1984 - literatura e modernidde

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS XIV – CONCEIÇÃO DO COITÉ AIRAN MONALIZE REIS MENDES 1984 - LITERATURA E MODERNIDADE CONCEIÇÃO DO COITÉ 2012

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Page 1: 1984 - literatura e Modernidde

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO

CAMPUS XIV – CONCEIÇÃO DO COITÉ

AIRAN MONALIZE REIS MENDES

1984 - LITERATURA E MODERNIDADE

CONCEIÇÃO DO COITÉ

2012

Page 2: 1984 - literatura e Modernidde

AIRAN MONALIZE REIS MENDES

1984 - LITERATURA E MODERNIDADE

Monografia apresentada à Universidade do Estado da Bahia,

Departamento de Educação, Campus XIV, como requisito final

à conclusão do Curso de Licenciatura em Letras e Literatura

Inglesa.

Orientador: Profº. Dr. Luíz de Antonio Carvalho Valverde

CONCEIÇÃO DO COITÉ

2012

Page 3: 1984 - literatura e Modernidde

AIRAN MONALIZE REIS MENDES

1984 – LITERATURA E MODERNIDADE

Monografia apresentada à Universidade do Estado da Bahia,

Departamento de Educação, Campus XIV, como requisito final à

conclusão do Curso de Licenciatura em Letras e Literatura Inglesa.

Aprovada em: 19/12/2012

Banca examinadora

_______________________________

Luiz Antonio de Carvalho Valverde – Orientador

Universidade do Estado da Bahia – Campus XIV

_________________________________________

Neila Maria Oliveira Santana – Orientadora de TCC

Universidade do Estado da Bahia – Campus XIV

_________________________________________

Rita Sacramento – Professora convidada

Universidade do Estado da Bahia – Campus XIV

CONCEIÇÃO DO COITÉ

2012

Page 4: 1984 - literatura e Modernidde

Dedico este trabalho a Deus, pela força.

Meus familiares,

colegas e professores pela

contribuição na construção do nosso

aprendizado.

Page 5: 1984 - literatura e Modernidde

AGRADECIMENTOS

A Deus, em primeiro lugar, pelo dom da vida e por ter me dado forças ao longo desse

percurso difícil, mas importante para o meu crescimento pessoal e profissional.

Aos meus familiares, que sempre me apoiaram, ajudando nesse processo de formação

acadêmica. Aos meus pais, por nunca terem me deixado desistir, mesmo nas horas de

fraqueza. E ao meu Tio, Rivaldo Ribeiro, que se foi, mas que sempre me ajudou como um pai.

Ao Profº Dr. Luiz Antonio de Carvalho Valverde, meu orientador, por ter contribuído

de forma significativa na busca do aperfeiçoamento desse trabalho e pelo cuidado e empenho

em transferir muito do seu conhecimento, e à Professora Ms. Neila Maria Oliveira Santana,

por sua dedicação e empenho, principalmente nos momentos mais conturbados.

Aos nossos professores, colaboradores na busca do conhecimento, e de forma

significativa à Professora Flávia Aninger, que iniciou esse projeto ao meu lado.

Aos meus amigos, pela amizade, por estenderem a mão, apoiarem e nos confortarem

nos momentos difíceis. Ao grupo de Jovens JJN (Juventude Junte-se a Nós), do qual faço

parte e me ajudou a aperfeiçoar na oralidade e entendeu meus momentos de ausência. Ao meu

namorado, Douglas Sacramento, por estar ao meu lado, principalmente nos momentos mais

difíceis.

Aos colegas, pelos momentos de alegria, sofrimento e força. De forma particular, ao

colega Hélio de Pereira Barreto, que iniciou comigo esse projeto e tantas vezes me deu o

suporte necessário.

Page 6: 1984 - literatura e Modernidde

"Quem controla o passado, controla o futuro;

Quem controla o presente, controla o passado.”

(George Orwell, 1984)

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RESUMO

O presente trabalho propôs-se a um estudo sociocrítico sobre 1984, de George Orwell.Narrativa que apresenta uma sociedade controlada pelos regimes totalitários, sem expectativa de vida e uma população a mercê do domínio de uma única pessoa. Vemos que é possível, ainda no dias atuais, uma manipulação de massa por intermédio dos meios de comunicação. Este trabalho apresenta uma analise sobre a modernidade a partir do Romance 1984e suas conseqüências na vida das pessoas, não só que viveram naquela época, mas também atualmente. Para tanto, procurou-se na investigação feita a partir de vários estudos, observar a falta de individualidade do homem moderno, como a literatura está ligada a vida social e como a leitura de um Romance ficcional pode-nos abrir os olhos. Podemos assim, investigar que a literatura e a Modernidade podem ser um espelho social para todos os seres humanos e que através delas podemos ter uma visão mais sociocrítica da política que nos cerca.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Modernidade. Individualidade. Sociedade. Desalienação.

Mímesis.

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ABSTRACT

The present work aimed a social and critical study of 1984, by George Orwell. Narrative that presents a society controlled by the totalitarian regimes, with no life expectation and a population at the mercy of one person’s domain. We see it is possible, even today, a manipulation of the mass by the media. This work presents an analysis about the modernity starting from the novel 1984 and its consequences in peoples’ lives, not just those who lived that time, but also those nowadays. In order to do this, it was looked for in the made investigation starting from many studies, observing the lack of individuality of the modern man, the way literature is linked to the social life and the way the reading of a novel can open our eyes. Thus, we can investigate and the Modernity may be a social mirror to all the mankind and through both we can take a much more critic view of the politics around us.

KEYWORDS: Literature. Modernity.Individuality.Society.Disalienation.Mimesis.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................9

2 MODERNIDADE E AMBIVALÊNCIA ..................................................................11

2.1 O que é modernidade .................................................................................................12

2.3A crise do sujeito iluminista ........................................................................................14

2.4 Sociedades de controle ...............................................................................................16

3 O REAL E O IMAGINÁRIO NO PROCESSO DE REPRESENTAÇÃO ...........20

3.1Literatura e a vida social ..............................................................................................20

3.2 A mímesis na modernidade.........................................................................................23

3.3 O Romance como instrumento de desalienação..........................................................25

3.4 O contexto de publicação de 1984..............................................................................27

4 ANÁLISE DOROMANCE 1984................................................................................29

4.1 A escrita literária em 1984 .........................................................................................29

4.2 Desenhando o mundo, alertando a história ................................................................31

4.3 O percurso crítico de 1984: A recepção......................................................................32

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................35

REFERÊNCIAS............................................................................................................36

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1 INTRODUÇÃO

1984 se tornou uma obra clássica pela genialidade do autor, George Orwell, devido à

forma da escrita, suas perspectivas e a maneira de enxergar a realidade escondida por trás de

mentiras, o que é considerado, por outros autores, exagerado.

O romance mostra o “cotidiano” de pessoas que viveram um pós-guerra traumático,

usando para tanto uma ficção que nos parece um verdadeiro devaneio, mas que esconde e

conta muito sobre a real situação da população mundial, seus medos, desafios e angustias.

Sendo uma obra moderna, uma de suas características, é um herói que não “vence” no

final e apresenta tantos outros aspectos pertinentes a esse período, como o homem que se

torna cada vez mais individual e sem crescimento tanto intelectual quanto pessoal.

Neste trabalho, faremos um estudo um pouco mais aprofundado nas características do

período moderno, a partir do romance Nineteen Eight-four, escrito em 1948, apontando os

seus aspectos e o que Orwell traz de novo para que esse seu último trabalho seja tão

reconhecido. Sabendo que para a sociedade da época, o romance foi criticado por muitos, por

“perceberem” que se tratava de uma crítica aos regimes totalitários na Europa, mas não só a

isso, também aos aspectos modernos que “transformaram” a vida das pessoas em um “vazio”.

Assim, na contemporaneidade, onde as pessoas utilizam-se de máscaras, sob as quais

se apresentam, sem vontades e desejos próprios, o estudo do romance de George Orwell fez

surgir algumas respostas para a inquietação sobre o que é modernidade, em quais aspectos o

romancista inglês crítica as características da mesma e quais seus reais efeitos sobre a vida das

pessoas. Temos como objetivos: 1) apresentar o conceito de modernidade; 2) analisar as

características da modernidade contidas no romance; 3) propor um estudo sobre a falta de

individualidade do homem moderno.

Um trabalho como esse, se propõe a refletir sobre como os acontecimentos passados

sob os regimes totalitários podem afetar a vida das pessoas, não só daquela época, mas

também nos dias de hoje, como o período moderno pode interferir nesse aspecto e o que se

pode fazer para melhorar essa situação.

Portanto, para um trabalho como este, foi necessário um estudo baseado em Pesquisa

bibliográfica, o qual se apoia na leitura apurada de diversas obras. Para tanto, pautamo-nos

nos princípios de alguns teóricos sobre tal abordagem, como Marconi & Lakatos (2002),

através do qual pude ter um pouco mais de conhecimento sobre a área da pesquisa

bibliográfica e Gil (2002) que apresenta um estudo propício sobre este tipo de pesquisa.

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Este trabalho está organizado em capítulos que dialogam com estudos teóricos sobre

os aspectos apresentados no Romance. O primeiro capítulo é iniciado pela introdução,

buscando abranger de forma mais geral o que procuramos estudar nele, utilizando para tanto

vários teóricos, os quais citarei de forma mais coerente abaixo.

No segundo capítulo, apresentamos, de forma teórica, as características da

modernidade, suas influências na vida das pessoas e suas definições, seguindo sempre 1984,

que é pilar desse estudo. Utilizando leituras e releituras de vários autores que me auxiliaram a

conhecer melhor as características iniciais da obra que busquei estudar, como Zygmunt

Bauman (1999) que apresenta diferentes conceitos da modernidade, Giddens (1991) que nos

traz aspectos sociais apresentados no período moderno, Louis Althusser (2003) e Foucault

(2004) que mostram muitas formas também sociais e Stuart Hall (1992) que trabalha sobre o

âmbito do individual na modernidade.

Apresentamos no terceiro capítulo, como a literatura e a modernidade estão ligadas

intrinsecamente e como elas podem interferir no processo de escrita de um Romance, seja ele

qual for. Baseando-se em leituras como João Alexandre Barbosa (1993), que buscou mostrar

que a literatura nunca será só ela mesma; Antoine Compagnon (1999) e Luiz Costa Lima

(2003) que apontam importantes conceitos e diferenciações da mímesis, que são utilizadas na

escrita do Romance. Outros teóricos foram de bastante valia para este trabalho, como Antonio

Candido (2006), Georg Lukács (2000) e Hannah Arendt (1989), que abordam estudos sobre

processo de desalienação e o processo de escrita da obra literária.

No quarto capítulo apresentamos a análise detalhada dos resultados obtidos na

pesquisa baseada nos teóricos que tratam do assunto, confrontando-os com as hipóteses

levantadas para o estudo, além da reflexão sobre os aspectos analisados.

No quinto capítulo, trataremos das considerações finais do trabalho, considerando as

discussões feitas sobre o assunto em consonância com a análise feita e os resultados obtidos

com essa pesquisa. Nessa parte do trabalho, baseio meus estudos com a teoria de Roland

Barthes (2000), que aponta como se dá o processo da escrita de um romance e Jacques Le

Goff (1990), que aborda a história que é escrita através de um romance.

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2 MODERNIDADE E AMBIVALÊNCIA

A Modernidade é um período caracterizado por sua dificuldade de conceituação, já

que sua forma é muito heterogênea, o que acaba por tornar difícil defini-la por um único

caminho. O período moderno é uma faca de dois gumes, ao mesmo tempo em que trouxe

certa “prosperidade” para uma parcela da população mundial, também acarretou mudanças

não tão satisfatórias, como a falta de individualidade e uma sociedade propícia ao controle,

temas sobre os quais discorremos ao longo desse capítulo. Para Zygmunt Bauman, a crise no

mundo moderno começa pela crise do discurso, que perdeu sua univocidade, capacidade de

nomeação e representação inequívoca dos fenômenos. Assim ele apresenta o conceito de

ambivalência:

A ambivalência, possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria, é uma desordem específica da linguagem, uma falhada função nomeadora (segregadora) que a linguagem deve desempenhar. O principal sintoma de desordem é o agudo desconforto que sentimos quando somos incapazes de ler adequadamente a situação e optar entre ações alternativas. (BAUMAN, 1999, p. 9)

Sendo assim, a ambivalência é uma característica marcante da modernidade, uma vez

que ela não é capaz de atribuir apenas uma categoria ou especificação para os acontecimentos.

A modernidade causou desordem na sociedade, deixando a humanidade, muitas vezes, sem

um horizonte de expectativas, que pudesse indicar um caminho. As grandes narrativas

perderam sua força norteadora. O homem moderno aguarda uma nova dizibilidade, conceitos,

mitos, palavras de ordem, que engolfem sua ação e lhe dêem uma perspectiva, um sentido

para a existência. Trata-se de um momento de fragilidade, e os movimentos de salvação, a

reboque de ideologias escusas, são sempre um risco, nessas horas, em que surgem ameaças de

retorno a regimes totalitários.

É nessa perspectiva que iremos desenvolver esse estudo sobre essas características da

Modernidade e suas ambivalências, a partir do romance 1984, de George Orwell.

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2.1 O que é modernidade

A Modernidade, como relata Octávio Paz, em Os filhos do barro (1984), vive da

crítica dos outros e dela mesma, e nesse sentido cria sua própria tradição, ao estar sempre

voltada sobre si mesma:

O que distingue nossa modernidade das modernidades de outras épocas não é a celebração do novo e surpreendente, embora isso também conte, mas o fato de ser uma ruptura: crítica do passado imediato, interrupção da continuidade. A arte moderna não é apenas filha da idade crítica, mas é também crítica de si mesma. (PAZ, 1984, p.20).

Paz argumenta que, a arte moderna, em todas as suas manifestações, é crítica de si

mesma, a modernidade se “alimenta” da tradição para estar sempre se renovando. O moderno

é composto por várias faces. Paz (1984) apresenta que a Modernidade é capaz de buscar na

tradição o novo, para renovar seu período e sua crítica. Uma característica deste, é que ao

mesmo tempo em que critica, busca novidade, fazendo com que o mesmo se torne um período

complexo de ser definido por um único caminho.

A modernidade se constitui também de aspectos sociais, sobre eles, Giddens (1991)

aponta que:

A ordem social emergente da modernidade é capitalista tanto em seu sistema econômico como em suas outras instituições. O caráter móvel, inquieto da modernidade é explicado como um resultado do ciclo investimento-lucro-investimento que combinado com a tendência geral da taxa de lucro a declinar, ocasiona uma disposição constante para o sistema se expandir. (GIDDENS, 1991, p.16).

Giddens mostra-nos que o caráter da modernidade não diz respeito somente à

literatura-ficção, mas também ao social. O capitalismo visa investir para assim obter lucros e

poder novamente investir, como um círculo vicioso, a Modernidade não deixa de também

investir com o intuito de se renovar, para que assim, possa se desenvolver cada vez mais.

Louis Althusser (2003) em seu livro Aparelhos Ideológicos de Estado, afirma que até os

teóricos modernos, a exemplo de Marx, defendem que a produção é feita com o objetivo de se

obter a reprodução dos meios de produção:

Hoje, todos reconhecem (inclusive os economistas burgueses que trabalham na contabilidade nacional ou os teóricos «macro-economistas» modernos), porque Marx impôs esta demonstração no Livro II do O Capital, que não há produção possível sem que seja assegurada a reprodução das condições

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materiais da produção: a reprodução dos meios de produção. (ALTHUSSER, 2003, p.13).

A modernidade é um período complexo, sua descrição não se limita apenas a pequenas

questões, ela sempre será útil no que diz respeito ao social, principalmente quando o social

tem relação com o crítico, como é abordado por Althusser, que é necessário reconhecer o

capitalismo como produtor de lucros.

O moderno chegou para fazer a diferença, já que ele se alimenta da crítica, seja no

social, ou na ficção. Zygmunt Bauman (2001), em “Modernidade líquida”, aponta que essa é

umas das características da modernidade, atitude seguida pelos modernistas, uma vez que a

intenção deles é causar impacto, usando a ficção para criticar o social:

A modernidade significa muitas coisas, e sua chegada e avanço podem ser aferidos utilizando-se muitos marcadores diferentes. Uma característica da vida moderna e de seu moderno entorno se impõe, no entanto, talvez como a “diferença que faz a diferença”; como o atributo crucial que todas as demais características seguem. Esse atributo é a relação cambiante entre espaço e tempo. (BAUMAM, 2001, p. 15).

Para entender melhor sobre a característica marcante da Modernidade, no que se refere

a espaço e tempo, Bauman (1925), mostra que:

A modernidade começa quando o espaço e o tempo são separados da prática da vida e entre si [...]. Na modernidade, o tempo tem história, tem história por causa de sua “capacidade de carga”, perpetuamente em expansão – o alongamento dos trechos do espaço que unidades de tempo permitem “passar”, “atravessar”, “cobrir” – ou conquistar. (BAUMAM, 2001, p.15-16).

Nos séculos pré-modernos, as noções de tempo e espaço eram aspectos entrelaçados e

não distinguíveis da experiência vivida. Bauman mostra-nos que, a partir do momento em que

eles são separados, a modernidade vai “esticando” essa capacidade de “passar” o tempo e o

espaço. As experiências de vida podem acontecer em tempo e espaço diferentes na

modernidade, mas nem por isso deixam de ter sua “própria” história.

Zygmunt Bauman (2001) aponta que a modernidade possui uma grande carga da

história, mas nem por isso ela deixa de buscar o novo, ela faz de sua história uma tradição na

qual ela se “sustenta” para assim buscar o novo. Paz (1984), por sua vez, argumenta que:

A modernidade é uma tradição polêmica que desaloja a tradição imperante, qualquer que seja esta; porém desaloja-a para, um instante após, ceder lugar a outra tradição, que por sua vez, é outra manifestação momentânea da

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atualidade. A modernidade nunca é ela mesma: é sempre outra. (PAZ, 1984, p. 18)

A modernidade, como mostra Paz, é uma manifestação que não dura muito tempo, ou

seja, ela vai cedendo lugar a outra tradição. O moderno sempre será heterogêneo, ele não se

manifesta apenas por sua novidade, mas por sua pluralidade.

A ambivalência da modernidade não é algo que se possa definir de forma sucinta, uma

vez que ela é, por sua natureza, discursiva. Sobre esse aspecto Bauman (1925) mostra que:

A modernidade, como todas as outras quase totalidades que queremos retirar do fluxo contínuo do ser, torna-se esquiva: descobrimos que o conceito é carregado de ambigüidade, ao passo que seu referente é opaco no miolo e puído nas beiradas. De modo que é improvável que se resolva a discussão. O aspecto definidor da modernidade subjacente a essas tentativas é parte da discussão. (BAUMAM, 2001, p.12)

Assim, torna-se perceptível que a Modernidade não é “algo” que possa ter um conceito

uniforme, uma vez que ela é constituída de ambiguidades, que a tornam parte discursiva, não

só do fluxo da vida das pessoas, mas também de tudo que se refere ao “moderno”.

2.3 A crise do sujeito iluminista

Antes de explicar melhor sobre a crise do sujeito Iluminista, atentemo-nos para o que

se mostra como “a crise de identidade” e como ela se deu no período da modernidade. Assim,

Hall (1992), declara que:

A questão da identidade está sendo extensamente discutida na teoria social. Em essência, o argumento é o seguinte: as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declino, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada "crise de identidade" é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (HALL, 1992, p.1)

Assim, durante o período moderno, a identidade do sujeito tornou-se fragmentada. O

sujeito moderno torna-se menos estável já que as velhas identidades estão em declínio e a

sociedade passando por mudanças, com a “chegada do moderno”.

Ao mesmo tempo em que o sujeito moderno vai se tornando menos estável, ele

também acaba por tornar-se sem individualidade, mas antes de buscar um estudo sobre a

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individualidade ou a falta dela, é preciso antes de qualquer coisa, saber o conceito de

identidade, que levará a um melhor estudo sobre individualidade, uma vez que uma

abordagem está ligada a outra. Sobre esse aspecto Hall (1992), defende que:

Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo "imaginário" ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre "em processo", sempre "sendo formada". (HALL, 1992, p.10)

A partir dessa citação, se torna perceptível que, identidade faz parte de um processo do

ser humano e que vai sendo construído ao longo da vida, não é algo que possa vir a ser tirado

ou dado, é construído. Nenhum ser humano nasce com sua identidade formada, ela vai sendo

constituída a partir do momento em que as pessoas tornam-se seres pensantes e com

capacidade de reflexão.

Foucault (2004) aponta um aspecto importante da individualidade e como ela era

tratada na esfera de um poder:

Durante muito tempo a individualidade qualquer - a de baixo e de todo mundo - permaneceu abaixo do limite de descrição. Ser olhado, observado, contado detalhadamente, seguido dia por dia por uma escrita ininterrupta era um privilégio. A crônica de um homem, o relato de sua vida, sua historiografia redigida no desenrolar de sua existência faziam parte dos rituais do poderio. Os procedimentos disciplinares reviram essa relação, abaixando o limite da individualidade descritível e fazem dessa descrição um meio de controle e um método de dominação. Não mais monumento para uma memória futura, mas documento para uma utilização eventual. E essa nova descritibilidade é ainda mais marcada, porquanto e estrito o enquadramento disciplinar: a criança, o doente, o louco, o condenado se tornarão, cada vez mais facilmente a partir do século XVIII e segundo uma via que é a dos mecanismos de disciplina, objeto de descrições individuais e de relatos biográficos. Esta transcrição por escrito das existências reais nãoé mais um processo de heroificação; funciona como processo de objetivação e de sujeição. (FOUCAULT, 2004, p. 83)

Foucault (2004) observa o fato de que no passado, as narrativas biográficas eram

privilégio de uns poucos, que tinham suas vidas alçadas ao panteão dos heróis, onde serviriam

de exemplo aos demais, reforçando o sistema de poder. Na modernidade, esses relatos

descritivos da vida das pessoas assumiram o caráter de mecanismo de sujeição. Nesse sentido,

Orwell apresenta em seu Romance como a vigilância constante da intimidade das pessoas

torna-as meros “objetos” controlados e, sujeitos a serviço do governo.

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A individualidade pode ser formada com a “ajuda” de registros escritos, a partir do

momento em que as pessoas passam a refletir sobre sua importância, usando, para tanto, a

escrita ou qualquer outra forma, como é mostrado no Romance 1984, a partir do momento em

que Winston começa a escrever em seu diário.

A função do registro é fornecer indicações de tempo e lugar, dos hábitos das crianças, de seu progresso na piedade, no catecismo, nas letras de acordo com o tempo na Escola, seu espírito e critério que ele encontrara marcado desde sua recepção. (24). Dai a formação de uma série de códigos da individualidade disciplinar que permitem transcrever, homogeneizando os, traços individuais estabelecidos pelo exame: código físico da qualificação, código médico dos sintomas, código escolar ou militar dos comportamentos e dos desempenhos. Esses códigos eram ainda muito rudimentares, em sua forma qualitativa ou quantitativa, mas marcam o momento de uma primeira "formalização" do individual dentro de relações do poder. (FOUCAULT, 2004; p. 157-158)

Desta forma, Foucault (2004) afirma que os registros guardados ou feitos de uma

criança no seu processo de desenvolvimento, podem nos fornecer subsídios para entender

melhor o início de sua formação como indivíduo pensante, dentro das relações de poder, ou

seja, um ser inserido na sociedade. Os códigos, citados por Foucault (2004) mesmo que

pareçam rudimentares podem ser de muita utilidade para o surgimento e desenvolvimento do

pensamento individual de uma criança.

Assim, podemos perceber que a individualidade de uma pessoa pode até ser “retirada”,

mas a partir do momento em que sua identidade está sendo construída pode tornar-se mais

complexo retirá-la, já que durante o processo de formação da identidade o ser humano

consegue perceber o mundo ao seu redor de forma mais clara, o que não quer dizer que

mesmo assim não venha a ter sua individualidade tirada.

2.4 Sociedades de controle

A sociedade em que vivemos se apresenta como “democrática”, mas as pessoas que

possuem senso reflexivo percebem que ela se mostra dessa forma apenas por aparência, e que

no fundo estamos em uma sociedade capitalista e “controladora”. Sobre o modelo de

“democracia”, Ralf Dahrendorf (1984) argumenta que:

A sociedade em expansão tem de resolver suas contradições iniciais, e sobretudo aquelas as quais foram negadas a tanta gente chances elementares

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de participação na vida da sociedade, uma renda mínima, previdência social, direitos de cidadania. Um século de demandas, pressões e políticas socialistas de fato ergueu o nível comum para todos os cidadãos muito consideravelmente. Mas também baixou os tetos, e algumas vezes trancou as portas e fechou as janelas, de modo que as pessoas estão mais seguras, porém não necessariamente mais livres. (DAHRENDORF, 1984, p.71)

Como podemos observar a partir dessa citação, a sociedade, apesar de ter “evoluído”

em algumas áreas, ainda assim não foi capaz de torná-la igualitária em vários aspectos. Fica

evidente que apesar de todas as mudanças ocorridas, elas não foram suficientes para fazer

com que as pessoas se tornassem “livres”, mas que apenas ganhassem um pouco de

“segurança”. A sociedade é bastante contraditória, uma vez que se apresenta como

“democrática”, mas na prática percebemos que não é bem assim que funciona.

Aqueles que detêm o “poder”, usam e abusam dele em causa própria e tentam a todo o

momento manipular e controlar a vida das pessoas, muitas vezes sem que elas percebam. Mas

como definir “poder”? Foucault (1979) aponta: “Uma primeira resposta que se encontra em

várias análises atuais consiste em dizer: o poder é essencialmente repressivo. O poder é o que

reprime a natureza, os indivíduos, os instintos, uma classe.” (p.175). A partir das palavras de

Foucault (1979), podemos analisar que atualmente os detentores do “poder” reprimem,

mesmo que de forma implícita, a humanidade em seus aspectos, ao ponto em que a sociedade

torne-se facilmente controlável. Essa é uma das temáticas que são mais abordadas no

Romance 1984, em que Orwell critica brilhantemente esse tipo de sociedade.

Foucault (1979) apresenta não apenas o conceito de “poder”, mas uma precaução de

como usá-lo:

Não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras; mas ter bem presente que o poder – desde que não seja considerado de muito longe – não é algo que possa dividir entre aqueles que possuem e detêm exclusivamente e aqueles que não possuem e lhe são submetidos. (FOUCAULT, 1979, p. 183).

Assim, Foucault (1979) apresenta que o poder não pode ser possuído por apenas uma

pessoa ou grupo, mas que toda sociedade tem o direito de “exercê-lo”, uma vez que o mesmo

não pode ser utilizado como dominação do povo, pois a população também possui direitos.

A sociedade, uma vez controlada, está propícia a não se questionar sobre os valores da

vida na qual se insere. Uma vez que as pessoas ousem discutir, podem sofrer as conseqüências

dessa “rebeldia” e muitas vezes são coagidas a simular que vivem satisfeitos com o que

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possuem. Baudrillard (1981) discute sobre o que é simulação: “Dissimular é fingir não ter o

que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem. O primeiro refere-se a uma presença, o

segundo a uma ausência.” (p. 9). Com essa citação torna-se evidente que as pessoas,quando

não se sentem satisfeitas com sua vida ou com o que possuem, acabam por se tornar pessoas

simuladas, ou seja, de acordo com Jean Baudrillard, seres humanos que fingem ter uma vida

plena e repleta de coisas boas, quando na verdade não possuem “nada”. Essa é uma das

críticas que Orwell aborda em seu Romance ao mostrar como o povo se satisfaz com o que

pensa possuir.

Retomando o que discutimos anteriormente, tomando por base a idéia de Baudrillard,

sobre simulacro, Llosa (1936), aponta que: “Os homens não estão contentes com o seu

destino, e quase todos – ricos ou pobres, geniais ou medíocres, célebres ou obscuros –

gostariam de ter uma vida diferente da que vivem.” ( p. 12). Dessa forma fica perceptível que

simular não significa fingir, mas uma tentativa de “fuga da realidade”, de tentar ser e ter algo

melhor.

Tomando como partida as palavras de Bauman (2001) podemos apresentar por que

muitas vezes, as pessoas tentam fugir da realidade:

O espectro do Grande Irmão deixou de perambular pelos sótãos e porões do mundo quando o déspota esclarecido deixou de habitar as salas de estar e recepção. Em suas novas versões, moderno-líquidas e drasticamente encolhidas, ambos encontram abrigo no domínio diminuto, em miniatura, da política-vida, pessoal; é lá que as ameaças e oportunidades da autonomia individual – essa autonomia que não se pode realizar exceto na sociedade autônoma – devem ser procuradas e localizadas. (BAUMAM, 2001, p. 63)

Hoje, podemos perceber que a “vigilância”, principalmente social, não se dá por

câmeras ligadas, como é narrado no Romance 1984, mas podemos encontrar resquícios delas

por todos os lugares públicos, são nesses lugares que a vida pessoal é realmente ameaçada

pelos “detentores” do poder, que a todo o momento se escondem em máscaras e bonitas faces,

às vezes quase imperceptíveis. A face do poder se torna ameaçadora a partir do momento que

ela tenta adentrar uma sociedade autônoma, ou seja, quando “os poderosos” buscam ameaçar

aqueles que já possuem “liberdade” de pensamento e de reflexão. No momento atual,

podemos perceber a todo instante o quanto essa vigilância se dá, e que estamos toda hora

sujeitos a essa ideia de falsa liberdade. Os “detentores do poder” adentram em nossas vidas

todos os instantes através dos meios de comunicação, é que na maioria das vezes não

percebemos, mas estão fazendo “nossa cabeça” para a qualquer momento “cortar nosso

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pescoço” e o mais intrigante e revoltante é o fato de que muitos se fazem de cegos com

“medo” de perceberem a verdade.

Bauman (2001) aponta novamente um conceito bastante interessante e desafiador

sobre a crítica:

Como nos antigos melodramas de Hollywood, que supunham que o momento em que os amantes se encontravam novamente e pronunciavam os votos do casamento assinalava o fim do drama e o começo do bem-aventurado “viveram felizes para sempre”, a teoria crítica, no início, via a libertação do indivíduo da garra de ferro da rotina ou sua fuga da caixa de aço da sociedade afligida por um insaciável apetite totalitário, homogeneizante e uniformizante como o último ponto da emancipação e o fim do sofrimento humano – o momento da “missão cumprida”. (BAUMAM, 2001, p. 34)

Sendo assim, fica evidente que a intenção de Orwell, ao escrever o romance 1984, não

se baseava apenas em criticar, mas mostrar que no momento em que uma sociedade se torna

autônoma, ela mostra que é capaz de buscar a sua “liberdade”. O que o Romancista quis dizer

não foi apenas que é necessário se libertar, mas ele tenta “ajudar” o ser humano a ganhar auto-

afirmação para que assim não estejam sempre passíveis a uma sociedade de controle.

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20

3 O REAL E O IMAGINÁRIO NO PROCESSO DE REPRESENTAÇÃO

No processo de representação, o que se pode considerar real e imaginário é, muitas

vezes, confundido principalmente no que se refere ao romance. O leitor retira conclusões de

que algo lido venha a ser “verdade” ou “mentira” a partir do que ele “entende” e em sua

grande maioria esquece que no Romance não se apresentam apenas com representações de

histórias já vividas por alguém ou pela humanidade. Sobre essa característica, Llosa (1936)

aponta que: “De fato, os romances mentem – não podem fazer outra coisa -, porém essa é só

uma parte da história. A outra é que, mentindo, expressam uma curiosa verdade, que somente

pode ser expressar escondida, disfarçada do que não é.” (p. 12).

Sendo assim, evidentemente, os Romances mentem, mas não quer dizer que por trás

de sua “mentira” não exista uma “verdade”, ou seja, o imaginário é usado para representar ou

expor aquilo que é considerado mentira, mas que venha a ser uma verdade disfarçada e que,

muitas das vezes, só possa ser apresentada dessa forma.

No romance 1984, o autor utiliza o imaginário para mostrar uma possível realidade, se

as pessoas não mudarem suas mentes e seu jeito de olhar para o mundo em que vivem. Nessa

perspectiva, faremos um estudo sobre como o real e o imaginário pode interferir no processo

de representação e apresentação da vida, tomando sempre como partida o romance 1984, de

George Orwell.

3.1 Literatura e a vida social

Literatura nunca será apenas ela mesma, pois, através dela muitas outras leituras

podem e são feitas. Podemos perceber que o papel dela é trazer para nossa vida um sentido

maior do que podemos analisar. Sobre essa abordagem, Barbosa (1993):

A literatura nunca é apenas literatura; o que lemos como literatura é sempre mais – é História, Psicologia, Sociologia. Há sempre mais que literatura na literatura. No entanto, esses elementos ou níveis de representação da realidade são dados na literatura pela literatura, pela eficácia da linguagem literária. (BARBOSA, 1993, p. 23).

Essa característica da literatura torna-se marcante no que diz respeito à vida social,

pois ela nunca dirá apenas uma coisa, a literatura é ampla e capaz de abordar, usando muitas

vezes a ficção para “narrar” a vida e aquilo que as pessoas tentam esconder. Ela apresenta

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21

uma abordagem importante, pois sua eficácia de traduzir o que parece intraduzível mostra

uma realidade que a humanidade tem medo ou não quer ver.

Orwell, em seu romance, utilize-se sabiamente dessa característica da literatura, ele

mostra uma vida social a partir de um imaginário, que ao ler parece-nos “fantasia”, mas que

na verdade conta muito sobre a realidade de muitas pessoas. Ou seja, a literatura não trabalha

sozinha, ela depende de várias outras formas de estudo sobre a vida social para assim, analisá-

la de uma forma menos superficial.

O estudo da literatura pode interferir de forma bastante significativa na vida social das

pessoas, e principalmente nas das crianças, pois podem trazer para elas um significado mais

amplo da sociedade na leitura literária. Barbosa (1993) aponta que:

Não é possível fazer com que, em qualquer faixa etária, o aluno leia e possa ler MACHADO DE ASSIS, quando se passa para ele apenas o pseudofilosofante MACHADO DE ASSIS, aquele autor que bancava o sério e era da Academia Brasileira de Letras. É preciso mostrar- lhe o MACHADO moleque, brincalhão o tempo todo; aquele que, ao falar de uma moça manca, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, acaba chamando-a de “A Vênus Manca”, o que é de uma crueldade, mas de uma brincadeira extraordinária. (BARBOSA, 1993, p. 26).

A leitura da literatura abre um leque de possibilidades para uma nova visão de mundo,

se ensinado de forma coerente e não apenas sendo passada as regras e “escolas literárias” que

estamos acostumados a ver. É necessário o incentivo do estudo da literatura, pois através dela

fará com que os estudantes possam questionar sobre vários assuntos de sua vida, como

políticas, não com relação à partidária, relações humanas, preconceitos, entre outros.

A nossa vida social, muitas vezes, é contada e narrada através de textos literários e

1984 é um claro exemplo de que o “domínio” da individualidade e outros aspectos podem ser

feitos sem que muitas vezes as pessoas percebam. Orwell utiliza-se do imaginário para

abordar esse tema, mas muitos de nós somos realmente vigiados, muitas vezes não por

câmeras propriamente ditas, mas por meios de comunicação, entre outros, e esses recursos

hoje utilizados não são mais “imaginários”, mas fazem parte da nossa realidade.

A vida vista a partir dos “olhos” literários recebem uma dimensão muito maior do que

podemos imaginar, a literatura é capaz de nos transportar para um tempo que não foi vivido

por muitos e que ao mesmo tempo é como se estivéssemos vivendo naquele período da

humanidade sem nos darmos conta.

O romance, uma categoria da literatura, nem mente e nem conta a verdade. Llosa

(1936) mostra que: “Essa é a verdade que as mentiras da ficção expressam: as mentiras que

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somos, as que nos consolam e que nos desagravam das nossas nostalgias e frustrações.”

(p.17).

A realidade da vida social que nos é apresentada não é satisfatória, e penso que nunca

será, pois a humanidade nunca se dá por satisfeita, sempre está em busca de algo a mais, e é a

partir dessa busca que acabamos por nos deparar com o “verdadeiro” e o “mentiroso”, o

“bom” e o “ruim”, e essas características, muitas vezes, nos moldam como seres felizes,

tristes, frustrados ou decepcionados. Assim, muitos recorrem à leitura de um romance, de uma

ficção, com pretensão de se “encontrar” através de uma leitura que às vezes nos parece

fantasiosa ou “mentirosa”.

Sendo assim, fica-nos evidente que as “mentiras” e “verdades” muitas das vezes

apresentadas pela literatura são para mostrar de forma mais significativa a nossa vida, nossos

medos, angústias e dúvidas, tudo que muitas vezes sufoca a humanidade. É capaz de trazer

uma paz de espírito, jamais imaginada, através do simples ato de ler, uma vez que a ficção

apresentada pela literatura pode nos abrir para uma experiência transformadora e significativa.

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3.2 A mímesis na modernidade

Ao observamos os estudos já feitos sobre mímesis, podemos perceber que existe um

paradoxo, uma vez que ela é marcada muitas vezes por contradições. Antoine Compagnon

(1999) aponta que:

Em Platão, na República, a mímesis é subversiva, ela põe em perigo a união social, e os poetas devem ser expulsos da Cidade em razão de sua influência nefasta sobre a educação dos “guardiões”. No outro extremo, para Barthes, a mímesis é repressiva, ela consolida o laço social, por estar ligada à ideologia (a doxa) da qual ela é instrumento. (COMPAGNON, 1999, p. 98-99)

Assim, podemos analisar que a mímesis pode ser subversiva ou repressiva, são dois

extremos, invertida a vista de Platão a Barthes, já que sendo mostrada de Aristóteles a

Auerbach essa alteração não foi notável.

A mímesis, termo aristotélico traduzido por “imitação” ou “representação”, tem como

um dos objetivos, repensarem a alternativa intimidante a partir de dois opostos, o antigo e o

moderno e de que a literatura fala do mundo, a literatura fala da literatura.

Ela pode ser subversiva porque os poetas possuem “má” influência sobre a educação

dos “guardiões”. Em contrapartida é repressiva, pois acreditam que ela possa fortalecer os

laços sociais, por estar ligada a uma ideologia.

A mímesis, não é pura e simplesmente “imitação”, ela nos é apresentada como

“imitação da realidade”, ou seja, tenta ocultar o objeto de estudo em proveito do objeto

imitado, portanto, é como se a mímesis estivesse ligada ao realismo, assim unindo o romance,

o individualismo, a burguesia, e o capitalismo. Então, podemos apontar que a mímesis é uma

crítica do capitalismo. No romance 1984, podemos identificar as mímesis apresentadas por

Orwell para “imitar a realidade” mostrando de certa forma a “realidade” em que a sociedade

vivia naquela época.

A partir de uma comparação torna-se possível perceber a função da mímesis e o

porquê dela se diferenciar das outras formas de representação social. Sobre este tópico, Luiz

Costa Lima (2003) mostra que:

Tome-se como exemplo a diferença entre um documentário e um filme de ficção. Se vejo um documentário sobre o fascismo, devo crer que, se a montagem não é facciosa, os fatos assim se deram e que o documentário oferece uma via para o conhecimento da realidade sucedida. Se, ao invés,

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assisto aos 120 dias de Sodoma de Pasolini devo entender [...] sem dúvida, a mensagem ficcional provoca uma atuação, pelo conhecimento, sobre o real. Atuação até que pode, em certos casos, ser mais eficaz: o documentário me diz o que passou, Pasolini mostra a iminência do que pode voltar a passar. (LIMA, 2003, p. 93-94).

Sendo assim, podemos analisar que, a mímesis às vezes pode ser mais eficaz ao

transmitir a “realidade” do que a própria realidade, ou seja, através de uma representação

podemos “voltar” ao que se passou. O romancista inglês se utiliza do totalitarismo, que

realmente ocorreu como “objeto” para “representar” como a sociedade poderia se tornar,

fazendo com que o leitor busque indicações através de um olhar crítico. O autor se

“aproveita” do conhecimento que ele possuía a respeito desses regimes e de uma forma

fascinante, prende a atenção do leitor para o terror que ocorreria na vida da sociedade se os

mesmos continuassem no poder.

A mímesis requer um estudo bastante cauteloso, uma vez que a mesma possui

definições controversas, dadas por escritores e filósofos, como Aristóteles e Barthes. Suas

pesquisas propõem que ela não se constitui apenas de uma “imitação” da realidade, sua

intenção vai além desse aspecto, ela vai fundo nas questões sociais, fazendo com que o leitor

se proponha a descobrir ou se questionar o que há por trás dessa “suposta imitação”. A

mímesis representa o social de forma crítica, com a intenção de “chamar a atenção” do leitor.

Lima (2003) aborda que: “Se, tradicionalmente, a poesia era identificada como

linguagem elevada, sublimadora da realidade, ela agora busca palavras e situações “vulgares”

e não mais reveste o real com o encanto que o purificava.” (p. 95). O romance 1984, assim

como algumas poesias, não se apresenta revestido de encanto, ao contrário, traz uma

atmosfera sombria e “cruel” para mostrar a realidade daquele tempo.

Sendo assim, podemos analisar que a mímesis na modernidade buscou mostrar a

“realidade” de forma mais arrebatadora para os leitores. A mímesis, apresentada por George

Orwell, em 1984, pode mostrar como a “imitação da realidade” pode ou não ser eficaz para

transformar uma sociedade e o “leitor” em pessoas críticas.

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3.3 O Romance como instrumento de desalienação

O Romance tem o “poder” de interferir na vida das pessoas de uma forma que por

outros meios possa parecer inacessíveis. Ele, muitas vezes, tido como mentiroso ou

fantasioso, carrega consigo o “dom” de mostrar uma verdade muitas vezes mascarada pelos

“detentores do poder”, pela mídia, entre outros. Sobre essa característica do Romance,

Antonio Candido (2006) aponta que:

Nada mais importante para chamar a atenção sobre uma verdade do que exagerá-la. Mas também, nada mais perigoso, porque um dia vem a reação indispensável e a relega injustamente para a categoria do erro, até que se efetue a operação difícil de chegar a um ponto de vista objetivo, sem desfigurá-la de um lado nem de outro. (CANDIDO, 2006, p. 13)

Assim citado por Antonio Candido (2006), George Orwell utilizou-se dessa

abordagem “exagerada” para chamar a atenção do leitor sobre os regimes totalitaristas. O que

não venha se apresentar como um perigo, já que quase toda forma de expressão exagerada

causa estranheza de início, e às vezes pode acarretar em uma maneira de pensar “errada”, até

que consiga chegar ao objetivo sem “destruir” ou qualificá-la demasiadamente.

O romance, por si só, já “diz” muito sobre um determinado tema, muitas vezes sem

necessidade de uma forma exagerada, mas, por outro lado, muitas leituras se tornam mais

eficazes a partir do momento em que essas características são utilizadas para poder apresentar

às pessoas o mundo sobre um novo olhar.

Georg Lukács (2000) nos apresenta vários pontos em que o romance pode ser tido

como “instrumento de desalienação”. Baseado na filosofia e nos gregos, ele aponta que o

romance “transforma” o sentido da vida, as pessoas tornam-se solitárias no meio de tantas

outras e que o diálogo entre elas se mostra ineficiente. Apresenta também que o “herói” não

pratica atos “heróicos” e acaba por se desestabilizar no meio de uma sociedade cada vez mais

individual.

O herói do drama desconhece toda a interioridade, pois a interioridade nasce da dualidade antagônica entre alma e mundo, da penosa distância entre psique e alma; o herói trágico alcançou sua alma e ignora portanto toda a realidade que lhe seja alheia: tudo quanto lhe seja exterior torna-se para ele pretexto do destino predeterminado e adequado. (LUKÁCS, 2000. p. 90)

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A partir dessa citação, podemos analisar mais claramente as palavras de Lukács (2000)

observando que o herói de um romance ou drama parece não possuir mais “força” para lutar,

pois não conhece seu próprio interior, sua alma, já que a “sociedade” não o permitiu, e se

conhece necessita escolher entre um dos dois. Um “mundo” em que a pessoa não tem o “livre

arbítrio” para tomar suas decisões precisa buscar meios de fazer com que sua vida ganhe um

“sentido”, muitas vezes isso ocorre por meio do Romance.

O herói de 1984, intitulado de Winston, se encontra nesse momento da vida, buscando

respostas para seus questionamentos, mas no final acaba tornando-se igual a todos que o

cercam. O Romancista Inglês utilizou também dessa abordagem de um herói que não possui

atos “heróicos” para mostrar a sociedade em que somente uma pessoa tentando lutar contra

um sistema não é o suficiente e que é necessário a mobilização da população para tentar

“modificar” o mundo que a cerca.

Na visão hegeliana, os elementos do Romance são inteiramente abstratos, ou seja, as

características apresentadas no mesmo são operadas com “rigidez”. O homem é um indivíduo

que vive “só” e se sente “satisfeito” como sua realidade, no entanto, esta totalidade abstrata

apresentada pela visão hegeliana, pode oferecer um perigo, fazendo com que o romance se

torne um idílio (pequena poesia) e acabar o “rebaixando” a uma literatura de entretenimento.

Porém, o Romance vai muito além dessas características, ele é capaz de se remeter ao mundo

em sua realidade, transformando muitas vezes, o consciente das pessoas.

O romance é uma forma viril de mostrar a realidade que nos cerca, sobre esse e outros

aspectos, Lukács (2000) aponta que:

Toda a forma artística é definida pela dissonância metafísica da vida que ela afirma e configura como fundamento de uma totalidade perfeita em si mesma; o caráter de estado de ânimo do mundo assim resultante, a atmosfera envolvendo homens e acontecimentos é determinada pelo perigo que, ameaçando a forma, brota da dissonância não absolutamente resolvida. (LUKÁCS, 200, p. 71)

Sendo assim, podemos analisar que como toda e qualquer forma artística tem como um

dos objetivos “analisar” a vida em seus vários aspectos, o Romance busca entender e

aprofundar os acontecimentos do mundo, que muitas vezes brotam de sua dissonância, não se

“preocupando” apenas com a forma, mas com os perigos que podem resultar do mundo.

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3.4 O contexto de publicação de 1984

1984, romance escrito por George Orwell (1903 - 1950), pseudônimo de Eric Arthur

Blair, foi publicado em 1947, no momento em que a Europa se encontrava no período de pós-

guerra e sobre os regimes totalitários da época. Após a guerra, em meados de 1946-1947, a

Europa se encontrava “quebrada” financeiramente e desestabilizada, assim como o Japão.

Muitos países da Europa optaram por “eleger” os regimes totalitaristas para “tentar” acabar

com a crise que os assolavam, mas o que ocorreu foi de certa forma o oposto, pois tais

regimes oprimiram as populações ao ponto delas não terem mais “liberdade”.

Orwell escreveu seu livro em meio a um terror, principalmente psicológico, na

Alemanha, como exemplo, Hitler matava todos os judeus, acreditando que eles não eram uma

“raça” pura. A população se encontrava aterrorizada sobre o que poderia acontecer no

“futuro”, e é justamente o medo que o Romancista Inglês “tenta” retratar. As pessoas sem

saírem de suas casas, sem alimentos muitas das vezes, sem expectativa de vida, mas ele vem

apresentar esses pontos de uma forma diferente e que pudesse fazer a população “acreditar”

no que poderia vir a acontecer com a Europa se os regimes totalitários continuassem no poder.

Sobre o totalitarismo, Hannah Arendt (1989) aponta que:

Nos países totalitários, a propaganda e o terror parecem ser duas faces da mesma moeda. Isso, porém, só é verdadeiro em parte. Quando o totalitarismo detém o controle absoluto, substitui a propaganda pela doutrinação e emprega a violência não mais para assustar o povo (o que só é feito nos estágios iniciais, quando ainda existe a oposição política), mas para dar realidade às suas doutrinas ideológicas e às suas mentiras utilitárias. (ARENDT, 1989, p. 389)

Como podemos observar, o totalitarismo se utilizou dos meios de massa para

conseguir entrar no poder, e depois se apossaram da mesma técnica para colocar terror na

população e colocaram realidade em suas ideologias, para dessa forma “conquistarem” as

pessoas, fazendo com que elas acreditassem em seus conceitos. Orwell aborda de forma

extremamente consistente como o terror era empregado pelos regimes, o autor utilizou a

ficção para explorar o que os partidos totalitários eram capazes de fazer e muitos fizeram para

alcançarem seus objetivos.

O romance 1984 não foi escrito como uma “previsão do futuro”, até porque o que

George Orwell escreveu, em parte, não veio a se concretizar, mas com o objetivo de “chamar

a atenção” das pessoas, não só as que viviam na Europa, como os Regimes totalitaristas

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podem “escravizar” a vida, às vezes, sem que muitos tenham a menor percepção disto. Seu

último trabalho foi tido por muitos como um devaneio, uma mentira, mas nos dias de hoje

podemos encontrar resquícios dessa manipulação de massa, utilizando para tanto, os meios de

comunicação. Seu trabalho se tornou um divisor de águas no que diz respeito a possuir um

olhar crítico sobre os regimes que nos cercam.

Orwell se considerava do partido de “esquerda”, mas ele enxergava a manipulação dos

regimes que se diziam “socialistas” com “facilidade” e não se conformava que as pessoas

aceitassem isso de forma “pacífica”. Sobre esse aspecto encontrado no seu Romance, Thomas

Pynchon (2003) aponta que:

Orwell parece ter ficado particularmente incomodado com a fidelidade generalizada da esquerda ao stalinismo, mesmo diante de evidências esmagadoras da natureza maldosa do regime. “Por razões um tanto complexas”, escreveu ele em março de 1948, no início da revisão do primeiro esboço de 1984, “quase toda a esquerda inglesa foi levada a aceitar o regime russo como ‘socialista’, embora reconhecessem em silêncio que o espírito e a prática daquele regime eram inteiramente diferentes de tudo que significava ‘socialismo’ neste país”. (PYNCHON, 2003, p. 399)

O Romancista Inglês “observava” com preocupação o que os partidos faziam para

controlar as pessoas, e se indignou até mesmo com quem se considerava de “esquerda” e

mesmo assim “apoiou” o regime, sabendo do que eles eram capazes de fazer para obter o

“poder”. Um dos motivos, como nos mostra Thomas Pynchon (2003), que levou George

Orwell em sua revisão do primeiro esboço de 1984, apontar, metaforicamente, as mazelas do

stalinismo, considerada por muitos, de uma forma “exagerada”, foi por enxergar o que os

regimes totalitaristas eram capazes de fazer com as populações dos países.

Sua obra foi escrita como um alerta ao mostrar que se “dizer” socialista não é o

bastante para o ser de fato. O escritor sabia de que tais regimes eram capazes, pois ele viveu

épocas difíceis, e “viu” muita gente inocente morrer, vítimas desses sistemas de poder

desumanos.

Foi nesse contexto de guerras, fome, mortes, e prisão psicológica que 1984 foi escrito

como tentativa de mostrar do que um regime é capaz para obter poder, passando por cima de

tudo e de todos.

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4 ANÁLISE DO ROMANCE 1984

A análise dos dados será feita através de um estudo mais aprofundado da obra, tendo

como foco a escrita literária do romance, percebendo e identificando se o livro empenhou o

papel de desenhar o mundo, e alertar a história. Por fim, como o Romance foi aceito pela

população e seu percurso crítico.

Para tanto, faremos a leitura do Romance estabelecendo diálogos com importantes

estudos, que possam servir de guia e esclarecer as questões aqui propostas.

4.1 A escrita literária em 1984

A escrita literária é um processo sobre o qual o escritor não exerce totalmente seu

domínio, ela transgride as ideias do mesmo, sem que, muitas vezes se torne perceptível. O

escritor “não pode” introduzir as suas “vontades” na escrita, pois a mesma já carrega consigo

a sua história, que se une à natureza, completando-se.

A escrita literária difere de outros gêneros de escrita. Seu estilo não é algo “formal”,

mas sim bruto. A escrita literária coloca o escritor em uma solidão, uma “prisão” a qual faz

parte do seu ritual de profundezas literárias.

Orwell, em sua genialidade claramente observada por outros autores, se fez

“prisioneiro” da escrita literária como parte de uma natureza própria para abordar a história

vivida ou que ainda estava por vir dele mesmo e dos europeus de forma, ao mesmo tempo

arrebatadora e “assustadora”, com intenção de “alertar” a sociedade sobre os perigos de um

regime controlador.

Roland Barthes (2000) esclarece que:

Quer seja a experiência inumana do poeta, assumindo a mais grave das rupturas, a da linguagem social, quer seja a mentira credível do romancista, a sinceridade aqui precisa de signos falsos, e evidentemente falsos, para durar e para ser consumida. O produto, depois finalmente a fonte dessa ambigüidade, é a escrita. (BARTHES, 2000, p. 37)

O autor evidencia que, essa ambigüidade encontrada no romance, é que torna muita

das vezes, a escrita “acorrentada” à história. Tido por alguns como falso, o Romance pode

“dizer” muito sobre a história de uma sociedade e tornar-se uma linguagem social, acessível a

muitos.

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No romance 1984, na Oceania, país onde se passa a ficção, as pessoas são vigiadas por

câmeras em todos os lugares, muitos podem até olhar esta escrita como “mentira”, mas,

atualmente em nossa sociedade, nós também temos a vida vigiada. Não chegamos ao extremo

de câmeras em todas as casas e ruas, mas o que dizer dos meios de comunicação, que na

maioria das vezes só informam o que é do “agrado” deles, será que isso também não é uma

forma de “vigiar” nossas vidas?

Sendo assim, toda e qualquer forma de escrita literária possui seu valor, seu estilo e

sua forma de marcar o romance e/ou o escritor. Roland Barthes (2000) nos aponta novamente

que: “Em qualquer forma literária, há a escolha geral de um tom, de um etos, se quiser, e é aí

precisamente que o escritor se individualiza claramente, porque é aí que ele se engaja.” (p. 13)

O que se torna o diferencial de cada escritor, de cada obra literária, de forma peculiar o

romance, o qual está sendo estudado e analisado, é sua escrita. A forma da qual o autor se

utiliza faz com que o leitor crie interesse ou não em ler sua obra, se identificar com ela e,

principalmente, possa entender o que sua escrita quis mostrar. A escrita possui uma função,

que está relacionada à criação e à sociedade, e é essa linguagem literária que acaba se

“transformando” em destinação social, ligando assim às crises históricas.

A escrita acaba se tornando ligada a uma ação, muitas vezes como forma de

”denúncia”, Barthes (2000) nos apresenta um aspecto importante e de valor que a escrita,

principalmente a literária pode possuir:

Ligada a uma ação, a escrita marxista tornou-se rapidamente, na verdade, uma linguagem de valor. Essa característica, visível em Marx, cuja escrita permanece no entanto explicativa, invadiu completamente a escrita stalinista triunfante. (BARTHES, 2000, p.22)

Assim, Orwell, utiliza-se de uma escrita ligada a uma ação para, não somente criticar

os regimes totalitaristas da época, mas também estabelecer a sua “visão” sobre o “socialismo”

propositalmente errante estabelecido pelo totalitarismo. Tais regimes, “manipularam” a escrita

e palavra ao seu favor, não se importando de fato com o seu significado. Podemos encontrar

um exemplo claro sobre esse aspecto no romance. Se o IngSoc, regime “criado” por George

Orwell para controlar a Oceania, “dissesse” que dois mais dois são cinco, as pessoas teriam

que acatar ao que foi dito, e de tanto repetirem acabariam acreditando de verdade que o era,

até que o IngSoc provasse o contrário. A partir disso, podemos analisar como a palavra e a

escrita têm poder e influência na vida das pessoas, por isso a escrita literária elaborada de

forma coerente e significativa pode ser “esmagadora”.

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Em 1984, não foi diferente, sua escrita foi tão bem elaborada que aos olhos de um

leitor que ainda não possui seu senso crítico aflorado, pode se deparar com um romance

“mentiroso” ou até mesmo “chato”, mas por outro lado, pode conseguir perceber resquícios de

um livro escrito no século XX, que se apresenta atual nos dias de hoje. Isto se dá, não só

apenas pelo “controle” na vida das populações, mas também pelo fato das pessoas estarem

cada vez mais individualistas, sem “sentimentos”, sem alma e pior, sem perspectiva do futuro.

4.2 Desenhando o mundo, alertando a história

Antes de partir para a discussão deste tópico, é necessário apontar um pouco da

definição do que venha a ser história. Para tanto, Jacques Le Goff (1990) aponta que: “Uma

história é uma narração, verdadeira ou falsa, com base na "realidade histórica" ou puramente

imaginária – pode ser uma narração histórica ou uma fábula.” (p. 13). O termo história é

ambíguo, ou seja, apresenta vários conceitos, entre eles, é considerado uma narração, como

citado anteriormente, seja baseada em fatos reais ou não.

George Orwell, em sua narrativa apresenta a história baseada em fatos que realmente

aconteceram como a Guerra Mundial e os regimes Totalitaristas, mas podemos encontrar em

sua obra resquícios indicando que nem tudo que ele escreveu é verídico, tendo como exemplo

as câmeras por todos os lados, os ministérios entre outros. Mas não podemos intitular o seu

livro como “mentiroso”, ele se utilizou de uma ficção para narrar como poderia vir a ser a

vida na Europa, sobre o controle dos regimes Totalitários, que por sua vez fazem parte da

história verídica.

O romance 1984, “faz” um desenho do mundo depois do período da II Guerra

Mundial, em que a Europa estava destruída, para assim, alertar a história. Ou seja, o

Romancista Inglês quis mostrar ao mundo sua visão sobre o que poderia acontecer se a

sociedade continuasse propícia ao controle dos governos, ele não tinha a intenção de fazer

uma “profecia”, mas um alerta e de certa forma, um “desabafo”, já que ele lutou em várias

guerras em defesa do bem comum.

A história, seja qual for, tenta ser objetiva e reviver o que já aconteceu, porém, isso

não é possível, pois “nada” pode ser revivido do mesmo jeito em que tudo aconteceu. Jacques

Le Goff (1990) mostra que: “a história quer ser objetiva e não pode sê-lo. Quer fazer reviver e

só pode reconstruir. Ela quer tomar as coisas contemporâneas, mas ao mesmo tempo tem de

reconstituir a distância e a profundidade da lonjura histórica.” (p. 16).

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Orwell, em todo o seu romance, vai “criando” uma história a partir de outra já

existente, uma vez que seu livro foi escrito em 1948 e não na data apontada por seu título. E

ao mesmo tempo, ele vai revivendo alguns momentos que ocorreram de uma forma que

prende a atenção do leitor, como se tivéssemos realmente passado por tudo o que ele escreve.

Ao tempo em que parece algo profundamente distante, ele o torna “moderno”, como se fosse

do nosso tempo.

São perceptíveis várias razões que podemos apontar sobre o porquê do romance 1984.

Ao mesmo tempo em que modula nossa sociedade atual, alerta a história do tempo em que o

autor viveu e que a população européia ainda viria a viver, ou não, como de fato não vieram a

vivenciar totalmente.

4.3 O percurso crítico de 1984: A recepção

Antes de um estudo mais ao fundo sobre o percurso crítico feito pelo Romance 1984,

me atentei sobre um conceito ou diferenciação do que venha a ser recepção. E sobre esse

termo, Regina Zilberman (1989) aponta que:

Todavia, cumpre distinguir entre duas modalidades de relacionamento entre o texto e o leitor: de um lado, ao ser consumida, a obra provoca determinado efeito sobre o destinatário; de outro, ela passa por um processo histórico, sendo ao longo do tempo recebida e interpretada de maneiras diferentes – esta é sua recepção. (ZILBERMAM, 1989, p. 64)

Assim, torna-nos evidente que a recepção de uma obra, seja esta qual for, irá depender

de forma constante do leitor, pois é ele quem “retira” do texto aquilo que lhe parece

agradável. Desta forma, a autora busca salientar que um texto pode passar um período de

adaptação do leitor, pois em alguns casos, causa estranheza ou até mesmo certa “dificuldade”

de entendimento. Cada leitor tem uma maneira diferente de entender uma obra, é algo muito

peculiar, pois a vivência de mundo, entre outros aspectos, pode afetar direta ou indiretamente

no que um texto ou uma obra expressa na visão de quem a está lendo.

A recepção do romance 1984, que pode ter passado por um processo de adaptação, já

que a obra não se trata apenas de uma ficção por ficção, mas mostra uma realidade vivida por

alguns de uma forma mais grotesca e “dura” de se interpretar. Orwell, não tinha pretensão de

fazer uma “profecia”, mas a recepção de sua obra foi vista por muitos desta forma, ou até

mesmo como um devaneio, já que o que foi escrito por ele não chegou a se concretizar da

forma como estava.

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Muitas especulações foram feitas sobre o Romance, e sobre o título 1984, uma vez que

ele não foi escrito nesta data. Amanda Górski (2009), publicou que:

O título de Orwell permanece um mistério. Alguns dizem que ele estava fazendo alusão ao centenário da Sociedade Fabiana, fundada em 1884. Outros sugerem uma inclinação para o romance de Jack London, “The Iron Heel” (no qual o movimento político veio ao poder em 1984), ou talvez fosse uma das histórias de seu escritor favorito, GK Chesterton, "The Napoleon of Notting Hill", que se passava em 1984. (GÓRSKI, 2009)

Como podemos analisar até o título do Romance trouxe muita repercussão sobre a

intenção de George Orwell, e esse é um mistério que não será desvendado, já que cada leitor

ou cada crítico retira suas próprias conclusões. O percurso crítico de 1984, acredito, que foi

muito além até mesmo do que o próprio escritor esperava.

Romance muito bem escrito, que levou muitas pessoas a refletirem sobre a vida em

sociedade e acarretou bastante discussão, pois, até hoje, não se sabe ao certo qual a verdadeira

intenção de Orwell, pois, seu livro vai muito além de uma crítica aos regimes totalitários, não

é por acaso que muitos trabalhos foram escritos baseados nele.

A literatura tem um papel importante e fundamental na educação, pois, ela é capaz de

transformar a mente das pessoas, esse talvez, tenha sido um dos objetivos de Orwell ao

escrever um romance tão profundo e intenso. Regina Zilbermam (1989) mostra que: “A

educação contém igualmente essa utopia libertadora, de modo que pode concretizá-la através

da literatura, sem ter de contrariar sua natureza, nem a da arte. Para tanto, basta deixar obras e

leitores falarem.” (p. 111)

1984, é uma obra que tem muito a “dizer” a nossa vida social, por esse fato, foi tão

criticado e ao mesmo tempo “idolatrado”, uma vez que um romance mostre a nossa realidade

com outros olhos, ele passa a ser visto com bons olhos ou não, dependendo muito do leitor.

Zilbermam (1989) aponta:

Os valores não estão prefixados, o leitor não tem de reconhecer uma essência acabada que preexiste e prescinde de seu julgamento. Pela leitura ele é mobilizado a emitir um juízo, fruto de sua vivência do mundo ficcional e do conhecimento transmitido. Ignorar a experiência aí depositada equivale a negar a literatura enquanto fato social, neutralizando tudo que ela tem condições de proporcionar. (ZILBERMAM, 1989, p. 110)

Não podemos desprezar o papel que a literatura pode oferecer a nossa vida social,

principalmente uma ficção como a apresentada por Orwell em 1984. Pela leitura ficcional

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podemos nos “apropriar” de conhecimentos por ela oferecidos, transformando assim, nossa

sociedade e nossa vida. George Orwell nos proporciona tudo isso no momento da leitura de

sua obra ficcional, já que sua escrita revela-nos um cotidiano, que muitas vezes não

percebemos que existe.

Assim, fica evidente o importante papel de obras literárias, como 1984, na formação

das pessoas, já que as obras “falam” por si só, e os leitores “dão” para cada uma delas a

interpretação que lhe convém, mas, lembrando sempre que a literatura “antiga” ou anterior

tem muitas lições sobre a nossa vida atual que nunca poderíamos imaginar se não fosse

através de uma leitura ficcional.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, estabelecendo o último paralelo entre literatura e modernidade a partir do

romance 1984, percebe-se que as duas são indissociáveis, já que o período moderno faz parte

da história e a mesma está diretamente ligada à literatura.

No início deste trabalho, levantei algumas hipóteses visando um melhor

esclarecimento do meu estudo. Depois de todas as análises feitas até aqui, podemos perceber e

encontrar possíveis respostas para tais questionamentos.

A crítica feita por Orwell pode ser aplicada às sociedades contemporâneas, uma vez

que o mundo em que vivemos atualmente as pessoas estão se tornando cada vez mais

individualistas e sem expectativas de vida, uma rotina que parece não acabar, como é

apresentada pelo autor em seu romance, pessoas sem “diversão”, que não buscam uma

melhoria de vida e se conformam facilmente com o que pensam possuir.

Também podemos perceber como os meios de comunicação de massa exercem uma

forte influência e manipulação na vida da população. Na Oceania, país fictício utilizado por

Orwell em sua obra, as pessoas tem suas vidas vigiadas pelo Big Brother, todo o tempo,

através de câmeras. Hoje, não somos “controlados” pelo mesmo meio utilizado pelo autor,

mas os meios de comunicação exercem um agenciamento ideológico nas populações quase da

mesma forma, pois nem toda informação passada por eles é realmente verídica.

George Orwell traz uma crítica, não só às características da modernidade, mas

também, como esse agenciamento ideológico do imaginário das pessoas faz com que a vida

perca sua essência e seu real sentido. Nesse trabalho busquei trazer um estudo diferenciado de

como a literatura vinculada a nossa vida social e como ela pode beneficiar o intelecto e a

educação, trazendo para a população a possibilidade de se “libertar” de qualquer forma de

manipulação.

Romance passível de várias análises, que além de mostrar o domínio dos regimes

totalitários, é capaz de mostrar como a literatura pode ajudar a população a ter uma vida mais

digna. George Orwell, autor de mente brilhante, configura 1984,como uma obra que foi

escrita no século XX, mas que pode ser aplicada ainda nos dias atuais, fazendo dos seus

leitores pessoas críticas e pensantes.

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