” e considera

19

Consideramos aqui os bairros de classe média baixa/média, que se espalham pelas Zonas Norte

e Oeste, não especificamente as áreas de favela, mas de urbanização precária, carente de áreas de

lazer e espaços culturais. 20

Nos últimos anos alguns grupos, utilizando principalmente as redes sociais, vêm trabalhando

para dar maior visibilidade às regiões suburbanas, lutando pela preservação do patrimônio cultural

e histórico e reivindicando mais atenção do poder público. Alguns exemplos são os coletivos

Subúrbio Carioca e Movimento Cine Vaz Lobo – acesso em 07/01/12. 21

O Mapa, elaborado pela PUC-SP, destinou-se à implantação da LOAS-Lei Orgânica da

Assistência Social (Lei 8742, de 1993), que garante a assistência social como direito do cidadão e

dever do Estado. - http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8742.htm - acesso em 11/02/11

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“difusa e subjetiva” a interpretação de proposições de caráter genérico para o

estabelecimento de uma democracia social, tais como: “sociedade justa, toda

criança na escola, salário digno, etc.” (Sposati, 1998, p.7).

Portanto, se falar em Rio de Janeiro é falar em Cidade Maravilhosa, praias,

belas paisagens, “gente bonita e descontraída”, como exposto nos cartões-postais,

é também falar em áreas degradadas, crescimento desordenado, tráfico de drogas,

criminalidade. E alto índice de mortalidade por armas de fogo, sendo as vítimas,

em sua maioria, adolescentes entre 12 e 19 anos22

. A violência no Estado

recrudesceu nos anos 1980 com a disseminação do consumo de cocaína, segundo

análises de especialistas em segurança, como o Coronel Mario Sergio de Brito

Duarte, ex-Comandante-Geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro23

.

Durante fórum sobre segurança pública e cidadania24

, realizado em 2008 na

Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o Coronel Duarte classificou de “crime

coletivizado”, e não “crime organizado”, a rede criminosa ligada ao tráfico que

atua no Estado. Segundo ele, caracteriza o conflito urbano armado, entre outras

coisas, seguir uma ideologia que não é revolucionária, política, mas de facção, que

tem a idéia de soberania de territórios. Ou seja, há uma apropriação de espaços (e

dentro deles, corpos, corações e mentes) ignorados pelo poder público. Um vazio

de serviços, de oferta de benefícios sociais, de reconhecimento de cidadania, vazio

que é preenchido pelo mais forte, no caso, aquele que detém o poder bélico, os

armamentos, e que estabelece as conexões necessárias à manutenção da

22

Ver Boletim Segurança e Cidadania do CESeC - http://pt.scribd.com/doc/51424319/Boletim-

CESeC-No-13-Meninos-do-Rio-2 - acesso 09/01/12 23

Mário Sérgio de Brito Duarte pediu exoneração do cargo no final de setembro/2011, alegando

problemas na Corregedoria interna da PM após assassinato da juíza Patrícia Acioli, em São

Gonçalo-RJ (matéria de O Globo, 30/09/11, Seção Rio, p.19). Foi comandante do Batalhão de

Operações Especiais (Bope) e do Batalhão da Maré. É autor do livro Incursionando no inferno: A

verdade da tropa, sobre o Bope. http://marius-sergius.blogspot.com/ - acesso em 08/02/12. 24

Fórum de Segurança Pública e Cidadania: o papel da sociedade na luta contra a violência.

Informações apuradas na cobertura do evento e publicadas em:

http://tecelan.blogspot.com/2008/12/rio-de-paz-possvel-ainda-1.html. Ver também website da

ABI: http://www.abi.org.br/primeirapagina.asp?id=2871 – acesso em 21/01/11

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coletividade criminosa, conexões estas que não raramente vêm à tona, expondo

ligações entre setores da polícia e criminosos25

.

Deste modo, à exclusão social experimentada pelos moradores dessas áreas,

o poder armado a serviço do tráfico de drogas (e de outras atividades criminosas)

sobrepõe outra segregação. Ao demarcarem seus territórios, levantam novas

barreiras que dificultam, ou mesmo impedem, o acesso daquela parcela da

população ao exercício pleno da cidadania, como receber ou reivindicar os

benefícios e serviços a que tem direito.

Analisando o comportamento do jovem que ingressa no crime, o então

Comandante Geral da PM usou a expressão “pertencimento”: muitas vezes

desprovido de educação, apoio da família e, principalmente, perspectivas quanto

ao futuro, o jovem/adolescente busca uma identidade, um grupo, e o mundo do

crime, do tráfico de drogas está ali, à espera, pronto para fazê-lo sentir-se o rei da

favela.

A identidade, ainda que sujeita a transformações e mesmo à fragmentação

na pós-modernidade (um tempo de incertezas em que as instituições perdem seu

valor), como analisado por Stuart Hall (2006), não pode ser descolada do

indivíduo. Mesmo o sujeito pós-moderno necessita de um espaço onde ancorar

sua identidade, que advém do sentimento de pertencimento a uma cultura. No

caso do jovem morador de favelas, vulnerável aos apelos de um modo de vida

sedutor, ainda que de alta periculosidade, o mundo da criminalidade é muitas

vezes a cultura que ele conhece. Ele ignora suas próprias potencialidades, ou não

vislumbra futuro para elas. Para este jovem, o que lhe conferirá status e o fará sair

da invisibilidade será usar um tênis de marca famosa, correntes de ouro e portar

um fuzil AK47.

A maioria desses jovens é composta por negros, pardos, pobres, com

nenhuma ou baixa escolaridade e, quando presos ou apreendidos (no caso de

menores de 21 anos) constatam que a justiça não é igual para todos, e que o

25

Como a Operação Guilhotina, desencadeada em fevereiro/2011 pela Polícia Federal (PF) e

Ministério Público/RJ a fim de desarticular grupo de policiais civis e militares envolvido com o

tráfico de armas, drogas e milícias. http://extra.globo.com/noticias/rio/comeca-depoimento-de-

allan-turnowski-policia-federal-1089067.html - acesso em 17/02/11

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40

sistema penal acaba copiando a desigualdade existente na sociedade livre.26

Esses

jovens são geralmente provenientes de famílias com problemas crônicos, que se

repetem e até se agravam a cada geração. A antropóloga Zélia Melo, num estudo

sobre os estigmas e a identidade social, destaca o papel da família como

“organização de apoio, proteção, limites e socialização” (Melo, 2005, p.3). A

autora afirma que:

A família transmite a tradição, que representa o cenário do imaginário cultural,

com os significados e significantes dos ritos e mitos do presente e do passado,

construindo sua história particular, marcando as relações internas e externas, os

vínculos afetivos e sociais, com a intenção de estruturar o universo psicológico dos

membros do grupo familiar. Através dos vínculos estabelecidos na família, o

sujeito estigmatizado pode encontrar o suporte para a apreensão das suas

diferenças, no contexto das semelhanças. Pode relativizar a diferença e acrescentar

pontos significativos na sua identidade social, algo diferente no universo das

semelhanças.

Quando os lugares e os papéis não são definidos nas relações sociais, as histórias se

mesclam e as funções são invertidas. Instaura-se a violência que, vivida na sua

história particular, perpassa as fronteiras e vai perpetuar-se na história do sujeito,

constituindo uma herança maldita de componentes destrutivos. A ausência de

vínculos inscreve a desordem, a ausência da autonomia e da referência do ser

individual no contexto do grupo social. A história pessoal pode ser uma mera

repetição da relação com o grupo. Buscam-se componentes marcados pela

impossibilidade de estabelecer vínculos com o grupo de referência; instaura-se o

registro da violência nas relações, estrutura-se o ciclo da repetição dos

componentes destrutivos, que atravessa os espaços, as fronteiras do individual para

o coletivo e, em decorrência, contribui para os desvios dos sujeitos envolvidos na

trama. (Melo, 2005, p.4)

Pesquisando o universo de jovens delinquentes, Michel Misse (2002)

observa que eles poderiam entrar para o mundo da contravenção, prostituição,

praticar furtos, roubos, mas o varejo das drogas oferece ganhos rápidos e mais

fáceis. E muitos dos entrevistados afirmaram não considerar crime o que fazem,

pois apenas vendem a quem quer, espontaneamente, comprar. Percebe-se, assim,

uma fragilidade nos conceitos de justiça e honestidade desses jovens, que

podemos atribuir a falhas na estruturação daquele “universo psicológico” citado

por Zélia Melo.

26

Esta dupla exclusão é tema de Prisões, crime organizado e exército de esfarrapados. 2006, de

Marcelo Freixo -

https://www2.mp.pa.gov.br/sistemas/gcsubsites/upload/60/Pris%C3%83%C2%B5es,%20crime%2

0organizado%20e%20ex%C3%83%C2%A9rcito%20de%20esfarrapados.pdf - acesso em

17/02/11. Ver também o livro Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas, de Orlando

Zaccone (Ed.Revan, 2007) - http://www.revan.com.br/catalogo/0382.htm e

http://www.comunidadesegura.org/pt-br/node/37775 - acesso em 16/02/11

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Podemos concluir que não só estes conceitos, mas mesmo seus sonhos têm

limites estreitos em função do universo onde transitam, também de fronteiras

exíguas, demarcadas pela ausência de oportunidades. Sabemos que o acesso ao

conhecimento desperta o desejo de novos conhecimentos, daí o contato com

diferentes culturas e outras visões de mundo, com a arte, o esporte, é apontado

neste estudo como uma ampla janela que daria, não apenas aos

jovens/adolescentes em situação de risco ou vulnerabilidade social, mas também a

eles, novas perspectivas, constituindo-se um o caminho para alargar aquelas

fronteiras.

Embora as ações na área de segurança pública tenham sido descontínuas nas

últimas décadas, algumas vozes eventualmente se levantaram dentro das próprias

instituições policiais, como aconteceu com os Coronéis Ubiratan Angelo27

e

Nazareth Cerqueira28

, no final dos anos 1990. Estas vozes começaram a ganhar

eco, a se fazer ouvir, fazendo surgir novas perspectivas de mudança na atuação da

polícia, inclusive com a participação de cientistas sociais na elaboração de planos

de segurança pública.

A partir dessas mudanças, a sociedade civil pôde melhor se organizar, se

mobilizar e se manifestar de modo mais enfático, reclamando seu direito à

informação e à opinião. As Organizações Não Governamentais (ONGs), que

começaram a se estruturar nos anos 1980, passaram a ter algum acesso aos

batalhões policiais, desempenhando um papel decisivo nessa trajetória da

sociedade rumo a patamares de maior equidade e com retraimento das situações

de exclusão social.

Foi nesse momento que se destacou a atuação de Luiz Eduardo Soares29

,

Coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Governo Estadual entre janeiro

de 1999 e março de 2000. Soares levou para o centro de comando suas

27

Ubiratan Angelo é coronel da Polícia Militar, onde atua há mais de 30 anos. Mantém na internet

o Forum Ubiratan Angelo de Segurança Cidadã - http://fubasc.ning.com/ - acesso em 25/01/11 28

Carlos Magno Nazareth Cerqueira esteve no comando da Polícia Militar de 1982 a 1986 e de

1990 a 1994, durante os governos de Leonel Brizola. Foi assassinado em 1999 e o crime não foi

esclarecido. http://www.comunidadesegura.org/pt-br/MATERIA-coronel-nazareth-cerqueira-

presente - acesso em 15/06/11 29

Luiz Eduardo Soares é co-autor do livro A elite da tropa, no qual foi baseado o filme Tropa de

Elite (José Padilha, 2007). Foi Secretário Municipal de Valorização da Vida e Prevenção da

Violência de Nova Iguaçu-RJ.

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inquietações envolvendo polícia, violência e segurança pública no contexto da

democracia, temas sobre os quais realizou diversas pesquisas (Soares, 2001).

Falando de um conhecimento atravessado por emoções, o sociólogo relata uma

experiência marcante que viveu durante uma visita à favela do Jacarezinho, em

1999, que reuniu mais de 200 pessoas:

Em abril, vivi uma dessas experiências iluminadoras, raras, dolorosas e vitais, que

mudam nossas vidas pela intensidade, pela qualidade. Visitei o Jacarezinho, com a

vice-governadora Benedita da Silva [...]. Prometemos uma polícia respeitosa, que

deveria merecer o respeito da comunidade [...]. Invocamos a solidariedade de todos

para não permitir que as dificuldades nos dividam, no futuro, destruindo a crença

de que é possível construir uma polícia que trate o morador do Jacarezinho da

mesma forma que o morador da Vieira Souto. [...] Pedimos que a audiência se

pronunciasse: começou, inesperadamente, nossa viagem ao fundo da noite. [...]

Desdobrou-se uma avalanche de vozes e testemunhos que ganharam,

gradualmente, volume e carga emocional, a ponto de provocar o recolhimento dos

fotógrafos e repórteres. Fez-se um silêncio de morte. [...] Tragédias desfiaram-se,

uma a uma, com toda a crueza de sua brutalidade original: “No dia tal, do mês

qual, do ano tal, diante de mim e de minha casa, desarmado e inocente, meu filho

foi morto pela polícia a sangue frio...” (Soares, 2001, pp.67-69).

Para o sociólogo, a desejada relação de confiança e respeito entre

autoridades, policiais e moradores das favelas passa necessariamente pela verdade

e pela recuperação e manutenção da memória. Lembrando os gregos antigos, para

quem o esquecimento era a pior punição, Soares afirma que a “superação da

tragédia coletiva depende da celebração pública da memória individual-coletiva

dos grupos vitimados pela barbárie do Estado.” (Soares, 2001, p.70).

Quase uma década depois daquela visita ao Jacarezinho, instaurou-se um

processo de ocupação nas favelas, com a instalação das Unidades de Polícia

Pacificadora, as UPPs30

. Criadas em 2008, estas unidades, em alguns casos,

integram-se às ações do PAC-Programa de Aceleração do Crescimento do

Governo Federal, que por sua vez é seguido, também em alguns locais (como

Rocinha e Cantagalo/Pavão-Pavãozinho), pelo POC–Projeto Ocupação Cultural31

,

patrocinado pela Secretaria de Estado de Cultura, com a proposta de realizar

várias oficinas e cursos. No verão 2011 a Secretaria de Estado de Assistência

Social e Direitos Humanos (Seasdh), que coordena as UPPs Sociais, e a Secretaria

de Estado de Cultura programaram a realização de projetos culturais em cinco

30

A primeira UPP foi instalada no Morro Santa Marta (Botafogo) em 2008. Em janeiro/2012 foi

inaugurada a 19ª UPP do município do Rio de Janeiro - http://upprj.com/wp/ - acesso em 20/01/12 31

http://www.cultura.rj.gov.br/projeto/programa-de-ocupacao-cultural-poc - acesso em 09/01/12

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Unidades de Polícia Pacificadora (Batan, Borel, Chapéu-Mangueira/Babilônia,

Cidade de Deus e Providência), o chamado projeto “Verão nas UPPs”32

. Estas

iniciativas vêm acenar com a possibilidade de avanços rumo à integração social,

conforme proposto por Amaro (2000), ainda que haja muitos obstáculos a

enfrentar33

.

Com essa guinada na política de segurança pública, nos âmbitos estadual e

municipal, gradativamente foi sendo construído e/ou fortalecido um olhar

diferente sobre as favelas. Analisando diversas matérias sobre a modelo Gisele

Guimarães, da Cidade de Deus, objeto do estudo de sua tese, Cláudia Pereira

observa como se dá a representação da favela no imaginário social. Segundo a

autora, “O imaginário sobre o lugar reúne representações sobre a violência, a

invisibilidade, a marginalidade e a ausência de oportunidades” (Pereira, 2008,

p.131) e há ênfase no fato de Gisele não ter se envolvido nem se prostituído,

“apesar de morar na Cidade de Deus”, ou seja, ela não se encaixou no papel pré-

determinado para ela. Assim, aquele que consegue ascensão econômica e social, é

visto como um indivíduo que difere dos demais de seu grupo, quase como uma

figura exótica. Contudo, o estigma frequentemente permanece, ainda que

veladamente.

O estigmatizado, na análise de Goffman (2008), pode ser um desacreditado

– aquele que é prontamente identificado por sinais perceptíveis – ou um

desacreditável – quando o estigma ou “defeito” não é imediatamente visível ou

detectado. Em ambos os casos, o portador do estigma terá de desenvolver

estratégias para conviver com os “normais”. Enquanto o desacreditado tem de

recorrer à “manipulação da tensão gerada durante os contatos sociais” (Goffman,

2008, p.51), o desacreditável se verá na necessidade de manipular as informações

que, se conhecidas, poderão incluí-lo na categoria do estigmatizado, portador de

um “defeito”. Ele terá de decidir se irá “exibi-lo ou ocultá-lo; contá-lo ou não

32

http://www.uppsocial.com.br/?s=ver%C3%A3o+das+upps – acesso em 16/02/11 33

No segundo semestre de 2011, conflitos armados nas comunidades pacificadas (com UPPs)

levaram novas inquietações à população. http://noticias.uol.com.br/ultimas-

noticias/agencia/2011/09/10/oito-homens-sao-presos-no-morro-da-providencia-no-rio.jhtm e

http://www.jb.com.br/rio/noticias/2011/09/06/upps-passam-por-processo-de-adaptacao-afirma-

cabral/ - acesso em 10/09/11. Ver também notícia sobre disparidades nos serviços oferecidos:

http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/noticias/ultima-a-ser-pacificada-mangueira-tem-mais-

projetos-sociais-que-outras-favelas-20111224.html -

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contá-lo; revelá-lo ou escondê-lo; mentir ou não mentir; e, em cada caso, para

quem, como, quando e onde” (Goffman, 2008, p.51).

Essa avaliação é, em muitos casos, determinante para a vida do

estigmatizado, já que, mesmo quando aceito pela sociedade, esta aceitação tem

limites que não devem ser testados nem ultrapassados. É o que Goffman chama de

“bom ajustamento” (Goffman, 2008, p.132) e que está nitidamente demonstrado

no relato de Stuart Hall acerca de suas origens e de como seu pai, um jamaicano

negro de classe média baixa, esforçava-se para ser aceito pelos brancos ingleses

como um igual, em seus clubes. Para Hall, eles apenas o toleravam: “Eu percebia

como eles o tratavam com um respeito que marcava sua inferioridade”. (Hall,

2003, p.409).

Neste ponto é interessante comentar o papel da mídia no reforço desses

estigmas e, em nosso universo de pesquisa, no balizamento das relações que se

estabelecem entre autoridades, criminosos e a sociedade em geral. Jailson Souza e

Silva acredita que “a mídia contribui, mais do que qualquer outra instituição, para

a consolidação e a difusão do conceitos estereotipados” (Silva, 2007, p.95)

quando, por exemplo, numa entrevista, retrata o morador de favela sempre mal

vestido, sujo, despenteado, ao contrário do que faz em relação a um intelectual,

sempre retratado bem arrumado e cercado de livros. Não se trata de mascarar a

realidade, observa o autor, mas se ela é plural não deveriam ser enfatizadas apenas

suas carências.

Antes de tudo, é preciso compreender que não existe apenas “a” favela, mas

favelas, como aponta Jailson Silva (2007, p.93): se está num terreno plano ou num

morro; se é grande ou pequena; se está na Zona Sul ou na periferia da cidade; se

sua população é majoritariamente negra e carioca ou oriunda do Nordeste; se é

controlada por traficantes de drogas ou milicianos. Segundo Jailson, a percepção

homogeneizadora dos moradores de favelas e periferias não permite que se

percebam as mudanças em seu perfil educacional, por exemplo. Citando políticas

públicas, como a criação do Programa Universidade para Todos (Prouni), o autor

destaca o aumento do número de universitários moradores de favelas, certamente

um percentual bem maior do que o de criminosos, embora estes tenham mais

visibilidade na mídia (Silva, 2007, p.94).

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45

As pesquisadoras do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC)

Silvia Ramos e Anabela Paiva, consideram que houve avanços na abordagem da

violência pela mídia, que foi reduzindo as matérias sensacionalistas, as fotos de

cadáveres, e, especialmente nos anos 1990, passou a incluir em suas pautas o tema

segurança pública (Ramos; Paiva, 2007, p.17). As autoras destacam que, a partir

dos anos 1970, quando foi regulamentada a profissão de jornalista, novos

profissionais, com curso superior, foram gradativamente substituindo os “da

antiga”, geralmente de origem humilde. Se por um lado mostram-se tecnicamente

mais bem preparados, estes novos jornalistas, em sua maioria de classe média,

carecem de experiência em relação ao cotidiano dos moradores de favelas e

periferias (Ramos; Paiva, 2007, p.78).

De fato, veem-se hoje na mídia reportagens positivas, realizadas nas favelas

e periferias, que mostram, por exemplo, grupos de rap, teatro, cinema, mas a

ocorrência de um tiroteio sempre receberá mais destaque na imprensa. Embora

haja indiscutíveis obstáculos à atuação dos jornalistas em algumas áreas (hoje

minimizados com a instalação das UPPs), as autoras enfatizam que é necessário

contornar tais dificuldades, por exemplo, acompanhando a produção cultural e o

esporte nas comunidades, abrindo assim canais de diálogo e buscando novas

fontes (Ramos; Paiva, 2007, p.83). Os jornais chamados populares e destinados às

classes C, D e E deveriam retratar os moradores de comunidades pobres de modo

mais completo, acreditam as autoras, contudo, por estarem associados a veículos

da chamada grande mídia, “tendem a intensificar os estereótipos e a investir ainda

mais no monotema da violência”. (Ramos; Paiva, 2007, pp.81-82).

O jornalista Caco Barcellos também considera precária a cobertura feita pela

mídia em geral sobre a violência nas favelas e, tal como Luiz Eduardo Soares toca

na questão da memória e Jurandir Freire fala do alheamento, o repórter aponta

como um dos problemas dessa cobertura o esquecimento que a imprensa dedica

àqueles locais. Segundo Barcelos, há um distanciamento que compromete o

exercício do bom jornalismo e, para estas comunidades, a omissão e o silêncio são

piores do que a crítica. Ele adverte que “É preciso estar perto das pessoas. Não

bastam a internet, as fontes de pesquisa” (Barcellos, 2007, p.84)

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46

Diante do panorama que procuramos traçar neste Capítulo, conclui-se que

abordar o tema exclusão/inclusão não envolve aspectos tão óbvios como poderia

parecer a princípio. Há nuances, sutilezas, detalhes que escapam quando se faz

uma análise superficial da questão. Pode-se afirmar que não bastarão ações

externas, geralmente centradas no aspecto econômico, sejam por parte do Estado

ou de entidades filantrópicas, para promover o que Amaro (2000) chama de

“integração” na sociedade: um processo duplo que é a soma da “inserção” do

indivíduo com a “inclusão” possibilitada pela sociedade que o acolhe, conforme

veremos no Capítulo a seguir.

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