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  PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUN ICAÇÃO SOCIAL DEPARTAMENTO DE PUBL ICIDADE E PROPAGANDA  LUCIANA WEBSTER NEGRE TTO  AS REL ÕES ENTRE A DINÂ MICA PÓS-MODERNA E O CONSUMO MINIMALISTA PORTO ALEGRE 2013 

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AS RELAÇÕES ENTRE A DINÂMICA PÓS-MODERNA E O CONSUMO MINIMALISTA

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAO SOCIAL

    DEPARTAMENTO DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA

    LUCIANA WEBSTER NEGRETTO

    AS RELAES ENTRE A DINMICA PS-MODERNA E O CONSUMO MINIMALISTA

    PORTO ALEGRE 2013

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAO SOCIAL

    DEPARTAMENTO DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA

    LUCIANA WEBSTER NEGRETTO

    AS RELAES ENTRE A DINMICA PS-MODERNA E O CONSUMO MINIMALISTA

    PORTO ALEGRE

    2013

  • LUCIANA WEBSTER NEGRETTO

    AS RELAES ENTRE A DINMICA PS-MODERNA E O CONSUMO MINIMALISTA

    Monografia apresentada como requisito parcial para concluso do curso e obteno do ttulo de Bacharel em Comunicao Social, com habilitao em Publicidade e Propaganda, da Faculdade de Comunicao Social, da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Orientadora: Profa. Ma. Priscilla Guimares de Oliveira

    PORTO ALEGRE

    2013

  • LUCIANA WEBSTER NEGRETTO

    AS RELAES ENTRE A DINMICA PS-MODERNA E O CONSUMO MINIMALISTA

    Monografia apresentada como requisito parcial para concluso do curso e obteno do ttulo de Bacharel em Comunicao Social, com habilitao em Publicidade e Propaganda, da Faculdade de Comunicao Social, da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

    Aprovado em ____ de ________________ de 2013.

    BANCA EXAMINADORA

    _________________________________________________ Profa. Ma. Priscilla Guimares PUCRS

    Orientadora

    _________________________________________________ Profa. Dra. Paula Puhl PUCRS

    _________________________________________________ Profa. Dra. Rosane Palacci dos Santos PUCRS

  • Dedico este trabalho minha av Maria Medina Webster, que, da maneira dela, tambm me ensinou quais so as coisas realmente importantes na vida.

  • AGRADECIMENTOS Agradeo minha orientadora e amiga, professora Ma. Priscilla

    Guimares de Oliveira, pela amizade nos meus ltimos anos de FAMECOS e pela

    confiana e dedicao durante o processo do desenvolvimento deste trabalho.

    professora Dra. Rosane Palacci, pela compreenso e orientao durante a

    disciplina de Monografia I, na qual tracei os primeiros passos rumo ao meu

    trabalho de concluso. A todos os professores da FAMECOS e colegas de

    trabalho e estgio, que, certamente, contriburam para a minha formao, no

    apenas acadmica ou profissional, mas tambm pessoal. Em especial, agradeo

    minha primeira e mais querida professora: minha me Maria Izabel Webster

    Negretto, que somente este ano j fez junto com as filhas e viveu intensamente as

    emoes de uma monografia e uma dissertao de mestrado (agora vamos te dar

    um intervalo, me!).

    Aos meus pais, pela viso de colocar a educao sempre em primeiro

    lugar, proporcionando-me a melhor formao possvel. Ao meu namorado Giorgio,

    pela cumplicidade, amor e compreenso junto dos inmeros no posso, tenho

    que fazer a mono. s mulheres da minha vida: minha me, minha irm Giovanna,

    minha dinda roubada Rosa e minha av Maria. Sem vocs nada disso faria

    sentido.

    Ao curso de Design Visual da UFRGS, que neste ano de 2013 me

    proporcionou conhecer pessoas lindas e amigos incrveis. s minhas amigas l de

    trs, que desde o tempo do colgio esto comigo e eu com elas. Em especial,

    agradeo aos meus amigos interessantssimos Giovani, Gabriela, Fagner, Karla,

    Mariana, Thiago e Thuanny, que fizeram meus anos de FAMECOS serem to

    especiais e certamente inesquecveis. Levo vocs junto comigo pra sempre,

    independente dos caminhos que seguiremos daqui para frente.

  • RESUMO O presente trabalho tem como objetivo compreender o que o consumo

    minimalista e que fatores do mundo ps-moderno contriburam para o seu surgimento. Assim, foram primeiramente levantados dados bibliogrficos acerca do sistema capitalista, modernismo, ps-modernismo, sociedade de consumo, consumismo e publicidade, para evidenciar o contexto no qual o minimalismo est inserido. Foi adotada uma abordagem no apenas econmica, mas tambm social e psicolgica em relao hipermodernidade, de forma a englobar todos os fatores envolvidos no estilo de vida minimalista. Por meio da pesquisa qualitativa, foram realizadas entrevistas em profundidade, objetivando ampliar ainda mais o conhecimento acerca do assunto, obtendo informaes que no poderiam ser coletadas apenas com o levantamento bibliogrfico. Como resultado, temos um slido panorama acerca das motivaes individuais e histricas que levam diversos indivduos a se tornarem adeptos ao minimalismo como um estilo de vida norteador na era ps-moderna.

    Palavras-chave: Capitalismo. Publicidade. Ps-modernismo. Sociedade de consumo. Consumismo. Consumo minimalista.

  • ABSTRACT The present project aims at understanding what minimalist consumption

    is, and which aspects of the postmodern world contributed to its emerging as well. Thus, the first step was to rise bibliographic data about the capitalist system, modernism, postmodernism, consumer society, consumerism and advertising, to bring to light the context in which minimalism is inserted. In order to encompass all the factors involved in the minimalist lifestyle, it was adopted not only an economical approach, but also a social and phychological one, regarding hypermodernity. Through qualitative research, in-depth interviews were conducted, aiming to further expand the knowledge on the subject, and obtaining information that could not be collected only with the bibliographical data. The result was a solid overview about the individual and historical motivations that lead many individuals to become followers of minimalism as a lifestyle guiding the postmodern era.

    Keywords: Capitalism. Advertising. Postmodernism. Consumer Society. Consumerism. Minimalist consumption.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1: Movimentao do significado .............................................. 40 Figura 2: Pirmide de Maslow ............................................................ 52 Figura 3: Visualizao de antenas parablicas em favelas urbanas .. 53 Figura 4: Dados acerca do excesso de informaes no mundo ps-

    moderno ..............................................................................

    62 Figura 5: Ponto de suficincia ............................................................ 70 Figura 6: Anncio da marca Natura .................................................... 71 Figura 7: Anncio televisivo da linha Sou da Natura .......................... 72 Figura 8: Embalagem da linha Sou da Natura ................................... 72 Figura 9: Estrutura de pirmide invertida aplicada ao trabalho e aos

    roteiros ................................................................................

    77

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ................................................................................... 11 2 CONTEXTO DO CONSUMO: HISTRIA, ECONOMIA E

    SOCIEDADE ......................................................................................

    14 2.1 UM OLHAR SOBRE OS CICLIOS DO CAPITALISMO ................. 14 2.2 UM OLHAR SOBRE O ESPRITO DOS TEMPOS ........................ 22 2.2.1 Zeitgeist Modernista .................................................................. 22 2.2.2 Zeitgeist Ps-Modernista .......................................................... 32 3 A SOCIEDADE DE CONSUMO ......................................................... 37 3.1 CONSUMISMO .............................................................................. 45 3.2 HIPERCONSUMISMO ................................................................... 47 3.3 CONSUMO E PUBLICIDADE ........................................................ 52 3.3.1 Necessidade, Pulso e Desejo ................................................. 52 3.3.2 Publicidade ................................................................................ 55 4 NOVO CICLIO DE CONSUMO: O MINIMALISMO ............................ 58 4.1 CONSUMO MINIMALISTA ............................................................ 60 4.1.1 O consumidor minimalista tambm compra ........................... 67 4.1.2 O consumo minimalista como autoconhecimento ................ 72 5 MINIMALISMO: UM NOVO BEM SOCIAL ........................................ 75 5.1 PROCEDIMENTOS METODOLGICOS ...................................... 75 5.2 ANLISE DOS RESULTADOS ...................................................... 78 6 CONSIDERAES FINAIS ............................................................... 85 REFERNCIAS ....................................................................................... 88 APNDICE A Roteiro da entrevista aplicada coolhunter Paula

    Quintas ..........................................................................

    93 APNDICE B Roteiro aplicado entrevistada consumista Giuliana

    Mesquita ........................................................

    94

    APNDICE C Roteiro aplicado aos entrevistados minimalistas Camile Carvalho e Alexandre Meirelles .....................

    95

    APNDICE D Descrio dos dados coletados nas entrevistas em

    profundidade

    96

  • 1 INTRODUO

    A maneira como o consumo entranhou-se nas sociedades ocidentais

    algo singular e poderoso. Tanto na esfera pblica, quanto na esfera privada, essa

    presena constante do consumo em nossas vidas altera significativamente

    comportamentos, aspiraes, sonhos e estilos de vida. Dessa maneira, a forma

    como consumimos se torna um espelho de nosso tempo, revelando muito mais do

    que predilees no ato da compra: demonstra nossa viso de mundo, ambies e

    anseios.

    No momento em que adentramos a era ps-moderna, os traos nicos do

    homem e das sociedades da atualidade revelam que o consumo aprofundou

    ainda mais o seu alastramento em nossas vidas, atingindo nveis at ento

    inditos. Esse aspecto, somado ao contexto econmico e s particularidades

    internas de cada indivduo, resultam em comportamentos de consumo e estilos de

    vida que anteriormente no seriam possveis. Este o caso do consumo

    minimalista, objeto de pesquisa deste trabalho.

    Esse estudo teve origem na leitura do livro A Sociedade da Decepo,

    de Gilles Lipovetsky (2007), e em pesquisas acerca do termo ps-modernismo e

    seus significados. A leitura de Lipovetsky nos leva a uma clara relao entre o

    consumo e a hipermodernidade, o que acaba por gerar nos indivduos a

    frustrao e a decepo. A partir da, foram encontradas diversas propostas de

    grupos que tentavam buscar uma alternativa em relao lgica hipermoderna,

    entre elas o consumo minimalista. O minimalismo se prope a ser um estilo de

    vida libertador, que alforria o indivduo do seu rtulo de turboconsumidor para

    voltar a ser uma pessoa que anseia por experincias mais reais do que o

    consumo atual consegue lhe oferecer. Dessa forma, o presente trabalho se

    prope a responder de que maneira o ps-modernismo pode gerar estilos de vida

    como o minimalismo, que transforma as relaes de consumo dos indivduos e a

    comunicao, tendo como objetivos analisar o consumo na ps-modernidade,

    compreender o que o minimalismo e quem o pratica e averiguar os fatores que

    influram no surgimento deste estilo de vida.

    Nessa perspectiva, impossvel no refletirmos acerca da publicidade em

    todo esse processo de construo de uma sociedade da decepo. A

  • 12

    publicidade se torna uma pea-chave nessa perspectiva, uma vez que cabe a ela

    traduzir todo esse conceito para o consumidor, de forma deleitosa e tentadora.

    preciso ressaltar, entretanto, que o hiperconsumismo uma construo

    conjunta das mais diversas instituies de nossa sociedade e dos mais diversos

    campos (econmicos, sociais, polticos), sendo a publicidade uma pea vital,

    porm incapaz de produzir tais resultados isoladamente. Essa noo trabalhada

    especialmente no captulo 3, na qual utilizamos a viso de Wellausen (1998), que

    no responsabiliza exclusivamente a publicidade por todo esse processo. Pelo

    contrrio, Wellausen ressalta que a publicidade apenas exterioriza objetos

    internalizados do consumidor, no sendo capaz de criar necessidades por si s.

    Atravs de trs captulos de levantamento bibliogrfico, possvel

    compreender mais efetivamente os contextos econmico, social e psicolgico que

    propiciaram o surgimento do consumo minimalista. No captulo 2, feito um

    apanhado histrico acerca do capitalismo, desde sua gnese at os dias

    presentes. A partir dele, possvel termos uma noo fundamentada de como e

    por que nossa sociedade est organizada da forma atual, alm de melhor

    compreendermos a relao do capitalismo frente ao desenrolar da histria da

    humanidade. Este captulo tambm demonstra a relao ntima do capitalismo

    com as crises econmicas e seus movimentos cclicos de expanso e retrao.

    Alm disso, so apresentados os conceitos-chave de modernismo e

    ps-modernismo, imprescindveis para melhor entendermos o zeitgeist dessas

    duas eras. O ps-modernismo, especialmente, possui caractersticas de

    indispensvel exposio, uma vez que estas servem como pilares ao sustentar o

    consumo minimalista.

    Na sequncia, o captulo 3 levanta dados mais especficos acerca da

    sociedade de consumo, explorando tambm os aspectos psicolgicos envolvidos

    no consumismo to recorrente na sociedade ocidental. Este espao do trabalho

    esclarece a profunda relao dos homens com seus objetos, levando em

    considerao suas projees nestes bens materiais e os significados sociais

    envolvidos nesse processo. Enquanto o captulo 2 possui uma abordagem mais

    econmica do consumo, cabe a este captulo expandir a viso do leitor acerca do

    mesmo, adicionando teorias sobre por que o homem necessita tanto consumir

    bens e que uso fazemos dos mesmos.

  • 13

    O captulo 4 dedicado integralmente ao estudo do consumo minimalista

    propriamente dito, trazendo uma grande quantidade de informaes no que diz

    respeito aos ideais minimalistas acerca do indivduo e da sociedade ideal. Como o

    estilo de vida minimalista se prolifera mais intensamente pela blogosfera, foi

    possvel um levantamento particular no que diz respeito s motivaes do

    consumidor minimalista, atravs, especialmente, de depoimentos presentes nos

    blogs destes indivduos. Este captulo responsvel por desmistificar o

    minimalismo, expondo tanto os contextos macroeconmico e histrico que

    propiciaram a sua existncia, quanto os fundamentos e anseios que levam um

    indivduo a ser adepto deste estilo de vida.

    No captulo seguinte, encontram-se as entrevistas em profundidade

    aplicadas para aprofundar ainda mais o estudo, revelando dados que no

    poderiam ser coletados atravs do levantamento bibliogrfico exclusivamente.

    Foram aplicadas quatro entrevistas em profundidade, sendo duas com

    consumidores minimalistas, uma com um indivduo consumista e uma com uma

    especialista em comportamento. Os diferentes perfis contemplados nas

    entrevistas tm como objetivo confrontar as distintas vises acerca dos tpicos

    propostos (contexto econmico, consumo, minimalismo e publicidade), de

    maneira a ser possvel analisar as semelhanas e diferenas entre os pontos de

    vista dos entrevistados. A anlise das entrevistas presente no captulo 5 nos

    permite expandir o conceito de consumo minimalista e apreci-lo de maneira mais

    crtica e consistente. O cruzamento de dados entre o que foi levantado nas

    entrevistas em profundidade e o levantamento bibliogrfico gerou diversos

    insights acerca do minimalismo.

  • 2 CONTEXTO DO CONSUMO: HISTRIA, ECONOMIA E SOCIEDADE

    2.1 UM OLHAR SOBRE OS CICLOS DO CAPITALISMO

    A maneira como o homem se relaciona com suas posses, com o dinheiro

    e o consumo est estritamente relacionada ao contexto histrico ocidental da

    gnese do capitalismo. Mais do que apenas um novo modelo socioeconmico, a

    transio das sociedades pr-capitalistas representa uma transformao

    completa das relaes e prticas humanas mais fundamentais, de um rompimento

    com antiqussimos padres de interao humana com a natureza, conforme

    Wood (2001, p. 77).

    Adam Smith nos prope a existncia de uma propenso natural humana a

    intercambiar, permutar ou trocar objetos (SMITH, 1985). Sob esta tica, o

    desenvolvimento do capitalismo estaria associado s prticas comerciais

    inerentes ao ser humano e queda gradual de barreiras que impediam sua plena

    evoluo, como atravs da Reforma Protestante, na qual o mundo passou a ver o

    trabalho e o lucro no mais como uma maldio ou pecado cristo (WEBER,

    2005).

    Esta no , entretanto, a nica linha de pensamento aceita para justificar

    o nascimento do capitalismo. Para Wood, a superao das estruturas pr-

    capitalistas se d de acordo com as relaes particulares de propriedade entre

    produtores e apropriadores, seja na indstria, seja na agricultura (2001, p. 77),

    independente de acontecerem no contexto urbano ou rural. Nas sociedades pr-

    capitalistas, os camponeses eram produtores diretos e detinham a posse dos

    meios de produo, especialmente a terra. A apropriao do excedente do

    trabalho campons era explorada atravs de mtodos coercitivos pelo Estado e

    grandes proprietrios, que tinham acesso ao poder militar, poltico e jurdico. Na

    estrutura capitalista, por sua vez, os proprietrios diretos so desprovidos dos

    meios de produo, necessitando vender a sua fora de trabalho em troca de um

    salrio. Nesse caso, no existe coero direta do trabalho excedente, e sim

    atravs da lgica econmica do mercado capitalista (WOOD, 2001).

    O feudalismo possua conjuraes diversas na Europa e, durante a crise

    do sistema feudal, no sculo XIV, o surgimento do capitalismo pode ser situado

  • 15

    como uma soluo especificamente na Inglaterra bero da 1 Revoluo

    Industrial e, posteriormente, se alastrando para outros pases. A sociedade

    camponesa, pequeno modo de produo, surge do processo de emancipao dos

    servos, e o capitalismo do processo de diferenciao social em seu seio

    (OLIVEIRA. 1999, p. 19). O mesmo servo que se emancipa, ganha a terra que

    antes era de propriedade do senhor feudal, ao mesmo tempo em que, porm,

    perde a proteo do mesmo, caindo num processo de empobrecimento que o leva

    a vender sua mo de obra como sustento. Nascem assim os primeiros

    trabalhadores assalariados. Contudo, a sociedade capitalista se instaura

    efetivamente na Inglaterra aps o processo dos cercamentos (enclosures), no

    qual o campons expulso de seu meio de trabalho, e a terra se transforma em

    propriedade, instituio fundamental do capitalismo. Com a separao do

    trabalhador do seu meio de sustento e o trabalho assalariado, origina-se um novo

    tipo de mercado, j que agora os empregados necessitavam adquirir os produtos

    por eles antes produzidos. Economicamente, grandes comerciantes controlavam

    o lucro das manufaturas atravs de monoplios na venda da matria-prima e na

    compra dos produtos. A soluo para acumular capital estava na explorao da

    mo de obra do trabalhador. Dessa maneira, mantinham-se os salrios e

    buscava-se aumentar a produtividade, atravs da incorporao de novas

    mquinas e equipamentos, embora at a 1 Revoluo Industrial a manufatura

    tenha sido predominante (OLIVEIRA, 1999).

    A passagem para a 1 Revoluo Industrial foi impulsionada pela

    contradio da manufatura: o conhecimento da produo estava nas mos do

    trabalhador, o que fazia com que a mesma fosse dependente da limitao fsica

    do empregado. Dessa forma, em momento de alta demanda, a oferta de trabalho

    tambm era maior, fazendo com que os salrios aumentassem e a margem de

    lucro diminusse. Assim, o capitalista encontrava dificuldade de controlar o

    trabalhador e a gerao de lucros. Esta a contradio da manufatura, nas

    situaes de aquecimento do mercado, as condies existentes impediam a

    expanso da acumulao (OLIVEIRA, 1999, p. 24). Com isso, temos a passagem

    da manufatura para a maquinofatura atravs, principalmente, da mquina a

    vapor e do tear mecnico , o que permitiu a dominao real do trabalho e o

    aumento dos lucros. Seguindo o exemplo ingls, logo outros pases europeus,

    como Frana, Blgica e Alemanha, passam pelo mesmo processo, acirrando a

  • 16

    concorrncia mundial. Paralelamente, a Europa assiste a um processo de

    articulao por parte dos trabalhadores, que conquistam direitos como a reduo

    da jornada de trabalho e aumento salarial. Tais fatores acarretam na 1 Grande

    Depresso que, para ser solucionada, necessitou de trs processos

    correlacionados: o capitalismo monopolista (fuses e incorporaes de

    empresas), o imperialismo (busca de novas terras para obteno de matria-

    prima e novos mercados consumidores) e a 2 Revoluo Industrial (OLIVEIRA,

    1999). Atravs do emprego da energia eltrica, motor combusto, inveno do

    telgrafo, entre outros, a 2 Revoluo Industrial permitiu que novos setores

    surgissem e antigos setores se renovassem, reoxigenando o sistema capitalista.

    Em meio a todo esse processo, observa-se uma mudana na ordem

    mundial, na qual Alemanha e Estados Unidos ultrapassam a Inglaterra e lideram a

    prxima fase do capitalismo, pelos motivos destacados por Oliveira (1999, p. 35): A estratgia inglesa foi crescer horizontalmente, abrir novos mercados para seus produtos (e respectiva forma de produo). Enquanto isso, outros pases, EUA e Alemanha, adotavam uma estratgia vertical, a de intensificar o capitalismo, a de criar o novo.

    As potncias industrializadas disputavam cada vez mais as matrias-

    primas e os mercados consumidores mundiais. Esse clima de tenso culminou na

    1 Guerra Mundial. As indstrias americanas aproveitam esse momento para

    produzir e exportar grandes quantidades de produtos para os vizinhos europeus,

    preocupados com os conflitos da primeira grande guerra e, posteriormente, em

    suas reconstrues internas. Contudo, medida que a Europa se recupera,

    comea a dispensar as importaes americanas, o que resulta na superproduo

    que gera a crise de 1929.

    O nmero de acionistas que procurava vender suas aes era muito

    maior do que os que estavam disponveis para compr-las, uma vez que todos

    achavam mais seguro estar com dinheiro em mos. Esse processo gerou o efeito

    bola de neve, que levou a uma baixa na Bolsa de Nova York de propores

    catastrficas. O caos estava instaurado, levando muitos investidores que haviam

    perdido tudo a suicidarem-se, atirando-se das janelas dos edifcios, enquanto o

    nmero de desempregados engrossava a fila da sopa gratuita (ARRUDA 1997,

    apud FILHO; FERREIRA; ZENHA, 2003).

  • 17

    A resposta para a crise foi o questionamento do liberalismo, uma vez que

    a economia no estava respondendo automaticamente a um equilbrio, atravs do

    desenvolvimento do keynesianismo, que defende a interveno estatal na

    economia. Assim, Roosevelt lana o New Deal, programa econmico no qual o

    governo americano ajuda setores econmicos, como bancos, agricultura e

    indstria, a se reestruturarem aps a crise, alm de grandes investimentos em

    obras pblicas para frear o desemprego. desenvolvido, ento, o Welfare State,

    que defende um estado responsvel pelo bem-estar social e pelo equilbrio da

    economia: O aumento das despesas sociais do Estado irriga o conjunto da economia e permite recuperar os nveis de demanda. Dito em outros termos, o aumento de despesas sociais por parte do Estado nos Estados Unidos transcendeu o perodo de combate crise de 1929 e se converteu em um projeto de regulamentao da economia. Assim sendo, o Estado Providncia complementou o projeto fordista, na medida em que ambos se propunham a manter e assegurar o crescimento do consumo (HELOANI, 2000, p. 53).

    Oliveira (1999, p. 39) ainda frisa a questo da posio dos trabalhadores

    no novo modelo de Estado: Enfim, o New Deal lanou as bases do Welfare State.

    Um novo compromisso em que os trabalhadores foram, de fato, incorporados ao

    mundo capitalista como consumidores.

    Juntamente com o Welfare State, outro fator decisivo para a sada da

    crise foi a difuso do fordismo, sistema de produo e gesto criado por Henry

    Ford, um novo modelo que visa a produo em massa, baseando-se em

    inovaes tcnicas e organizacionais. No que diz respeito ao trabalho, o fordismo

    separa drasticamente a concepo e a execuo, atravs do trabalho

    fragmentado e simplificado e dos ciclos operatrios curtos, o que demandava

    pouco treinamento dos trabalhadores. A concepo fordista adota a linha de

    montagem junto esteira rolante, evitando o deslocamento desnecessrio do

    trabalhador, para manter o foco deste no trabalho, eliminando a porosidade, ou

    seja, os tempos mortos e sem produo. Alm disso, o fordismo opera atravs da

    recompensa do trabalhador, que recebe um salrio mais alto, chamado de five

    dollars a day na fbrica de Henry Ford (CATTANI, 1997).

    importante ressaltar que, alm de uma organizao interna da indstria,

    o fordismo e sua poltica do five dollars a day, alm de se propor a recompensar o

    trabalhador, um fator decisivo no poder aquisitivo do consumidor perante a

  • 18

    economia, pois este alavanca os investimentos, aumentando a produtividade,

    que, novamente, repassada aos salrios, gerando um ciclo que expande o

    consumo. Dessa forma, aps 1935, o modelo fordista gera a disseminao da

    produo de massa para o conjunto da economia, e essa expanso abre novas

    frentes de acumulao capitalista, uma vez que a reproduo da fora de

    trabalho se transformaria em parte integral da reproduo do capital (HELOANI,

    2000, p. 53).

    Nessa perspectiva, o Welfare State, o fordismo e o keynesianismo

    inauguram de 1945 at as dcadas de 1970/1980 uma nova fase de prosperidade

    do sistema capitalista. Alm da produtividade, pode-se observar a incluso social

    neste sistema, j que o capitalismo deixou de ver os trabalhadores

    exclusivamente como mo de obra, incluindo-os tambm como consumidores das

    mercadorias que eles mesmos produziam (OLIVEIRA, 1999). Mas Oliveira (1999,

    p. 41) adverte: No sistema capitalista a prpria prosperidade gesta a futura crise.

    Isso porque, a partir dos anos 1960, j podemos perceber sinais de esgotamento

    na nova fase. Desse modo, aplicando solues j conhecidas para os problemas

    recorrentes do sistema, os capitalistas conseguem estender a chamada idade de

    ouro do capitalismo at 1970/1980. As multinacionais optam por aplicar o

    excesso de capital no exterior e assegurar mercados nas reas dos pases que

    praticavam a proteo da economia interna atravs da substituio de

    importaes. Alm disso, surgem novas ondas de fuses e incorporaes

    empresariais, assim como novas estratgias at hoje adotadas, como a

    obsolescncia programada, uma alternativa falta de novos produtos ou

    processos inovadores. Outro caminho adotado pelas empresas foram as

    estratgias de marketing, atravs da popularizao do efeito carro do ano em

    diversos produtos, assim como alteraes estticas nos mesmos para induzir ao

    descarte mais rapidamente e a substituio atravs do consumo (OLIVEIRA,

    1999).

    Aps a Segunda Guerra mundial, foram desenvolvidas as principais

    descobertas eletrnicas: o primeiro computador programvel e o transistor, a

    partir da microeletrnica (CASTELLS, 1999). A partir da, diversas tecnologias

    foram desenvolvidas, culminando no que os historiadores chamam de Terceira

    Revoluo Industrial, estabelecida especialmente pela indstria de

    semicondutores centrada no Vale do Silcio em So Francisco. O nome do vale

  • 19

    deriva do principal produto dessa indstria, os complexos circuitos eletrnicos

    constitudos de mnimas peas de silcio (OSBORNE, 1984).

    Dessa forma, as novas tecnologias da Terceira Revoluo Industrial

    trouxeram mudanas estruturais na sociedade capitalista, especialmente no que

    diz respeito velocidade da comunicao e da informao. Os canais de

    comunicao tpicos da era industrial, como os sistemas telefnicos, estavam

    despreparados para a gigantesca quantidade de dados computadorizados,

    ficando sobrecarregados. Dessa forma, surgem diversos novos canais de

    comunicao e instrumentos para suportar os abundantes dados, em uma

    verdadeira exploso de inovaes tecnolgicas, na tentativa de conter a

    sobrecarga de informaes (TOFFLER, 1983). Podemos, assim, fechar um ciclo: mais diversidade e mudana so iguais a mais informaes, que so iguais a mais tecnologias para processar informaes e isto, acho, leva a ainda mais diversidade e mudana. essa a dinmica que impulsiona a revoluo nas informaes, que fazem apenas parte de uma onda maior de mudana que ora comea a obliterar a velha sociedade industrial (TOFFLER, 1983, p. 120).

    Alm disso, os meios de comunicao da era industrial se caracterizavam

    pelo seu carter centralizador (seja pelo governo ou por grandes empresas) e

    divulgao de massa. O advento de novas tecnologias, como o gravador de fitas,

    subverteu tal lgica, pois estas permitiam que o receptor fosse tambm produtor

    de contedo, elaborando mensagens e disseminando-as. A mesma perspectiva

    pode ser aplicada a mquinas, como o Xerox (potenciais disseminadores de

    ideias ilcitas), o computador (antes centralizados ampliando o poder do governo

    ou empresa e agora pequenos o bastante para serem manuseados at por

    crianas), a televiso a cabo (que antes era um sistema de mo nica e agora se

    apresenta com interatividade, no qual os espectadores podem conversar com o

    transmissor), entre outros. Tais inovaes tecnolgicas, principalmente no que diz

    respeito ao campo da informao e comunicao, contribuem para que o controle

    central sobre nossas vidas seja reduzido ao invs de aumentado (TOFFLER,

    1983).

    Todo esse processo possui desdobramentos nos mais variados setores

    da sociedade. Economicamente, podemos observar que as fronteiras nacionais

    so barreiras do passado, uma vez que a economia passa a ter uma unidade

  • 20

    agora global. Desse modo, as empresas buscam matria-prima, infraestrutura e

    mo de obra nas localidades mais baratas e vendem seus produtos onde o

    mercado consumidor est apto a pagar mais (OLIVEIRA, 1999). A queda das

    fronteiras entre pases permitiu a maximizao dos lucros, atravs da economia

    global: A desregulamentao dos mercados financeiros, aliada aos crescentes avanos da informtica e telemtica, aceleram a velocidade e os volumes dos fluxos de capitais. Sempre procura de melhores oportunidades (taxas de juros e lucratividade mais elevadas) os capitais no se fixam em nenhum pas; dificilmente se prendem produo. O resultado a criao de um mercado especulativo em escala global [...]. Assim, cada grande empresa, pases ou blocos se fortalecem nas novas tecnologias e se preparam para maiores enfrentamentos [...]. O capitalismo ainda continua o mesmo (OLIVEIRA, 1999, p. 45).

    Dentro da perspectiva de economia global, descentralizao e Terceira

    Revoluo Industrial, o advento da internet trouxe mudanas profundas na

    economia. Enquanto tecnologias, como o broadcast, permitiam transmitir um

    programa de televiso, por exemplo, a um milho de pessoas com igual

    eficincia, a internet permitiu levar um milho de programas para uma s pessoa.

    Isso marca uma verdadeira revoluo no consumo de entretenimento. Surge,

    dessa forma, o mercado de variedades, de escolhas infinitas, que rompe com a

    anterior indstria de massa uniforme. O mercado de massa se converteu em um

    mercado de nichos, trazendo tona uma demanda anteriormente invisvel, na

    qual cineastas amadores, por exemplo, conseguem encontrar seu pblico atravs

    da internet, graas economia da distribuio digital. As vantagens e

    possibilidades trazidas pela internet subverteram a lgica econmica vigente.

    Antes, um CD, que vendia apenas uma cpia por trimestre, era um desperdcio de

    dinheiro, pois demandava custos para ter sua presena fsica nas lojas (aluguel,

    funcionrios, estoque, etc.). Com o ambiente digital, essas vendas esparsas

    ganham flego, pois os custos so inexistentes, gerando uma economia de varejo

    on-line potencialmente mais poderosa do que o varejo tradicional. Assim,

    Anderson desenvolveu a teoria da Cauda Longa, na qual foi observado que

    estes produtos menos procurados poderiam vender pouco individualmente,

    porm, por serem extremamente numerosos, seu todo constitua um negcio

    extremamente rentvel. Com isso, temos o triunfo do mercado digital

    especializado. A Cauda Longa vai ao encontro tambm da economia da

  • 21

    abundncia, pois inaugurado um mercado de infinitas escolhas, disponvel a

    todos e em qualquer local, devido a seu ambiente digital (ANDERSON, 2006).

    Economia global, crise global: em 2008 o mundo assiste a uma crise que

    tm incio nos Estados Unidos; contudo, com a mesma rapidez das novas

    tecnologias, se alastra por todo o mundo rapidamente. Com o colapso da bolha

    especulativa do mercado imobilirio americano, juntamente com a enorme

    expanso do crdito bancrio e pelo uso de novos instrumentos financeiros, o

    mundo assistiu maior crise desde a grande depresso de 1929. Podemos

    destacar como detonador da crise a falncia do banco de investimentos Lehman

    Brothers no dia 15 de setembro de 2008, aps o banco central americano Federal

    Reserve (FED) se recusar a socorrer a instituio. Assim, o estado de confiana

    dos mercados financeiros sofreu um forte impacto, rompendo com a crena de

    que o FED iria socorrer qualquer instituio financeira afetada pelo estouro da

    bolha especulativa do mercado imobilirio (OREIRO, 2011).

    Como podemos ver, da gnese at os dias atuais as chamadas crises do

    capitalismo so mais do que recorrentes, so cclicas. Assim, os perodos mais

    longos de expanso esto ligados s revolues tecnolgicas, que trazem

    inovaes e injetam novas formas de produo e acumulao capitalista. Uma

    vez que cessam, temos um perodo de retrao, at novamente o capitalismo

    conseguir se renovar, reiniciando o ciclo: A acumulao , assim, um processo sujeito a ciclos de expanso e recesso, que at so considerados normais no desenvolvimento da produo capitalista. As crises econmicas so, precisamente, o resultado de dificuldades temporrias no processo de valorizao do capital, que fazem declinar a taxa de lucro a nveis considerados insatisfatrios do ponto de vista da rentabilidade normal do capital. De fato, a produo capitalista, desde seus primrdios, tem convivido com crises econmicas de amplitude, profundidade e durao variveis (OHLWEILER, 1988, p. 112).

  • 22

    2.2 UM OLHAR SOBRE O ESPRITO DOS TEMPOS

    2.2.1 Zeitgeist Modernista

    Uma definio meramente histrica do conceito de modernidade confere

    uma resposta relativa ao tempo e espao no qual est situado, contudo resume-o

    de forma simplista e no lhe confere seu real significado. Giddens analisa o

    conceito a partir desta perspectiva, referindo-se modernidade, em um primeiro

    momento, como um costume, estilo de vida ou organizao social caractersticos

    da Europa a partir do sculo XVII e que posteriormente atingiram propores mais

    ou menos mundiais de referncia. O autor, entretanto, ressalta que essa definio

    situa o conceito, mas resguarda suas principais caractersticas (GIDDENS, 1991).

    Na viso de Powell (1998, p. 8), Modernismo um termo geral para uma

    exploso de novos estilos e tendncias nas artes, na primeira metade do sculo

    20. Como um simples perodo histrico seria capaz de criar tal exploso? Nota-

    se rapidamente que o real significado da modernidade transcende essa

    denominao histrica.

    A partir da Idade Mdia, a Europa passa por profundas transformaes

    econmicas, como vistas no tpico anterior, mas tambm polticas atravs da

    formao dos Estados-naes e sociais. O sculo XVIII se transformou no

    sculo das luzes, atravs do Iluminismo, cuja filosofia se baseia na existncia

    conduzida em conformidade com a razo: no foi seu idealismo ou o otimismo

    que motivaram os pensadores na sua empreitada, mas uma nova cincia, um

    mtodo e, aliada a eles, uma nova cincia poltica (BLOOM, apud TOURAINE,

    1995, p. 19).

    Elevando a cincia e a razo posio antes destinada aos dogmas da

    Igreja, o Iluminismo prometia libertar o homem das correntes da ignorncia para ir

    rumo ao progresso definitivo. O nico caminho para a liberdade da escassez, da

    necessidade e da arbitrariedade das calamidades naturais era o domnio

    cientfico. Dessa maneira, as formas racionais de organizao social e tambm a

    racionalizao do pensamento prometiam a libertao das irracionalidades do

    mundo, como os mitos, religio, superstio, entre outros. O Iluminismo

    disseminou a ideia de que, somente por este caminho da razo e racionalidade,

    as qualidades universais e imutveis da humanidade seriam reveladas (HARVEY,

  • 23

    1993). A Revoluo Francesa tambm foi definitiva para a difuso de tal

    pensamento: O esprito do Iluminismo quer destruir no apenas o despotismo, mas os corpos intermedirios, como o fez a Revoluo francesa: a sociedade deveria ser to transparente quanto o pensamento cientfico. Ideia que ficou muito presente nos ideais franceses de repblica e na convico de que ela deve ser, antes de mais nada, portadora de ideais universalistas: a liberdade, a igualdade e a fraternidade (TOURAINE, 1995, p. 20).

    O otimismo iluminista e suas previses de progresso imensurvel e

    libertao entraram em choque com os profundos acontecimentos que marcaram

    o sculo XX: duas guerras mundiais, campos de concentrao, Hiroshima e

    Nagasaki, desastres ecolgicos. Seguindo o ideal da era das luzes, o que o

    sculo XX viu foi a escurido: Ento um problema do modernismo que a

    cincia e a razo no criaram o progresso criaram Auschwitz e Hiroshima

    (POWELL, 1998). Harvey (1993) destaca essa mesma perspectiva de que os

    acontecimentos sombrios do sculo XX deterioraram o otimismo instaurado pelo

    Iluminismo, e ainda ressalta que o pior seria a suspeita de que o projeto iluminista

    estava fadado a voltar-se contra si mesmo, transformando a busca da

    emancipao humana num sistema de opresso universal em nome da libertao

    humana (HARVEY, 1993, p. 23).

    Alm disso, Nietzsche proclamou a Morte de Deus, assim como a morte

    da moral crist. Isso significa que, ao mesmo tempo, alm da runa do

    pensamento iluminista, a cultura ocidental agora perdia tambm sua principal

    instituio, seus smbolos e suas crenas. E o que resta de todo esse processo?

    Nada. Por este motivo, Powell (1998, p. 8) nos prope: Se a era moderna tivesse

    uma imagem central, seria um vcuo. Alm disso, tanto Powell (1998, p. 8),

    quanto Harvey (1993, p. 22) nos trazem os versos de W. B. Yeats para ilustrar o

    modernismo: As coisas se desfazem; o centro no se sustm; a pura anarquia

    est solta no mundo.

    Ns vivemos, entretanto, em uma cultura que preza presena sobre a

    ausncia (POWELL, 1998, p. 11). Por essa razo, era preciso preencher o

    vazio da modernidade com algo que oferecesse sentido. Nietzsche, que antes

    havia privado a cultura ocidental da sua instituio central a Igreja , agora

    oferecia a arte como referncia para o modernismo. Dessa forma, eclodiram

  • 24

    diversos movimentos artsticos modernistas, que buscavam, das mais diversas

    formas, o eterno em meio ao caos (POWELL, 1998). Na medida em que Nietsche dera incio ao posicionamento da esttica acima da cincia, da racionalidade e da poltica, a explorao da experincia esttica alm do bem e do mal tornou-se um poderoso meio para o estabelecimento de uma nova mitologia quanto quilo a que o eterno e imutvel poderia referir-se em meio a toda efemeridade, fragmentao e caos patente da vida moderna. Isso deu um novo papel e imprimiu um novo mpeto ao modernismo cultural (HARVEY, 1993, p. 27).

    Tais movimentos so o reflexo de uma sociedade rf de instituies e

    valores que rejam a sua vida, que lhe mostre o caminho. Ao mesmo tempo em

    que a modernidade nos liberta das amarras da moral e das crenas dogmticas,

    ela nos lana em um vazio um vcuo que ns precisamos que seja

    preenchido. Dessa forma, podemos dizer que a modernidade carregada de

    ambiguidades, pois, ao mesmo tempo em que oferece segurana e confiana,

    oferece tambm perigo e risco. Leito (1997) destaca que neste perodo somos

    invadidos por um ritmo poderoso de mudanas, no qual o avano da

    intercomunicao resulta em uma conexo global. Esse processo feito,

    entretanto, sem que o desenvolvimento das foras de produo tenha resultado

    em melhoras significativas na qualidade de vida da humanidade.

    Harvey (1993) ainda observa que passamos da mxima descartiana,

    Penso, logo existo, para a reinterpretao de Rousseau, Sinto, logo existo,

    assinalando uma radical mudana de uma viso racional e instrumentalista do

    mundo para uma perspectiva mais conscientemente esttica para a realizao

    dos propsitos iluministas (HARVEY, 1993).

    A relao e a diferena entre modernidade e modernizao so

    abordadas por Touraine (1995, p. 19), que afirma que a modernizao no a

    obra de um dspota esclarecido, de uma revoluo popular ou da vontade de um

    grupo dirigente; ela obra da prpria razo e, portanto, principalmente da cincia,

    da tecnologia e da educao [...].

    Autores marxistas indicam o capitalismo como principal fora

    transformadora do mundo moderno. Giddens (1991, p. 16) explica o carter mvel

    e inquieto da modernidade como resultado do ciclo investimento-lucro-

    investimento que, ao se combinar com a tendncia geral da taxa de lucro a

    declinar, resulta em uma disposio constante para o sistema se expandir, o que

  • 25

    faz a ordem social emergente da modernidade ser capitalista, tanto no mbito

    econmico como em suas outras instituies. Autores como Durkheim e Weber,

    entretanto, discordam dessa posio: Para Durkheim, a competio capitalista no o elemento central da ordem industrial emergente, e algumas das caractersticas sobre as quais Marx pusera grande nfase, ele via como marginais e transitrias. O carter de rpida transformao da vida social moderna no deriva essencialmente do capitalismo, mas do impulso energizante de uma complexa diviso de trabalho, aproveitando a produo para as necessidades humanas atravs da explorao industrial da natureza. Vivemos numa ordem que no capitalista, mas industrial (GIDDENS, 1991, p. 16).

    Assim, podemos observar como a modernidade assim como a ps-

    modernidade representa o zeitgeist de seu tempo, uma vez que no apenas

    envolve uma implacvel ruptura com todas e quaisquer condies histricas

    precedentes, como caracterizada por um interminvel processo de rupturas e

    fragmentaes internas inerentes (HARVEY, 1993, p. 22).

    McCraken (2003) nos prope trs momentos de crucial destaque na

    histria do consumo, todos situados na modernidade. Trata-se de booms

    consumistas essenciais para melhor compreendermos a evoluo do consumo

    at o presente momento, nos quais o mesmo avanou, atingindo novas escalas e

    significados. Alm disso, tais episdios funcionaram ao mesmo tempo como

    reflexos e propulsores de novos padres de produo, troca e demanda

    (McCRACKEN, 2003, p. 30). Dessa maneira, torna-se essencial analisarmos

    estes trs momentos no modernismo para, em um segundo momento, melhor

    compreendermos as relaes de consumo dos dias presentes.

    Primeiramente, os ltimos vinte e cinco anos do sculo XVI assistiram a

    uma mudana drstica no seu modelo de consumo. A Inglaterra elizabetana

    adotou um nvel de consumo impensvel por seus antecessores, atravs de

    mudanas nos padres de hospitalidade, especialmente de carter cerimonial,

    como banquetes e vesturios esplendentes e, consequentemente, de alto custo

    (McCRACKEN, 2003).

    Tal epidemia de consumismo est relacionada a dois fatores histricos.

    Primeiramente, Elizabeth I utilizou a despesa como um instrumento poltico. A

    rainha comunicava ao povo seu poder e qualidades para governar atravs do uso

    de objetos magnificentes, vesturio luxuoso e do cerimonial sumptuoso: O

  • 26

    simbolismo supercarregado da corte monrquica, da hospitalidade e do vesturio

    converteu-se na oportunidade para a persuaso e a instruo polticas

    (McCRACKEN, 2003, p. 31). Alm de instrumento simblico, Elizabeth tramou

    uma lgica na qual a prpria nobreza pagava uma parte de toda essa cerimnia,

    pois nesse novo arranjo os nobres deveriam procurar diretamente a rainha para

    receber seu quinho real. Para isso, o nobre tinha que transportar-se at Londres,

    aumentando seus custos e fazendo-o cada vez mais dependente da rainha. Essa

    destreza da rainha era um dos aspectos mais importantes de seu governo,

    conseguindo explorar o poder expressivo de seu mundo de bens. Adicionalmente,

    se destaca a destreza com a qual a rainha inclua de forma incontestvel os

    outros a participar neste mundo, em benefcio dela mesma e em detrimento deles

    (McCRACKEN, 2003).

    O segundo fator histrico relacionado ao surto de consumo do sculo XVI

    a competio social entre a nobreza elizabetana. Ao necessitar ir para Londres

    para solicitar a ateno da rainha, o nobre se tornava apenas mais um entre

    muitos de seus semelhantes. Era preciso se destacar em meio ao que McCracken

    chamou de buscadores-de-status para manter a sua honra, posio social e a

    importante relao com a monarca. O resultado disso foi um boom de consumo

    entre os nobres, desesperados por objetos e vestimentas que os assegurassem

    como tais. Dessa forma, podemos concluir que a presena de competidores

    sociais levou essa classe a consumir cada vez mais, tornando rapidamente os

    nobres em escravos do consumo competitivo (McCRACKEN, 2003).

    Como que em um efeito avalanche, tais fatores que sucederam a essa

    nova escala radical de consumo da Inglaterra elizabetana desencadearam em

    mais desenvolvimento no consumo, pois causas transformam-se em efeitos, que

    por sua vez convertem-se em causas (McCRACKEN, 2003, p. 32). Assim, esses

    efeitos penetraram em instncias mais profundas da sociedade inglesa da poca,

    na questo da famlia e da localidade.

    O consumo da famlia inglesa da poca funcionava atravs de uma

    espcie de culto do status familiar. A compra de um bem era feita visando

    representao da honra de seus descendentes e que, ao mesmo tempo, no

    futuro, aumentasse a reivindicao por status ao longo das futuras geraes.

    Podemos, portanto, dizer que as compras eram efetuadas pelos vivos, mas

    beneficiavam em sua unidade de consumo tambm os j falecidos e os ainda no

  • 27

    nascidos. Assim, quanto mais antigo o objeto de valor, maior a prova de que

    aquela famlia havia possudo honra e status durante muitos anos e ainda os

    tinha. Dessa forma, de acordo com a ideologia de status corrente, o novo era a

    marca do comum, enquanto a ptina produzida pelo seu uso era signo e a

    garantia da posio (McCRACKEN, 2003, p. 33). Nenhuma compra contribua para o culto do status familiar a no ser que trouxesse para o interior da famlia um objeto que fosse capaz de adquirir um aspecto ptina e de sobreviver por vrias geraes de propriedade familiar. O sistema ptina de consumo significava que somente certas casas poderiam ser qualificadas como bens de consumo desejveis. Alm disso, significava que somente determinada moblia, aquela marcada pela antiguidade, era um bem de valor para a famlia nobre. O mais conspcuo dentre os acessrios para a casa era o retrato familiar, prova tangvel de uma linhagem nobre e medida exata do nmero de geraes que reivindicava alto status. Mas, por assim dizer, todo o restante dos mveis funcionava tambm como um retrato de famlia. Todos eles eram representaes de uma riqueza h muito tempo estabelecida e de ancestrais distintos (McCRACKEN, 2003, p. 33).

    No momento em que o nobre elizabetano, entretanto, levado a comprar

    desesperadamente em busca de diferenciao social, obtm bens em funo de

    demandas imediatas, no em busca de reforar seu status e honra familiar, mas

    no intuito de se destacar em meio a uma guerra social. Este fato revolucionou a

    relao das pessoas com seus bens, pois agora no somente o antigo e sua

    ptina eram valiosos, havia tambm espao para o novo, que tambm era

    valorizado. Temos, dessa maneira, uma mudana na unidade de consumo, que

    passa de familiar e coletiva para individual, alm de modificaes no processo de

    deciso de compra, que se desloca de uma perspectiva de ptina para a moda

    (McCRACKEN, 2003).

    Outro fator que sofreu mudanas estruturais devido ao consumo

    desenfreado dos nobres elizabetanos foi a questo da localidade. O nobre, que

    antes era o responsvel por passar recursos reais aos membros de sua

    comunidade, estava gastando o que tinha para se destacar na guerra social de

    Londres. Assim, a relao entre o nobre e sua localidade parcialmente cortada,

    abalando profundamente a relao com sua unidade social. Temos, assim, a

    deteriorao da ntima relao entre superiores e subordinados. Paralelamente,

    os estilos de vida do nobre e da comunidade tambm comeam a se distanciar e

    surge um espectro de diferenciao entre eles. Sociologicamente falando, o grupo

  • 28

    de referncia dos subordinados havia sofrido mutaes profundas (McCRACKEN,

    2003).

    De forma geral, podemos observar que a Inglaterra elizabetana vivenciou

    toda uma mudana social que comeou na relao de sua monarca com os

    nobres, mas que acabou atingindo instncias muito mais profundas da sociedade

    inglesa. Em consequncia, houve uma total ressignificao dos bens, o que

    acarretou mudanas estruturais na histria do consumo, cujos desdobramentos

    foram decisivos para delinear os tempos posteriores.

    No sculo XVIII, as mudanas iniciadas no sculo XVI j estavam

    estabelecidas. A novidade est na expanso do consumo. Ocorre um crescimento

    explosivo de mercados no tempo e no espao, alm da criao de um vasto

    espectro de escolhas no consumo. Assim, as classes subordinadas, que antes

    haviam assistido apenas a nobreza gastar desenfreadamente, agora estavam

    tambm integradas como pblico consumidor: possvel afirmar que o consumo

    estava se alastrando em mais lugares, sob novas influncias, em novos grupos

    que buscavam novos bens, mais frequentemente e em funo de necessidades

    novas, tanto culturais, quanto sociais.

    Tais fatos so de suma importncia, pois temos no sculo XVIII o primeiro

    perodo na tradio ocidental em que se configura um consumo de massa. Todo

    esse processo acarretou em uma situao de consumo to intensa que os

    observadores contemporneos a chamaram de loucura epidmica

    (McCRACKEN, 2003). Aquilo que homens e mulheres uma vez esperaram herdar de seus pais, agora tinham a expectativa de comprar por si mesmos. Aquilo que uma vez foi comprado sob os ditames da necessidade, agora era comprado sob os ditames da moda. Aquilo que antes era comprado uma vez na vida, agora podia ser comprado vrias e vrias vezes. Aquilo que uma vez esteve disponvel somente em dias solenes e feriados atravs das agncias de mercado, feiras e vendedores ambulantes era cada vez mais posto disposio todos os dias, com exceo de domingo, pela agncia adicional de uma rede sempre crescente de lojas e comerciantes. Como resultado, as luxrias passaram as ser vistas como meros bons costumes, e os bons costumes passaram a ser vistos como necessidades. Mesmo as necessidades sofreram uma dramtica metamorfose em estilo, variedade e disponibilidade (McKENDRICK, apud McCRACKEN, 2003, p. 37).

    Outra particularidade da poca foram os primeiros desenvolvimentos das

    tcnicas de marketing. McCracken considera o caso de Josiah Wedgwood o

  • 29

    primeiro sucesso no controle consciente das foras de marketing. Wedgwood

    detectou que as modas no vesturio comeavam nas altas classes e, como um

    efeito cascata, iam se popularizando para a nobreza, pequena nobreza e classes

    mdias at atingir as classes mais baixas, sendo conduzida por uma espcie de

    duplo mecanismo no qual o subordinado imita o superior e o superior busca se

    diferenciar da massa constantemente. Assim, Wedgwood utilizou essa

    observao para benefcio prprio, ao posicionar seus bens primeiramente para

    as classes mais altas, na esperana de se popularizarem at as classes da base

    social atravs do consumo trickle-down. Reside aqui um importante marco, no

    momento em que, pela primeira vez, ocorre uma espcie de domesticao de

    uma fora natural do mercado, sofisticando as estratgias de marketing na

    manipulao da demanda. Logo, enquanto a dominao de fora da natureza

    anteriormente desconhecida for essencial para conduzir a revoluo industrial

    deste perodo, a paralela revoluo de consumo tambm segue essa lgica,

    porm atravs de uma nova compreenso e domnio de regularidades da

    sociedade e do mercado (McCRACKEN, 2003).

    A partir da, os comerciantes passaram a dar uma ateno muito mais

    prxima s regularidades da sociedade, de modo a entender os movimentos de

    mercado para melhor inserirem seus produtos no mesmo. Assim, foi possvel criar

    novas e mais ntimas conexes entre cultura e consumo. Dentro dessa lgica, o

    consumidor dessa poca era objeto de estratgias cada vez mais desenvolvidas

    para incitar desejos e preferncias, comeando a habitar um clima artificialmente

    estimulado. Os consumidores cada vez mais tinham seus gostos e preferncias

    transferidos para a posse das emergentes foras do mercado (McCRACKEN,

    2003).

    tambm no sculo XVIII que se consolida o crescimento do consumo de

    moda. Ocorre o triunfo do estilo e da esttica dos produtos, que agora ocupam um

    lugar acima da funo utilitria do mesmo, alm do fato de que um objeto ainda

    cumprir sua utilidade no ser mais um motivo forte o bastante para fazer o

    consumidor mant-lo consigo. O fator decisivo agora se o produto cumpre a

    funo de estar na moda. Gera-se, assim, uma forte obsolescncia resultante da

    hegemonia do sistema de compra pela moda, j que o consumidor levado a

    substituir seus objetos com muito mais frequncia. Todo esse processo acarreta

    em um forte encargo semitico adicional em relao aos bens de consumo:

  • 30

    Os consumidores ocupavam agora um mundo preenchido por bens que encarnavam mensagens. Cada vez mais, eram rodeados por objetos carregados de sentido que s podiam ser lidos por aqueles que possussem um conhecimento do cdigo-objeto. Assim, os consumidores estavam, por necessidade, se tornando semiotistas em uma nova mdia e mestres em um novo cdigo. Em suma, cada vez mais o comportamento social convertia-se em consumo e o indivduo era mais e mais subordinado a um papel de consumidor (McCRACKEN, 2003, p. 40).

    McCracken ainda nos traz um interessante pensamento de Campbell, que

    diz que os novos padres de consumo so ao mesmo tempo a causa e a

    consequncia de definies romnticas do self do indivduo: A insistncia romntica no carter nico e autnomo do self, bem como em sua realizao atravs da experincia e da criatividade, ao mesmo tempo deriva-se da e corrobora para a revoluo do consumo. Cada vez mais, os indivduos estavam preparados para supor que o o self construdo atravs do consumo [e que] o consumo expressa o self (CAMPBELL, apud McCRACKEN, 2003, p. 41).

    Foi atravs de todo esse contexto mercadolgico e social que o sculo

    XVIII viu o nascimento da atual sociedade de consumo e os primrdios da cultura

    de consumo moderna que ainda hoje persiste, atravs da coextenso do mundo

    dos bens ao mundo da vida social: O Ocidente se engajava em um grande

    experimento, no qual cultura e consumo estavam se tornando intrinsecamente

    ligados (McCRACKEN, 2003, p. 38).

    Ao atingirmos o sculo XIX, a revoluo do consumo j faz parte da

    estrutura da vida social, e consumo e sociedade j so conceitos que se fundem

    num contnuo processo de mudanas. Por esse motivo, no houve um boom

    consumista no sculo XIX, uma vez que as mudanas no Ocidente j estavam

    intrinsicamente ligadas ideia de mudana social e de consumo. O que torna

    esse sculo de suma importncia para este apanhado histrico o surgimento de

    agrupamentos distintos de estilos de vida interdependentes, marcado por trs

    comportamentos de consumo na Frana (McCRACKEN, 2003).

    O primeiro comportamento o Consumo de Massa, que adotava novas

    e fantsticas ideias de luxria ao mesmo tempo em que preservava as da

    aristocracia. Profundamente ligado a este estilo de consumo est o

    desenvolvimento alucinante de lojas de departamento. Estas foram agentes de

    difuso do consumo de massa, funcionando como sala de aula para que os

  • 31

    indivduos aprendessem seu papel vital no mundo: o de consumidores. A

    revoluo de consumo no poderia estar melhor instalada atravs de seu principal

    locus: a loja de departamento (McCRACKEN, 2003).

    O segundo modelo de consumo era o estilo de vida da elite que, atravs

    dos dndis, acreditava que seu modo especial de consumo era capaz de coloc-

    los acima da massa por causa de sua viso aguada em relao esttica e

    arte. Os dndis se declaravam como a nova elite, uma nova aristocracia, por

    causa de seu bom gosto superior. Este estilo de consumo um claro exemplo de

    como um grupo pode se apropriar dos bens para moldar significados culturais e

    para servir-lhes de suporte (McCRACKEN, 2003). O cultivo deste estilo de elite nada menos que um esforo em utilizar a linguagem emergente dos bens para gerar um conjunto nico de conceitos culturais capaz de especificar uma nova noo de pessoa e de uma nova definio da relao desta pessoa com a sociedade mais ampla, bem como um grupo de conceitos e de valor que funcionasse como diretriz para a ao social. A linguagem dos bens estava sendo utilizada aqui muito deliberadamente e com total habilidade para empreender um ato de inveno social: a criao de uma nova organizao de vida social. Inovaes deste tipo eram anteriormente impossveis, no somente porque uma sociedade tradicional no toleraria tal experimentao, mas como tambm porque no havia nenhum sistema de discursos que viabilizasse o ato necessrio de repensar e de inventar, do qual poderia emergir um novo conceito de vida social. Podemos encarar o dndi, que funciona como eptome deste novo estilo elitista de consumo, como a figura que, de maneira muito autoconsciente, tira vantagem de uma sociedade desordenada para forjar um espao para si prprio que, antes, no existia para ningum (McCRACKEN, 2003, p. 46).

    O terceiro estilo o Modelo Democrtico de Consumo, que se derivou

    do movimento das artes decorativas. Ao contrrio dos dndis do estilo de vida de

    elite, no buscavam forjar uma nova aristocracia, e sim um consumo acessvel,

    modesto e dignificante. Aqui, o significado impresso nos bens distinto, j que o

    intuito ressocializar o povo. Isso era feito atravs da alterao das modificaes

    acerca do consumo e dos bens, o que transformava as aspiraes sociais destes

    indivduos e at seus conceitos de si mesmos e de sociedade. Esse experimento

    com a linguagem dos bens possui um tom proselitista, utilizando os bens de

    consumo como suporte para um novo conceito dos prprios bens. Ao passo que

    os dndis faziam uso de suas posses para reivindicar um estilo de vida para eles

    mesmos, os adeptos ao modelo democrtico utilizavam o consumo com

  • 32

    propsitos institucionais, para tentar reformar um grupo social no qual no

    estavam includos (McCRACKEN, 2003).

    2.2.1 Zeitgeist Ps-Modernista

    No existe uma definio predominante do termo ps-modernismo.

    Alguns autores o consideram equivocado, pois o prefixo ps nos d a ideia de

    uma continuidade da modernidade, enquanto deveria expressar uma quebra,

    ruptura. Embora muito utilizado, ainda difcil definir o termo com preciso,

    possivelmente porque no possumos o distanciamento histrico necessrio para

    entender o que de fato o ps-modernismo, uma vez que nos encontramos

    dentro de seu contexto. Lemert (2000), inclusive, nos prope trs divises

    relativas a teorias ps-modernistas, evidenciando a falta de um pensamento nico

    entre os estudiosos. Primeiramente, o modernismo radical seria um grupo de

    teorias sociais simultaneamente crticas e leais aos principais valores do

    modernismo e da modernidade. O ps-modernismo radical, por sua vez, seria

    outro grupo de teorias sociais que encaram a modernidade como passado ou, no

    mnimo, em seus ltimos momentos de histria; suas teorias sociais consideram o

    presente como algo mais caracterizado pela hiper-realidade do que pela

    realidade. Completando as trs perspectivas, o ps-modernismo estratgico tem

    suas teorias sociais objetivando reconstruir a histria poltica, social e cultural da

    modernidade, com a finalidade de expor as iluses da mesma; este grupo no se

    caracteriza nem pelo hiper-realismo, nem pelo realismo.

    O incontestvel o fato de que o mundo est mudando, e que os pilares

    fundamentais que sustentavam a modernidade desde o sculo XV esto ruindo.

    Lemert (2000) fixa as trs principais mudanas que entraram em colapso com a

    transio da modernidade para a ps-modernidade: 1) atravs dos movimentos

    de descolonizao de regies como frica e Caribe e a derrota americana na

    Guerra do Vietn, o sistema mundial euro-americano moderno clssico e fundado

    em meio milnio de colonizao entrou em colapso; 2) a quebra da hegemonia

    norte-americana do ps-guerra marca a ausncia de um centro poltico e

    econmico no mundo dos negcios, desnorteando a ordem mundial. Assim, com

    a ausncia de um Estado centralizado e dominante, a estrutura clssica do

    mundo moderno ruiu, trazendo consigo uma nova ordem distinta ao sistema da

  • 33

    era moderna; 3) a queda da ideia de um mundo cultural unificado e universal

    baseado em valores euroamericanos.

    De maneira mais geral, Giddens (1991) tambm indica que estamos rumo

    a uma nova ordem social que no inclui as instituies tidas como modernas.

    Assim, no ps-modernismo, nada pode ser conhecido com alguma certeza; a

    histria destituda de teologia, logo nenhuma verso do progresso pode ser

    definida; e que a crescente projeo das questes ambientais e de novos

    movimentos sociais gerou uma nova agenda social e poltica.

    Em relao ao perodo anterior, enquanto os modernistas procuravam

    incansavelmente um centro para substituir o vazio da ruptura e da desiluso de

    antigas crenas e pensamentos, o ps-modernismo dispensa qualquer tipo de

    centro. Ao invs disso, existe uma descentralizao, pois no existe mais uma

    necessidade vital de uma estrutura apenas para reger o homem (POWELL, 1998).

    O vcuo que os modernistas buscaram incessantemente preencher no era

    mais um problema: o ps-moderno sabe conviver com isso, como indica Giddens: A condio da ps-modernidade caracterizada por uma evaporao da grans narrative o enredo dominante por meio do qual somos inseridos na histria como seres tendo um passado definitivo e um futuro predizvel. A perspectiva ps-moderna v uma pluralidade de reivindicaes heterogneas de conhecimento, na qual a cincia no tem um lugar privilegiado (1991, p. 12).

    Essa questo relativa falta de uma narrativa tambm descrita por

    Powell (1998, p. 33), quando rev os pensamentos de Jean-Franois Lyotard: A

    sociedade ps-moderna feita de zilhes de incompatveis pequenas histrias

    micronarrativas. E nenhuma dessas pequenas histrias pode dominar ou explicar

    o resto. No ps-modernismo, trata-se de um carnaval de micronarrativas que

    subvertem a lgica moderna e substituem uma presena monoltica de uma

    metanarrativa (POWELL, 1998).

    Dessa maneira, para Lyotard, o ps-modernismo incredulidade em

    relao s metanarrativas (POWELL, 1998, p. 33). Lemert (2000, p. 58)

    igualmente vai ao encontro desse pensamento, afirmando que a maioria das

    teorias ps-modernas afirma que o mundo outrora linear e bem-definido cedeu

    lugar a um caracterizvel por eptetos como fragmentado, descentrado, jocoso,

    anrquico, irnico, indeterminado.

  • 34

    Lemert (2000) tambm nos descreve sua visita a um templo budista nas

    montanhas de Kyongju, na Coria do Sul. L, ele percebe a presena da

    eletricidade, encanamentos, antenas parablicas, alm de ter adquirido na sada

    um CD com o cntico dos monges O antigo vive com a tecnologia moderna, e

    por meio dela! (p. 41). Isso tudo para nos mostrar que: Nos termos mais simples, dizem alguns que o ps-modernismo se refere a esse estranho fato de aspectos histricos do mundo no relacionados entre si se acharem hoje embaralhados uns com os outros. O ps-modernismo, embora seja uma coisa deveras complicada de compreender, tem a ver principalmente com essa ideia. Em consequncia, so ps-modernistas os que acreditam que o mundo mudou de alguma maneira bem difcil de descrever, mas inconfundvel, em que as coisas esto fora de ordem, se bem que de uma maneira dotada de sentido. As ordens racionais da vida moderna esto meio que rearranjadas de modos estranhos e incongruentes, que, no obstante, parecem normais apesar de sua anormalidade (LEMERT, 2000, p. 42).

    Powell (1997), ao analisar Frederic Jameson, afirma que este v o ps-

    modernismo como parte de um capitalismo tardio, e ainda nos traz a diviso

    histrica dos sculos XIX e XX de Ernest Mendel em trs momentos. Primeiro, de

    1700 a 1850, fase do capitalismo de mercado e era na qual o capital industrial se

    acumulava principalmente nos mercados nacionais. O segundo momento ocorreu

    durante a idade do imperialismo e do capitalismo monopolista, poca em que os

    mercados nacionais se expandiram, tornando-se globais, embora ainda

    dependessem de reas perifricas para obter mo de obra barata e matria-prima

    de baixo custo. O terceiro momento diz respeito fase ps-moderna propriamente

    dita, que irrompeu na cena mundial com o crescimento irrestrito de empresas

    multinacionais, como a Coca-Cola. Essa seria a forma mais pura do capitalismo,

    que invadia a natureza com a destruio de formas pr-capitalistas de agricultura

    e tambm se adentrando nas mentes inconscientes atravs da publicidade.

    Siqueira (1997) ainda faz apontamentos mais profundos em relao

    economia ps-moderna, diferenciando-a da economia fordista ou de escala

    atravs das novas atividades materiais de produo e consumo e o novo sistema

    financeiro global: A reestruturao ps-fordista, envolvendo novas tecnologias, novos mtodos de gesto da produo, novas formas de utilizao da fora de trabalho e novos modos de regulao estatal, baseia-se em elementos que definem o chamado "modo de acumulao flexvel de capitais", e esto intrinsecamente relacionados condio histrica ps-moderna. Esses elementos so:

  • 35

    1. A globalizao: produo, troca e circulao de mercadorias esto globalizadas, caracterizando o escopo transnacional do capital; 2. A efemeridade: o turn-over da produo e do consumo extremamente veloz; acelerao do tempo de giro na produo (produo flexvel: pequenos lotes, variedade de tipos de produto e sem estoques), e reduo do tempo de giro no consumo; 3. A disperso: geogrfica da produo, feita atravs de uma mudana na estrutura ocupacional; do trabalho (com as novas modalidades de empregos: temporrios, de tempo parcial e a terceirizao); do monoplio, num amplo conjunto de produo desterritorializada.

    Castells (1999) tambm faz uma anlise entre as mudanas do mundo

    ps-moderno com a sua economia, afirmando que no final dos anos 60 um novo

    mundo comeou a tomar forma. Esse processo iniciou paralelamente a uma

    coincidncia histria de outros trs processos independentes: a revoluo da

    tecnologia da informao; a crise econmica do capitalismo e do estatismo e a

    consequente reestruturao de ambos; e o pice de movimentos sociais culturais,

    como libertarismo, feminismo, ambientalismo e os direitos humanos. As reaes

    desencadeadas por estes processos ao interagirem entre si fazem surgir uma

    estrutura social dominante indita, que trazem consigo uma nova economia

    informacional/global e uma nova cultura da virtualidade real. Essa nova estrutura

    a sociedade em rede: A lgica inserida nessa economia, nessa sociedade e

    nessa cultura est subjacente ao e s instituies sociais em um mundo

    interdependente (CASTELLS, 1999, p. 412).

    Siqueira (2005) ainda ressalta que existe uma dinmica de consumo

    diferente entre a sociedade moderna e a sociedade ps-moderna, assinalada pela

    frase de Baudrillard: j no consumimos coisas, mas somente signos: A sociedade-cultura de consumo ps-moderna est associada complexidade humana, ou seja, envolve seus valores, desejos, hbitos, gostos e necessidades numa escala extremamente intensificada. No contexto ps-moderno, a estetizao da vida cotidiana e o triunfo do signo retratam a subordinao da produo ao consumo sob a forma de marketing, com uma ascenso cada vez maior do conceito de produto, do design e da publicidade.

    Para Lipovetsky (2005), era de fato necessrio nomear um momento de

    profundas transformaes, e o neologismo ps-moderno teria o mrito de

    demarcar uma mudana de direo, relativa rpida expanso do consumo, surto

    do processo de individualizao, consagrao do hedonismo e psicologismo e a

    perda da f no futuro revolucionrio, paixes polticas e militncias. Considera,

    entretanto, a expresso como ambgua e vaga, pois acredita que se trata de um

  • 36

    novo gnero de modernidade que tomava forma, e no apenas uma superao da

    modernidade anterior. Dessa maneira, o termo ps-moderno j esgota a sua

    capacidade de traduzir o mundo ao seu redor, tornando-se obsoleta, incompleta.

    Para o autor, a atualidade j se encontra em um novo nvel, que pode ser

    exprimido atravs do prefixo hiper: hipercapitalismo, hiperclasse, hipertexto,

    hipermercado. Trata-se de uma modernidade elevada potncia superlativa.

    Esse processo ocorreu muito rapidamente, de forma que, enquanto nascia o ps-

    moderno, j se esboava a hipermodernizao do mundo, do ps ao hiper: a

    ps-modernidade no ter sido mais que um estgio de transio, um momento

    de curta durao. E este j no mais o nosso (LIPOVETSKY, 2004, p. 67). Se a

    sociedade de consumo j indicava o excesso como trao caracterstico, ocorre na

    hipermodernidade que esse processo se exacerba com os hipermercados e os

    shoppings centers gigantescos: Na hipermodernidade, no h escolha, no h alternativa, seno evoluir, acelerar para no ser ultrapassado pela evoluo: o culto da modernizao tcnica prevaleceu sobre a glorificao dos fins e dos ideais. Quanto menos o futuro previsvel, mais ele precisa ser mutvel, flexvel, reativo, permanentemente pronto para mudar, supermoderno, mais moderno que os modernos dos tempos hericos. A mitologia da ruptura radical foi substituda pela cultura do mais rpido e do sempre mais: mais rentabilidade, mais desempenho, mais flexibilidade, mais inovao. Resta saber se, na realidade, isso no significa uma modernizao cega, niilismo tcnico-mercantil, processo que transforma a vida em algo sem propsito e sem sentido (LIPOVETSKY, 2005, p. 57).

  • 3 A SOCIEDADE DE CONSUMO

    Douglas e Isherwood definem o consumo como uso de posses materiais

    que est alm do comrcio e livre dentro da lei (2006, p. 102), adequando tal

    conceito para usos paralelos tambm em tribos que no possuem comrcio. O

    consumo nas sociedades ocidentais, por sua vez, possui tal importncia em

    nossa histria contempornea que existe uma crtica ao destaque dado

    revoluo industrial em detrimento da revoluo do consumo. Foi dada

    demasiada nfase no lado da oferta atravs da mudana nos meios e fins

    produtivos da revoluo industrial, e ignorado o lado da demanda, uma vez que

    esse processo teve como consequncia uma mudana comensurvel nas

    preferncias dos consumidores. Ainda importante salientar que essa revoluo

    de consumo simboliza mais do que essa mudana nos hbitos e preferncias de

    compras: trata-se de uma mudana estrutural na cultura mundial da Idade

    Moderna, podendo, inclusive, rivalizar com a revoluo neoltica, quando

    analisada a profundidade de sua transformao social (McCRACKEN, 2003).

    Podemos perceber, dessa maneira, que a revoluo do consumo mudou

    drasticamente a posio dos bens na vida das sociedades ocidentais.

    Featherstone (1995) nos prope trs perspectivas fundamentais sobre a cultura

    de consumo, com as quais podemos analisar seu poder e presena no mundo

    atual: perspectiva econmica, sociolgica e psicolgica

    Atravs de uma abordagem econmica, examinamos a cultura e a

    sociedade de consumo baseando-nos em sua premissa bsica de expanso da

    acumulao capitalista de mercadorias, que originou uma poderosa cultura

    material que exalta os bens de consumo e o ato de comprar. Pode-se argumentar,

    assim, que ocorre o triunfo do valor de troca e que o clculo instrumental racional

    pode ser aplicado a todos os aspectos da vida, uma vez que possvel quantizar

    todas as diferenas essenciais, tradies culturais e qualidades de nossa

    sociedade (FEATHERSTONE, 1995).

    Essa perspectiva estritamente econmica enfrenta duras crticas

    enquanto tentativa de explicao nica em relao s motivaes que levam os

    indivduos a adquirirem bens. Douglas e Isherwood (2006) defendem a viso do

    consumidor como um ser social, afirmando que essa abordagem materialista das

  • 38

    necessidades humanas cumpre seu propsito apenas para as limitadas teorias

    em que tem sido aplicada. Por conseguinte, uma abordagem sociolgica mais

    consistente enriqueceria essa viso e contribuiria para a construo de uma

    tecnologia do consumo forte e concreta.

    Wellausen, por sua vez, afirma que encaramos a economia como uma

    espcie de ordem transcendental automovida, o que pode ser conveniente para

    os indivduos, uma vez que alivia as responsabilidades de pessoas e grupos,

    embora, ao mesmo tempo, confere s coisas uma falta de controle aparente. Por

    esse motivo, acredita que preciso dar mais ateno s fontes extraeconmicas

    do valor monetrio, a fim de que nos alertemos para o fato de que muitas vezes a

    abordagem adequada de um problema, mesmo social, psicolgica e no

    econmica (1988, p. 35). Dessa forma, Wellausen prope um estudo da

    Psicologia da Economia como meio de elucidar questes que foram

    equivocadamente transladadas para o campo da economia unicamente. Assim,

    podemos acreditar que, em um sentido geral, os objetivos de nossa sociedade

    so econmicos; nosso real propsito, contudo, se revela ser a sobrevivncia

    individual e coletiva. somente a partir deste objetivo primordial que se

    desenvolvem as maneiras dos indivduos e das sociedades de lidar com a

    sobrevivncia e, por conseguinte, onde se administram os meios econmicos

    (WELLAUSEN, 1998).

    Como podemos observar, uma abordagem estritamente econmica para

    justificar a sociedade de consumo se mostra incompleta e equivocada.

    Featherstone (1995) no ignora tal fato, propondo ainda mais duas perspectivas,

    uma que vai ao encontro da abordagem social requerida por Douglas e Isherwood

    (2006) e outra que contempla a questo psicolgica proposta por Wellausen

    (1988).

    Na perspectiva sociolgica da sociedade de consumo, entra em cena o

    fato das pessoas utilizarem os bens como forma de criar vnculos ou estabelecer

    distines sociais. O desenvolvimento histrico da marcao de status atravs da

    histria j foi tambm abordado no tpico anterior, A evoluo do consumo.

    Featherstone (1995, p. 35) acredita que, se possvel conceber uma lgica do

    capital derivada da produo, tambm possvel perceber uma lgica do

    consumo que aponta para os modos socialmente estruturados de usar os bens

    para demarcar relaes sociais. Dessa maneira, as funes mais primitivas dos

  • 39

    bens de consumo, como alimento e abrigo, ainda existem; inegvel, entretanto,

    que as posses materiais tambm funcionam para estabelecer e manter relaes

    sociais. Esse aspecto revela o materialismo de nossa existncia, expandindo os

    significados sociais para alm da mera competitividade individual (DOUGLAS;

    ISHERWOOD, 2006).

    Essa capacidade dos bens de comunicarem marcadores sociais deve-se

    principalmente sua capacidade como signos. Por este motivo, McCracken

    (2003) afirma que no conta quem ns somos, mas quem ns gostaramos de

    ser. Baudrillard nos traz a noo de que, nas sociedades capitalistas tardias, o

    signo e a mercadoria se fundem, produzindo a mercadoria-signo. A opulncia,

    assim no seria nada mais do que a acumulao dos signos da felicidade

    (BAUDRILLARD, 2003). Raros so os objectos que hoje se oferecem isolados, sem o contexto de objectos que os exprimam. Transformou-se a relao do consumidor ao objecto: j no se refere a tal objecto na sua utilidade especfica, mas ao conjunto de objectos na sua significao total (BAUDRILLARD, 2003, p. 17).

    Logo, o consumo no deve ser entendido apenas como o uso das

    utilidades materiais dos bens, e sim primordialmente como um consumo ativo de

    signos. Por conseguinte, os bens de consumo corriqueiros passam a ser

    associados a diversas imagens, como luxo, exotismo, beleza e fantasia, sendo

    cada vez mais difcil desvendar o uso original ou funcional do bem em questo.

    Essa superproduo de signos resulta numa estetizao da realidade na qual as

    massas ficam fascinadas pelo fluxo infinito de justaposies bizarras que levam o

    espectador para alm do sentido estvel (FEATHERSTONE, 1995, p. 34).

    Como exemplo de bem de consumo como marcador social, Featherstone

    (1995) utiliza a garrafa de vinho do porto. Ela desafia a mxima de que comida e

    bebida so mercadorias de vida curta, uma vez que o vinho pode nunca ser

    consumido efetivamente (no sentido de ser bebido). A garrafa pode, entretanto,

    ser consumida simbolicamente de muitas outras formas, gerando uma alta

    satisfao no indivduo, como: contemplada, desejada, comentada, fotografada ou

    manipulada. por isso que podemos afirmar que as mercadorias nas sociedades

    ocidentais possuem um aspecto duplamente simblico, uma vez que o

    simbolismo no est presente apenas no design dos produtos e no imaginrio

  • 40

    embutido nos bens atravs das estratgias de marketing. A segunda face das

    associaes simblicas revela-se no momento em que os bens de consumo so

    utilizados e renegociados a fim de demarcar diferenas de estilo de vida,

    delineando as relaes sociais (FEATHERSTONE, 1995).

    McCracken (2003, p. 99) ainda traz outra abordagem, na qual afirma que

    a maior limitao no estudo do significado cultural dos bens reside no fato delas

    no observarem o carter mvel deste significado. Ele afirma que o significado

    est ininterruptamente fluindo das e em direo s suas diversas localizaes no

    mundo social, com a ajuda de esforos individuais e coletivos e designers,

    produtores, publicitrios e consumidores.

    Figura 1: Movimentao do significado

    Fonte: McCracken (2003)

    Dessa forma, existem trs localizaes para o significado: o mundo

    culturalmente constitudo, o bem de consumo e o consumidor individual. Alm

    disso, existem dois momentos de transferncia: mundo-para-bem e bem-para-

    indivduo. Dessa forma, os consumidores e os bens de consumo so estaes

    intermedirias de significado, e atividades como a publicidade e os rituais de

    consumo so instrumentos de movimentao deste significado (McCRACKEN,

    2003). Incentiva-nos, aqui, a atentar para a presena de um grande e poderoso sistema no corao da sociedade moderna, que confere a esta

  • 41

    sociedade parte de sua coerncia e flexibilidade, ainda que funcione como fonte ininterrupta de incoerncia e de descontinuidade. Em suma, uma compreenso plena da qualidade mvel do significado cultural e de consumo pode ajudar a demonstrar parte da total complexidade do consumo atual e revelar de modo mais detalhado exatamente o que uma sociedade de consumo (McCRACKEN, 2003, p. 101).

    Os rituais pessoais de consumo so especialmente interessantes, pois

    denotam a fora do smbolo no bem de consumo. Douglas e Isherwood afirmam

    que viver sem rituais viver sem significados claros e, possivelmente, sem

    memrias. Tais rituais so como uma verso microscpica dos instrumentos de

    transferncia de significado que os movimentam no mundo dos bens, cabendo a

    eles transportar o significado dos bens para o consumidor (McCRACKEN, 2003).

    Os rituais de troca so aqueles nos quais ocorre a transferncia de

    significado atravs de presentes, por exemplo. O doador identifica o presente

    como dotado de significados culturais que ele busca passar adiante ao

    presenteado. Dessa forma, o pai compra para o filho um presente que contm

    propriedades simblicas que ele gostaria que a criana absorvesse, ou a mulher

    que recebe um vestido em particular tambm recebe um conceito particular de

    como ela mesma como mulher vista (McCRACKEN, 2003). nesse sentido que

    em nossa sociedade a linha que separa o dinheiro do presente cuidadosamente

    traada. socialmente aceito mandar flores para um parente hospitalizado, mas

    nunca seria permitido enviar o dinheiro das flores com um bilhete dizendo

    compre flores (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2006). Isso porque as flores so um

    signo de carinho, lembrana; o dinheiro, mesmo equivalendo quantitativamente s

    flores, no comunica o mesmo; pelo contrrio, visto como um signo sem

    profundidade, valioso, porm vazio.

    Os rituais de posse ajudam a completar o estgio do movimento do

    significado, no momento em que permitem ao consumidor reivindicar e assumir

    um tipo de posse sobre o significado de seus bens de consumo. Atravs dos

    rituais de posse, o indivduo transfere o significado do mundo cultural atrelado ao

    bem pela publicidade e pelo mundo da moda para si mesmo. o caso da

    contemplao da garrafa de vinho do Porto vista anteriormente. Os rituais de

    arrumao, por sua vez, acontecem, por exemplo, quando o indivduo se arruma

    para sair: estes rituais equipam o indivduo que est saindo para um programa

    com as propriedades significativas especialmente glamorosas e exaltadas que

  • 42

    residem nos melhores bens de consumo. (McCRACKEN, 2003, p. 117). O

    estado do indivduo to profundamente refletido nos bens que foi observado que

    idosos em casas de repouso viam a si mesmos como no fim da linha e, por isso,

    iniciavam um projeto de descarte de objetos significativos em suas vidas.

    J os rituais de despojamento so uma oportunidade para percebermos

    como a presena dos smbolos nos bens muito profunda. Ao adquirir um bem

    que pertenceu anteriormente a outra pessoa, como um carro ou uma casa, o

    indivduo necessita lanar mo do ritual de despojamento para apagar o

    significado associado ao dono anterior. Assim, atravs do ritual, o dono evita o

    contato com as propriedades significativas do sono anterior, alm de libertar o

    significado da posse e reivindic-lo para si. O que pode parecer uma mera

    superstio evidencia, na verdade, um reconhecimento implcito da qualidade

    mvel do significado investido nos bens (McCRACKEN, 2003, p. 118).

    Uma abordagem psicolgica em relao sociedade de consumo leva

    em considerao a esfera emocional dos prazeres envolvidos no consumo,

    atravs de um imaginrio cultural consumista que exalta sonhos e desejos atravs

    das compras, produzindo os mais diversos tipos de prazeres estticos e

    excitaes fsicas (FEATHERSTONE, 1995). A sociedade de consumo oferece

    inmeros objetos substitutivos que propiciam gratificaes vicrias e, por

    conseguinte, frustrantes e compulsivamente renovveis. a nsia de prazer, j

    que conflitos neurticos impedem o prazer genuno (WELLAUSEN, 1988, p. 61).

    Faz-se necessrio visualizar o consumidor como um ser engajado em um projeto

    cultural, uma busca incessante em completar o self. Dessa maneira, a sociedade

    de consumo oferece os bens culturais necessrios para configurar as ideias

    mltiplas do indivduo acerca do que ser homem, mulher, criana, idoso, e

    assim por diante. Assim, todas nossas referncias culturais esto associadas aos

    bens de consumo, e somente atravs de sua posse e uso conseguimos assimilar

    ns mesmos e a vida ao nosso redor (McCRACKEN, 2003).

    O significado deslocado consiste em uma estratgia extremamente

    corrente, tanto entre indivduos quanto coletividades, para encarar a dura lacuna

    que separa o real do ideal na vida social. Ao remover seus ideais a partir do

    deslocamento de significado, uma comunidade ou indivduo os remove com

    segurana da vida cotidiana e os resguarda em um lugar ao seu alcance, mas

    fora do perigo da realidade e da prova de testes empricos que provariam seu

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    carter irreal. Tal estratgia encontra diversas alocaes no tempo e no espao:

    no passado, atravs da idealizao de uma idade de ouro em uma poca

    passada ou pessoal, como na infncia; no futuro, atravs de utopias como o

    estado socialista perfeito que coloca o bem comum frente dos interesses

    individuais e a perfeita sociedade laissez-faire na qual o individualismo econmico

    decide os assuntos coletivos, ou ento em momentos pessoais futuros marcados

    pelas recorrentes frases quando eu me casar..., quando eu me formar...; e

    tambm no espao, atravs da idealizao de uma sociedade que vive em plena

    comunho e remota o bastante para garantir que tal viso no seja desfeita. Em

    suma, a estratgia do significado deslocado remove os ideais em segurana,

    garantindo que ns no tenhamos que enfrentar a realidade de que estes no

    passam de ideais sem espao na realidade cotidiana. Alm disso, ela

    extremamente eficaz, pois possui uma