1991_schenberg. formação da mentalidade científica [estudos avançados]

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Formação da mentalidade científica MÁRIO SCHENBERG E sempre um prazer encontrar-me com pessoas que trabalham em Astrofísica. Sempre que posso, compareço ao Congresso Inter- nacional de Astrofísica Relativista, nos Estados Unidos. Participei, por duas vezes, desse tipo de Congresso. Desde a década de 40 não me tenho ocupado diretamente com questões de Astronomia e de Astrofísica. Naquela época, estive nos Es- tados Unidos e fui convidado a trabalhar na Universidade de Chicago. Tempos depois, pensei em regressar àquele país, mas, como ingressara num concurso de mecânica, que demorou vários anos para ser realizado, não pude mais voltar. Durante esse tempo, interessei-me por outros problemas, não me ocupando diretamente da Astronomia e da Astrofí- sica. Voltei meu interesse para alguns ramos da Física, como, por exem- plo, a Teoria da Relatividade Geral, que, na verdade, se liga àquelas ciências. No momento, estou particularmente interessado nesta iniciativa do Grupo de Memória Astronômica, uma vez que é muito importante de- senvolver, no Brasil, estudos sobre a História da Ciência, a Filosofia da Ciência e as relações entre Ciência e Tecnologia. Todos esses problemas precisam ser muito discutidos e bem compreendidos, pois sua impor- tância não se limita a uma área exclusivamente científica: são de impor- tância fundamental para a vida nacional. No Brasil, ainda não há nenhuma compreensão correta do processo tecnológico, que, aliás, não é tão simples quanto parece. E preciso que se tenha uma boa base científica para se compreender o espírito desse processo tecnológico. Todo o desenvolvimento econômico brasileiro está sofrendo muito devido a uma série de perspectivas erradas que têm sido adotadas em relação à tecnologia e, em particular, ao problema da energia. Quase todas as medidas adotadas aqui no Brasil em relação ao problema energético foram erradas. Os próprios tecnólogos, que têm uma visão muito limitada do setor, não puderam entender globalmente o problema. Tomemos, como exemplo, a questão da programação energética

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Mario Schemberg sobre problemas na ciência no Brasil.

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  • Formao da mentalidadecientficaMRIO SCHENBERG

    E sempre um prazer encontrar-me com pessoas que trabalham emAstrofsica. Sempre que posso, compareo ao Congresso Inter-nacional de Astrofsica Relativista, nos Estados Unidos.Participei, por duas vezes, desse tipo de Congresso.

    Desde a dcada de 40 no me tenho ocupado diretamente comquestes de Astronomia e de Astrofsica. Naquela poca, estive nos Es-tados Unidos e fui convidado a trabalhar na Universidade de Chicago.Tempos depois, pensei em regressar quele pas, mas, como ingressaranum concurso de mecnica, que demorou vrios anos para ser realizado,no pude mais voltar. Durante esse tempo, interessei-me por outrosproblemas, no me ocupando diretamente da Astronomia e da Astrof-sica. Voltei meu interesse para alguns ramos da Fsica, como, por exem-plo, a Teoria da Relatividade Geral, que, na verdade, se liga quelascincias.

    No momento, estou particularmente interessado nesta iniciativa doGrupo de Memria Astronmica, uma vez que muito importante de-senvolver, no Brasil, estudos sobre a Histria da Cincia, a Filosofia daCincia e as relaes entre Cincia e Tecnologia. Todos esses problemasprecisam ser muito discutidos e bem compreendidos, pois sua impor-tncia no se limita a uma rea exclusivamente cientfica: so de impor-tncia fundamental para a vida nacional.

    No Brasil, ainda no h nenhuma compreenso correta do processotecnolgico, que, alis, no to simples quanto parece. E preciso quese tenha uma boa base cientfica para se compreender o esprito desseprocesso tecnolgico. Todo o desenvolvimento econmico brasileiroest sofrendo muito devido a uma srie de perspectivas erradas que tmsido adotadas em relao tecnologia e, em particular, ao problema daenergia. Quase todas as medidas adotadas aqui no Brasil em relao aoproblema energtico foram erradas. Os prprios tecnlogos, que tmuma viso muito limitada do setor, no puderam entender globalmenteo problema.

    Tomemos, como exemplo, a questo da programao energtica

  • brasileira na dcada de 70. A perspectiva dos tecnlogos que orientavamo governo era de que ira faltar energia hidroeltrica na regio Centro-Sul. Essa idia, verdade, j havia sido lanada antes, no tempo dopresidente Juscelino Kubitschek. Naquela poca, j se levantava a hip-tese de que a nica sada para o problema seria um programa nuclear.Diz-se que o prprio presidente Juscelino teve a idia de instalar trsreatores nucleares, exatamente para que no faltasse energia eltrica emSo Paulo. As primeiras estimativas demostravam que iria faltar energiaeltrica nesse Estado j em 1975. E foi este o grande argumento paraque o Brasil iniciasse o programa nuclear.

    Em 1975, o ministro Shigeaki Ueki chegou a declarar, pela televi-so, que em 1980, em So Paulo haveria uma catstrofe total. A cidadeficaria no escuro, os prdios, sem elevadores, as fbricas, fechadas e osoperrios, desempregados. Tudo por falta de energia eltrica. Os fatosdemostraram exatamente o contrrio.

    Em 1981, pela primeira vez, houve um grande excesso de produode energia eltrica em So Paulo. A CESP chegou a deixar as comportasabertas porque no conseguia vender toda a energia eltrica que podiaproduzir. E com a construo de Itaipu, a situao se agravou maisainda. A CESP se viu ameaada de ir falncia, pois tem um contratocom Itaipu para vender a metade de energia eltrica desta Companhia.Porm, se a CESP j no tem como alocar a energia eltrica que produz,muito menos conseguiria vender esta metade que receberia de Itaipu.

    Assim, quando estava bastante generalizado o receio de que, emfuturo prximo, faltasse energia hidroeltrica em So Paulo, nem secogitava na possibilidade contrria de haver excesso de energia hidroe-ltrica. Acresce que tambm no se levava em conta o aproveitamentode energia da Bacia Amaznica, fato que est criando um problemamuito srio, uma vez que torna desnecessria a utilizao da energianuclear. De novo, tendo-se isto em conta, v-se que as medidas foramtomadas de maneira absurda. O governo s v, agora, obrigado a fazeruma reviso completa do problema nuclear.

    Inicialmente, o governo tinha previsto a instalao de cerca de 52reatores nucleares at o ano 2000. Agora, as previses foram modifica-das e sero instalados apenas os reatores do programa do acordo nuclearcom a Alemanha, que foram reduzidos de 52 para 8. Uma reduosubstancial!

    Angra I, quando comeou a produzir energia nuclear, no podiaaproveitar toda a sua capacidade de produo, porque estava com exces-so de energia eltrica. No por deficincia, como inicialmente tentaram

  • provar, mas por no se saber o que fazercom toda a energia do reator, uma vezque j no havia mercado nem mesmopara a energia hidroeltrica produzidapor Furnas.

    Quanto ao petrleo, foi realmenteinacreditvel o que aconteceu. Por voltade 1968, a PETROBRS chegou con-cluso de que no valia a pena explorarpetrleo no Brasil. Aparentemente, haviauma certa lgica nessa concluso. Naque-la poca, a maior parte dos poos de pe-trleo submarinos existentes no Brasil sse tornariam rentveis se o preo do barrilsubisse acima de 8 dlares. Alis, essemesmo problema de rentabilidade ocor-reu com o petrleo do Mar do Norte.Somente aps a alta do petrleo que ascompanhias petrolferas intensificaram asexploraes. Com a alta do petrleo apartir de 1973, a PETROBRS deveriater mudado sua estratgia, mas manteve aposio que havia tomado por volta de1968. Apesar dos informes sobre a pos-sibilidade de alta rentabilidade do petr-leo da Bacia de Campos, nada foi feitopara produzir petrleo no Pas. Prevale-ceu a idia de se explorar petrleo noIraque, quando esse mesmo petrleo po-deria ser produzido aqui.

    O Pr-lcool, por outro lado, tevesuas atividades muito dificultadas por umgrupo da PETROBRS, politicamentemuito influente, que era o grupo do entopresidente da Republica, o general Er-nesto Geisel, e do ministro Shigeaki Ueki. PETROBRS no interessava a imple-mentao do Pr-lcool. Por ser a favordo Pr-lcool e por fazer exigncias parao desenvolvimento da produo de l-cool, o ministro Severo Gomes acabousendo afastado de seu cargo.

    Mrio SchenbergO professor Mrio Scheaberg,

    cientista de renome internacio-nal, falecido em 10 de novembrode 1990, aos 76 anos de idade,foi professor catedrtico de Me-cnica Racional, Celeste e Supe-rior do Departamento de Fsicada antiga Faculdade de Filoso-fia, Cincias e Letras da Univer-sidade de So Paulo. Aposenta-do por fora do Ato Institucio-nal n 5, em 1969, retomou,com a anistia, Universidadecomo professor colaborador, deacordo com o seu desejo, e naqualidade de professor emritodo atual Instituto de Fsica daUSP. Na ocasio preferiu noser enquadrado como professortitular, procurando preservar sualiberdade de ensino e pesquisa.

    Nasceu em Recife, a 2 de ju-lho de 1914. Na USP, diplo-mou-se em 1935 pela EscolaPolitcnica, e em 1936 bachare-lou-se em Matemtica na l tur-ma da FFOL Em 1937 foi no-meado assistente da cadeira deFsica Terica, e em 1944 fezconcurso para a cadeira de Mec-nica Racional, Celeste e Superiorda FFCL.

    Considerado um dos maioresfsicos tericos da atualidade,escreveu inmeros trabalhos emFsica Terica, Astrofsica, Me-cnica Estatstica, MecnicaQuntica, Relatividade, Teoria

  • Chega-se concluso de que toda a programao tecnolgica noBrasil completamente catica. Cometeram-se erros incrveis. Eramfeitas estimativas ridculas em relao ao potencial hidroeltrico do Bra-sil de hoje. Dava-se como potencial hidroeltrico brasileiro o que j sehavia medido. Alguns poucos minutos de raciocnio lgico bastariampara que se dimensionasse precisamente o potencial hidroeltrico bra-sileiro. Era s comparar, por exemplo, o Brasil com outros grandespases. Dois deles seriam excelentes bases para esta comparao: os Es-tados Unidos e a Unio Sovitica. A China tambm poderia servir deparmetro. Assim, seria fcil deduzir que a produo de energia hidroe-ltrica brasileira no poderia, em hiptese alguma, ser inferior dosEstados Unidos. Primeiro, porque a rea do Brasil um pouco maior e,segundo, porque a precipitao pluvial brasileira muito mais elevadado que a dos Estados Unidos, que tm muitas regies desrticas. NoBrasil, no existe nenhum deserto, propriamente. O Nordeste brasileirono um deserto. Apresenta, sim, uma precipitao irregular. Poder-se-ia, ento, calcular que o potencial hidroeltrico brasileiro fosse, nomnimo, igual ao norte-americano. Se comparssemos com a UnioSovitica, apesar de este pas ter um territrio trs vezes maior do que oBrasil, o limite da estimativa seria da ordem de 800 milhes de quilo-watts, limite este muito mais elevado do que os 100 milhes que insis-tiam ser o mximo do nosso potencial.

    O governo, ento, ia tomando novas medidas, e, paulatinamente,subia a cifra que apresentava para o potencial hidroeltrico brasileiro.Mas essas cifras representavam, como disse, apenas o potencial medidoe no o potencial total. No se sabe ainda ao certo quanta energia hi-droeltrica o Brasil pode obter dos rios mdios, energia esta que, di-ga-se de passagem, permite a instalao de um quilowatt a preo muitoinferior ao do quilowatt de grandes usinas, como Itaipu. E se j hdiferena de preo das pequenas para as grandes usinas, o que dizer docusto da energia nuclear, que pode ser at 4 ou 5 vezes mais alto do queo custo da energia gerada por uma pequena queda d'gua? Em SoPaulo, descobriram-se reservas de energia hidroeltrica que gerariam oquilowatt a 1/4 do custo do quilowatt nuclear.

    Todos esses problemas foram causados por insensatez, por errosque no se consegue explicar, como essas estimativas erradas de nossopotencial hidroeltrico brasileiro. O mesmo ocorreu em relao ao pe-trleo. Neste caso, pode-se at tentar uma explicao: naquela poca, opetrleo rabe custava 3 dlares o barril. possvel que as reservas depetrleo no Brasil no permitissem a competio com aqueles preos.Contudo, o preo do barril de petrleo passou a custar 18 dlares, ul-trapassando, logo aps, os 30 dlares. O panorama se modificou total-

  • mente. S agora, porm, que se come-ou a explorar mais o petrleo na Bacia deCampos.

    No sei se esta a melhor soluotecnolgica. Em geral, a nossa tendncia para a utilizao de uma tecnologia com-plicada e cara. Em Itaipu, o quilowattcusta mais caro porque a usina grande ecomplicada. Nos Estados Unidos, porexemplo, 40% do petrleo que se produzso derivados ainda hoje de poos de pe-quena profundidade. Naturalmente, essespoos so muito numerosos. No Brasil,sabia-se da existncia de lugares ondeexistem poos de pequena profundidade,mas s havia interesse pela perfurao delugares de mdia profundidade ou de ba-cias submarinas.

    Em nosso pas, h uma considervelincompreenso da relao entre tecnolo-gia e economia. Qualquer pessoa de inte-ligncia mediana a quem se permitissefazer uma estimativa do potencial hidro-eltrico brasileiro poderia, dispondo dealguns dados facilmente acessveis, teruma idia de qual a ordem de grandezadesse potencial. Mas nossos tcnicos daELETROBRS no foram capazes disso.As estimativas que apresentam so rid-culas, se comparadas realidade.

    Um fato curioso que a primeiracifra mais realista sobre esse potencial foipublicada por Maurcio Schemann, apster sido demitido da ELETROBRAS.Nesta ocasio, ele publicou uma estima-tiva de que o potencial hidroeltrico bra-sileiro deveria estar por volta de 700 mi-lhes de quilowatts. Mas mesmo esta es-timativa pode ser considerada baixa, secomparada diretamente com a realidadeda Unio Sovitica ou da China. Isto

    Quntica do Campo, Fundamen-tos da Fsica, alm de muitos tra-balhos em Matemtica, princi-palmente sobre as lgebras daTeoria Quntica. Em 1938 foipara a Universidade de Roma,onde trabalhou com o professorEnrico Fermi (Prmio Nobel deFsica de J.938), A seguir, nomesmo ano, transferiu-se paraZurique, onde trabalhou com oprofessor W. Pauli (PrmioNobel de Fsica de 1945) e, coma aproximao da guerra, em1939, foi para Paris, onde tra-balhou com o professor F.Joliot-Curi (Prmio Nobel deQumica de 1935) e com o pro-fessor Perrin, Em 1940, comuma bolsa da Fundao Gugge-nheim, foi para Washington,onde trabalhou em Astrofsicacom o professor George Gamow.Em 1941, foi membro do "Ins-titute for Advanced Studies" dePrinceton e, logo a seguir, tra-balhou em Astrofsica com oprofessor S. Chandrasekhar (Pr-mio Nobel de Fsica de 1984),no Observatrio de Yerkes, Em1944, retornou ao Brasil paraprestar concurso para a cadeirade Mecnica Racional, Celeste eSuperior, permanecendo no Pasat 1948, quando partiu nova-mente para a Europa, ficandocinco anos em Bruxelas, realizan-do pesquisas em Mecnica Esta-tstica e em Raios Csmicos.Nesta ocasio tambm trabalhoucom o professor Prigogine (Pr-mio Nobel de Qumica de 1978).

  • suficiente para comprovar que o nosso potencial tem de ser, no mnimo,dessa ordem, graas no s ao tamanho do Pas, mas tambm ao fato deele ser favorecido por precipitaes pluviais muito intensas.

    A planificao econmica nacional no tem uma boa estrutura emsua base. Houve tempo em que a estatstica internacional mostrava que,quando um pas comea a se industrializar, o consumo de energia el-trica cresce mais rapidamente que o Produto Nacional Bruto (PNB).Porm, vencida a etapa inicial, o consumo de energia eltrica crescemenos rapidamente que o PNB. Recentemente, verificou-se que o con-sumo de energia hidroeltrica podia at cair em relao quele ndice: o que j est acontecendo no Brasil.

    Esse fato no novidade. Foi um dos motivos que desestimularamos norte-americanos do programa nuclear. Pensavam inicialmente que,por volta do ano 2000, iriam precisar da maior parte de energia pro-duzida por reatores. Contudo, quando o consumo de energia eltricacomeou a cair, comearam a se desinteressar pela instalao de novosreatores. Chegaram concluso de que podiam economizar muito daenergia eltrica que estava sendo desperdiada. Logicamente, na medidaem que o custo da energia eltrica vai subindo, comea-se a economizar:no se gasta tanta energia eltrica e to facilmente como antes.

    Esses dados de economia no podem, porm, ser tomados de umaforma bruta, sem qualquer tentativa de verificao cuidadosa, comoacontecia. Tornou-se uma espcie de lei da economia o fato de que oconsumo de energia eltrica tem de crescer mais do que o PNB, ou tantoquanto ele. Alguns anos depois, as estatsticas demonstravam a inver-dade dessa lei, desse dogma. difcil entender como tcnicos no as-sunto podem confundir o potencial eltrico medido com o potencialeltrico total do Pas.

    H alguns anos, a Folha de S. Paulo publicou um artigo que, pormotivos bvios, no era assinado. O autor, que se dizia um dos princi-pais responsveis pela ELETROBRS, afirmava que, na fase de plane-jamento do programa nuclear, havia uma confuso: os clculos mos-travam naquela ocasio e isso verdade que a energia nuclearpode, em certas circunstncias, competir em preo com a energia eltricagerada a partir da queima do petrleo. o caso da Frana, por exemplo.Cerca da metade de sua energia eltrica produzida por reatores nuclea-res porque este processo sai mais barato para o pas do que a produode energia eltrica pela queima do petrleo.

    O fato econmico era, ento, este: a possibilidade de a energia

  • nuclear competir em preo com a energiaeltrica gerada a partir da queima do pe-trleo. Certamente os tcnicos da ELE-TROBRS confundiram energia hidroe-ltrica com energia termoeltrica, maisespecificamente com termoeltrica depetrleo. Ou ser difcil saber que outrotipo de raciocnio os poderia levar con-cluso de que a energia nuclear poderiacompetir com a energia hidroeltrica?

    Acredito que o autor do artigo sejarealmente ou tenha sido um dos princi-pais dirigentes da ELETROBRS, comodiz ser. O que importa, no momento, que, por causa de erros como este, esta-mos enfrentando um programa nucleargigantesco, que custa dezenas de bilhesde dlares.

    Infelizmente, nossos governantes,principalmente os economistas, no de-monstram sequer sinais de mentalidadecientfica. Albert Einstein, alis, escreveuum ensaio brilhante sobre os economis-tas, cuja traduo para o portugus devesair em breve. Nesse ensaio, ele diz que ogrande erro dos economistas o de pen-sarem que a Economia Poltica umaCincia como a Fsica ou a Astronomia.Segundo Einstein, os grandes problemaseconmicos no so resolvidos pela Eco-nomia Poltica, e sim por decises pol-ticas. Por outro lado, estes problemaseconmicos so gerados, tambm, pordeterminadas decises polticas. Assim,na verdade, a Economia Poltica no uma Cincia: as decises so tomadaspelo governo, em determinadas ocasies,sem previses, a partir de uma srie deelucubraes que, na realidade, no tmcunho cientfico. Trata-se de uma pseu-docincia: no possui nenhuma base emexperincias realizadas e comprovadas.

    Mrio Schenberg participouativamente dos problemas pol-tico-econmicos brasileiros. Ini-ciou em So Paulo a campanha"O Petrleo Nosso", lutoupela defesa dos nossos recursosem minerais atmicos e se en-volveu na luta ecolgica contra ainstalao de centrais nuclearesno Pas. Foi membro do PartidoComunista Brasileiro (PCB).Foi, tambm, um conceituadocrtico de arte, participando ati-vamente da avaliao do movi-mento artstico em So Paulo,tendo escrito numerosos ensaiossobre o assunto. Defendeu comgrande entusiasmo a idia dacriao de um Instituto de Es-tudos Avanados na USP, tendoparticipado ativamente dos es-tudos preliminares para a criaodo mesmo na Associao dosDocentes da USP (ADUSP), em1982. Depois da fundao doIEA, em 1986, j doente, Schen-berg participou de conferncias edebates realizados no mesmo.

    O texto "A formao da men-talidade cientfica" transcreve apalestra feita por Mrio Schen-berg no dia 16 de maio de 1982,no Salo Nobre do ObservatrioNacional. Ele no pode ser cor-rigido e atualizado.

    * Alberto Luiz da Rocha Barras fsicoterico e professor do Instituto deFsica da USP. Foi assistente do pro-fessor Mrio Schenberg na ctedra deMecnica Racional, Celeste e Superiorda FFCL-USP.

  • Foram estas equipes de economistas do governo equipes ruins que fizeram todos esses clculos sobre a falta de energia hidroeltricae sobre a necessidade da energia nuclear, passando-os, em seus depoi-mentos, para Delfim Neto um dirigente, um economista cujos co-nhecimentos de Economia no esto em julgamento, mas cuja inteli-gncia tem de ser colocada em dvida, depois de todas essas realizaes.

    Em nosso pas, toda a programao cientfica foi, em ltima anlise,orientada dentro de tal esquema de desenvolvimento econmico. Orga-nizaes de planejamento cientfico, como o CNPq e a FINEP so, narealidade, subordinadas aos economistas ou pessoas a elas ligadas.

    Por tudo isso, sempre me pergunto se no Brasil se est fazendo,realmente, algo de til em matria de pesquisa cientfica. Uma pesquisano deve deixar de ser levada adiante pela simples razo de no ajudardiretamente a resolver determinados problemas. necessrio criar umcerto clima intelectual no Pas: a realizao de pesquisas cientficas cer-tamente vai mudar a maneira de pensar das pessoas. Ser, ento, possveldesenvolver um pensamento muito mais objetivo, muito mais realistado que esse tipo de pensamento fantstico que reina na vida nacional,orientando a administrao brasileira.

    Comecei a me preocupar com esse problema ainda no tempo deJuscelino, que era meu amigo pessoal. Gostava dele e no lhe fazia opo-sio poltica, mas j comeava a sentir no ar algo de insensato. Um dosfatos que mais me surpreenderam foi, por exemplo, a programao deBraslia.

    Enaltecia-se Braslia. E a grande glria de Braslia estava no fato, napoca considerado fabuloso, de ela ser a primeira cidade do mundoconstruda escala do automvel. Qualquer deslocamento mnimo emBraslia da ordem de 5 km. Evidentemente, no se pode andar a p.

    Ora, em uma cidade que havia sido planejada para uma populaode 500 mil habitantes, isto me pareceu muito estranho. Eu estava habi-tuado com cidades desse tamanho porque, na Europa, tinha vivido emvrias delas, como Zurique e Bruxelas, que, naquela poca, tinham umapopulao de 500 mil habitantes. As distncias raramente passavam deuns poucos quilmetros, e, por isto, sempre se ia a p de um pontoqualquer da cidade at outro, o que, alis, era extremamente benficopara a sade e para o bolso.

    Aqui, aconteceu o contrrio: quando se construiu uma cidade para500 mil habitantes, imediatamente ela teve de ser feita escala do au-tomvel. No consegui de ningum uma explicao para este fato. O

  • ideal era que Braslia fosse construda exatamente escala do pedestre,e no do automvel. Quando o petrleo comeou a subir muito depreo, Braslia foi, naturalmente, uma das cidades mais atingidas domundo.

    Existe, no Brasil, uma irracionalidade bsica. Por isso, a principalfuno dos estudos cientficos aqui deve ser, exatamente, a de diminuiresta irracionalidade geral. O grande erro apresentado como a granderealizao. No caso de Braslia, o formidvel era o fato de a cidade tersido construda escala do automvel, fato que, na verdade, representao seu calcanhar-de-aquiles, pois torna a cidade difcil e complicada parase viver. Talvez uma anlise sociolgica ou histrica possa dar a expli-cao para esses acontecimentos estranhos que aqui ocorreram.

    Creio, contudo, que no apenas nosso pas que prima pela falta derealismo em suas realizaes. Tenho a impresso de que a Argentinatambm tem esse defeito, talvez num ponto ainda mais exagerado. Bue-nos Aires, por exemplo, foi construda com o objetivo de ser uma se-gunda Paris, e no havia nenhum motivo razovel para se ter essa con-cepo.

    A Argentina talvez tenha sido o pas latino-americano que maissofreu influncia cultural de pases europeus, e mesmo dos EstadosUnidos: da o esprito de imitao. Em vez de se procurar desenvolvera cultura nas universidades e nos institutos de pesquisa dentro de umaperspectiva nacional, procurava-se a imitao, que no mais das vezes notem nenhuma relao com a realidade nacional e no desenvolve nosindivduos um pensamento realista, mas sim um pensamento mgico,fantstico. O fantstico, nas artes, muito bonito, mas certamente no a melhor base para a Economia. No pode trazer resultados positivos.

    O desenvolvimento de um esprito cientfico brasileiro sadio muito importante. Pode ser mesmo uma questo de sobrevivncia. preciso estimular o desenvolvimento de grupos de pessoas que sejamcapazes de enfrentar realisticamente os problemas sem copiar o que sefaz em outros pases. Nem sempre a cpia adaptvel ao Brasil.

    A indstria automobilstica brasileira um bom exemplo: no eramuito difcil chegar racionalmente concluso de que ela no estavaestruturada de modo a ter um futuro brilhante. Alis, o nico pas domundo onde a indstria automobilstica possui um futuro brilhante oJapo. O Japo interpretou os problemas desta indstria de um modooriginal, diferente do modo norte-americano, e caminhou em direototalmente diversa. No Brasil chegou-se ao mximo em termos de dfi-

  • cits: tcnicos alemes chegam a afirmar que os prejuzos da indstriaautomobilstica brasileira so maiores que os da alem.

    Vale lembrar que toda esta credibilidade dada indstria automo-bilstica resultou em sacrifcio das ferrovias e do transporte martimo.Informaram-me que, no Estado de So Paulo, h alguns anos, gasta-va-se, por ano, 5 bilhes de dlares com o automvel. O governo, porsua vez, era obrigado, tambm, a gastar uma cifra da ordem de 2 ou maisbilhes de dlares por ano em grandes obras de engenharia que facili-tassem o fluxo de veculos. No entanto, s muito recentemente, e depoisde uma enorme resistncia, que se comeou a pensar no metr. SoPaulo j deveria ter tido o metr, que est sendo construdo agora, desde1912.

    Volto a afirmar que em nosso pas uma das necessidades mais pre-mentes o desenvolvimento de uma mentalidade cientfica, no sentidode criao de um pensamento realista. No no sentido da criao de umascience fiction. Alis, os Estados Unidos, ptria da science fiction, estorapidamente entrando na berlinda da Economia.

    So muito importantes iniciativas cientficas como a que se apre-senta aqui hoje: a de se fazer um Museu de Cincia. Um Museu deCincia no deve ser como um Museu de Arte, por exemplo, muitoembora um Museu de Arte tenha funes mais elevadas do que a quenormalmente a ele se atribui, qual seja, a do indivduo ver quadros bo-nitos. Pode-se aprender muito sobre a natureza humana, em um Museude Arte, atravs das obras.

    Um Museu de Cincia deve visar atividades educacionais muitoamplas, o que no significa a necessidade de instalaes gigantescas.Com o auxlio dos meios de difuso programas de televiso, filmes,videocassetes, etc. , pode-se contribuir muito para debates pblicos,conferncias, etc., fazendo penetrar na cultura a essncia do pensamentocientfico, que o que se chama de pensamento realista, sem falsas su-posies.

    Tomemos a reforma universitria, por exemplo. Ser que a nossauniversidade, depois da reforma universitria, tornou-se eficiente paradesenvolver um pensamento brasileiro? Creio que muitos setores pio-raram, setores que antes eram at razoveis. Confundiu-se, infelizmente,a pesquisa cientfica com a elaborao de teses. E, no entanto, no seexige de uma tese que ela realmente traga uma contribuio para aCincia. A tese um instrumento para se conseguir um ttulo, especial-mente o doutoramento.

  • Em 1938, na Europa, praticamente no havia esse sistema de dou-toramento, que alis inexiste, at hoje, na Itlia e na Frana. Em nenhumlugar onde estudei ou trabalhei em pesquisa cientfica atuei em algunsdos mais importantes centros cientficos da Europa , me foi exigido odiploma ou me foi perguntado se eu tinha tese de doutoramento.

    Em Roma, quando quis trabalhar com Fermi, dirigi-me a seu assis-tente Fano, que prontamente se disps a falar com Fermi sobre minhaaceitao. Ficou acordado que eu faria um seminrio, que uma espciede trabalho prprio a partir do qual seria ou no aceito. Fermi no mepediu diploma algum. Em Zurique, ocorreu o mesmo, assim como emParis. Fazia-se o seminrio e, conforme o resultado, se era aceito ou no.Atravs do seminrio era avaliado o nvel cientfico do indivduo.

    A primeira vez que me perguntaram se eu era doutor foi em uminstituto nos Estados Unidos (naquele tempo no havia esse ttulo noBrasil), mas foi s para saberem se meu nome seria colocado no quadrocomo Dr. ou como Prof. Schenberg. No fazia, realmente, muita dife-rena: era simplesmente uma questo de regulamento, de ordenao. NaEuropa e na Rssia, instituies de grande responsabilidade cientficaeram entregues a pessoas competentes, que no possuam ttulos. Nose dava importncia a ttulo universitrio naquele tempo. Quando, naEuropa, resolveram construir um ciclotron, escolheram um noruegus,tcnico em mecnica, que no era formado, mas era o mais competente.

    No Brasil, a questo do doutoramento uma das coisas mais ter-rveis que esto acontecendo. Fiquei contente de poder comprovar naltima reunio da SBPC que o Professor Pavan, que de uma readiferente da minha, tinha a mesma impresso. A maior parte das tesesde doutoramento no so realmente objetivas. Quando me mandavam,na Europa, fazer um trabalho, com um seminrio, era um trabalho ob-jetivo, sem divagaes, voltado para o esclarecimento de um determi-nado problema. Em Roma, Fermi me encarregou de fazer um estudobastante concreto e objetivo: pesquisar a passagem dos raios csmicosatravs da atmosfera e refazer um prolongamento das integraes dasEquaes de Schrdinger. Ainda no se sabia muito bem o que queacontecia quando os raios csmicos atravessavam a atmosfera. Querdizer, os trabalhos sempre eram sobre problemas concretos. Tratava-se,realmente, de fazer Cincia.

    H uma diferena muito grande entre fazer tese e fazer Cincia.Ns fazamos Cincia. Muitas vezes os trabalhos nem eram publicados.Fermi no era muito favorvel publicao de trabalhos. Achava que a

  • pessoa devia publicar muito pouco. Devia, sim, ter muitas idias eguard-las, escritas, em sua gaveta, e no public-las toa. Devia publi-c-las apenas quando fossem ajudar o desenvolvimento da Cincia.

    Lembro-me, por exemplo, de um trabalho do Dirac, que havia pas-sado despercebido. Quando procuraram generalizar a Equao de Diraca partir de todos os valores possveis dos nveis orbitais, perguntei aFermi o que ele achava daquele trabalho. Disse-me que parecia muitointeressante, mas no estava totalmente seguro se seria mesmo uma boaidia. Realmente, agora, no parece que haja um interesse especial em sefazer um trabalho sobre equao dos movimentos para todos esses va-lores. Fermi achava que se devia nortear certos trabalhos para que pu-dessem realmente ajudar o desenvolvimento da Cincia. Enfim, os fatoseram encarados de maneira diferente. Hoje em dia, est-se perdendo osenso do que fazer Cincia! Os trabalhos de tese so efetuados j sevisando a publicao.

    Comenta-se que as universidades americanas medem a produocientfica do indivduo na balana, pelo peso mdio dos trabalhos pu-blicados. E este peso mdio que d o valor cientfico do mesmo. O queimporta fazer um grande nmero de trabalhos, mesmo que estes noapresentem nenhuma contribuio para a Cincia, para se ter um con-trato renovado. E aqui repete-se mais ou menos o que se est fazendol, mudando uma vrgula ou outra. No h uma mentalidade verdadei-ramente cientfica.

    Dizem que uma vez um jornalista ingls, entrevistando Landau,perguntou-lhe quantos bons fsicos havia na Unio Sovitica. Landaurespondeu que devia haver uns trs. O jornalista redargiu que a situa-o da Fsica na Unio Sovitica devia estar pssima, pois havia apenastrs fsicos bons. Prontamente, Landau respondeu que tambm na In-glaterra certamente no havia muito mais que trs.

    O Brasil se lanou no mundo da Cincia quando predominavamessas idias. Por volta de 1949, W. Pauli me disse que no lia maistrabalhos de fsicos brasileiros, pois nada havia que se aproveitasse. Huma massa muito grande de publicaes, mas as pessoas publicam maispara ter o nome citado por outrem. H uma espcie de inflao donmero de trabalhos e uma deflao de idias cientficas. incrvel onmero de trabalhos que so publicados na rea da Fsica. Mas, se for-mos verificar o nmero de idias novas que surgiram nela, vamos cons-tatar que so bem poucas.

    Sobre Mecnica Estatstica, por exemplo, no h nada de novo noslivros que so publicados atualmente. Esta "inflao" , em grande parte,

  • exigida pelos cursos de doutoramento. Mas o fato de no haver umaproduo de idias novas muito negativo em um pas como o nosso,que no tem uma estrutura cientfica slida. Outro pas, de estruturacientfica mais slida, talvez pudesse suportar esse esquema de doutora-mento.

    O mais difcil, realmente, a transmisso de um verdadeiro espritode pesquisa cientfica. Dificilmente se adquire esse esprito atravs daleitura de livros, por exemplo. No se consegue, simplesmente comleituras, descobrir quais os elementos realmente importantes e o que realmente essencial. Enchemo-nos de conhecimentos que, na realidade,no tm grande importncia.

    A discusso dos problemas cientficos brasileiros extremamenteimportante. Esta discusso deve ser feita no s em crculos restritos,mas tambm em crculos mais amplos. O que acontece com o nossosistema de doutoramento? Muitas evidncias nos levam a crer que acapacidade criativa seja mais forte em um jovem do que em uma pessoacom mais de 30 anos. Quando o indivduo chega aos 30 anos, entranuma faixa de criatividade menor do que a que tinha com 17, 18 ou 20anos: uma questo de gentica. Porm, o indivduo dificilmente faz odoutoramento com menos de 32 anos. E ainda perde anos em que teriamaior criatividade com a tese. Anteciparam a idade do civismo, queantes era de 21 anos, porque se sabe que uma pessoa de 18 anos temmais vitalidade que outro de 21. E aos 21 anos ele tem mais vitalidadedo que ter aos 30, e assim por diante. O ideal que a pessoa aproveiteo tempo em que possui maior vitalidade para realizar suas criaes maisimportantes.

    Newton, nos meses em que passou na fazenda da famlia, a durantea peste que assolava Cambridge, em 1665, teve a idia do Clculo Dife-rencial e Integral, da Teoria da Gravitao e da ptica. E tinha apenas24 anos de idade. Depois, foi desenvolvendo essas idias pelo resto davida. s vezes, guardava algum plano sem public-lo, pois no haviaobtido resultados eficazes em seus experimentos. Mas o essencial de suasidias ele j tinha aos 24 anos de idade.

    O caso de Einstein ainda mais impressionante: teve a primeiraidia sobre a Teoria da Relatividade aos 15 anos de idade. Imaginou o que era impossvel naquela poca que um observador estivesse semovendo com a velocidade da luz. Pensou no que aconteceria com esseobservador, em como ele veria uma onda eletromagntica. Se ele esti-vesse se movendo com a mesma velocidade da luz, veria a onda parada.Como se sabia que uma onda eletromagntica no pode ficar parada emrelao a nenhum sistema de referncia, em relao a nenhum observa-

  • dor, ele comeou a ter dvidas sobre a compatibilidade da eletrodin-mica com a concepo ento existente de espao e de tempo.

    Com 15 anos de idade, ele j germinava essas idias. Gauss foioutro que teve idias importantes ainda extremamente jovem. O ideal,realmente, aproveitar essa energia, essa criatividade maior dos jovens.

    No Brasil se faz o contrrio. Desperdiam-se os melhores anos dosindivduos para a pesquisa cientfica. No se pode preparar uma pessoapara a pesquisa cientfica: s se aprende fazendo. Tem-se de fazer pes-quisas cientficas para aprender a faz-las. No se aprende e depois seaplica: ele aprende enquanto se faz. Eu s sei o que eu fiz. Do restotenho apenas informaes. Informao sempre til t-las, sem dvida,mas o importante mesmo saber, conhecer as coisas. E , insisto, sfazendo que se venci a saber. Os grandes cientistas no so pessoas muitoestudiosas e poucos so os que desenvolvem idias alheias. Os grandescientistas so altamente criativos, mas, s vezes, de uma ignorncia im-pressionante.

    O caso de Einstein fenomenal. Einstein recriou para si a MecnicaEstatstica, mas desconhecia totalmente certos fenmenos, por exemplo,desconhecia o movimento browniano descoberto em 1827, ou seja,mais de um sculo antes. Veio a redescobrir o movimento nas suas pr-prias pesquisas. Foi quando comeou a fazer raciocnios sobre MecnicaEstatstica que tomou conhecimento dos estudos de Brown. Einsteinno sabia que j haviam sido feitos muitos trabalhos experimentais. Foia partir de suas prprias pesquisas que chegou primeira demonstraodireta da existncia de tomos e molculas. E, no entanto, pouco ounada tinha lido sobre Mecnica Estatstica. Reconstruiu a teoria porconta prpria, repito.

    Realmente, todo grande cientista no l muito o trabalho dosoutros. Fermi, por exemplo, procurava, atravs de suas experincias,chegar a concluses a que outros j haviam chegado, tentando sempredescobrir como o trabalho havia sido feito. Tomava um conhecimentosuperficial do assunto e tentava reconstruir o trabalho. Por isso, seusseminrios eram deslumbrantes, sempre um algo novo.

    Os cientistas realmente no querem muita informao. Querem, deum certo modo, fazer certas atividades que estimulem a imaginao.Somente agora, aps trs sculos, que se est compreendendo o me-canismo de pensamento de Isaac Newton. Ele se estimulava com filo-sofia hermtica. Suas grandes idias cientficas nasciam da mesma. Sa-be-se que existem dezenas, centenas, talvez uns 300 trabalhos hermti-cos, copiados por seu prprio punho... Por exemplo, as idias de fora

  • de atrao e de fora de repulso ele as tirou da Tbua de Esmeralda, deHermes Trismegisto. Newton tinha o mesmo mecanismo de pen-samento que os gregos, como Empdocles, por exemplo. Eletransformou as foras de dio e de amor, estabelecidas por esse filsofogrego, em foras atrativas e repulsivas, respectivamente.

    Na ltima edio da Enciclopdia Britnica, h um artigo sobreIsaac Newton, mostrando como algumas das suas grandes idias cien-tficas teve uma certa origem no Hermetismo ou na Cabalstica. Gos-taria muito de saber de onde ele tirou a idia de fluxo e a do ClculoDiferencial, e o que o incentivou a procurar tais respostas para essasidias.

    Todo cientista criador procura incentivar a sua imaginao, e nosobrecarreg-la com informaes detalhadas de trabalhos de outrem.Fermi, como j disse, s vezes passava anos tentando recriar um traba-lho. Seguia seu prprio caminho para chegar ao mesmo resultado. En-fim, todas estas idias precisam ser muito discutidas. Tenho, ainda,muitas dvidas sobre elas. H pessoas de outras reas com essas mesmaspreocupaes.

    Voltando universidade brasileira, vejamos alguns acontecimentosincrveis que nela ocorrem. Por exemplo, o Prof. Newton da Costa, olgico, uma das maiores celebridades da rea no Brasil, d aulas naMatemtica da Universidade de So Paulo. Convidado para ir Polnia,onde publicaram um nmero da revista Studia Lgica em sua homena-gem, Newton da Costa encontrou uma resistncia estpida sua via-gem. Na Congregao do Instituto de Matemtica foi censurado peloscolegas porque, em vez de se preocupar com as aulas, estava se preocu-pando em manter contatos internacionais. Parece que lhe negarammesmo a licena para viajar. incrvel e lamentvel que o nico verda-deiro lgico-matemtico do campus tenha sido censurado pelos outrosporque estava se preocupando em criar Lgica. Acrescente-se que ele um dos maiores lgicos do mundo e que a Polnia o pas da Lgica.Mas seus colegas acharam ruim que ele fosse. A partir de ento, pediusua aposentadoria (1).

    A experincia de outros pases nos mostra como importante apreocupao com as universidades. Tem que haver determinadas socie-dades, associaes e instituies que estimulem o interesse pela Cincia,que estimulem uma certa compreenso da Cincia. Compreender aCincia no somente conhecer os resultados: saber como algo foidescoberto ou o que significa realmente. As instituies brasileiras de-viam operar dentro desta filosofia de estmulo pesquisa j em nvel deescolas secundrias ou, pelo menos, no comeo do curso universitrio.

  • So absolutamente necessrias as instituies onde se possa adquiriruma idia mais ntida do que seja Cincia que est longe de ser sim-plesmente publicar. Pode-se fazer um sem-nmero de publicaes semse chegar a qualquer concluso efetiva. Bunsen, por exemplo, foi umcientista muito prestigiado no sculo passado. Escreveu mais de 500obras. Quando ouvimos falar em Bunsen, imediatamente nos lembra-mos do "Bico de Bunsen" em primeiro lugar e, em segundo, os que somais eruditos lembram-se que Bunsen ajudou Kirchhoff a descobrir aEspectroscopia. Mas, eu duvido que a idia tenha sido de Bunsen. Emcompensao, h autores de uma nica publicao cientfica, como, porexemplo, o indiano S. N. Bose, autor da Estatstica de Bose, uma dasgrandes descobertas da Fsica do sculo XX. No ouvi falar de nenhumoutro trabalho dele. Mesmo este trabalho s foi publicado porque ele oenviou ao Einstein para uma avaliao. J havia mandado antes para umoutro cientista, que no havia gostado. Einstein, ento, que achava ge-nial a idia de Bose, publicou o trabalho, enviou-lhe uma cpia e con-tinou a desenvolver a pesquisa. So idias fundamentais para a FsicaModerna. Tanto que as partculas provenientes das estatsticas de Boseso chamadas Bosons. As vezes um indivduo autor de um trabalhonico, porm revolucionrio. No digo que os livros de Bunsen sejaminteis, mas certo que no deixaram marcas na Cincia.

    O verdadeiro talento cientfico est em ter intuio para deduzirquais so os fatos que devem ser pensados e os que no devem. Quandofui trabalhar com George Gamow, nos Estados Unidos, ele mandou queestudssemos as Supernovas. As Supernovas so estrelas que se tornamextremamente luminosas e de grande tamanho, apesar de sua tem-peratura superficial no ser muito alta. Havia a hiptese de que issoocorria devido a uma exploso que, sem nenhum mecanismo aparente,se dava no interior da estrela. Gamow partia do trabalho de um alemo,escrito em 1928, de Mecnica Estatstica sobre eltrons e protons emalta temperatura. Mostrei ao Gamow que o trabalho, que havia sidoescrito antes de se ter a idia de neutrino, omitia, logicamente, esteelemento importante. O neutrino, quando h uma emisso, transportaa maior parte da energia termonuclear. Gamow, ento, percebeu que euchegara soluo do problema: somente o neutrino poderia ocasionaruma exploso estelar, porque, conseguindo atravessar uma massa muitogrande de matria, esfria o centro da estrela, que est muito quente,produzindo o colapso que ocasiona uma expanso da camada externa.Ento, publicou-se esse trabalho, entre muitos outros publicados napoca. O trabalho no teve uma repercusso inicial muito favorvel.

    Em 1960, no entanto, Philip Morrison veio a So Paulo e nos en-

  • contramos para conversar. Viajara a So Paulo especialmente para sabercomo que eu havia tido a idia do neutrino, numa poca em que nin-gum pensava nisso. Mas o prprio Gamow tinha feito vrios trabalhossobre a Teoria dos Raios Beta na Emisso de Neutrinos. O Landautambm havia estudado o assunto. Contudo, curiosamente, o neutrino,digamos assim, no fazia parte do mundo ideolgico deles, como faziaparte do meu.

    Foi em 1934, quando eu ainda era estudante em So Paulo, e apsuma conferncia do Fermi sobre a Teoria dos Raios Beta na Emisso deNeutrinos, que a idia dos neutrinos me entrou na cabea. Fiquei im-pressionado. No sabia nem o que era, pois no sabia nada sobre FsicaQuntica. Depois, em Zurique, em contato com o Pauii, falamos sobreneutrinos.

    Assim, de certo modo, o neutrino era uma idia somente dos meusmestres que eu, sem saber como, captei e entronizei. E diante daqueletrabalho, imediatamente notei que estava faltando o neutrino. No en-tanto, em 1960, Morrison achava incompreensvel o fato de que umapessoa pudesse ter tido, em 1940, a idia de introduzir o neutrino emAstrofsica. A verdade que, naquela poca, o neutrino no era umarealidade para mim, nem para a maioria dos fsicos tericos. Morrissonme informou, ento, que tinha sido comprovada a existncia de neutri-nos experimentalmente. O neutrino haveria de se transformar em umfator bsico da evoluo cosmolgica. E eu no podia lhe dar explica-o que ele queria, pois para mim a descoberta tinha sido natural, es-pontnea.

    A Cincia possui muitos mistrios. Eu sabia que no processo betahavia a emisso de neutrinos. Enfim, era um processo beta ou beta-in-verso que estava ocorrendo. Tive essa intuio provavelmente porqueera jovem. Os outros pesquisadores j estavam com a cabea repleta demuitas outras idias. Um jovem pode, atravs dos poucos conheci-mentos que tem, dar importncia a coisas que passam despercebidaspara outros que tm muito mais conhecimentos.

    Enfim, o processo cientfico um processo complexo.E lamen-tvel o que est acontecendo no Brasil em relao criao: prende-se ojovem at depois dos 30 anos, desperdiando-se sua vitalidade. neces-srio estudar uma maneira de melhorar essa situao.

    Outro absurdo que o CNPq e outras instituies similares so-mente concedem bolsa para o Exterior a quem tenha doutoramento. Ocerto seria conceder bolsa ao candidato, se ele for inteligente, mesmoantes de ele completar a licenciatura. Quanto mais rapidamente ele pu-

  • der ir para um centro de criao cientfica, melhor. O que no se pode segur-lo no Brasil at os 30 anos, quando talvez a sua inteligncia jtenha sido corrompida e sua cabea j esteja repleta de muitas outrasidias.

    Certa vez, um rapaz muito inteligente veio me procurar. Na poca,ele havia estudado Matemtica por conta prpria, mas ainda no haviafeito o curso de ps-graduao, nem mesmo de graduao. Agora ele professor. Eu o aconselhei a ir para a Europa. A melhor soluo para umrapaz inteligente estar em um lugar onde ele possa captar as idiascientficas vivas e se entrosar com elas. Sem dvida, foi uma medidainfeliz do CNPq a de exigir o doutoramento para a concesso de bolsa.

    A Histria da Cincia o nico veculo atravs do qual podemoster conhecimento de certos fatos. Pelos estudos dos grandes cientistasou pelo contato direto com ele podemos ter uma idia do que seja real-mente fazer Cincia.

    Outra questo que deve ser repensada a dos livros. Deve-se pro-curar estudar em livros escritos por grandes cientistas. Os livros didti-cos, em geral de autores norte-americanos, contm informaes esgo-tadas. O conceito cientfico uma idia viva, tem uma certa dinmicaprpria, impossvel de ser passada atravs dos livros didticos. Acresceainda que, freqentemente, eles contam a Histria da Cincia de formaerrada.

    Lembro-me que li em um livro didtico que Einstein havia ela-borado a Teoria da Relatividade baseado na experincia de Michelson eMorley. Einstein era, no entanto, extremamente minucioso e anotavaem seus dirios todas as suas teorias e pensamentos. Nos seus dirios,contudo, no se encontra nenhuma referncia experincia de Michel-son e Morley. Einstein teve a primeira idia da Teoria da Relatividadeaos 15 anos e, nessa poca, no conhecia tal experincia. Parece mesmoque tambm no veio a conhec-la antes de formular a RelatividadeEspecial.

    Einstein era muito desinformado. Por exemplo, ele conhecia umdos trabalhos de Hertz sobre a Eletrodinmica, mas no lera o artigo emque ele havia introduzido essa teoria. No entanto ele redescobriu estaidia sozinho. Criar tambm requer uma certa audcia: pensar por contaprpria e no simplesmente imitar o que est na moda e fazer o quetodos os outros esto fazendo.

    E importante que existam no Brasil alguns autnticos grandes cien-tistas. No podemos nem avaliar o quanto esse "fermento" iria mudar a

  • vida brasileira, a maneira de interpretar os acontecimentos. O funda-mental ter uma viso criativa dos fatos: saber muito sobre determi-nados assuntos no tem muita importncia. Um grande cientista podeat ser muito ignorante. Alguns, me parece, eram at analfabetos. Soubeque um grande cientista ensinou Fsica a seu filho, mas deixou-o anal-fabeto, pois a alfabetizao poderia ter um efeito deletrio sobre suainteligncia.

    As pessoas que tiveram maior influncia sobre a Histria da Hu-manidade foram analfabetas. Homens como Cristo, Buda e outros nosabiam 1er. Quanto a Scrates, tem-se alguma dvida, mas supe-se queele era analfabeto: ele nunca escreveu nada, s falava. Parece que Maomtambm era analfabeto. O maior poeta alemo da Idade Mdia, confor-me relato de Thomas Mann, em A Montanha Mgica, era analfabeto.Carlos Magno, que foi talvez o maior estadista da Idade Mdia, eraanalfabeto. E tambm o era o famosssimo Imperador Aska, homeminteligentssimo, criador do Imprio da ndia, que tinha, porm, umapureza maior: no se preocupava muito com as opinies dos outros.

    Enfim, a civilizao moderna d muito valor a determinados valo-res que, no fundo, no passam de instrumentos de massificao, deses-timulantes da inteligncia. Substitui-se o trabalho criativo pelo no-cria-tivo. E, no entanto, tudo o que se faz com criatividade , qualitativa-mente, muito superior ao que se faz por mera erudio.

    Essas idias servem como tema para discusso, pois so completa-mente contrrias aos valores hoje estabelecidos e consumidos: as pessoastm de 1er muito e escrever muito. O importante saber escrever bem efalar bem, e no muito. Se eu puder falar muito e bem, tanto melhor.Caso contrrio, melhor que se fale pouco e que se escreva pouco.

    As universidades inglesas so exemplares. No so muito grandes,pois os ingleses no querem que sejam. curioso que a Universidade deOxford, que existe h 800 anos, no tenha regulamento at hoje. Dprazer, realmente, visitar uma universidade inglesa. Se se deseja falarcom determinado professor, pode-se facilmente manter com ele o con-tato desejado. Isto , consegue-se falar com pessoas que so normal-mente consideradas inacessveis. At 1968, era assim em toda a Europa.Hoje, infelizmente, j no se encontra em muitos lugares este espritoque se conservou na Inglaterra.

    Outro aspecto do estudo cientfico deve ser abordado. Se algumdeseja saber sobre a Mecnica Quntica, por que no ir diretamente aolivro de Dirac, ao invs de comear a 1er introdues Mecnica Qun-tica de pessoas que no a entenderam?

  • Esses livros contm pura Matemtica. Questes, por exemplo, decomo se encontram os auto-valores da Equao de Schrdinger tm, emgeral, nesses compndios, destaque especial. Isso no Fsica, Mate-mtica. Mas se se quer obter o esprito da Mecnica Quntica, como elase formou, seria melhor que se lesse Dirac. Lendo os originais e conhe-cendo esses grandes cientistas, descobrimos aspectos interessantes. Nocaso, j que falei em Schrdinger, se nos preocuparmos em conhecerseus escritos, algum poderia at ach-lo mais brilhante como bilogodo que como fsico terico. Foi ele quem descobriu a existncia do c-digo gentico, e uma srie de outras idias suas sobre a vida no ficaramnada a dever descoberta da Equao que recebe seu nome.

    Quando se l Newton, descobrem-se coisas surpreendentes. Encon-tram-se dados que a maior parte das pessoas que estudam Mecnica nosabem, como, por exemplo, o fato de haver duas massas e no uma s.Uma delas a quantidade de matria, e essa no se altera com o movi-mento; a outra o quociente da quantidade de movimento pela veloci-dade. A primeira massa no podia variar, porque era quantidade dematria, mas a segunda, sim.

    Newton escreveu a Equao da Dinmica de uma tal maneira quej continha a Teoria da Relatividade. A Equao era que a derivada daquantidade de movimento em relao ao tempo era igual fora. EssaEquao vlida na Teoria da Relatividade. Os livros no reproduzemfielmente a Equao de Newton. Banalizam-na porque supem que amassa no possa depender da velocidade, achando que Newton notinha certeza disso. E surpreendente ver como essas idias voltam tona.Newton teve antecipadamente muitas das idias da Mecnica Quntica.Por exemplo, a idia da dualidade (onda-corpsculo) da luz. Para uniresses dois aspectos, corpuscular e ondulatrio da luz, ele imaginou queas partculas luminosas podiam ter fits, ou seja, caprichos.

    E incrvel a quantidade de evidncias somente percebidas atravs daMecnica Quntica. Desde o sculo XVIII no havia uma nova edioda ptica de Newton. Saiu, ento, esta nova edio, e pediram a Eins-tein que escrevesse o prefcio. Einstein escreveu o seguinte: "IsaacNewton, para quem a natureza no tinha segredos". De muitas das des-cobertas do sculo XX Mecnica Quntica e outras Newton decerto modo j sabia. Sobre a Teoria da Relatividade, por exemplo, sabiaqual era a equao correta do movimento. E, possivelmente, h muitosaspectos na obra de Newton que ainda no se conhece. Em MecnicaEstatstica, o conceito de que o potencial molecular deve ter uma parteatrativa e outra repulsiva. Ningum o sabia. No se sabia que era neces-srio introduzir-se uma fora repulsiva e no apenas a fora de atrao;

  • que tambm deveria haver repulso em si. Newton, naquele tempo, emque nada se sabia sobre eletricidade ou sobre tomos, j dizia que exis-tem no interior dos tomos foras de origem eltrica. Muitos estudiosospassaram por cima dessas idias sem analis-las. Naturalmente, aindadeve haver muita novidade na obra de Newton. Einstein foi muito felizna afirmao. Isaac Newton realmente nos d impresso de que, paraele, a Natureza no tinha segredos.

    fabuloso estudar a Histria da Cincia a partir dos escritos origi-nais de grandes cientistas. Os compndios so sofrveis e chegam at aalterar o pensamento do cientista, para adequ-lo a uma apresentaodidtica. Tive um professor de Matemtica que sempre me dizia: quersaber Matemtica, v 1er os trabalhos originais de Matemtica. No leiaos compndios. Nas obras originais se compreende o que incompreen-svel nos compndios, que castram o pensamento, vulgarizando-o. Ano ser que o compndio seja como o livro de Dirac, sobre MecnicaQuntica, em que, da primeira ltima pgina relata suas vivncias, poisele realmente vivenciou os clculos e participou da criao da MecnicaQuntica.

    No Brasil, no sei se h lugares onde se tomam essas medidas. AAssociao para o Progresso da Cincia teve um papel muito importantena difuso do estudo da Histria da Cincia. Se estudarmos profun-damente, e no nos compndios de Fsica, a Histria da Cincia, tere-mos as maiores surpresas. Eu sempre recomendo na Histria da Cinciase procure verificar quais foram realmente as idias germinais. E preciso1er, sempre que possvel, os escritos originais.

    H muito o que falar sobre Cincia. Mas tudo est ligado ao ladohumano da Cincia. Aqui no Brasil, precisava-se lutar mais contra acastrao intelectual. Talvez, se nos cursos de ps-graduao o professorconversasse livremente com os alunos, o rendimento fosse maior. Isto,logicamente, se o professor for um cientista. Aprender-se-ia muito maissobre Cincia do que nas cansativas aulas tradicionais.

    Gostaria de estimul-los a fazer, aqui no campus, um museu deaparelhos antigos, para que se possa vivenciar a Histria da Cincia.Seria bom organizar debates sobre a personalidade dos grandes cientis-tas, e at sobre suas intuies. Desse modo, seria possvel penetrar me-lhor na essncia da Cincia. Uma teoria, apesar de errada, pode, s vezes,ser mais importante que uma teoria certa, por conter novos ngulos deobservao de um problema.

    Para o cientista, em primeiro lugar, conta a criatividade que elepossa ter. Mas em contato com os cientistas, o jovem aprender muito.

  • Aprender novas atitudes perante a Cincia, perante o mundo. O con-tato com o verdadeiro cientista sempre marcante. Se um indivduoquer ser um tcnico medocre, no fao nenhuma objeo a que ele fiqueat os 30 anos fazendo doutoramento. Mas fao as maiores objees aocientista que fica at os 30 anos fazendo doutoramento, pois ele desper-dia suas melhores energias improdutivamente.

    Creio que ningum aprende nada de ningum. Se examinarmos avida dos grandes cientistas, e falo mesmo por minha experincia pessoal e eu no sou um grande cientista , veremos que ningum aprendenada de essencial com os outros. A no ser o que de praxe: 1er eescrever, por exemplo. Mesmo escrever bem no se aprende com nin-gum. Aprende-se a escrever com outros, mas no a escrever bem.

    A tradio cientfica da Inglaterra na Idade Mdia foi destruda napoca da Renascena pelos pedantes, que eram discpulos de Erasmo deRoterdam. Estes achavam que o importante na universidade era apren-der bem o Latim. E, assim, foi destruda toda a tradio cientfica deOxford, na Idade Mdia. O efeito dessa maneira de pensar nas universi-dades inglesas foi pssimo. As universidades caram muito de nvel. Oscursos de Isaac Newton, quando ele esteve ensinando em Cambridge,no tiveram nenhuma repercusso. Ningum se interessou.

    Creio que uma reflexo sobre a Histria muito importante. Sur-gem idias novas sobre outros assuntos, at mesmo sobre a vida socialem geral. Eu no acho que o Homem j seja um animal racional. OHomem um animal que pode ser racionalizado. No posso entenderque os nossos economistas que fazem esses absurdos todos sejam ani-mais racionais! Mas essas coisas so srias. preciso manter um certotipo de atitude, que a atitude de criao original, e nunca abaf-la comexcesso de conhecimento.

    Certamente no obrigando o indivduo a no sair do Brasil antesdos 30 anos que se vai manter acesa a chama de criatividade. No lhedo bolsa porque ele no tem doutoramento aqui. Vou relatar este ab-surdo na Academia Brasileira de Cincias, pois se me houvesse sidoaplicada essa exigncia eu no poderia ter feito os trabalhos de Astrof-sica que fiz nos Estados Unidos, porque no estava na idade. Alis,como no fiz doutoramento at agora, no poderia ter sado do Brasil.

    Fiquei contente de ouvir do Prof. Pavan, em uma reunio da SBPC,idias semelhantes s minhas. Mas essas idias precisam ser melhor di-vulgadas. No Brasil, quanto mais errado um fato, mais o acham genial.Creio que 90% dos professores universitrios esto convencidos de queessa reforma universitria melhorou muito a situao do ensino no Pas.

  • Em uma reunio de fsicos em Niteri, leu-se uma tabela publicadasobre o nmero de pesquisadores que o Brasil formava. Diante de minhaindagao sobre o que se queria exatamente dizer com "pesquisador",uma pessoa, inteligente por sinal, esclareceu que pesquisador no si-nnimo de cientista. Disse que os planos brasileiros objetivam produzirpesquisadores, mas no cientistas, e que no se pode prever a produode cientistas. H uma certa razo nessa hiptese. Mas creio que pos-svel criar ambientes favorveis formao de cientistas. Ningum, claro, vai poder formar quem no tiver "bossa" para cientista, assimcomo no possvel ensinar a ser poeta a quem no tiver "bossa" parapoeta. Porm, podia-se pelo menos dar facilidades aos que demonstremtendncia para a atividade cientfica, enviando-os logo ao Exterior semesperar que completem 30 anos.

    E claro que tambm bom que dentro do territrio brasileiro sefacilite a mobilizao dos indivduos capacitados para os nossos grandescentros urbanos, para que possa manter contatos com as pessoas certas.O melhor, no entanto, seria que o jovem fosse mandado para os grandescentros da Cincia mundial ainda aos 19 ou 20 anos. Conforme o caso,devia-se mand-lo at mesmo com 15 anos.

    Conheci muitos rapazes inteligentes que foram para os EstadosUnidos e no agentaram. O mtodo das universidades norte-america-nas massacrante. Fazem-se exigncias terrveis para os cursos de dou-toramento. O MIT, por exemplo, uma escola de neurticos. H mes-mo suicdio de estudantes que foram levados ao desespero. O ITA, aquino Brasil, outra fbrica de neurticos.

    Um grande poltico quase sempre discpulo de outro grande po-ltico. No necessrio que se faa mestrado ou doutorado em poltica.O importante o contato direto com o grande poltico. Isto no se podemassificar: tem de ser um contato individual em que os conhecimentosso trocados e assimilados. Toda a sociedade moderna muito massifi-cante. A massificao no um bom caminho para a qualidade, numaesfera de doao humana. A massificao uma mediocrizao. Quantomais se puder evitar a massificao, melhor.

    No se pode dizer que seria sem validade dar a uma pessoa talentosaa possibilidade de bolsa aqui no Pas, para a iniciao cientfica. Mas,como nossas possibilidades so muito limitadas, o melhor mesmo mandar este indivduo, o mais depressa possvel, para um grande centroda Cincia mundial, onde existem grandes mestres, para lugares onde seesteja realmente criando. L, ele poder, realmente, se desenvolver. Fi-cando aqui, corre um srio risco de se atrofiar. A no ser que se fundem,no Brasil, centros do mesmo nvel que os do Exterior. Infelizmente, at

  • o momento atual, no tenho conhecimento de nenhum. Talvez tenhamsurgido em Literatura, por exemplo, mas no em Cincia. No digo, noentanto, que se deva enviar o indivduo a qualquer escola do Exterior.Se for uma do tipo massificante, no vale a pena. O importante reco-mend-lo a algum que tenha uma capacidade de criao cientfica dealto nvel, para que possa ser orientado em relao ao que deve ou nodeve fazer, aos caminhos a seguir.

    A conotao negativa que alguns emprestam s elites intelectuaisdeve ser repensada. No vejo que tipo de perigo as pessoas inteligentespodem oferecer sociedade. E certo que a alta capacidade criativa, emqualquer que seja o campo, sempre elitizante ou elitista. Alis, a idiade elitismo intelectual um pouco confusa: transportam-se para ocampo intelectual evidncias que somente poderiam ter sentido no cam-po poltico. Acontece que a criatividade, volto a afirmar, em seu graumais elevado, necessariamente elitista. E isto no vlido s para as,cincias, vale tambm para as artes, como a Literatura.

    Alis, no se pode dizer que seja o que geralmente se chama deelitismo, porque no se trata de uma determinada classe, uma elite so-cial. So determinadas pessoas altamente capacitadas para exercer deter-minadas funes. O ideal aproximar jovens talentosos dessas pessoas,para que aprendam. Dizem que o Herman Weyl aprendeu mais Mate-mtica com Hubert, passeando nos bosques, do que nas salas de aula.Em conversas informais, os dois transmitiam um ao outro seus conheci-mentos.

    No se pode exigir de um grande msico que ele componha deoutra maneira se ele sente sua msica de determinado modo. Se elecompe pela cacofonia, se assim que ele sente, no se poder obrig-loa seguir outro alfabeto musical. H determinadas pessoas que tm umgnio cientfico to extraordinrio que quase ningum consegue com-preender o que esto dizendo. Bohr, por exemplo, dificlimo de seentender. Quando, em congressos, se conseguia entender algo do queele dizia, sempre se constatava algo fabuloso. Sua inteligncia era bri-lhante. Faleceu quando ainda tentava entender a Teoria da Supercon-dutividade. Tambm ele achava que determinadas teorias no tocavamno mago da criao. E eu concordo com ele. Ele no entendia, porexemplo, por que numa rede cristalina se podia ter correlaes entreeltrons que estavam muito afastados uns dos outros e no ter corre-laes entre eltrons vizinhos. Esse um fenmeno da Teoria da Super-condutividade, que afirma existirem correlaes entre eltrons que po-dem estar a centenas de malhas uns dos outros. Bohr morreu com essapreocupao. A matria, realmente, se comporta de maneiras muito di-

  • versas, muito mais diversas do que podemos imaginar. Um eltron, narealidade, pode se correlacionar com outro que est a uma distnciaenorme dele e no se relacionar com o que est perto: so os mistriosda Cincia.

    O contato com os grandes cientistas sempre nos d uma sensaode mistrio. Bohr, nesse ponto, talvez tenha sido o maior cientista dosculo XX. Ningum mais que ele dava to intensamente a impresso deestar entrando numa faixa misteriosa. Para citar outro exemplo, Eins-tein, em seu trabalho famoso, o Paradoxo de EinsteinPodolskyRosen,de 1935, juntamente com seus colaboradores, queria mostrar que aMecnica Quntica era incompleta e estava errada. Achava absurdo quea Mecnica Quntica permitisse uma interao distncia e instantneaentre corpsculos muito distantes uns dos outros. Passaram-se os anose agora se descobre que isso existe. O fenmeno da supercondutividadepode estar ligado a esse fato. Quer dizer, citando esse fenmeno comoum erro de Bohr, Einstein acabou fazendo uma descoberta. Nesse caso,a intuio de Einstein foi mais profunda que sua inteligncia. A intuioo levou a descobrir que estava certo o que a inteligncia julgava errado.Essa foi a descoberta mais profunda da vida de Einstein. Enfim, haspectos misteriosos na Cincia, e no se pode fugir disso. Talvez; mu-dando-se toda a Cincia, certas coisas deixem de parecer misteriosas ouabsurdas.

    Creio que j falei demais. Mas estou procurando transmitir a vocso fruto de uma experincia, fatos que observei e vivenciei e no idiasminhas. Preocupa-me muito a fora que esse sistema mediocrizante vemtomando aqui no Brasil. O que se fez com o Newton da Costa, noInstituto de Matemtica de So Paulo, foi incrvel. Foi uma brutalidadeda qual eu ainda no havia ouvido falar. Praticamente, o obrigaram apedir a aposentadoria e sair porque ele no podia desistir de fazer suamatemtica... Naturalmente, douraram a plula dizendo que ele estavase desinteressando pelos alunos. No se levou em conta que estavamuito interessado em suas importantes realizaes. O filsofo inglsBradley, por exemplo, nunca dava aula na universidade, somente con-versava individualmente com os alunos. Naquela poca, era consideradoo maior filsofo da Inglaterra. E no dava aula. Achava que no valia apena. Para ele, eram mais importantes os contatos individuais que ma-ntinha com os alunos.

    Mas isso impossvel aqui no Brasil. Antigamente havia a ctedrauniversitria, que era importante dentro da universidade. Evidentemen-te, se o professor fosse medocre, vegetaria durante 30 ou 40 anos nactedra. Mas ela favorecia uma liberdade de ao ao professor para fazer

  • o que quisesse dentro de sua disciplina. Nem a Congregao podia in-terferir e isso permitia que se fizessem muitas realizaes. Hoje em dia,a engrenagem dos conselhos departamentais e das congregaes trava aatividade docente. Recusei o convite de voltar e lecionar na Universi-dade de So Paulo, mas quis saber da possibilidade de voltar sem serprofessor. Para mim seria o ideal, pois teria maior liberdade de aodentro dessa engrenagem. Ficaria um pouco margem dentro e foraao mesmo tempo e produziria.

    Estou transmitindo a vocs essas idias para que ponderem, paraque vejam se h algo de til, de aproveitvel nelas. uma sabedoria desculos da civilizao ocidental e, quem sabe, provinda de outras civili-zaes mais antigas. Certas personalidades histricas Scrates, Pla-to, Arquimedes eram focos de onde as idias surgiam. Muitas seperderam, talvez at sejam encontradas em outras reas, e muitas outrasse conservam at hoje.

    Devemos estar preocupados em no caminhar para uma mediocri-zao total. preciso que determinadas pessoas resistam a isso. Umprofessor, por exemplo, deveria poder ensinar na universidade, poderdar cursos, mas sem perder o objetivo de estabelecer contatos com cer-tos alunos. O importante testar a capacidade cientfica. Fermi estavafazendo isso no fim de sua vida. L nos Estados Unidos, ele s davaaulas para alunos do primeiro ano, ainda no contaminados pela men-talidade da universidade americana, e encaminhava alguns deles para apesquisa. Pode ser que haja outras pessoas fazendo o mesmo. Talvez, atsecretamente.

    Acho muito sufocante o ambiente geral no Brasil. verdade, tam-bm, que a reforma universitria criou um certo clima de autoritarismo.Precisamos alterar tal situao.

    Nota

    1 Atualmente, Newton da Costa professor titular por concurso na rea de Lgica da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da USP. integrante do Grupode Lgica do IEA.

    Resumo

    Erros foram cometidos no desenvolvimento econmico brasileiro por no se compreenderque o entendimento do processo tecnolgico reclama uma base cientfica. A EconomiaPoltica no uma cincia e seus grandes problemas so resolvidos por decises polticas.Uma das necessidades no Brasil o desenvolvimento de uma mentalidade cientfica. Entre

  • ns, confundiu-se pesquisa cientfica com elaborao de tese. O conceito cientfico umaidia viva, criadora.

    Abstrato

    Mistakes have been made in the Brazilian economic development because of faults occurredin the comprehension that the technological process asks for a scientific basis. The PoliticalEconomy is not a science and its great problems are resolved through political decisions.One of the needs in Brazil is the development of a scientific mentality. Among ourselves,scientific research has been confounded with diesis elaboration. The scientific conceptionsis a lively and creator idea.