1997 explicar o holocausto_que jeito_ o livro de daniel goldhagen criticado a luz da teoria da...

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Jõrn Rüsen Professor de Teoria, Metodologia e Didática da História na Universidade de Witten Presidente do Instituto de Ciências da Cultura do Estado da Renânia do Norte Vestfália /Alemanha (Tradução de Estêvão de Rezende Martins, Universidade de Brasília) ~ido_possível que o Holocausto acontecesse. Sua resposta, todavia, I~poe que se ultrapasse as fronteiras da história científica, se houver a mtenção de discutir objetivamente a questão e de levar em conta sua repe~cussão. política. Não creio que o âmbito político deva ser superesttma~~, ~ulgando-se e explicando tudo o mais a partir dele e com se.us cnte:lOs. Pelo contrário: por estarmos aqui diante de um bloqueIO pecuhar do procedimentos cognitivos para o entendimento e a .a?ão polí~ica, trata-se de o investigar, compreender e analisar. O efeito político está em relação lógica íntima e indissolúvel com a ~st~utur~ ~e pensa~ento, ~o~ o modo de explicar de que Goldhagen e tnbutar.IO',~ssa clrcunstancla faz de seu livro um caso especial da cultura hlstonca da lembrança do Holocausto. r:-rão desejo repetir o equívoco de muitos comentaristas e tomar o .lJvro de Goldhagen de forma extrínseca, ao perguntar apenas po.~.seu Imp~cto, pelo que estaria,por trás dele ou pelas intenções que tell<~m movido o autor. Ao reves, adoto a regra hermenêutica de, 11lIctalme~te, colocar-me na posição do próprio autor, entendê-Io desde a p~rspectl va de seu p:ópria concepção e, assim, criticá-Io "por dentro", e nao com uma medida que lhe seja estranha. . ?oldhagen caracteriza seu livro como "primeiramente expllcatlvo e teórico" (primarily explanatory and theoretical, p. 4?3~.. Ele pretende fornecer uma "explicação especificamente hlstonca," .(lu'st~rically specijic explanation, p. 420) do Holocausto. ~evo a seno, pOIS,e~sa pretensão de fornecer uma explicação histórica tundamentada teoncamente e passo a discutir o livro a partir dela. . ,. De início gostaria de tratar da estrutura lógica da explicação hlstonca que está à base do livro de Goldhagen. Logo passo a mostrar que essa estrutura, por si mesma, engendra uma função política que P~'ovoc~u t~nto concordância (sobretudo nos Estados Unidos) como dlvergencla (em particular na Alemanha). Por fim, tenciono dem?nstrar que essa função política não é extrínseca ao livro, sub~lstente apenas nos seus leitores, mas lhe é intrínseca, decorrente da torma mesma com que lida, no modo de explicar, com o próprio Holocausto. EXPLICAR O HOLOCAUSTO . DE QUE JEITO? O LIVRO DE DANIEL GOLDHAGEN CRITICADO À. LUZ DA TEORIA DA HISTÓRIA O livro de Daniel Goldhagen sobre o Holocausto (Os carrascos voluntários de Hitler. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Tradução brasileira de Luis Sérgio Roizman)l caiu feito uma bomba. Nos Estados Unidos, os comentários nos jornais contam-se por centenas e, na Alemanha, correm rios de tinta sobre ele. No semanário alemão "Die Zeit", Volker Ulrich 2 anunciou que nos encontraríamos diante de uma nova querela de historiadores. 3 Se essa previsão corresponde à expectativa de um vivo debate e ampla controvérsia entre os especialistas, pode-se dizer que a profecia não se realizou. A crítica dos especialistas, pelo contrário, foi claramente negativa. O autor não teria levado em conta o estado atual das investigações desse episódio, a nova interpretação do Holocausto não seria convincente, e, na melhor das hipóteses, Goldhagen somente teria desenvolvido alguns aspectos novos e os teria sustentado empiricamente.4 No entanto, já a primeira querela entre os historiadores trouxe pouca ou nenhuma inovação empírica. No fundo, tratou-se mais de uma controvérsia política, para bem além dos limites da especialidade histórica. O livro de Goldhagen, igualmente, versa sobre questões mais abrangentes e fundamentais, diversas das que são propriamente da especialidade historiográfica. O livro se propõe, contudo e sem a menor dúvida, a responder a uma pergunta crucial: a de uma explicação histórica satisfatória para o Holocausto. Goldhagen pretende oferecer uma resposta plausível à questão de como teria A t~se basilar de Goldhagen afirma que o Holocausto tem de ser explIcado a partir do código cultural de um anti-semitismo Históna: Questões & Debates, Curitiba, v. 14, n. 26/27, p.116-131, jan.ldez. 1997

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Jõrn RüsenProfessor de Teoria, Metodologia e

Didática da História na Universidade de WittenPresidente do Instituto de Ciências da Cultura do

Estado da Renânia do NorteVestfália /Alemanha

(Tradução de Estêvão de Rezende Martins, Universidade de Brasília)

~ido_possível que o Holocausto acontecesse. Sua resposta, todavia,I~poe que se ultrapasse as fronteiras da história científica, se houvera mtenção de discutir objetivamente a questão e de levar em contasua repe~cussão. política. Não creio que o âmbito político deva sersuperesttma~~, ~ulgando-se e explicando tudo o mais a partir dele ecom se.us cnte:lOs. Pelo contrário: por estarmos aqui diante de umbloqueIO pecuhar do procedimentos cognitivos para o entendimento ea .a?ão polí~ica, trata-se de o investigar, compreender e analisar. Oefeito político está em relação lógica íntima e indissolúvel com a~st~utur~ ~e pensa~ento, ~o~ o modo de explicar de que Goldhagene tnbutar.IO',~ssa clrcunstancla faz de seu livro um caso especial dacultura hlstonca da lembrança do Holocausto.

r:-rão desejo repetir o equívoco de muitos comentaristas etomar o .lJvro de Goldhagen de forma extrínseca, ao perguntar apenaspo.~.seu Imp~cto, pelo que estaria,por trás dele ou pelas intenções quetell<~m movido o autor. Ao reves, adoto a regra hermenêutica de,11lIctalme~te, colocar-me na posição do próprio autor, entendê-Io desdea p~rspectl va de seu p:ópria concepção e, assim, criticá-Io "por dentro",e nao com uma medida que lhe seja estranha.

. ?oldhagen caracteriza seu livro como "primeiramenteexpllcatlvo e teórico" (primarily explanatory and theoretical, p.4?3~.. Ele pretende fornecer uma "explicação especificamentehlstonca," .(lu'st~rically specijic explanation, p. 420) do Holocausto.~evo a seno, pOIS,e~sa pretensão de fornecer uma explicação históricatundamentada teoncamente e passo a discutir o livro a partir dela.

. ,. De início gostaria de tratar da estrutura lógica da explicaçãohlstonca que está à base do livro de Goldhagen. Logo passo a mostrarque essa estrutura, por si mesma, engendra uma função política queP~'ovoc~u t~nto concordância (sobretudo nos Estados Unidos) comodlvergencla (em particular na Alemanha). Por fim, tencionodem?nstrar que essa função política não é extrínseca ao livro,sub~lstente apenas nos seus leitores, mas lhe é intrínseca, decorrenteda torma mesma com que lida, no modo de explicar, com o próprioHolocausto.

EXPLICAR O HOLOCAUSTO . DE QUE JEITO?O LIVRO DE DANIEL GOLDHAGEN CRITICADO À .

LUZ DA TEORIA DA HISTÓRIA

O livro de Daniel Goldhagen sobre o Holocausto (Oscarrascos voluntários de Hitler. São Paulo: Companhia das Letras,1997. Tradução brasileira de Luis Sérgio Roizman)l caiu feito umabomba. Nos Estados Unidos, os comentários nos jornais contam-sepor centenas e, na Alemanha, correm rios de tinta sobre ele. Nosemanário alemão "Die Zeit", Volker Ulrich 2 anunciou que nosencontraríamos diante de uma nova querela de historiadores. 3 Seessa previsão corresponde à expectativa de um vivo debate e amplacontrovérsia entre os especialistas, pode-se dizer que a profecia nãose realizou. A crítica dos especialistas, pelo contrário, foi claramentenegativa. O autor não teria levado em conta o estado atual dasinvestigações desse episódio, a nova interpretação do Holocaustonão seria convincente, e, na melhor das hipóteses, Goldhagen somenteteria desenvolvido alguns aspectos novos e os teria sustentadoempiricamente.4 No entanto, já a primeira querela entre oshistoriadores trouxe pouca ou nenhuma inovação empírica. No fundo,tratou-se mais de uma controvérsia política, para bem além dos limitesda especialidade histórica.

O livro de Goldhagen, igualmente, versa sobre questões maisabrangentes e fundamentais, diversas das que são propriamente daespecialidade historiográfica. O livro se propõe, contudo e sem amenor dúvida, a responder a uma pergunta crucial: a de umaexplicação histórica satisfatória para o Holocausto. Goldhagenpretende oferecer uma resposta plausível à questão de como teria

A t~se basilar de Goldhagen afirma que o Holocausto temde ser explIcado a partir do código cultural de um anti-semitismo

Históna: Questões & Debates, Curitiba, v. 14, n. 26/27, p.116-131, jan.ldez. 1997

excludente e aniquilante ("demonológico"), que encontrou, sob Hitler,as condições políticas externas para a realização de suas intençõesgenocidas. Tratar-se-ia de um código cultural dos alemães, um modelomental, profundamente enraizado, de interpretação de si próprios eda experiência do mundo, que se constituíra como propriamente acausa decisi va, determinante (sufficient cause, p. 418) do Holocausto.Esse código teria suas raízes históricas no anti··semitismo cristão ealcança. na segunda metade do século XIX a forma típica e a eficáciacaracterística que teria tido, entre os alemães. Essa tese clara é, emprincípio bem simples. Em comparação com as muitas explicaçõescomplexas dos especialistas, essa tese é facilmente entendível eGoldhagen a cone~ta com uma crítica fundamental a todas asinterpretações do Holocausto publicadas até hoje: nenhuma ésuficiente para explicar a peculiaridade do Holocausto, que o distinguede todos os demais genocídios da História. Essa peculiaridade estarianão apenas em suas dimensões monstruosas e em sua maquináriaindustrial de aniquilação, mas sobretudo na crueldade - que nosincomoda - com que os judeus - diversamente das demais vítimas doregime nazista - foram tratados. A máquina da morte não teria sidofria e indiferente, mas posta em movimento e operada com intençãoconsciente, com dedicação plena de seus perpetradores. Para o autor,somente se essa íntima convicção dos autores for posta no centro daanálise é que se poderá explicar convenientemente o Holocausto.Seu argumento depende, pois, de que se tome os autores como homensagindo consciente e intencionalmente, e não como engrenagenspassivas elamáquina.

Longas passagens deste livro servem à impressionantedescrição dessa peculiaridade na tenebrosa perpetração do genocídio.O comportamento dos destacamentos de polícia nos territóriosocupados, o tratamento dos judeus nos campos de trabalho e ascolunas da morte ao final da guerra mostram, de modo aterrorizante,com quanto de iniciativa própria e de participação pessoal os autoresagiram. Esse fato foi mais escamoteado do que desvelado pelapesquisa, até os dias de hoje. Para a descrição e a explicação doHolocausto, Goldhagen se apoia, por conseguinte, decididamente, nofator subjetivo. Não porém, como na investigação anterior, nasconvicções e intenções dos líderes nazistas, mas nas opiniões e

intenções da massa dos autores.

O livro situa-se, destarte, na tendência atual da históriacultural, na qual a subjetividade tornou-se a categoria dominante dopensamento histórico, tanto para o entendimento dos conteúdosexperienciais do passado quanto para a interpretação históricainspirada na etnologia. 5

A explicação de Goldhagen está, pois, integralmente fundadano fator "subjetividade". O Holocausto não é explicado a partir decircunstâncias objetivas. Uma explicação 'objetiva' deduz osacontecimentos de circunstâncias e de regras gerais. Um exemploconhecido desse tipo de explicação são os experimentos de StanleyMilgram, que tornam possível explicar o ato genocida por recurso auma regra psicológica: homens normais (no caso, estudantesuniversitários alemães) são capazes de tratar outros homens comincrível crueldade, somente se isso lhes for exigido por uma autoridadereconhecida (no caso, uma pesquisa científica). Temos aqui umdeterminado esquema explicativo: o da explicação 'nomológica' ou'racional'. ()De acordo com esse esquema, o Holocausto poderia serexplicado pela utilização da regularidade do comportamento humanoestabelecida pelo experimento de Milgram (homens estão prontos aobedecer a uma autoridade mesmo quando esta lhes exige algo quecontradiga suas representações morais habituais), combinada comas circunstâncias de um regime cuja autoridade exigiu o genocídio.O essencial nesta explicação, decerto mais complicada se tomarmoscaso a caso isoladamente, consiste em que seu fator explicativodeterminante é algo que se situa fora da decisão voluntária conscientee intencional dos agentes; seu agir é determinado, antes de qualquerintenção, pelas circunstâncias previamente dadas. O agir decorreria,então, 'cegamente' - poder-se-ia mesmo dizer: 'mecanicamente' -de tais circunstâncias. Por isso - o que é certamente decisivo para afunção política de tal explicação do Holocausto - não se poderia atribuirindistintamente culpa pelo Holocausto a todos os sujeitos, pois elenão irrompeu diretamente do cerne de suas subjetividades.

Essa figura argumentativa da explicação do Holocausto apartir das circunstâncias externas, por recurso a leis explicativas oua regularidades gerais, presumivelmente válidas para toda a

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humanidade, é decididamente rejeitada por Goldhagen. ~le acusa osdefensores desta posição de abstracionismo. Ela perdena o foco dapeculiaridade histórica e do que é r~l~v~te no Holocausto. _Essapeculiaridade é vista por ele na subJetlv~d~de d~s ~utores. Sao asintenções subjetivas internas e não as cond~çoes ~bJetlv~s dos a~toresque explicam seus cruéis atos. Tratar-se-la, ~OIS,das m~ençoes oumotivos orientadores do agir, das razões íntlmas do agir humano,daquilo que se poderia chamar genericamente der 's~ntido', dedeterminação de sentido ou de qualidade cultural do agir ~U1~ano.Goldhagen segue, pois, um modelo "intencional" de exphcaçao, enão o "nomológico" ou "racional". No modelo "intencional", um atoé explicado - ou ..melhor: tornado entendível - pelas i?ten~õe~orientadoras do agir do autor. A lógica dessa expllcaçao ecompletamente di versa da explicação nomológica por. causas ereGularidades. Causas seriam aqui as intenções e regulandades, asin~erpretações e orientações dos sujeitos em seu ~1Undopróprio. Euentenderia uma ação quando conhecesse os motl vos üe seu. autor ecomo ele estimou as chances de realização de seus motivos nasituação em que agIU.

É com este esquema de pensamento que Goldhageninterpreta o Holocausto. Tratar-se-ia da ação de um sujeito coleti:,o:'os alemães'. Para poder asseverar isto, Goldhagen quer prodUZir aprova de que os grupos de agentes eram representativos d~ so~iedadealemã de seu tempo ('homens normais'). O ato tena tido porfundamento um motivo determinante, uma intenção coletivaprofundamente enraizada, expressa com clareza. no antisemitis~oalemão. A ditadura nacional-socialista seria entendida como a ocas \aOde pôr esta intenção em prática.

A explicação do Holocausto por Goldhagenjá foi examina~ainúmeras vezes, sem que se houve assumido a lógica de sua própnaargumentação. De início, esta tem uma vantagem: não recorre alegalidades universais e está, assim, coerente c0o; ~ fato ~e q~le opensamento histórico não obedece ao modelo nomologlco. Alem diSSO,nela os agentes humanos são despido de seu caráter de merosexecutores de estruturas superpoderosas e revestidos de subjetividadedeterminante do agir (por mais assustador que isso possa parecer).Goldhagen fala, pois, conseqüentemente, da humanity dos agentes

(p. 392). É com isso que emerge a dimensão de sentido da coletividade'Holocausto'. Tange-se, dessa forma, uma dimensão essencial dahistoricidade, pois sem agir humano com significado não se podepensar a história. O significado do agir humano é constitutivo para ahistória; é ele que traça a linha divisória entre natureza e história.

Trata-se, destarte, de homens no passado, das determinaçõesde sentido de sua vida enquanto homens e das quais decorrem asintenções de seu agir. A explicação de Goldhagen firma-seinteiramente no sentido. Parece, assim, que seu pensamento estáparticularmente próximo da história. (A Teoria da História certamentereconhece a lógica da explicação intencional ou compreensiva comopropriamente histórica, já que ela se distingue, pelo fator 'sentido',da lógica da explicação nomológica, - sem, contudo, a contradizer).Desejo mostrar que esta aparência engana e que falta, à tentativa deexplicação compreensiva de Goldhagen, uma condição lógicaindispensável a uma explicação especificamente histórica.

Mesmo assim, é pertinente percorrer, de início, aargumentação de Goldhagen. Ele explica o Holocausto, pois, comoum ato decorrente de motivos orientadores do agir, vale dizer: doselementos de sentido próprios à subjetividade dos agentes (the identityof the perpetrators, p. 392). Para poder explicar o Holocausto apartir da subjetividade dos agentes não basta tomar os homensindividualmente. É preciso ter-se um sujeito único, se se tratar doHolocausto como ato. Tal sujeito somente pode ser um sujeito coletivo,uma grandeza social, que há de ser considerada como macrosujeito,se o esquema explicativo deve funcionar. Sem um sujeito deste tipo,uma explicação compreensiva a partir de significado e intenções éimpossível. Esse sujeito é indigitado por Goldhagen: os alemães.Conquanto logicamente incontornável, essa identificação éempiricamente insatisfatória. Por essa razão Goldhagen esforça-sepor apresentar provas de que os verdadeiros agentes revelados pelasfontes foram sobretudo os destacamentos policiais, representativosde 'todos' os alemães. É possível rejeitar sua tese darepresentatividade? Entendo que ele tem argumentos que não admitemuma refutação pura e simples. Doutra parte, todavia, requer-se umadeterminação mais precisa do que se supõe ser, aqui, a representati va.Goldhagen não o fez, preferindo-lhe a impressionante retórica de

uma peroração acusatória.

Os alemães aparecem, assim, como um sujeito coletivo, comoagente de uma ação. A subjetividade de um sujeito colet~vo d~stetipo é por nós chamada de cultura ou mental.idade. ~oder-se-ta, aSSim,falar de um código cultural profundo do agIr coletIvo. O pressupostode um código profundo não é nada de novo ou inabitual, pois pertenceao arsenal da interpretação histórica ou sociológica. Um exemplomarcante está nos trabalhos de tipologia da cultura de Johann Galtung7

,

freqüentemente utilizados na pesquisa comyarada das cu~turas~xGoldhagen também lida com comparaçoes: os alemaes s.aocomparados com 'ou~ros' povos ocidentais, emergi~do, na perspectivade uma antropologia da cultura, como os estrangeIros.

Goldhagen descreve a subjetividade interna - na linguagemda histórica cultural poder-se-ia falar de 'espírito' - do sujeito coletivodos alemães como constituída fundamental e determinantemente pelaatitude de um antisemitismo homicida, genocida, que ele chama dedemonologieal antisemitism. Esse antisemitismo seria o fundamentodeterminante do Holocausto. É ele a intenção que engendra o ato doHolocausto. Nele, Auschwitz já seria uma realidade mental, antesmesmo de o campo de concentração ter sido construído e utilizado.O Holocausto, enquanto forma peculiar, radical e aniquilante, doantisemitismo, seria uma realidade no espírito do povo alemão antesmesmo de ocorrer. (O livro deixa aberta a questão desse mesmoespírito após 1945). Não é de admirar que essa explicação t~nhaprovocado, ao menos na Alemanha, grande i~dignação. (Ca~ece m.ndamais de explicação o fato de o público amencano ter recebido o hvrocom forte entusiasmo).

É fácil concordar com a indignação, mas cabe lembrar queentre nós (alemães) esse tipo de explicação é comum. Conhecêmo-10 na tradição explicativa do historicismo clássico. Nela também sefala do 'espírito' do povo como fator determinante dos acontecimentoshistóricos. As narrativas principais da historiografia historicista doséculo 19 trabalham, todas, com o sujeito coletivo de uma nação ecom um código cultural que lhe é inerente (espírito do povo).Goldhagen pôde recorrer ao famoso e influente escrito programáticode Wilhelm von Humbodlt, de 1821, "Sobre a tarefa do historiador",

que afirma ser a história, no fundo, o "esforço de uma idéia, porefetivar-se na realidade".~ Goldhagen exprime-se também de formaconcisa e percuciente: The spirit moved them (p. 365 - relativamenteaos civis que, nas filas para a morte, assistiram e apoiaram oscarcereiros em seus atos homicidas). Aliás, na polêmica doshistoriadores, Ernest Noite valeu-se de estratégia semelhante(conquanto empregando argumentação mais complexa) ao afirmarque o nazismo pode ser entendido historicamente como umamobilização coletiva contra o bolchevismo. A explicação medianteuma intenção coletiva foi fundamentada por Noite também comcircunstâncias acessórias, como a experiência desnorteadora quemuitos alemães tiveram na revolução russa. Em Goldhagen, ao invés,o antisemitismo surge praticamente como autóctone, inato.

O modo explicativo utilizado por Goldhagen é, porconseguinte, desafiador e controvertido, pois suscita inevitavelmentea questão da identidade. O código coletivo de sentido de umasociedade ou de um povo pertence a sua identidade. Goldhagen usa,pois, a categoria "identidade"; ele fala, por exemplo, da identity ofperpretators (p. 390). Seu fundamento explicativo do Holocaustoestá naquilo pelo que os alemães se distinguem dos 'outros'; poisafinal foram os alemães que perpetraram o Holocausto, e não osoutros (os cúmplices não-alemães, cujo número não era pequeno,são vistos por Goldhagen como inexpressivos). A questão aqui é aespecificidade dos alemães. Goldhagen fala do "coração da culturalpolítica alemã (the heart of German politieal eulture, p. 428). Ametáfora do coração visa o cerne da cultura alemã, justamente onderepousa a identidade dos alemães.

Identidade é uma determinação diferenciadora, umadistinção. Goldhagen introduz essa diferença, de início, de modopuramente acadêmico, ao adotar a estratégia metódica da antropologiahistórica, fazendo de seu objeto de pesquisa, os alemães enquantoautores, um 'estranho', de modo a decifrar-lhe o código cultural. Osalemães tornam-se, assim, uma espécie de estranha tribo deaborígenes perdida em pleno mundo civilizado moderno da Europa.É cabível aceitar-se taCprocedimento como método de interpretação,até com perspectivas de eficácia cognitiva (sem excluir as de auto-conhecimento). Estáemjogo, no entanto, algo mais do que um método

de pesquisa. Pois quem seriam os 'outros', por contraste com osquais os alemães teriam sua especificidade diferenciada? Goldhagenos identifica, simplesmente, como "nós mesmos" (p. 45). Ainterpretação de Goldhagen nutre sua própria lógica, pois, em questõesde identidade. O livro pode ser, destarte, uma resposta inequívocasobre a questão da identidade para todos os que o autor conta entre"nós mesmos": Nós somos diferentes do que foram os alemães queperpetraram o Holocausto. Nós é que defendemos a civilização,conosco o Holocausto é historicamente impossível. O espírito doHolocausto está nos outros. Para os alemães, todavia, as coisas nãoestão assim tão claras. Como é que nós, alemães, inserimos oHolocausto, historitamente, nas dimensões de nossa identidadehistórica? É indiscutível que a questão da identidade nacional renovou-se, para os alemães, a partir de 1989. Uma resposta amplamentesatisfatória (ainda) não foi akançada. O livro de Goldhagen, na melhordas hipóteses, toma a questão mais aguda. Ela parece, porém, tersido engolida pelo vórtice da crítica provocada por sua forma deexplicação histórica e pelo modo com que pôs o F'oblema daidentidade. Isso significaria, por certo, perda de uma bela chance.

O esquema explicativo adotado por Goldhagen repousa sobreuma práxis quotidiana elementar da explicação plausível do agir pormotivos dos sujeitos. Ao explicar pela compreensão, pressuponhoum sujeito que permanece o mesmo ao longo do ato. É possível fazeressa pressuposição quando se lida com processos históricos, comevoluções de longo prazo? Essa questão remete a problemas básicosda explicação compreensiva em história. Esses problemas estão naprópria lógica da explicação. Essa lógica põe o sujeito agente comouma constante, em sua qualidade subjetiva, no decurso de todo operíodo considerado, como duração na profundidade de seu códigoidentitário. Com relação a seu antisemitismo genocida, os alemãesdo século 19 seriam os mesmos no Terceiro Reich. Isso significa,portanto, que o Holocausto já existia, virtualmente, na medida emque os alemães tenham constituído sua identidade com a peculiaridadedo antiscmitismo que Ihes seria própria. Sua eventual atualização sedeveria apenas a circunstâncias extrínsecas. Hitler e seu regimeseriam tais circunstâncias. As circunstâncias que operam a passagemdo Holocausto da virtual idade para a atualidade aparecem aqui, em

comparação com a questão que se quer esclarecer, como meramentecasuais. Para a força probante da explicação de Goldhagen elas nãoteriam importância alguma, pois o fator explicativo é o mesmo, quese trate da concretização atual do antisemitismo no barbarismo dosperpetradores ou nas meras elucubrações do pensamento. Por essarazão o livro repetidas vezes afirma que Hitler somente teria liberadoou desencadeado o espírito homicida da cultura alemã. No ato coletivodo Holocausto, Hitler nada mais teria feito do que dar aso a que oespírito homicida da cultura alemã se exercitasse.

Permito-me aqui uma observação. A interpretação deGoldhagen revela uma concordância fatal com a auto-consciênciados nazistas e de Hitler: Adolf Hitler encarnaria e realizaria o espíritodo povo alemão. Daí Goldhagen citar como confirmação de sua tese,sem qualquer prudência metódica, o testemunho de autores comoOtto Ohlendorf e Reinhard Maurer.

A referência de Goldhagen ao código profundo doantisemitismo na cultura alemã não é de todo a-histórica. Ele ointerpr~ta como a passagem de atitudes pré-modernas para amodernldade sob a forma de uma longa duração da história alemã.No mais tardar ao final do século 19,porém, o antisemitismo se haveriacristal izado como fator fixo e constante. A longa duração prevaleceria.E depois de 1945? Escondida nas notas de rodapé encontra-se acurta afirmação de que ela poderia ter-se modificado em algo (p.582). Mas é claro: todo o texto insiste expressa e repetidamente emdizer que o antisemitismo assassimo dos alemães recua para fases?e latência, podendo passar desapercebido, tão-somente paraIrromper, em outros tempos, de forma ainda mais virulenta.

Com que código cultural o próprio Goldhagen leva a cabosua explicação, vinculada à identidade, do Holocausto? Queconcepção de sentido fundamenta sua explicação? Com seu "nósmesmos" ele se refere ao código cultural do mundo moderno civilizadoocidental. Esse código é suposto de forma meta-histórica e normativa,dev~ndo ser legitimado e reforçado - indubitavelmente _ pelaexp!lcação "histórica" do Holocausto por seu oposto. Como se dáesse reforço? A argumentação de Goldhagen se funda em uma lógicada constituição histórica da identidade amplamente estabelecida na

História: Questões & Debates. Curitiba. v. 14. n. 26/27, p.116-131, jan.ldez. 1997

cultura. Ele concebe identidade mediante uma distinção clara e nítidaentre o intrínseco e o extrínseco, entre 'nós' e 'os outros', entre'familiar' e 'estranho'. Tal distinção faz desvanecer o que é próprioao outro. O Holocausto existe onde existam os outros. Ele evidencia

o que nós não somos.

Vejo nisso um problema. O Holocausto é compreendido deforma tal que sua possibilidade nos contextos diversos da vida deseus próprios intérpretes não poderia mais ser pensada. Modernidadee Holocausto excluir-se-iam totalmente nesta argumentação. Nãoconsidero convincente a tese (pós-moderna) de que o Holocaustodeva ser visto como p1arca da modernidade. Com isso não fica ditoque a modernidade não abra possibilidades de a açào humana,submetida a determinadas condições, chegar a fazer coisas parecidascom o Holocausto. Essas possibilidades históricas são omitidas noesquema explicativo de Goldhagen. Vou um pouco além: a lógica daconstituição histórica da identidade, por ele adotada, não se incluitambém nessas possibilidades? Em todo caso, tem-se aqui umaexclusão dos outros e uma distinção entre o bem e o mal que só vê o'ser outro' do outro como uma diferença com relação a 'nós mesmos'caracterizada por mera negatividade. O próprio eu é formado econsolidado pela negação do outro.

A explicação de Goldhagen para o Holocausto, no fundo,apesar de sua aparência de proximidade do mundo histórico, é a-histórica. Com respeito à ação a ser explicada, o autor põe comoconstante o fator explicativo 'sentido', extraindo-o assim da evoluçãohistórica e das constelações de condições envolventes. O 'histórico"da ação desaparece igualmente na pura casualidade dascircunstâncias que deixam de merecer interpretação histórica. Oacontecimento histórico em si mesmo, essa dinâmica temporal damudança que entendemos como história, é explicada de formacompreensível como uma intenção. Na história cultural do pensamentohistórico essa figura argumentativa é conhecida como teológica.Nessa figura, contudo, o sujeito agente é o próprio Deus, que realizasua intenções nos acontecimentos da história. Falou-se com razãode uma "lógica absolutista" de uma consideração teleológica dahistória, entrementes sucedida, de há muito, por uma outra lógica,

reconstrutiva. 10

Por que esse tipo de explicação seria a-histórico? Porqueconsidera a casualidade das circunstâncias do agir como irrelevantepara se entender os processos temporais e as empurra para fora dopensamento histórico, embora elas estejam, por força de suacontingência, no centro dele, pois nada do que se quer explicar teriaacontecido sem tais circunstâncias. Quando e por quê se necessitaexplicar alguma coisa historicamente? Sempre que aquilo que se querexplicar pode ser explicado sem recorrer a intenções ou a leis. Fala-se de 'história' no processo das ações humanas justamente quandonão ocorre o que os atores possam ter querido, quando o resultadodas complexas coordenadas das ações no processo temporal de formaalguma pode ser referido a uma determinada intenção de agir. Éentão que se precisa narrar a história que expõe porque tal ocorrênciase deu, afinal, de forma não intencionada.

Wilhelm Busch encontrou a fórmula certa para esse fenômenoelementar do histórico: "Em primeiro lugar as coisas acontecem deum jeito, e só em segundo lugar como se as pensa". Justamenteporque se dá dessa forma o processo temporal do mundo humanorequer uma explicação histórica. Tal explicação ocorre mediante anarração de uma história. Narrar para explicar obedece, contudo, auma lógica de constituição de sentido diversa da que é própria àexplicação de uma ação pelas intenções de seu sujeito. Pode-se pensara Revolução Francesa como resultado de uma ação para a qual hajaum sujeito identificável e uma intenção compreensível? Decerto não,a menos que se recorra a uma abstrusa teoria da conspiração. Pode-se pensar a revolução industrial como intenção de agir de um sujeitocoletivo e explicá-Ia assim? Pode-se considerar plausível umaexpl icação histórica da fundação do império alemão em 1871 comomera realização de uma intenção política de Bismarck?

A história se constitui na diferença entre intenção e resultadodas ações humanas. O espaço dessa diferença, que é a experiênciapropriamente histórica, é camuflado e obscurecido no esquemaexplicativo de Goldhagen. A pressuposto lógico de sua explicaçãotem um preço alto: a própria história. Poder-se-ia mesmo dizer: noesquema do pensamento teleológico o Holocausto é escamoteadoem um construto ideológico, tornando-se linha de demarcação deuma formação excludente de identidade. Como desafio radical da

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constituição histórica de sentido, o Holocausto é. n~u.tralizado naaparente linearidade inequívoca de imputações a-hlstonca.

Para Goldhagen, o código cultural profundo do anti-semitismoalemão é "causa suficiente" (sufficient cause, p. 418) do Holocausto.Por certo ele não ignora as transformações por que pass,ou amentalidade coletiva dos alemães entre a segunda meta.de ~o s~culo19 e o Holocausto. Assim, ele mesmo propõe uma penodlzaça_o d?anti-semitismo alemão em três fases. O decisivo para e~e nao e,todavia, a evolução histórica que esta peri.odização en,u~cla, ma~ acontinuidade de sua variante alemã, a assassma. A.est:ategla genocl~a

.' . mp~ma apenas a tática vanana. A evoluçaopcrmaneCella a -,e , ,-' dpropriamente dita é vista apenas como aproxlmaçao prog~~:sl~a euma meta de destruição fixada desde o início, em c.onse~uencta decircunstâncias cada vez mais favoráveis. Tudo lSSO e pensa~oleleologicamente; Adolf Hitler tornar-se-ia o telos do po~o alemao:(O próprio Hitler e seus sátrapas não parecem ter estado t~o segurosdisso. De outro modo, não teriam cuidado ta~to de eVItar que apopulação alemã, no território do Reich, fIcasse sabendo do

Holocausto) .Uma explicação histórica não marginaliza circuns.tân~ias

continuentes, mas as integra em um proce~so te~poral exphcatlvo,aprese~tado como história. História signiflc~, POIS, que o processotêmporal não segue uma regularida~e uOl~ersal ~em. ~ode serentendido como efeito prático de uma mtençao, O especIficamentehistórico não é explicado segundo leis gerais, tampouco de modocompreensivo, mas sim pela narrativa, justamente sob a ~orm~ deuma história. O sentido desta é diverso do sentido de.um~ açao gUl~dapor intenções. (Como exemplo desse tipo de determmaçao ~e s~ntl~o. t ~l tese de Broszat11 e de Mommsen12 sobre a "radlcahzaçaoleme o ( . ~ , dcumulativa", que deixa claro ser impossível expltcar a o~orrencta oHolocausto sem levar em conta constelações conttn~entes ~ecircunstâncias que determinam o processo temporal de forma nao

intencional).

Não resta dúvida, no entanto, que Goldhagen trabal,hou ~ertosfenômenos empíricos importantes para uma explicação hlstónca ~oHolocaustO. O quê das descobertas de Goldhagen era ou nao

conhecido dos pesquisadores, tenho de deixar por conta dosespecialistas. Não se pode afirmar, no entanto, que ele só tenharepetido o que já era sabido. Que conhecimento temos, realmente,das intenções dos agentes? A idéia minimizadora de que elas fossemsobretudo objeto de manipulação externa não se sustenta. Asconstatações feitas por Goldhagen, de uma engenhosa energia paraa crueldade relativamente aos judeus, não podem ser ignoradas. Elasexigem uma explicação que não negligencia os aspectos intencionais.(Nesse contexto, já é mais do que tempo que a ciência histórica searticule sistemática e intensamente com a psicanálise e com outraspropostas e perspectivas da psicologia. Não basta consultá-Ias apenasquando a lembrança do Holocausto nos perturbar). Goldhagen nãodistingue entre motivações conscientes e inconscientes e se priva,assim, de uma diferenciação importante. Para ele, a intencionalidadede tudo estaria patente).

O debate sobre o Holocausto deve continuar e não se darpor satisfeito com uma recusa da interpretação de Goldhagen oucrítica a ela, A polêmica em torno desta interpretação, ou de outrasmais plausíveis, deve situar-se, porém, no contexto de uma concepçãoda cultura histórica no qual os modos de explicação e asargumentações históricas são vistos como integrantes de um processosocial global da memória histórica constituidora de identidade. Nessecontexto a questão da identidade deve e precisa ser suscitada.Movemo-nos em alguma outra lógica do que a da distinção entre o"eu" e o "ser outro", segundo o modelo de interno e externo?Utilizamos uma lógica da constituição histórica de sentido na qualpercebemos a nós mesmos no espelho do outro? (No espelho dasvítimas, espectadores e perpetradores, que nos são antepostos peladiferenciação histórica do passado?). 13 Com essas questõespoderíamos suscitar uma polêmica entre os historiadores que valeriaa pena. O livro de Goldhagen até agora não a provocou. Devemosretomar a polêmica anterior, sobre a historicização do nazismo, noponto em que ela foi efetivamente produtiva e deixou questões emaberto, como por exemplo, na polêmica por cartas entre SaulFriedHinder e Martin Broszat. 14 Deve-se tratar de explicação,constituição histórica de sentido e identidade. E o Holocausto devecontinuar como o desafio mais radical ao pensamento histórico que

H iSlória: Questões & Debates, Curitiba, v. 14, n. 26127. p.116-13I, jan./dez. 1997

'Sinne' der Geschichte" ["Os 'sentidos' da história"] em Müller, Klaus E.;Rü.sen, Jom (edits.): Historische Sinnbildung. ProblemstelIungen,Z.elt~~nzepte, Wa~mehmungshorizonte, Darstellungstrategien. [Formaçãohlstonca de sentido. Problemas, Concepções de tempo, horizontes depercepção e estratégias de apresentação]. Reinbeck, 1997.

. . 8 Eisenstadt, Shmuel Noah: "Soziologische Betrachtung zumhl~tonschen Prozess", em Faber, Karl-Georg; Meier, Christian (edits.):HIstonsche Prozesse (Beitrage zur Historik, vol. 2) Munique, 1978, pp. 441-459, esp .. pp. 451 ss. - Acerca da lógica da comparação histórica de culturase dos prc~blemas que suscita, cf. Rüsen" Jom: "Die Individualisierung desAllgemelnen - Theorieprobleme einer vergleichende Universalgeschichteder Mcnschenrechte", em Rüsen, Jom: Historische Orientierung. Über dieArbeIt des Geschlchtsbewusstseins, sich in der Zeit zurechtzufinden. Colônia,1994, pp. 168-234; Rüsen, Jom: "Some theoretical approaches to antntercultural comparison ofhistoriography", em History and Theory, 1997,Beiheft (no prelo).

9 Humboldt, Wilhelm von: "Über die Aufgabe desGeschichtsschreibers", em Humboldt, Wilhelm von: Werke, edit. por AndreasFlitner e Klaus Giel, vol. 1: Schriften zur Anthropologie und Geschichte.Dannstadt, 1960, pp. 585-606 (Obras compleas [Edição da Academia] IV, pp.35-56), cit. p. 605 [56].

10Dux, Günter: "Wie der Sinn in die Welt kam und aus ihm wurde"em Müller, Klaus E., Rüsen, J. (edits.): op. cit. (ver nota 7).

II Broszat, Martin: Nach Hitler. Der schwierige Umgang mit unsererGeschichte. Munique, 1988.

12 Mommsen, Hans: "Die Realisierung des Utopischen: Die'Endlosung der Judenfrage' im 'Dritten Reich", em Mommsen, H.: DerNationalsozialismus und die deutsche Gesellschaft. Ausgewahlte Aufsatze.Retnbeck, 1990,pp. 184-232

13 Para os alemães, pelo menos, é no espelho dos perpetradoresque devem procurar ver si mesmos, pois estão a eles vinculados pela cadeiadas gerações e por sua imbricação mental.

. 14~ro~zat, Martin. Friedlander, Saul: "Um die "Historisierung desNatlonalsozlalJsmus. Ein Briefwechsel", em: Vierteljahreshefte fürZeitgeschichte 36 (1988) pp. 339-372.

. 15 Cf. Rüsen, Jom: "Auschwiz: How to Perceive the Meaning ofMeamngless - a Remark on the Issue ofPreserving the Remnants" emKulturwissenschaftliches Institut: Jahrbuch 1994, pp. 180-185. Rüs'enJom: "Trauer a.lshistorisch~ Kategorie. Überlegungen zur Erinnerun~ anden Holocaust ln der Geschlchtskultur der Gegenwart", em Loewy, Hanno(ed.): Ennnerung, Gedachtnis, Sinn. Frankfurt, 1996.

busque exercer, criticamente, seu potencial de constituição históricade sentido. 15

I Goldhagen, Daniel Jonah: Hitler's Willing Executioners. OrdinaryGermans and the Holocaust. New York: Knopf, 1996.Ulrich, Volker: ~'Hitlerswillige Mordgesellen. Ein Buch provoziert einen neuen Historikerstreit: Warendie Deutschen doch alie schuldig?", em: Die Zeit, Nr. 16, 12de abril de 1996,p.1.

2 Ulrich, Vol~er: "Hitlers willige Mordgesellen. Ein Buch provozierteinen neuen Historikerstreit: Waren die Deutschen doch alie schuldig?",em: Die Zeit, Nr. 16, 12 de abril de 1996, p. 1.

3 A querela anterior (Historikerstreit), em tomo dos cinqüenta anosdo fim da 2" Guerra Mundial e a propósito da identidade e da índole dosalemães, provocou intensos debates entre historiadores e políticos sobre opapel e a consciência da Alemanha no 3° Reich, durante a guerra e no meioséculo que se seguiu. Inúmeros artigos, discursos, simpósios e livrosabordaram a questão. Dentre eles, destacam-se, a título de exemplo: Wehler,Hans- Ulrich: Entsorgung der deutschen Vergangenheit? Munique, 1988;James, Harold: Vom Historikerstreit zum Historikerschweigen. Frankfurt, 1993;Wippermann, Wolfgang: Wessen Schu1d? Berlim, 1997 [Nota do tradutor].

4 Cf. em especial os artigos, conquanto não coincidentes, de Hans-Ulrich Wehler e Ulrich Herbert no Die Zeit de 24 de maio e de 14 de junho de1996, respectivamente.

5 É a isso que remete Ingrid Gilcher-Holthey em seu artigo no DieZeit (7 de junho de 1996). No plano programático, essa abordagem écertamente adequada. Parece duvidoso, contudo, que o ponto de vistaetnográfico a que se recorre alcance efetivamente a realidade empírica. Nomeu entender, não ficou consistentemente demonstrado que o antisemitismofoi fator central do código profundo "dos" alemães na longa duração dasatitudes básicas valorativas, determinantes do agir.

6 A propósito dos diversos esquemas explicativos que abordarei aseguir, ver Rüsen, Jom: Rekonstruktion der Vergangenheit. Grundzüge einerHistorik II: Die Prinzipien der historischen Forschung. Gottingen, 1986, p.22ss. (Reconstrução do Passado. Teoria da História II: Os princípios dapesquisa histórica. N. do 1'.: A Editora da Universidade de Brasília prepara atradução desta obra para a língua portuguesa).

7 Galtung, Johan: Peace by Peaceful Means. Londres, 1996, e "Die

prevalecente. De fato, um volume considerável de pesquisas foidesenvolvido ao longo das décadas de 1940 e 1950 buscandodemonstrar que as características de determinado sistema políticopoderiam ser derivadas da forma pela qual os seus cidadãosencaravam e se comportavam diante de suas instituições públicas eas formas assumidas pelo exercício de suas atividades políticas. Nessesentido, a cultura política seria a determinante principal da forma edo conteúdo assumidos por determinado sistema político.

Num outro extremo do espectro teórico, encontra-se uma outratradição de estudos, para a qual as atitudes, posturas e representaçõesrelativas ao sistema político nada mais são do que produto da maneirapela qual este se estrutura. Neste sentido, a cultura política seriamero resultado da imposição de um determinado modelo dedominação política - supostamente o mais adequado a realização dasnecessidades inerentes a manutenção da hegemonia do bloco nopoder, para usar uma terminologia cara à tradição Gramsciana.

Sem negar os consideráveis avanços legados pelos trabalhose pesquisas identificados com alguma destas duas tradições teóricas,gostaria de defender aqui a idéia de que, no estudo da cultura políticae do seu correspondente regime político, é arriscado falar-se de umacausalidade estrita de um pólo da questão relativamente ao outro.Parece sensato, então, colocar-se alternativamente a hipótese daexistência de uma relação de interdependência entre um e outrofenômeno. De fato, pode-se arrolar toda uma série de conjunturashistóricas nas quais se percebe de que forma a cultura política doscidadãos ajudou a moldar determinado tipo de regime político e,simultânea e inversamente, o impacto que exerce sobre a constituiçãoda cultura política a mecânica de funcionamento das instituiçõesexistentes.

O entendimento desta inter-relação entre estes doisfenômenos se toma mais claro ao passarmos para o exame dos váriostipos de cultura política descritos na literatura especializada. Segundoessa tipologia, as culturas políticas podem ser definidas segundo umadupla determinação. -

Em primeiro lugar, no que diz respeito ao grau maior oumenor de homogeneidade dessa cultura. No interior de determinadanação, pode-se encontrar tanto uma cultura política comum partilhadapelo conjunto dos seus cidadãos quanto, num caso extremo, uma

Dennison de OliveiraProfessor Titular do Departamento de História da

Universidade Federal do Paraná. UFPR

A Linha de Pesquisa Cultura e Poder do Departamento deHistória da Univefsidade Federal do Paraná alçou, desde o seusurcrimento, à condição de principal questão a ser enfr~ntada emqu~q8er processo de investigação histórica, .o ent~ndl~.ento darelação entre as formas de organização matenal ~ slmbol~ca e asmanifestações do poder nas sociedades. Neste sentido, partlmos dopressuposto de que as questões afetas à cultura so~ente se torna~inteligíveis se remetidas à discussão sobre as maneiras pelas qualsse manifestam e realizam as relações de poder. Da mesma fo~mapressupomos que os projetos de dominação não podem se reahzarsomente com base no uso da força e/ou de uma variedade deretribuições materiais feitas pelas grupos dominantes aos ~~mais.Impõem-se, no que diz respeito aos detentores do po~er p~ht.ICO,ouso de uma variedade de recursos simbólicos, lmaglstlcoS ecomportamentais. -. ,.

Neste sentido, dentre os diversos fenômenos hlstoncos queocupam lugar de destaque entre as preocupações do,s.integrantesdessa linha, encontram-se aqueles afetos à cultura pobtlca.

Quando usamos o termo "cultura política" quer~mos no~ referiras atitudes e posturas, tanto da massa quanto da elite, relativas aosistema político, às relações entre as instituições e aos lugares quedevem ser ocupados pelos cidadãos na vida política e a forma pelaqual devem ser tratadas as questões públicas. Numa palav.ra, o termopode ser empregado para descrever a forma pela qual ~s tntegrantesde determinada sociedade encaram e se comportam diante de suasinstituições públicas e a maneira pela qual exercem suas atividadespolíticas. . ~ .

Nesse sentido, parece plausível supor a eXlstenCIade um nexoevidente entre a cultura política dos cidadãos e o tipo de regime político

variedade dessas culturas, produzidas e mantidas por diferentes grupossociais, étnicos e religiosos.

Em segundo lugar, a cultura política pode também ser definidaem função do grau de envolvimento e participação dos cidadãos coma competição política e a vida pública. Num caso, pode-se falar emcultura política ativa, na qual o conjunto dos cidadãos, ou pelo menosa maior parte deles, se envolve e participa regularmente da viciapolíticada nação. Num caso oposto, referimo-nos a uma cultura políticapassiva, para designar o caso no qual a maior parte dos cidadãosevita, deliberada ou inconscientemente, envolver-se nas questões edebates afetos a $ida pública. E é do cruzamento de ambascaracterísticas que podemos perceber a interação entre cultura políticae regime pol ítico e os efeitos daí produzidos.

As culturas políticas ativas homogêneas caracterizam-se porcontarem com um grande contingente de cidadãos regularmenteenvolvidos nos assuntos coletivos, trabalhando para encontrar ocaminho para as políticas que são desejadas e para derrotar aquelasque são tidas como indesejáveis.

O caráter pacífico da política nas culturas ativas homogêneasrepousa sobre sua coesão subjacente. A despeito de todo ativismopolítico permanente, os cidadãos concordam no essencial, no que dizrespeito ao funcionamento do regime. Esta similaridade de pontos devista reduz a tensão política em dois aspectos: I) as disputas e osdesacordos políticos raramente tocam os valores fundamentais; 2)não existe discordância sobre a continuidade ou não da estruturaconstitucional prevalecente. E, certamente, não se discute sobre oprincípio de que todos os partidos tem o direito de disputar eleições econtinuar existindo.

Em resumo, a disputa política nessa cultura é sobre questõesmenores. As tensões políticas raramente chegam ao nível, porexemplo, de levar as pessoas a espancar ou matar seus oponentespara assegurar sua própria vitória. Ainda que o alto nível deenvolvimento dos cidadãos produza naturalmente uma correntecontínua de desacordo e confrontação, os choques ocorrem mais oumenos no âmbito da política, e nunca num nível mais profundo,psicológico, que seria aquele onde residem os valores ou crençasdaquela sociedade. Desta forma, as culturas políticas ativas ehomogêneas se caracterizam por conduzirem os processos de

formulação e constituição de governos e políticas sem recurso aviolência aberta.

A disputa política nas culturas ativas e homogêneas raramenteproduz violência também por uma segunda razão: o reconhecimentoamplamente disseminado entre as pessoas de que partilham umahumanidade comum com seus opositores políticos. As democraciascapitalistas adiantadas certamente se enquadram nessa categoria.

Isso não quer dizer, por outro lado, que a homogeneidadedessas culturas seja um dado da natureza. Não podemos perder devista que os grupos politicamente dominantes nessas sociedadesdesenvolvem um esforço considerável e permanente para impedir aemergência e a disseminação de crenças, idéias e valores que secontraponham àqueles prevalecentes.

Exemplo disso é a ofensiva ideológica desencadeada peloempresariado norte-americano no segundo pós-guerra. Trata-se deuma época em que expressivas parcelas de setores economicamentedominantes sentiam-se ameaçados pela maré montante do movimentosindical, pela emergência e ampla aceitação de discursoscondenatórios dos lucros auferidos pelos capitalistas, pelas contínuasinterferências do governo federal em defesa de trabalhadores econsumidores e, talvez o mais preocupante, pelo confronto comalternativas concretas ao sistema político e econômico prevalecente,fossem tanto de inspiração social-democrata quanto propriamentesocialista.

Nestas circunstâncias, as principais entidades representativasdo empresariado norte-americano detonam uma ambiciosa eprolongada campanha de divulgação dos ideais da empresa privada,da livre iniciativa e, claro, em defesa da justiça do lucro, que atingeos meios de comunicação de massa, o ensino fundamental e superiore conta também com a cumplicidade das igrejas cristãs. O resultadode tamanho esforço educacional e publicitário é a modelagem dacultura política norte-americana que passa a - ou melhor, volta a -considerar como consensuais e não passíveis de discussão políticaos valores e idéias afetos ao modo capitalista de produção.

Nas culturas ativas e heterogêneas, por outro lado, inexistemregras do jogo que sejam amplamente aceitas por todos os participantesda política. Aliás, face a especificidade ou, no limite, ao caráterantagônico das diferentes culturas partilhadas pelos diferentes grupos

sociais, o estabelecimento de regras pode tornar-se umaimpossibilidade histórica. Em qualquer caso, os oponentes não vêema política com um jogo. Trata-se de urna atividade perigosa, no limite,mortalmente séria, destinada a proteger um certo meio de vida, ou aprópria vida, contra adversários que poderiam destruí-Ia. O caso dosEstados herdeiros da extinta Iugoslávia, país que abrigava enormespopulações de pelo menos três confissões religiosas diferentes eantagônicas, para não mencionar a variedade de etnias preexistentes,parece se constituir num exemplo óbvio dessa situação. Da mesmaforma na América Latina, nos países onde mesmo após a colonizaçãopermaneceram e prbliferaram expressivos contingentes indígenas,pouco ou nada identificados com os valores trazidos peloscolonizadores, o fenômeno se repete e, certamente, é uma dosprincipais fatores de instabilidade da política local.

Já nas culturas homogêneas passivas, a cidadania é tantocoesa quanto profundamente inativa. Afinal de contas, faz sentidoevitar envolvimento político quando tal atividade se mostra serinfrutífera ou perigosa. Se o governo sempre ameaça as pessoas deprivação da liberdade ou mesmo de suas vidas ao primeiro sinal deprotesto político, os cidadãos vão aprender a abandonar todas asatividades políticas, exceto aquelas integralmente aprovadas pelogoverno. Se a crítica ao governo não produz resultados políticos emais ainda cria problemas aos que a enunciam, é improvável que aspessoas se tornem críticas do governo. A maior parte dos cidadãosneste tipo de cultura irá evitar envolver-se na política porque ela édemasiado perigosa. Aqueles que se tornarem ativos politicamenteacab,lrão por se engajar nos quadros da elite política dominante. Asculturas homogêneas passivas, então, irão produzir cidadãos que ousão refratários a participação ou que irão compor o quadro de líderespara o regIme.

Neste padrão é possível enquadrar a cultura política brasileirado período mais negro da ditadura militar (1968-1974) quando pelomenos um observador constatava espantado que a violência darepressão institucional, somada a censura, havia chegado a tal pontoque a elite política do país havia se reduzido a dois conjuntos bemdefinidos: aqueles que apesar da sua discordância para com o regimesilenciavam em sua crítica e aqueles que aderiram ao poder, porconvicção ou oportunismo. No que diz respeito ao conjunto da

população a ditadura adotou procedimentos igualmentedesmobilizadores. De fato, contrariamente tanto às ditaduras fascistasquanto ao regime populista deposto, a ditadura militar nunca pretendeumobilizar politicamente as massas, ainda que fosse para virem emseu apoio.

É igualmente possível enquadrar o regime Stalinista nessecaso. Na vaga de expurgos políticos dos anos 1930 que prepararama instauração de uma ditadura totalitária, o mais leve traço dedeslealdade ou inconformismo por parte dos indivíduos poderia produzirconseqüências catastróficas, variando da prisão, perda de cargos,deportação e até a morte. Nestas circunstâncias, " ... o mais simplesa fazer era evitar responsabilidades, buscar a aprovação do superiorpara qualquer coisa, obedecer mecanicamente a qualquer ordemrecebida, a despeito das condições locais ..."i

Tanto num exemplo histórico quanto noutro, fica evidenteque o regime político trabalhou árdua e consistentemente para embotaro processo de modelagem de uma cultura política de perfilparticipativo.

Cumpre notar que tais culturas políticas - como de resto,qualquer fenômeno cultural - não se desenvolvem da noite para odia. Elas são o resultado de uma longa, original e prolongada seqüênciade eventos históricos que sempre refletem ocorrências acidentais,imprevistas e imprevisíveis. Se fizermos uma distinção entre regimespolíticos abertos ao revezamento das elites no poder (poliarquia) eaqueles que não são (oligarquia) podemos isolar alguns fatoresrelevantes, os quais se constituem em variáveis que indicam oconteúdo historicamente possível de cada regime.

A primeira dessas diz respeito a estrutura de classes sociais.Se as diferenças de classes são agudas e profundas e representamenormes barreiras para aqueles que desejam ascender de uma classepara outra, então a desconfiança entre os grupos será alta e o conflitoserá intenso. Quanto mais tempo prevalecer essa situação, maisprovável será a instalação de fissuras e fraturas que tornarão difícilobter-se a coesão cultural.

A segunda diz respeito ao nível de bem-estar e de distribuiçãoda riqueza nacional. Existe um razoável consenso de que as naçõesempobreci das são menos capazes de desenvolver instituiçõescompetitivas, livres e estáveis. O bem estar coletivo, contudo, não é

por si só suficiente para a estabilidade política. Se a riqueza do país édesigualmente distribuída, ressentimentos profundos entre aquelesque tem e os que não tem irão se desenvolver, levando à violência. Ariqueza necessariamente tem de ser minimamente bem distribuída,para assegurar a sobrevivência da poliarquia. Afinal, se muitos grupossociais estão razoavelmente bem, nenhum grupo pode fazer umademanda razoável de direitos e privilégios em níveis claramentesuperiores. Se poucas pessoas estão mal, nenhum grupo irádesenvolver um medo excessivo "das massas", isto é, ninguém irápensar, por exemplo, em privar do direito de voto as pessoas maispobres da sociedacfe. Somente quando a maioria dos cidadãos temuma participação na riqueza nacional e um nível de bem estar razoável,é que uma cultura favorável à poliarquia poderá se desenvolver. Deoutra forma, veremos ou o domínio da elite ou a rebelião das massas,e tanto uma quanto outra situação irão impedir o avanço rumo apoliarquia.

Em terceiro lugar caber mencionar o conjunto de crenças evalores dos ativistas e lideranças políticas. Aqueles que são maisativos e mais poderosos em uma dada instituição ou país terão semprea maior responsabilidade pela sua modelagem. Desta forma, osativistas e líderes políticos têm um impacto substancial na vida políticade seu país. Onde estes desenvolvem práticas congruentes com osprocessos democráticos - como o respeito para com aqueles comquem discordam, apoio à ampliação da participação popular, aceitaçãopara com a legitimidade das ações do governo das quais discordam -o compromisso da sociedade como um todo com a poliarquia irácrescer.

Em quarto lugar cabe reiterar o problema fundamentalsubjacente a qualquer cultura heterogênea. Vale dizer onde existeum grande número de culturas políticas antagônicas e distintas. Emuma nação dividida por conflitos étnicos, raciais e regionais,dificilmente poderemos esperar encontrar cidadãos pensando unsaos outros como iguais, respeitando os pontos de vista uns dos outros,aceitando a possibilidade de membros de um grupo político adversárioganhar o poder. Em resumo, o desenvolvimento de normas afetas apoliarquia não irá se desenvolver onde a animosidade entre os gruposé alta. Poucas nações com subgrupos grandes, coesos edramaticamente diferentes irão permanecer poliárquic-as por muito

Finalmente cabe apontar a importância do desenvolvimentohistórico particular de cada nação para o entendimento do processode constituição de sua cultura política. Dentre as tantas variáveisque valem a pena serem citadas estão a ocupação estrangeira, e omaior ou menor gradualismo da entrada das massas na políticaeleitoral.

As evidências históricas apontam que a prolongadadominação por estrangeiros pode trazer sentimentos de alienação edesconfiança. As pessoas podem desenvolver sentimentos deindividualismo negativo característico de culturas fragmentadas,gerando um espírito permanente de "salve-se quem puder" e/ou de"cada um por si". Naturalmente, tal postura é incompatível com aconstrução de um espírito participacionista e coletivista.

Da mesma forma, as evidências sugerem que, serepentinamente as massas adentram a política, diminuem as chancesda nação se tomar uma poliarquia estável. A poliarquia não sedesenvolve quando uma massa não constituída de cidadãos, nãoformada nos hábitos, normas e ideais da democracia, repentinamenteobtém o direito de voto. Nestas circunstâncias retrocessosconsideráveis no processo de construção da ordem democráticatendem a ser comuns.

Se observarmos a trajetória histórica dos países quedesenvolveram os mais estáveis e duradouros regime democráticosiremos perceber a importância dos eventos certos terem acontecidona época certa. Estes eventos incluem um histórico de competiçãopolítica; gradual envolvimento dos cidadãos na disputa política; oreconhecimento da legitimidade da oposição e de seu direito aconcorrer a eleições livres e limpas que deve ser irradiado da elitepara as massas; e, finalmente, uma tradição de educação de massas.A maioria das nações altamente educadas são poliarquias ou naçõesque se dirigem em poliarquia. A maioria de nações com populaçõesiletradas não são poliarquias.

À luz dessas considerações podemos arriscar algumashipóteses sobre a trajetória política da Alemanha neste século, a qualinclui eventos de importância fundamental para a conformação domundo contemporâneo. Dentre estes eventos cabe destacar a fasefinal do Império, a República de Weimar, o regime nazista e a

reconstrução do país no segundo pós-guerra em moldes democráticose capitalistas.

À época do império a Alemanha constituiu um caso típico decultura política passiva e homogênea. Nela, a elevação 00 nível devida e dos padrões de educação da população coexistiu com umregime político autoritário, o qual excluía a maior parte da populaçãodo exercício do voto e preservava os privilégios e o poder político daelite de nobres, burocratas de carreira, militares e religiosos, todoszelosos guardiães da ordem semi-autocrática vigente que punha umaênfase incansável nas virtudes prussianas da disciplina e obediência.Mesmo a emergent~ burguesia industrial, temerosa dos desafios feitosa ordem estabelecida pelos movimentos social-democratas, acaboupor se identificar com o regime autoritário de Guilherme lI, esforçando-se mesmo por aderir a cultura nobiliárquica e exclusivista do regime,corno o prova o seu empenho em obter para si os títulos de nobrezaconcedidos pela coroa e a promoção de casamentos de seus filhoscom os das elites de nobres, burocratas de carreira e militares.

Subitamente, com o fim do império, assiste-se na Alemanhaa instauração de uma autêntica democracia parlamentar, ondeinexistiam restrições de ordem legal à organização partidária e queimplementou, de fato, a universalização do direito de voto.

Contudo, caberá à jovem República enfrentar as terríveistensões sociais derivadas do processo de reconstrução da economianacional, esgotada pela mobilização requerida por quatro anos deguerra total, providenciar o pagamento de vultosas indenizações deguerra e fazer face a duas intensas e prolongadas crises econômicasmundiais, uma das quais - a de 1929 - não tinha precedente nosregistros históricos.

Sabemos que um determinado nível de bem-estar edistribuição de renda são, de fato, pré-requisitos para a consolidaçãoda democracia. Neste caso, o destino da República de Weimar desdeo início se apresentava como sombrio. Mais ainda, os ativistas elideranças políticas pareciam pouco inclinados, a partir do seu exemplo,a irradiar para as massas recém chegadas na política as virtudes derespeito as regras do jogo democrático, confiança no funcionamentoda disputa eleitoral e respeito e reconhecimento à eventual vitória deseus adversários. A vaga revolucionária de esquerda do início doregime, o prolongado terrorismo de extrema-direita e os sucessivos

enfrentamentos de milícias partidárias, nos quais os poderes públicos,tendenciosamente, acabavam desenvolvendo de alguma forma -fosse por apoio ou omissão - comprovam suficientemente este traçoda cultura política então prevalecente. Tudo isso, somado ao renitenteautoritarismo das instituições vigentes, às sucessivas frustrações dastentativas de retomar o crescimento econômico, bem como adesconfiança para com um regime que havia sido "imposto" ao paíspelos vencedores da Primeira Guerra Mundial, devem ter contribuídomuito pouco para estabelecer entre os alemães uma cultura políticafavorável a consolidação da democracia.

As características da cultura política alemã no período nazista,por seu turno, dispensam maiores comentários. Nele verificou-se aerradicação dos partidos políticos, das eleições, o nivelamento dosopositores ou mesmo dos críticos do regime à categoria de traidoresdo povo, tudo isso somado a um relativo êxito econômicoprincipalmente no que diz respeito ao combate ao desemprego e àeliminação da inflação. Nestas circunstâncias, as críticas oficiais doregime à "falência" da democracia e a "decadência" das potênciasde regime parlamentar ("confirmada", aliás, pelas suas sucessivasderrotas militares frente às forças armadas alemãs) levaram,certamente, ao recrudescimento das tradições autoritárias herdadasda ordem política vigente no império Guilhermino.

Como corolário dessa matriz autoritária, desenvolveu-se umaintensa e sem precedentes campanha de extermínio físico dos grupossociais e políticos considerados hostis ao regime ou inimigos do povoalemão. Aqui, coube ao regime nazista intensificar e disseminar aomáximo as componentes racistas, anti-socialistas e anti-semitas dacultura alemã, levando-as a um novo auge cujo produto mais espantosofoi, certamente, a adesão de amplas massas de cidadãos alemães àpai ítica de genocídio daqueles grupos conduzida em escala industrial,fosse pelos grupos de extermínio, fosse pelos campos de concentração.

Tudo isso pressagiava um destino sombrio para a democraciaalemã que se (re)inicia no segundo pós-guerra. Sobre um paístr~n.sformado em ruínas pelas devastações típicas das operaçõesmIlItares e ocupado pelos exércitos dos vencedores, avultava alembrança das atrocidades e crimes perpetrados por cidadãos alemãescomuns, os quais se colocaram a serviço do regime para perseguirseus opositores e, no caso particular dos judeus, eslavos e outros

povos "inferiores", exterminá-Ios fisicamente.Contudo, pelo menos no caso da Alemanha Ocidental, o

destino que se seguiu foi bem diferente do que se temia. No que dizrespeito à economia, o embalo da expansão do mercado mundial dosanos 1950 e 1960, bem como dos financiamentos à reconstrução doPlano Marshall (1947/48), permitiu a Alemanha tornar-se a terceirapotência capitalista do planeta. Nestas circunstâncias, não foi difícilobter-se aquele mínimo de bem estar material e de distribuição deriqueza que, s'abemos, são indispensáveis a consolidação da ordemdemocrática.

Em segundo lugar, cabe destacara disposição da elitedirigente do país (recrutada maciçamente entre os quadrosmarginalizados ou de oposição à ditadura nazista) em inculcar napopulação o apreço às práticas e hábitos democráticos. Nestesesforços de educação política tiveram papel de destaque também aspróprias forças de ocupação daquele país. Mais ainda, aogeneralizarem o acesso da população ao ensino (inclusive e talvezprincipalmente o de nível superior) os governo democráticos daAlemanha Ocidental aumentaram também a consciência dacompetência cidadã dos alemães. Tudo isso ajuda e entender a"revolução" participativa que marcou aquele país nos anos 1970 e1980, da qual o Movimento Ambientalista e o Movimento Pacifistasão apenas duas das manifestações mais evidentes.

Essa história de sucesso está agora passando por sua maiorprova. Com a recente reunificação do país e o ingresso na ordemnacional de massas que viveram os últimos sessenta anos sob algumaforma de regime totalitário (nazista ou comunista) a cultura políticaalemã deverá passar, necessariamente, por mais um período deprolongadas e intensas transformações cujo sentido e significado aindaestamos longe de poder descrever.

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Francisco Carlos Teixeira da SilvaProfessor Titular de História Moderna e Contemporânea

Laboratório de Estudos do Tempo Presente daUniversidade Federal do Rio de Janeiro

UFRJ

,.Introdução: a recorrência do fascismo

o debate em torno do livro de Daniel Goldhagen Oscorrascos voluntários de Hitler, como temos visto nos dois últimosdias de debate travados aqui em Curitiba, implica numa série dequestões sobre a própria historiografia do fascismo. Particularmenteperigoso se nos afigura dois dos pontos fundamentais do texto deGoldhagen: I. a suposição de uma predisposição dos alemães aonazismo e, consequentemente, seu caráter (do nazismo, compreendidoaqui como fascismo) exclusivamente alemão, portanto fenômenoúnico da história; 2. a suposição seguinte, e talvez a chave doentendimento do sucesso do livro junto ao público alemão, de que avitória dos aliados na II Guerra Mundial teria, definitivamente, curadoos alemães de sua inclinação histórica ao fascismo. Assim, de umlado, o nazismo seria um fenômeno único na história, especificamentealemão, e, de outro, já estaria superado, sem qualquer possibilidadede um revival.

A obra coloca, ainda uma vez, a questão ao meu ver crucialpara a historiografia e sua dimensão política da especificidade dofascismo, do fascismo alemão e, em especial, do anti-semitismofascista alemão. Ao propor uma explicação específica para o anti-semitismo alemão volta-se o autor para o manancial teórico queidentifica na situação histórica da Alemanha as origens e a naturezadeste mesmo anti-semitismo.

Ao lançar sobre uma pretensa natureza alemã toda aresponsabilidade do que representou o 111 Reich, inclusive o

Holocausto, acaba-se por banalizar o fenômeno do fascismo ao atribuirantes ao alemão e só então ao fascista alemão a responsabilidadepela produção industrial do genocídio. Estando na natureza alemã apossibilidade do inumano, pode-se esperar, enfim, de qualquer regime,alemão naturalmente, ações discriminatórias e exterminacionistas.Tal interpretação nada tem de original e iniciou-se no decorrer da IIGuerra Mundial sob a denominação de Sondenveg, ou seja, o desvioda história alemã (desde Lutero, Frederico, o Grande, Bismarck, ...)em direção ao inumano.

Como corolário de tal percepção tende-se a uma sistemáticasuavização dos fascismos congêneres, principalmente o italiano,húngaro, croata ou romeno. Destaca-se aí a resistência italiana àconversão ao anti-semitismo, antes de 1938, sem considerar ainsignificância da população judia na Itália e, portanto, a suainadequação na construção do outro conveniente, no inimigo quejustifica a mobilização total da sociedade contra um inimigo interno.Claro, as prisões da Polizia de Securitá, com seus campos deinternamento, repletos de comunistas, liberais, homossexuais outestemunhas de Jeová não são levados em consideração. Um poucomais além: as leis racistas italianas aplicadas aos etíopes e aos árabes,membros forçados do Império de Mussolini, ou as ações de extermínio- uso maciço de gás na Etiópia - parecem não fazer parte de umahistória européia.

Assim, não se percebe como uma permanente característicado fascismo, a recusa à alteridade, a discriminação e a transformaçãode ciganos, gays, bolcheviques, deficientes físicos e outros - eminimigos públicos, no outro conveniente à mobilização permanente doregime. Desta forma, ao se erigir o anti-semitismo fascista alemãoem elemento sine qua non do próprio fascismo, todas as demaisexperiências fascistas seriam, automaticamente, desqualificadas comotais. Devemos notar, e isto me parece fundamental, que vários destesregimes - a Itália de Badoglio e Vitor Emanuele, pós-Mussolini, é umbom exemplo, mudaram rapidamente de lado na guerra, e o conjuntodas forças conservadoras que apoiaram e conspiraram com ofascismo, apresentaram-se rapidamente como vítimas do própriofascismo. Assim, o exército italiano, exterminacionista na Etiópia,podia mostrar-se como anti-alemão na Europa.

Ora, tal análise, para além do oportunismo político praticadoa partir dos primeiros sinais do ocaso do 11/ Reich, parte, ao nossover, de dois desconhecimentos básicos: 1. da universalidade do anti-semitismo como variação histórica da recusa à alteridade; 2. dofascismo como fenômeno universal, autônomo, recorrente, capaz dereinventar permanentemente o seu outro conveniente, como omarroquino na França de Le Pen, o turco na Alemanha dosRepublikaner, o caucasiano na Federação Russa ou os traidoresapontados, genérica e vagamente, entre nós, pelo PRONA.

Devemos, ,JIesta forma, retomar à teoria do fascismo,abandonando a historicidade única, a vocação ou a história específicade um povo, para explicar o exterminacionismo. A historicidadeforçada (o Tratado de Versalhes, a crise de 1929, o carisma de Hitler,ete.) não poderia mais dar conta de um fenômeno que transborda aprisão do tempo e se renova a cada momento. O próprio neofascismoé, tal vez, o melhor argumento contra as teses de uma especificidade,e de uma cura, do povo alemão em relação ao fascismo.

A fuga à historicidade forçada deveria recolocar as condiçõesda possibilidade fascista enquanto fenômeno onde, por exemplo, acrise de 1929 possa ser aposta à crise simultânea, nos anos 80, doestado socialista burocrático e do estado de Bem Estar Social, detipo fordista-keynesiano. Neste caso, não é o desemprego na Itáliapós-guerra ou da crise de 1929 que possibilitariam o fascismo. Afonte do extremismo de Direita residiria, aí sim, no mal-estar e noestranhamento gerados pelas mutações rápidas do mundo do trabalho,na produção em massa da desesperança. Desta forma, a destruiçãoda certeza no mundo do trabalho, a demolição do aparato de proteçãosocial e o elogio do desempenho yuppie e do consumismo high-techem meio à generalização do fim do emprego e do isolamento doindivíduo confrontado com sua própria culpa pelo fracasso, surgemcomo elementos da possibilidade do fascismo.

É neste sentido que a busca do outro conveniente, aqueleque por sua simples existência explica a minha dor, real ou imaginada,constitui-se em base da condição genética dos extremismos.

Frente a tal paralelismo - 1922/29 e 1982/97 - poderíamosnos libertar da historicidade dominante para teoricamente lançar-nos

sobre as condições de construção de uma teoria autônoma do fascismo,em especial partindo da situação de anomia, em uma vertente, e deestranhamento do outro e de si mesmo, em outra vertente.

Os últimos acontecimentos na Europa, muito especialmentena Alemanha, Itália e Federação Russa, envolvendo gruposneo-fascistas, estrangeiros, minorias e lugares de memória doHolocausto, impuseram ao historiador uma reflexão mais aprofundadasobre o fenômeno da ressurgência do fascismo nos anos 90.

Não se trata, agora, como o foi nos anos 60, da aparição depequenos grupos saudosistas, compostos de veteranos da Wehrmachtou do Partido Nazista, com velhas palavras de ordem e com umcerto ar de dejá vu, reunidos em um hotel de província qualquer. Em1964, por exemplo, numa conjuntura internacional fortemente marcadapela Guerra Fria, na Alemanha, o Partido Nacional Democrata daAlemanha (NPD), constituído por quadros médios do antigo TerceiroReich tinha por objetivo testar o sistema político da República Federalda Alemanha. O clima de Guerra Fria com o forte sentimentoanticomunista existente na Alemanha Ocidental, ao lado da presençasoviética na República Democrática Alemã (DDR), a chamada "zonade ocupação soviética", eram compreendidos como fatores capazesde atrair simpatias para um movimento que se erguia como tendosido historicamente uma barreira face à expansão comunista. Damesma forma, a forte presença, de quase três milhões de pessoas,expulsas dos territórios das antigas províncias alemãs da PrússiaOriental (anexados à Polônia e à URSS), constituía uma clientelacapaz de garantir um eleitorado fácil a quem se dispusesse a proporvisionariamente a revisão dos Acordos de Ialta e Potsdam. Nestesentido, o NPD, com suas palavras de ordem, tiradas do movimentode rua dos anos 30 e sua plataforma política de revisão dasconseqüências da II Guerra Mundial, apontava para o passado e eraconstituído por homens do passado. Sua passagem meteórica pelocenário político alemão ocidental constituía-se em um fenômeno

residual, fortemente conjuntura!.

Por sua vez, o sistema político alemão ocidental reage,declarando o NPD em 27 de setembro de 1968, através da Corte deJustiça de Hannover, um partido contrário à Constituição. A Justiçao caracterizava como " ... atuantemente inimigo, antidemocrático,neonazista, radical de direita e (...) através de [sua] defesa das idéiasnazista (...) inimigo da ordem democrática". Com isso eilcerrava-sea primeira tentativa de renascimento fascista na Alemanha.

Na Itália, ao longo dos anos 60, o clima político mostrava-seainda menos propttio ao desenvolvimento de uma organização detipo fascista. A forte presença de dois grandes partidos de massa, aDemocracia Cristã e o Partido Comunista Italiano, historicamenteantifascistas, ocupavam largamente o cenário político nacional. OMSI, Movimento Social Italiano, fundado logo em 1946 porex··integrantes do partido fascista mussoliniano, mantinha-se comoum movimento saudosista, centrado fortemente na figura de Mussolini,enquanto grande administrador e garantidor da unidade nacional. Paraos adeptos do MSI, o fascismo propriamente dito, enquanto movimentopolítico antidemocrático" era visto como algo secundário, diante daspropostas principais de um estado forte e anticomunista. Os malesinfligidos à Itália por Mussolini eram justificados como conseqüênciasda associação com a Alemanha hitlerista. A carreira inicial dofascismo, com a violência política, a supressão das liberdades,atentados e assassinatos era, pura e simplesmente, reescrita. Comeste programa o MSI jamais apareceu, no pós-guerra, como umaalternativa válida de poder. Talvez resida aí a explicação básica dofermento golpista da extrema direita italiana e sua adesão aoterrorismo.

Ao longo dos anos 60 e 70, nada permItIa prever apossibilidade de um amplo movimento de massas, capaz de levar aopoder, pela via do voto, um partido de caráter fascista. As condiçõessócio-econômicas características dos anos 80 e, em especial, operíodo posterior a 1989-91, ensejaram motivações para uma amplaexplosão do fascismo, agora com caráter de movimento popular.

.,..

Os anos de 1989-1991 marcaram uma forte mudança, emrelação aos anos 60 e 70, na atuação dos diversos grupos fascistasexistentes na Europa.

As diversas medidas restritivas colocadas em prática naAlemanha e na Itália, chegando inclusive à proibição constitucionalde organizar partidos de nome "fascista", tiveram, nos anos 60 e 70,um sucesso apenas relativo. De um lado, as organizações atingidaspelas limitações jurídicas, quando constatado o seu caráter "fascista",procuravam se registrar com um nome diferente, tão logo eramproibidas; de outro lado, a fase política de atuação era, então,caracterizada, pelos próprios grupos, como "organizativa".

Tratava-se, naquele momento, de reunir quadros, montarestruturas de contato e alistamento, organizar as finanças. Ao mesmotempo, os temas tradicionais do fascismo, particularmente o ataqueàs instituições democráticas e o racismo, eram, provisoriamente,deixados em segundo plano. Além de toda a atividade organizativadever-se-ia, então, centrar fogo na "defesa do ocidente", dacivilização e da cultura ocidental frente à ameaça representada pela"barbárie comunista". Em meio a toda a verborragia da Guerra Fria,exaltada e exagerada em ambos os lados, a fraseologia fascista eraplenamente aceitável.

O nacionalismo exaltado e o anticomunismo serviam de pontade lança aglutinadora para grupos fascistas, como um biombojustificador. O clima da Nova Guerra Fria - a Era Reagan - iria reeditarinúmeros clichês tais como "Império do Mal", "potência satânica","os totalitários", etc. confundindo-se com o próprio discurso fascista.Três ordens de fatores marcam, a partir dos anos 80, a passagempara uma "segunda fase" na ressurgência fascista: (1) adesmoralização e crise do socialismo de estado, tal qual existia noLeste europeu; muitó especialmente o neo-stalinismo, com o domínioda gerontocracia soviética (Breznev, Andropov, Chernenko) surgiacomo derrocada política e moral do socialismo, mesmo antes docolapso físico das instituições soviéticas; dessa forma, expandiam-

expressava, de modo geral, a confluência de interesses entre Capitale Trabalho, e o Estado -Welfare State - refletia essa confluência.

A partir de então, surgem as manifestações de esgotamentodo regime de acumulação fordista-keynesiano, em conseqüência detaxas de lucro decrescentes e do volume excedente de capitais -petrodálares, eurodólares, hot-money - em busca das aplicações maislucrativas possíveis e o acirramento da concorrência atinge até mesmoas grandes corporações internacionais. O processo de trabalhofordista, e seu uso extensivo de mão de obra especializada, torna-secada vez menos a,gequado às necessidades do capital e passa a sersubstituído pela produção enxuta, flexível, diversificada e em pequenoslotes.

A produção enxuta caracteriza-se por eliminar custosdecorrentes de desperdícios - uso inadequado do equipamento, peçase componentes defeituosos - pela polivalência dos trabalhadores -em contraposição à extrema especialização dos trabalhadores sob ofordismo -, o que elimina boa parte dos níveis de gerência maisbaixos e pela extrema redução de estoques - just-in-time. A reduçãode custos e a rotação mais rápida do capital tornam-na muito maisrentável e, portanto, competitiva em relação à produção em massa,fordista.

No nível da organização industrial, as empresas, que sob ofordismo, estruturavam-se em grandes unidades de produção, passamagora a organizar uma rede de subcontratação em torno da unidadeprodutiva principal - a montadora de automóveis, por exemplo. Apartir disso estão criadas as pré-condições para a segmentação dosmercados de trabalho - entre, fundamentalmente, (I) assalariadosmulti-especiliazados, poli valentes e flexíveis, com alguma forma degarantia de emprego, seguridade social e direitos trabalhistas, (2)trabalhadores das empresas terceirizadas ou subcontratadas, querecebem salários mais baixos, cujos empregos não têm a mesmagarantia e (3) formas de assalariamento precário, por tempodeterminado e (4) novas formas de trabalho doméstico em que ostrabalhadores entram formalmente na categoria de prestadores deserviços, de trabalhadores autônomos. Reduz-se assim, a folha salarialdas empresas, ao mesmo tempo em que constitui-se numa fonte do

1mal-estar moderno.

Quem são os atingidos? Os contramestres, pequenosgerentes, pessoal de escritório, vendedores, representantes, a forçade trabalho não qualificada de modo geral, e com a instauração plenado novo modelo, o funcionalismo público. O Estado de Bem EstarSocial estaria sendo substituído por um estado de mal-estar?

A segmentação dos mercados de trabalho e as formas defragmentação 'flexível' dos assalariados, aliadas ao desempregoestrutural porum lado, colocam, os sindicatos diante de novos desafiosno que se refere à estrutura organizacional e, principalmente, no quese refere à unidade dos assalariados, de forma a evitar ou, pelo menos,reduzir a concorrência entre eles mesmos.

Longe da aparente confluência de interesses entre Capital eTrabalho, característica do modo de regulação fordista, encontramo-nos, portanto, diante de interesses e, mais do que isso, de necessidadesmanifestamente contraditórias entre Capital e Trabalho.

Este contexto atual de insegurança e incerteza diante do futuroe do próprio presente, de profundas modificações sociais que afetamos indivíduos e no qual o desemprego estrutural é apenas o fenômenomais visível, está claramente oposto a um contexto de certeza eprevisibilidade do fordismo consolidado, fazendo com que o tempopresente nos recorde do contexto do entre-guerras, com os fascismoshistóricos em ascensão.