17827-70146-1-pb
DESCRIPTION
AS RELAÇÕES ENTRE A DINÂMICA PÓS-MODERNA E O CONSUMO MINIMALISTATRANSCRIPT
-
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAO SOCIAL
DEPARTAMENTO DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA
LUCIANA WEBSTER NEGRETTO
AS RELAES ENTRE A DINMICA PS-MODERNA E O CONSUMO MINIMALISTA
PORTO ALEGRE 2013
-
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAO SOCIAL
DEPARTAMENTO DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA
LUCIANA WEBSTER NEGRETTO
AS RELAES ENTRE A DINMICA PS-MODERNA E O CONSUMO MINIMALISTA
PORTO ALEGRE
2013
-
LUCIANA WEBSTER NEGRETTO
AS RELAES ENTRE A DINMICA PS-MODERNA E O CONSUMO MINIMALISTA
Monografia apresentada como requisito parcial para concluso do curso e obteno do ttulo de Bacharel em Comunicao Social, com habilitao em Publicidade e Propaganda, da Faculdade de Comunicao Social, da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Orientadora: Profa. Ma. Priscilla Guimares de Oliveira
PORTO ALEGRE
2013
-
LUCIANA WEBSTER NEGRETTO
AS RELAES ENTRE A DINMICA PS-MODERNA E O CONSUMO MINIMALISTA
Monografia apresentada como requisito parcial para concluso do curso e obteno do ttulo de Bacharel em Comunicao Social, com habilitao em Publicidade e Propaganda, da Faculdade de Comunicao Social, da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.
Aprovado em ____ de ________________ de 2013.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________ Profa. Ma. Priscilla Guimares PUCRS
Orientadora
_________________________________________________ Profa. Dra. Paula Puhl PUCRS
_________________________________________________ Profa. Dra. Rosane Palacci dos Santos PUCRS
-
Dedico este trabalho minha av Maria Medina Webster, que, da maneira dela, tambm me ensinou quais so as coisas realmente importantes na vida.
-
AGRADECIMENTOS Agradeo minha orientadora e amiga, professora Ma. Priscilla
Guimares de Oliveira, pela amizade nos meus ltimos anos de FAMECOS e pela
confiana e dedicao durante o processo do desenvolvimento deste trabalho.
professora Dra. Rosane Palacci, pela compreenso e orientao durante a
disciplina de Monografia I, na qual tracei os primeiros passos rumo ao meu
trabalho de concluso. A todos os professores da FAMECOS e colegas de
trabalho e estgio, que, certamente, contriburam para a minha formao, no
apenas acadmica ou profissional, mas tambm pessoal. Em especial, agradeo
minha primeira e mais querida professora: minha me Maria Izabel Webster
Negretto, que somente este ano j fez junto com as filhas e viveu intensamente as
emoes de uma monografia e uma dissertao de mestrado (agora vamos te dar
um intervalo, me!).
Aos meus pais, pela viso de colocar a educao sempre em primeiro
lugar, proporcionando-me a melhor formao possvel. Ao meu namorado Giorgio,
pela cumplicidade, amor e compreenso junto dos inmeros no posso, tenho
que fazer a mono. s mulheres da minha vida: minha me, minha irm Giovanna,
minha dinda roubada Rosa e minha av Maria. Sem vocs nada disso faria
sentido.
Ao curso de Design Visual da UFRGS, que neste ano de 2013 me
proporcionou conhecer pessoas lindas e amigos incrveis. s minhas amigas l de
trs, que desde o tempo do colgio esto comigo e eu com elas. Em especial,
agradeo aos meus amigos interessantssimos Giovani, Gabriela, Fagner, Karla,
Mariana, Thiago e Thuanny, que fizeram meus anos de FAMECOS serem to
especiais e certamente inesquecveis. Levo vocs junto comigo pra sempre,
independente dos caminhos que seguiremos daqui para frente.
-
RESUMO O presente trabalho tem como objetivo compreender o que o consumo
minimalista e que fatores do mundo ps-moderno contriburam para o seu surgimento. Assim, foram primeiramente levantados dados bibliogrficos acerca do sistema capitalista, modernismo, ps-modernismo, sociedade de consumo, consumismo e publicidade, para evidenciar o contexto no qual o minimalismo est inserido. Foi adotada uma abordagem no apenas econmica, mas tambm social e psicolgica em relao hipermodernidade, de forma a englobar todos os fatores envolvidos no estilo de vida minimalista. Por meio da pesquisa qualitativa, foram realizadas entrevistas em profundidade, objetivando ampliar ainda mais o conhecimento acerca do assunto, obtendo informaes que no poderiam ser coletadas apenas com o levantamento bibliogrfico. Como resultado, temos um slido panorama acerca das motivaes individuais e histricas que levam diversos indivduos a se tornarem adeptos ao minimalismo como um estilo de vida norteador na era ps-moderna.
Palavras-chave: Capitalismo. Publicidade. Ps-modernismo. Sociedade de consumo. Consumismo. Consumo minimalista.
-
ABSTRACT The present project aims at understanding what minimalist consumption
is, and which aspects of the postmodern world contributed to its emerging as well. Thus, the first step was to rise bibliographic data about the capitalist system, modernism, postmodernism, consumer society, consumerism and advertising, to bring to light the context in which minimalism is inserted. In order to encompass all the factors involved in the minimalist lifestyle, it was adopted not only an economical approach, but also a social and phychological one, regarding hypermodernity. Through qualitative research, in-depth interviews were conducted, aiming to further expand the knowledge on the subject, and obtaining information that could not be collected only with the bibliographical data. The result was a solid overview about the individual and historical motivations that lead many individuals to become followers of minimalism as a lifestyle guiding the postmodern era.
Keywords: Capitalism. Advertising. Postmodernism. Consumer Society. Consumerism. Minimalist consumption.
-
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Movimentao do significado .............................................. 40 Figura 2: Pirmide de Maslow ............................................................ 52 Figura 3: Visualizao de antenas parablicas em favelas urbanas .. 53 Figura 4: Dados acerca do excesso de informaes no mundo ps-
moderno ..............................................................................
62 Figura 5: Ponto de suficincia ............................................................ 70 Figura 6: Anncio da marca Natura .................................................... 71 Figura 7: Anncio televisivo da linha Sou da Natura .......................... 72 Figura 8: Embalagem da linha Sou da Natura ................................... 72 Figura 9: Estrutura de pirmide invertida aplicada ao trabalho e aos
roteiros ................................................................................
77
-
SUMRIO
1 INTRODUO ................................................................................... 11 2 CONTEXTO DO CONSUMO: HISTRIA, ECONOMIA E
SOCIEDADE ......................................................................................
14 2.1 UM OLHAR SOBRE OS CICLIOS DO CAPITALISMO ................. 14 2.2 UM OLHAR SOBRE O ESPRITO DOS TEMPOS ........................ 22 2.2.1 Zeitgeist Modernista .................................................................. 22 2.2.2 Zeitgeist Ps-Modernista .......................................................... 32 3 A SOCIEDADE DE CONSUMO ......................................................... 37 3.1 CONSUMISMO .............................................................................. 45 3.2 HIPERCONSUMISMO ................................................................... 47 3.3 CONSUMO E PUBLICIDADE ........................................................ 52 3.3.1 Necessidade, Pulso e Desejo ................................................. 52 3.3.2 Publicidade ................................................................................ 55 4 NOVO CICLIO DE CONSUMO: O MINIMALISMO ............................ 58 4.1 CONSUMO MINIMALISTA ............................................................ 60 4.1.1 O consumidor minimalista tambm compra ........................... 67 4.1.2 O consumo minimalista como autoconhecimento ................ 72 5 MINIMALISMO: UM NOVO BEM SOCIAL ........................................ 75 5.1 PROCEDIMENTOS METODOLGICOS ...................................... 75 5.2 ANLISE DOS RESULTADOS ...................................................... 78 6 CONSIDERAES FINAIS ............................................................... 85 REFERNCIAS ....................................................................................... 88 APNDICE A Roteiro da entrevista aplicada coolhunter Paula
Quintas ..........................................................................
93 APNDICE B Roteiro aplicado entrevistada consumista Giuliana
Mesquita ........................................................
94
APNDICE C Roteiro aplicado aos entrevistados minimalistas Camile Carvalho e Alexandre Meirelles .....................
95
APNDICE D Descrio dos dados coletados nas entrevistas em
profundidade
96
-
1 INTRODUO
A maneira como o consumo entranhou-se nas sociedades ocidentais
algo singular e poderoso. Tanto na esfera pblica, quanto na esfera privada, essa
presena constante do consumo em nossas vidas altera significativamente
comportamentos, aspiraes, sonhos e estilos de vida. Dessa maneira, a forma
como consumimos se torna um espelho de nosso tempo, revelando muito mais do
que predilees no ato da compra: demonstra nossa viso de mundo, ambies e
anseios.
No momento em que adentramos a era ps-moderna, os traos nicos do
homem e das sociedades da atualidade revelam que o consumo aprofundou
ainda mais o seu alastramento em nossas vidas, atingindo nveis at ento
inditos. Esse aspecto, somado ao contexto econmico e s particularidades
internas de cada indivduo, resultam em comportamentos de consumo e estilos de
vida que anteriormente no seriam possveis. Este o caso do consumo
minimalista, objeto de pesquisa deste trabalho.
Esse estudo teve origem na leitura do livro A Sociedade da Decepo,
de Gilles Lipovetsky (2007), e em pesquisas acerca do termo ps-modernismo e
seus significados. A leitura de Lipovetsky nos leva a uma clara relao entre o
consumo e a hipermodernidade, o que acaba por gerar nos indivduos a
frustrao e a decepo. A partir da, foram encontradas diversas propostas de
grupos que tentavam buscar uma alternativa em relao lgica hipermoderna,
entre elas o consumo minimalista. O minimalismo se prope a ser um estilo de
vida libertador, que alforria o indivduo do seu rtulo de turboconsumidor para
voltar a ser uma pessoa que anseia por experincias mais reais do que o
consumo atual consegue lhe oferecer. Dessa forma, o presente trabalho se
prope a responder de que maneira o ps-modernismo pode gerar estilos de vida
como o minimalismo, que transforma as relaes de consumo dos indivduos e a
comunicao, tendo como objetivos analisar o consumo na ps-modernidade,
compreender o que o minimalismo e quem o pratica e averiguar os fatores que
influram no surgimento deste estilo de vida.
Nessa perspectiva, impossvel no refletirmos acerca da publicidade em
todo esse processo de construo de uma sociedade da decepo. A
-
12
publicidade se torna uma pea-chave nessa perspectiva, uma vez que cabe a ela
traduzir todo esse conceito para o consumidor, de forma deleitosa e tentadora.
preciso ressaltar, entretanto, que o hiperconsumismo uma construo
conjunta das mais diversas instituies de nossa sociedade e dos mais diversos
campos (econmicos, sociais, polticos), sendo a publicidade uma pea vital,
porm incapaz de produzir tais resultados isoladamente. Essa noo trabalhada
especialmente no captulo 3, na qual utilizamos a viso de Wellausen (1998), que
no responsabiliza exclusivamente a publicidade por todo esse processo. Pelo
contrrio, Wellausen ressalta que a publicidade apenas exterioriza objetos
internalizados do consumidor, no sendo capaz de criar necessidades por si s.
Atravs de trs captulos de levantamento bibliogrfico, possvel
compreender mais efetivamente os contextos econmico, social e psicolgico que
propiciaram o surgimento do consumo minimalista. No captulo 2, feito um
apanhado histrico acerca do capitalismo, desde sua gnese at os dias
presentes. A partir dele, possvel termos uma noo fundamentada de como e
por que nossa sociedade est organizada da forma atual, alm de melhor
compreendermos a relao do capitalismo frente ao desenrolar da histria da
humanidade. Este captulo tambm demonstra a relao ntima do capitalismo
com as crises econmicas e seus movimentos cclicos de expanso e retrao.
Alm disso, so apresentados os conceitos-chave de modernismo e
ps-modernismo, imprescindveis para melhor entendermos o zeitgeist dessas
duas eras. O ps-modernismo, especialmente, possui caractersticas de
indispensvel exposio, uma vez que estas servem como pilares ao sustentar o
consumo minimalista.
Na sequncia, o captulo 3 levanta dados mais especficos acerca da
sociedade de consumo, explorando tambm os aspectos psicolgicos envolvidos
no consumismo to recorrente na sociedade ocidental. Este espao do trabalho
esclarece a profunda relao dos homens com seus objetos, levando em
considerao suas projees nestes bens materiais e os significados sociais
envolvidos nesse processo. Enquanto o captulo 2 possui uma abordagem mais
econmica do consumo, cabe a este captulo expandir a viso do leitor acerca do
mesmo, adicionando teorias sobre por que o homem necessita tanto consumir
bens e que uso fazemos dos mesmos.
-
13
O captulo 4 dedicado integralmente ao estudo do consumo minimalista
propriamente dito, trazendo uma grande quantidade de informaes no que diz
respeito aos ideais minimalistas acerca do indivduo e da sociedade ideal. Como o
estilo de vida minimalista se prolifera mais intensamente pela blogosfera, foi
possvel um levantamento particular no que diz respeito s motivaes do
consumidor minimalista, atravs, especialmente, de depoimentos presentes nos
blogs destes indivduos. Este captulo responsvel por desmistificar o
minimalismo, expondo tanto os contextos macroeconmico e histrico que
propiciaram a sua existncia, quanto os fundamentos e anseios que levam um
indivduo a ser adepto deste estilo de vida.
No captulo seguinte, encontram-se as entrevistas em profundidade
aplicadas para aprofundar ainda mais o estudo, revelando dados que no
poderiam ser coletados atravs do levantamento bibliogrfico exclusivamente.
Foram aplicadas quatro entrevistas em profundidade, sendo duas com
consumidores minimalistas, uma com um indivduo consumista e uma com uma
especialista em comportamento. Os diferentes perfis contemplados nas
entrevistas tm como objetivo confrontar as distintas vises acerca dos tpicos
propostos (contexto econmico, consumo, minimalismo e publicidade), de
maneira a ser possvel analisar as semelhanas e diferenas entre os pontos de
vista dos entrevistados. A anlise das entrevistas presente no captulo 5 nos
permite expandir o conceito de consumo minimalista e apreci-lo de maneira mais
crtica e consistente. O cruzamento de dados entre o que foi levantado nas
entrevistas em profundidade e o levantamento bibliogrfico gerou diversos
insights acerca do minimalismo.
-
2 CONTEXTO DO CONSUMO: HISTRIA, ECONOMIA E SOCIEDADE
2.1 UM OLHAR SOBRE OS CICLOS DO CAPITALISMO
A maneira como o homem se relaciona com suas posses, com o dinheiro
e o consumo est estritamente relacionada ao contexto histrico ocidental da
gnese do capitalismo. Mais do que apenas um novo modelo socioeconmico, a
transio das sociedades pr-capitalistas representa uma transformao
completa das relaes e prticas humanas mais fundamentais, de um rompimento
com antiqussimos padres de interao humana com a natureza, conforme
Wood (2001, p. 77).
Adam Smith nos prope a existncia de uma propenso natural humana a
intercambiar, permutar ou trocar objetos (SMITH, 1985). Sob esta tica, o
desenvolvimento do capitalismo estaria associado s prticas comerciais
inerentes ao ser humano e queda gradual de barreiras que impediam sua plena
evoluo, como atravs da Reforma Protestante, na qual o mundo passou a ver o
trabalho e o lucro no mais como uma maldio ou pecado cristo (WEBER,
2005).
Esta no , entretanto, a nica linha de pensamento aceita para justificar
o nascimento do capitalismo. Para Wood, a superao das estruturas pr-
capitalistas se d de acordo com as relaes particulares de propriedade entre
produtores e apropriadores, seja na indstria, seja na agricultura (2001, p. 77),
independente de acontecerem no contexto urbano ou rural. Nas sociedades pr-
capitalistas, os camponeses eram produtores diretos e detinham a posse dos
meios de produo, especialmente a terra. A apropriao do excedente do
trabalho campons era explorada atravs de mtodos coercitivos pelo Estado e
grandes proprietrios, que tinham acesso ao poder militar, poltico e jurdico. Na
estrutura capitalista, por sua vez, os proprietrios diretos so desprovidos dos
meios de produo, necessitando vender a sua fora de trabalho em troca de um
salrio. Nesse caso, no existe coero direta do trabalho excedente, e sim
atravs da lgica econmica do mercado capitalista (WOOD, 2001).
O feudalismo possua conjuraes diversas na Europa e, durante a crise
do sistema feudal, no sculo XIV, o surgimento do capitalismo pode ser situado
-
15
como uma soluo especificamente na Inglaterra bero da 1 Revoluo
Industrial e, posteriormente, se alastrando para outros pases. A sociedade
camponesa, pequeno modo de produo, surge do processo de emancipao dos
servos, e o capitalismo do processo de diferenciao social em seu seio
(OLIVEIRA. 1999, p. 19). O mesmo servo que se emancipa, ganha a terra que
antes era de propriedade do senhor feudal, ao mesmo tempo em que, porm,
perde a proteo do mesmo, caindo num processo de empobrecimento que o leva
a vender sua mo de obra como sustento. Nascem assim os primeiros
trabalhadores assalariados. Contudo, a sociedade capitalista se instaura
efetivamente na Inglaterra aps o processo dos cercamentos (enclosures), no
qual o campons expulso de seu meio de trabalho, e a terra se transforma em
propriedade, instituio fundamental do capitalismo. Com a separao do
trabalhador do seu meio de sustento e o trabalho assalariado, origina-se um novo
tipo de mercado, j que agora os empregados necessitavam adquirir os produtos
por eles antes produzidos. Economicamente, grandes comerciantes controlavam
o lucro das manufaturas atravs de monoplios na venda da matria-prima e na
compra dos produtos. A soluo para acumular capital estava na explorao da
mo de obra do trabalhador. Dessa maneira, mantinham-se os salrios e
buscava-se aumentar a produtividade, atravs da incorporao de novas
mquinas e equipamentos, embora at a 1 Revoluo Industrial a manufatura
tenha sido predominante (OLIVEIRA, 1999).
A passagem para a 1 Revoluo Industrial foi impulsionada pela
contradio da manufatura: o conhecimento da produo estava nas mos do
trabalhador, o que fazia com que a mesma fosse dependente da limitao fsica
do empregado. Dessa forma, em momento de alta demanda, a oferta de trabalho
tambm era maior, fazendo com que os salrios aumentassem e a margem de
lucro diminusse. Assim, o capitalista encontrava dificuldade de controlar o
trabalhador e a gerao de lucros. Esta a contradio da manufatura, nas
situaes de aquecimento do mercado, as condies existentes impediam a
expanso da acumulao (OLIVEIRA, 1999, p. 24). Com isso, temos a passagem
da manufatura para a maquinofatura atravs, principalmente, da mquina a
vapor e do tear mecnico , o que permitiu a dominao real do trabalho e o
aumento dos lucros. Seguindo o exemplo ingls, logo outros pases europeus,
como Frana, Blgica e Alemanha, passam pelo mesmo processo, acirrando a
-
16
concorrncia mundial. Paralelamente, a Europa assiste a um processo de
articulao por parte dos trabalhadores, que conquistam direitos como a reduo
da jornada de trabalho e aumento salarial. Tais fatores acarretam na 1 Grande
Depresso que, para ser solucionada, necessitou de trs processos
correlacionados: o capitalismo monopolista (fuses e incorporaes de
empresas), o imperialismo (busca de novas terras para obteno de matria-
prima e novos mercados consumidores) e a 2 Revoluo Industrial (OLIVEIRA,
1999). Atravs do emprego da energia eltrica, motor combusto, inveno do
telgrafo, entre outros, a 2 Revoluo Industrial permitiu que novos setores
surgissem e antigos setores se renovassem, reoxigenando o sistema capitalista.
Em meio a todo esse processo, observa-se uma mudana na ordem
mundial, na qual Alemanha e Estados Unidos ultrapassam a Inglaterra e lideram a
prxima fase do capitalismo, pelos motivos destacados por Oliveira (1999, p. 35): A estratgia inglesa foi crescer horizontalmente, abrir novos mercados para seus produtos (e respectiva forma de produo). Enquanto isso, outros pases, EUA e Alemanha, adotavam uma estratgia vertical, a de intensificar o capitalismo, a de criar o novo.
As potncias industrializadas disputavam cada vez mais as matrias-
primas e os mercados consumidores mundiais. Esse clima de tenso culminou na
1 Guerra Mundial. As indstrias americanas aproveitam esse momento para
produzir e exportar grandes quantidades de produtos para os vizinhos europeus,
preocupados com os conflitos da primeira grande guerra e, posteriormente, em
suas reconstrues internas. Contudo, medida que a Europa se recupera,
comea a dispensar as importaes americanas, o que resulta na superproduo
que gera a crise de 1929.
O nmero de acionistas que procurava vender suas aes era muito
maior do que os que estavam disponveis para compr-las, uma vez que todos
achavam mais seguro estar com dinheiro em mos. Esse processo gerou o efeito
bola de neve, que levou a uma baixa na Bolsa de Nova York de propores
catastrficas. O caos estava instaurado, levando muitos investidores que haviam
perdido tudo a suicidarem-se, atirando-se das janelas dos edifcios, enquanto o
nmero de desempregados engrossava a fila da sopa gratuita (ARRUDA 1997,
apud FILHO; FERREIRA; ZENHA, 2003).
-
17
A resposta para a crise foi o questionamento do liberalismo, uma vez que
a economia no estava respondendo automaticamente a um equilbrio, atravs do
desenvolvimento do keynesianismo, que defende a interveno estatal na
economia. Assim, Roosevelt lana o New Deal, programa econmico no qual o
governo americano ajuda setores econmicos, como bancos, agricultura e
indstria, a se reestruturarem aps a crise, alm de grandes investimentos em
obras pblicas para frear o desemprego. desenvolvido, ento, o Welfare State,
que defende um estado responsvel pelo bem-estar social e pelo equilbrio da
economia: O aumento das despesas sociais do Estado irriga o conjunto da economia e permite recuperar os nveis de demanda. Dito em outros termos, o aumento de despesas sociais por parte do Estado nos Estados Unidos transcendeu o perodo de combate crise de 1929 e se converteu em um projeto de regulamentao da economia. Assim sendo, o Estado Providncia complementou o projeto fordista, na medida em que ambos se propunham a manter e assegurar o crescimento do consumo (HELOANI, 2000, p. 53).
Oliveira (1999, p. 39) ainda frisa a questo da posio dos trabalhadores
no novo modelo de Estado: Enfim, o New Deal lanou as bases do Welfare State.
Um novo compromisso em que os trabalhadores foram, de fato, incorporados ao
mundo capitalista como consumidores.
Juntamente com o Welfare State, outro fator decisivo para a sada da
crise foi a difuso do fordismo, sistema de produo e gesto criado por Henry
Ford, um novo modelo que visa a produo em massa, baseando-se em
inovaes tcnicas e organizacionais. No que diz respeito ao trabalho, o fordismo
separa drasticamente a concepo e a execuo, atravs do trabalho
fragmentado e simplificado e dos ciclos operatrios curtos, o que demandava
pouco treinamento dos trabalhadores. A concepo fordista adota a linha de
montagem junto esteira rolante, evitando o deslocamento desnecessrio do
trabalhador, para manter o foco deste no trabalho, eliminando a porosidade, ou
seja, os tempos mortos e sem produo. Alm disso, o fordismo opera atravs da
recompensa do trabalhador, que recebe um salrio mais alto, chamado de five
dollars a day na fbrica de Henry Ford (CATTANI, 1997).
importante ressaltar que, alm de uma organizao interna da indstria,
o fordismo e sua poltica do five dollars a day, alm de se propor a recompensar o
trabalhador, um fator decisivo no poder aquisitivo do consumidor perante a
-
18
economia, pois este alavanca os investimentos, aumentando a produtividade,
que, novamente, repassada aos salrios, gerando um ciclo que expande o
consumo. Dessa forma, aps 1935, o modelo fordista gera a disseminao da
produo de massa para o conjunto da economia, e essa expanso abre novas
frentes de acumulao capitalista, uma vez que a reproduo da fora de
trabalho se transformaria em parte integral da reproduo do capital (HELOANI,
2000, p. 53).
Nessa perspectiva, o Welfare State, o fordismo e o keynesianismo
inauguram de 1945 at as dcadas de 1970/1980 uma nova fase de prosperidade
do sistema capitalista. Alm da produtividade, pode-se observar a incluso social
neste sistema, j que o capitalismo deixou de ver os trabalhadores
exclusivamente como mo de obra, incluindo-os tambm como consumidores das
mercadorias que eles mesmos produziam (OLIVEIRA, 1999). Mas Oliveira (1999,
p. 41) adverte: No sistema capitalista a prpria prosperidade gesta a futura crise.
Isso porque, a partir dos anos 1960, j podemos perceber sinais de esgotamento
na nova fase. Desse modo, aplicando solues j conhecidas para os problemas
recorrentes do sistema, os capitalistas conseguem estender a chamada idade de
ouro do capitalismo at 1970/1980. As multinacionais optam por aplicar o
excesso de capital no exterior e assegurar mercados nas reas dos pases que
praticavam a proteo da economia interna atravs da substituio de
importaes. Alm disso, surgem novas ondas de fuses e incorporaes
empresariais, assim como novas estratgias at hoje adotadas, como a
obsolescncia programada, uma alternativa falta de novos produtos ou
processos inovadores. Outro caminho adotado pelas empresas foram as
estratgias de marketing, atravs da popularizao do efeito carro do ano em
diversos produtos, assim como alteraes estticas nos mesmos para induzir ao
descarte mais rapidamente e a substituio atravs do consumo (OLIVEIRA,
1999).
Aps a Segunda Guerra mundial, foram desenvolvidas as principais
descobertas eletrnicas: o primeiro computador programvel e o transistor, a
partir da microeletrnica (CASTELLS, 1999). A partir da, diversas tecnologias
foram desenvolvidas, culminando no que os historiadores chamam de Terceira
Revoluo Industrial, estabelecida especialmente pela indstria de
semicondutores centrada no Vale do Silcio em So Francisco. O nome do vale
-
19
deriva do principal produto dessa indstria, os complexos circuitos eletrnicos
constitudos de mnimas peas de silcio (OSBORNE, 1984).
Dessa forma, as novas tecnologias da Terceira Revoluo Industrial
trouxeram mudanas estruturais na sociedade capitalista, especialmente no que
diz respeito velocidade da comunicao e da informao. Os canais de
comunicao tpicos da era industrial, como os sistemas telefnicos, estavam
despreparados para a gigantesca quantidade de dados computadorizados,
ficando sobrecarregados. Dessa forma, surgem diversos novos canais de
comunicao e instrumentos para suportar os abundantes dados, em uma
verdadeira exploso de inovaes tecnolgicas, na tentativa de conter a
sobrecarga de informaes (TOFFLER, 1983). Podemos, assim, fechar um ciclo: mais diversidade e mudana so iguais a mais informaes, que so iguais a mais tecnologias para processar informaes e isto, acho, leva a ainda mais diversidade e mudana. essa a dinmica que impulsiona a revoluo nas informaes, que fazem apenas parte de uma onda maior de mudana que ora comea a obliterar a velha sociedade industrial (TOFFLER, 1983, p. 120).
Alm disso, os meios de comunicao da era industrial se caracterizavam
pelo seu carter centralizador (seja pelo governo ou por grandes empresas) e
divulgao de massa. O advento de novas tecnologias, como o gravador de fitas,
subverteu tal lgica, pois estas permitiam que o receptor fosse tambm produtor
de contedo, elaborando mensagens e disseminando-as. A mesma perspectiva
pode ser aplicada a mquinas, como o Xerox (potenciais disseminadores de
ideias ilcitas), o computador (antes centralizados ampliando o poder do governo
ou empresa e agora pequenos o bastante para serem manuseados at por
crianas), a televiso a cabo (que antes era um sistema de mo nica e agora se
apresenta com interatividade, no qual os espectadores podem conversar com o
transmissor), entre outros. Tais inovaes tecnolgicas, principalmente no que diz
respeito ao campo da informao e comunicao, contribuem para que o controle
central sobre nossas vidas seja reduzido ao invs de aumentado (TOFFLER,
1983).
Todo esse processo possui desdobramentos nos mais variados setores
da sociedade. Economicamente, podemos observar que as fronteiras nacionais
so barreiras do passado, uma vez que a economia passa a ter uma unidade
-
20
agora global. Desse modo, as empresas buscam matria-prima, infraestrutura e
mo de obra nas localidades mais baratas e vendem seus produtos onde o
mercado consumidor est apto a pagar mais (OLIVEIRA, 1999). A queda das
fronteiras entre pases permitiu a maximizao dos lucros, atravs da economia
global: A desregulamentao dos mercados financeiros, aliada aos crescentes avanos da informtica e telemtica, aceleram a velocidade e os volumes dos fluxos de capitais. Sempre procura de melhores oportunidades (taxas de juros e lucratividade mais elevadas) os capitais no se fixam em nenhum pas; dificilmente se prendem produo. O resultado a criao de um mercado especulativo em escala global [...]. Assim, cada grande empresa, pases ou blocos se fortalecem nas novas tecnologias e se preparam para maiores enfrentamentos [...]. O capitalismo ainda continua o mesmo (OLIVEIRA, 1999, p. 45).
Dentro da perspectiva de economia global, descentralizao e Terceira
Revoluo Industrial, o advento da internet trouxe mudanas profundas na
economia. Enquanto tecnologias, como o broadcast, permitiam transmitir um
programa de televiso, por exemplo, a um milho de pessoas com igual
eficincia, a internet permitiu levar um milho de programas para uma s pessoa.
Isso marca uma verdadeira revoluo no consumo de entretenimento. Surge,
dessa forma, o mercado de variedades, de escolhas infinitas, que rompe com a
anterior indstria de massa uniforme. O mercado de massa se converteu em um
mercado de nichos, trazendo tona uma demanda anteriormente invisvel, na
qual cineastas amadores, por exemplo, conseguem encontrar seu pblico atravs
da internet, graas economia da distribuio digital. As vantagens e
possibilidades trazidas pela internet subverteram a lgica econmica vigente.
Antes, um CD, que vendia apenas uma cpia por trimestre, era um desperdcio de
dinheiro, pois demandava custos para ter sua presena fsica nas lojas (aluguel,
funcionrios, estoque, etc.). Com o ambiente digital, essas vendas esparsas
ganham flego, pois os custos so inexistentes, gerando uma economia de varejo
on-line potencialmente mais poderosa do que o varejo tradicional. Assim,
Anderson desenvolveu a teoria da Cauda Longa, na qual foi observado que
estes produtos menos procurados poderiam vender pouco individualmente,
porm, por serem extremamente numerosos, seu todo constitua um negcio
extremamente rentvel. Com isso, temos o triunfo do mercado digital
especializado. A Cauda Longa vai ao encontro tambm da economia da
-
21
abundncia, pois inaugurado um mercado de infinitas escolhas, disponvel a
todos e em qualquer local, devido a seu ambiente digital (ANDERSON, 2006).
Economia global, crise global: em 2008 o mundo assiste a uma crise que
tm incio nos Estados Unidos; contudo, com a mesma rapidez das novas
tecnologias, se alastra por todo o mundo rapidamente. Com o colapso da bolha
especulativa do mercado imobilirio americano, juntamente com a enorme
expanso do crdito bancrio e pelo uso de novos instrumentos financeiros, o
mundo assistiu maior crise desde a grande depresso de 1929. Podemos
destacar como detonador da crise a falncia do banco de investimentos Lehman
Brothers no dia 15 de setembro de 2008, aps o banco central americano Federal
Reserve (FED) se recusar a socorrer a instituio. Assim, o estado de confiana
dos mercados financeiros sofreu um forte impacto, rompendo com a crena de
que o FED iria socorrer qualquer instituio financeira afetada pelo estouro da
bolha especulativa do mercado imobilirio (OREIRO, 2011).
Como podemos ver, da gnese at os dias atuais as chamadas crises do
capitalismo so mais do que recorrentes, so cclicas. Assim, os perodos mais
longos de expanso esto ligados s revolues tecnolgicas, que trazem
inovaes e injetam novas formas de produo e acumulao capitalista. Uma
vez que cessam, temos um perodo de retrao, at novamente o capitalismo
conseguir se renovar, reiniciando o ciclo: A acumulao , assim, um processo sujeito a ciclos de expanso e recesso, que at so considerados normais no desenvolvimento da produo capitalista. As crises econmicas so, precisamente, o resultado de dificuldades temporrias no processo de valorizao do capital, que fazem declinar a taxa de lucro a nveis considerados insatisfatrios do ponto de vista da rentabilidade normal do capital. De fato, a produo capitalista, desde seus primrdios, tem convivido com crises econmicas de amplitude, profundidade e durao variveis (OHLWEILER, 1988, p. 112).
-
22
2.2 UM OLHAR SOBRE O ESPRITO DOS TEMPOS
2.2.1 Zeitgeist Modernista
Uma definio meramente histrica do conceito de modernidade confere
uma resposta relativa ao tempo e espao no qual est situado, contudo resume-o
de forma simplista e no lhe confere seu real significado. Giddens analisa o
conceito a partir desta perspectiva, referindo-se modernidade, em um primeiro
momento, como um costume, estilo de vida ou organizao social caractersticos
da Europa a partir do sculo XVII e que posteriormente atingiram propores mais
ou menos mundiais de referncia. O autor, entretanto, ressalta que essa definio
situa o conceito, mas resguarda suas principais caractersticas (GIDDENS, 1991).
Na viso de Powell (1998, p. 8), Modernismo um termo geral para uma
exploso de novos estilos e tendncias nas artes, na primeira metade do sculo
20. Como um simples perodo histrico seria capaz de criar tal exploso? Nota-
se rapidamente que o real significado da modernidade transcende essa
denominao histrica.
A partir da Idade Mdia, a Europa passa por profundas transformaes
econmicas, como vistas no tpico anterior, mas tambm polticas atravs da
formao dos Estados-naes e sociais. O sculo XVIII se transformou no
sculo das luzes, atravs do Iluminismo, cuja filosofia se baseia na existncia
conduzida em conformidade com a razo: no foi seu idealismo ou o otimismo
que motivaram os pensadores na sua empreitada, mas uma nova cincia, um
mtodo e, aliada a eles, uma nova cincia poltica (BLOOM, apud TOURAINE,
1995, p. 19).
Elevando a cincia e a razo posio antes destinada aos dogmas da
Igreja, o Iluminismo prometia libertar o homem das correntes da ignorncia para ir
rumo ao progresso definitivo. O nico caminho para a liberdade da escassez, da
necessidade e da arbitrariedade das calamidades naturais era o domnio
cientfico. Dessa maneira, as formas racionais de organizao social e tambm a
racionalizao do pensamento prometiam a libertao das irracionalidades do
mundo, como os mitos, religio, superstio, entre outros. O Iluminismo
disseminou a ideia de que, somente por este caminho da razo e racionalidade,
as qualidades universais e imutveis da humanidade seriam reveladas (HARVEY,
-
23
1993). A Revoluo Francesa tambm foi definitiva para a difuso de tal
pensamento: O esprito do Iluminismo quer destruir no apenas o despotismo, mas os corpos intermedirios, como o fez a Revoluo francesa: a sociedade deveria ser to transparente quanto o pensamento cientfico. Ideia que ficou muito presente nos ideais franceses de repblica e na convico de que ela deve ser, antes de mais nada, portadora de ideais universalistas: a liberdade, a igualdade e a fraternidade (TOURAINE, 1995, p. 20).
O otimismo iluminista e suas previses de progresso imensurvel e
libertao entraram em choque com os profundos acontecimentos que marcaram
o sculo XX: duas guerras mundiais, campos de concentrao, Hiroshima e
Nagasaki, desastres ecolgicos. Seguindo o ideal da era das luzes, o que o
sculo XX viu foi a escurido: Ento um problema do modernismo que a
cincia e a razo no criaram o progresso criaram Auschwitz e Hiroshima
(POWELL, 1998). Harvey (1993) destaca essa mesma perspectiva de que os
acontecimentos sombrios do sculo XX deterioraram o otimismo instaurado pelo
Iluminismo, e ainda ressalta que o pior seria a suspeita de que o projeto iluminista
estava fadado a voltar-se contra si mesmo, transformando a busca da
emancipao humana num sistema de opresso universal em nome da libertao
humana (HARVEY, 1993, p. 23).
Alm disso, Nietzsche proclamou a Morte de Deus, assim como a morte
da moral crist. Isso significa que, ao mesmo tempo, alm da runa do
pensamento iluminista, a cultura ocidental agora perdia tambm sua principal
instituio, seus smbolos e suas crenas. E o que resta de todo esse processo?
Nada. Por este motivo, Powell (1998, p. 8) nos prope: Se a era moderna tivesse
uma imagem central, seria um vcuo. Alm disso, tanto Powell (1998, p. 8),
quanto Harvey (1993, p. 22) nos trazem os versos de W. B. Yeats para ilustrar o
modernismo: As coisas se desfazem; o centro no se sustm; a pura anarquia
est solta no mundo.
Ns vivemos, entretanto, em uma cultura que preza presena sobre a
ausncia (POWELL, 1998, p. 11). Por essa razo, era preciso preencher o
vazio da modernidade com algo que oferecesse sentido. Nietzsche, que antes
havia privado a cultura ocidental da sua instituio central a Igreja , agora
oferecia a arte como referncia para o modernismo. Dessa forma, eclodiram
-
24
diversos movimentos artsticos modernistas, que buscavam, das mais diversas
formas, o eterno em meio ao caos (POWELL, 1998). Na medida em que Nietsche dera incio ao posicionamento da esttica acima da cincia, da racionalidade e da poltica, a explorao da experincia esttica alm do bem e do mal tornou-se um poderoso meio para o estabelecimento de uma nova mitologia quanto quilo a que o eterno e imutvel poderia referir-se em meio a toda efemeridade, fragmentao e caos patente da vida moderna. Isso deu um novo papel e imprimiu um novo mpeto ao modernismo cultural (HARVEY, 1993, p. 27).
Tais movimentos so o reflexo de uma sociedade rf de instituies e
valores que rejam a sua vida, que lhe mostre o caminho. Ao mesmo tempo em
que a modernidade nos liberta das amarras da moral e das crenas dogmticas,
ela nos lana em um vazio um vcuo que ns precisamos que seja
preenchido. Dessa forma, podemos dizer que a modernidade carregada de
ambiguidades, pois, ao mesmo tempo em que oferece segurana e confiana,
oferece tambm perigo e risco. Leito (1997) destaca que neste perodo somos
invadidos por um ritmo poderoso de mudanas, no qual o avano da
intercomunicao resulta em uma conexo global. Esse processo feito,
entretanto, sem que o desenvolvimento das foras de produo tenha resultado
em melhoras significativas na qualidade de vida da humanidade.
Harvey (1993) ainda observa que passamos da mxima descartiana,
Penso, logo existo, para a reinterpretao de Rousseau, Sinto, logo existo,
assinalando uma radical mudana de uma viso racional e instrumentalista do
mundo para uma perspectiva mais conscientemente esttica para a realizao
dos propsitos iluministas (HARVEY, 1993).
A relao e a diferena entre modernidade e modernizao so
abordadas por Touraine (1995, p. 19), que afirma que a modernizao no a
obra de um dspota esclarecido, de uma revoluo popular ou da vontade de um
grupo dirigente; ela obra da prpria razo e, portanto, principalmente da cincia,
da tecnologia e da educao [...].
Autores marxistas indicam o capitalismo como principal fora
transformadora do mundo moderno. Giddens (1991, p. 16) explica o carter mvel
e inquieto da modernidade como resultado do ciclo investimento-lucro-
investimento que, ao se combinar com a tendncia geral da taxa de lucro a
declinar, resulta em uma disposio constante para o sistema se expandir, o que
-
25
faz a ordem social emergente da modernidade ser capitalista, tanto no mbito
econmico como em suas outras instituies. Autores como Durkheim e Weber,
entretanto, discordam dessa posio: Para Durkheim, a competio capitalista no o elemento central da ordem industrial emergente, e algumas das caractersticas sobre as quais Marx pusera grande nfase, ele via como marginais e transitrias. O carter de rpida transformao da vida social moderna no deriva essencialmente do capitalismo, mas do impulso energizante de uma complexa diviso de trabalho, aproveitando a produo para as necessidades humanas atravs da explorao industrial da natureza. Vivemos numa ordem que no capitalista, mas industrial (GIDDENS, 1991, p. 16).
Assim, podemos observar como a modernidade assim como a ps-
modernidade representa o zeitgeist de seu tempo, uma vez que no apenas
envolve uma implacvel ruptura com todas e quaisquer condies histricas
precedentes, como caracterizada por um interminvel processo de rupturas e
fragmentaes internas inerentes (HARVEY, 1993, p. 22).
McCraken (2003) nos prope trs momentos de crucial destaque na
histria do consumo, todos situados na modernidade. Trata-se de booms
consumistas essenciais para melhor compreendermos a evoluo do consumo
at o presente momento, nos quais o mesmo avanou, atingindo novas escalas e
significados. Alm disso, tais episdios funcionaram ao mesmo tempo como
reflexos e propulsores de novos padres de produo, troca e demanda
(McCRACKEN, 2003, p. 30). Dessa maneira, torna-se essencial analisarmos
estes trs momentos no modernismo para, em um segundo momento, melhor
compreendermos as relaes de consumo dos dias presentes.
Primeiramente, os ltimos vinte e cinco anos do sculo XVI assistiram a
uma mudana drstica no seu modelo de consumo. A Inglaterra elizabetana
adotou um nvel de consumo impensvel por seus antecessores, atravs de
mudanas nos padres de hospitalidade, especialmente de carter cerimonial,
como banquetes e vesturios esplendentes e, consequentemente, de alto custo
(McCRACKEN, 2003).
Tal epidemia de consumismo est relacionada a dois fatores histricos.
Primeiramente, Elizabeth I utilizou a despesa como um instrumento poltico. A
rainha comunicava ao povo seu poder e qualidades para governar atravs do uso
de objetos magnificentes, vesturio luxuoso e do cerimonial sumptuoso: O
-
26
simbolismo supercarregado da corte monrquica, da hospitalidade e do vesturio
converteu-se na oportunidade para a persuaso e a instruo polticas
(McCRACKEN, 2003, p. 31). Alm de instrumento simblico, Elizabeth tramou
uma lgica na qual a prpria nobreza pagava uma parte de toda essa cerimnia,
pois nesse novo arranjo os nobres deveriam procurar diretamente a rainha para
receber seu quinho real. Para isso, o nobre tinha que transportar-se at Londres,
aumentando seus custos e fazendo-o cada vez mais dependente da rainha. Essa
destreza da rainha era um dos aspectos mais importantes de seu governo,
conseguindo explorar o poder expressivo de seu mundo de bens. Adicionalmente,
se destaca a destreza com a qual a rainha inclua de forma incontestvel os
outros a participar neste mundo, em benefcio dela mesma e em detrimento deles
(McCRACKEN, 2003).
O segundo fator histrico relacionado ao surto de consumo do sculo XVI
a competio social entre a nobreza elizabetana. Ao necessitar ir para Londres
para solicitar a ateno da rainha, o nobre se tornava apenas mais um entre
muitos de seus semelhantes. Era preciso se destacar em meio ao que McCracken
chamou de buscadores-de-status para manter a sua honra, posio social e a
importante relao com a monarca. O resultado disso foi um boom de consumo
entre os nobres, desesperados por objetos e vestimentas que os assegurassem
como tais. Dessa forma, podemos concluir que a presena de competidores
sociais levou essa classe a consumir cada vez mais, tornando rapidamente os
nobres em escravos do consumo competitivo (McCRACKEN, 2003).
Como que em um efeito avalanche, tais fatores que sucederam a essa
nova escala radical de consumo da Inglaterra elizabetana desencadearam em
mais desenvolvimento no consumo, pois causas transformam-se em efeitos, que
por sua vez convertem-se em causas (McCRACKEN, 2003, p. 32). Assim, esses
efeitos penetraram em instncias mais profundas da sociedade inglesa da poca,
na questo da famlia e da localidade.
O consumo da famlia inglesa da poca funcionava atravs de uma
espcie de culto do status familiar. A compra de um bem era feita visando
representao da honra de seus descendentes e que, ao mesmo tempo, no
futuro, aumentasse a reivindicao por status ao longo das futuras geraes.
Podemos, portanto, dizer que as compras eram efetuadas pelos vivos, mas
beneficiavam em sua unidade de consumo tambm os j falecidos e os ainda no
-
27
nascidos. Assim, quanto mais antigo o objeto de valor, maior a prova de que
aquela famlia havia possudo honra e status durante muitos anos e ainda os
tinha. Dessa forma, de acordo com a ideologia de status corrente, o novo era a
marca do comum, enquanto a ptina produzida pelo seu uso era signo e a
garantia da posio (McCRACKEN, 2003, p. 33). Nenhuma compra contribua para o culto do status familiar a no ser que trouxesse para o interior da famlia um objeto que fosse capaz de adquirir um aspecto ptina e de sobreviver por vrias geraes de propriedade familiar. O sistema ptina de consumo significava que somente certas casas poderiam ser qualificadas como bens de consumo desejveis. Alm disso, significava que somente determinada moblia, aquela marcada pela antiguidade, era um bem de valor para a famlia nobre. O mais conspcuo dentre os acessrios para a casa era o retrato familiar, prova tangvel de uma linhagem nobre e medida exata do nmero de geraes que reivindicava alto status. Mas, por assim dizer, todo o restante dos mveis funcionava tambm como um retrato de famlia. Todos eles eram representaes de uma riqueza h muito tempo estabelecida e de ancestrais distintos (McCRACKEN, 2003, p. 33).
No momento em que o nobre elizabetano, entretanto, levado a comprar
desesperadamente em busca de diferenciao social, obtm bens em funo de
demandas imediatas, no em busca de reforar seu status e honra familiar, mas
no intuito de se destacar em meio a uma guerra social. Este fato revolucionou a
relao das pessoas com seus bens, pois agora no somente o antigo e sua
ptina eram valiosos, havia tambm espao para o novo, que tambm era
valorizado. Temos, dessa maneira, uma mudana na unidade de consumo, que
passa de familiar e coletiva para individual, alm de modificaes no processo de
deciso de compra, que se desloca de uma perspectiva de ptina para a moda
(McCRACKEN, 2003).
Outro fator que sofreu mudanas estruturais devido ao consumo
desenfreado dos nobres elizabetanos foi a questo da localidade. O nobre, que
antes era o responsvel por passar recursos reais aos membros de sua
comunidade, estava gastando o que tinha para se destacar na guerra social de
Londres. Assim, a relao entre o nobre e sua localidade parcialmente cortada,
abalando profundamente a relao com sua unidade social. Temos, assim, a
deteriorao da ntima relao entre superiores e subordinados. Paralelamente,
os estilos de vida do nobre e da comunidade tambm comeam a se distanciar e
surge um espectro de diferenciao entre eles. Sociologicamente falando, o grupo
-
28
de referncia dos subordinados havia sofrido mutaes profundas (McCRACKEN,
2003).
De forma geral, podemos observar que a Inglaterra elizabetana vivenciou
toda uma mudana social que comeou na relao de sua monarca com os
nobres, mas que acabou atingindo instncias muito mais profundas da sociedade
inglesa. Em consequncia, houve uma total ressignificao dos bens, o que
acarretou mudanas estruturais na histria do consumo, cujos desdobramentos
foram decisivos para delinear os tempos posteriores.
No sculo XVIII, as mudanas iniciadas no sculo XVI j estavam
estabelecidas. A novidade est na expanso do consumo. Ocorre um crescimento
explosivo de mercados no tempo e no espao, alm da criao de um vasto
espectro de escolhas no consumo. Assim, as classes subordinadas, que antes
haviam assistido apenas a nobreza gastar desenfreadamente, agora estavam
tambm integradas como pblico consumidor: possvel afirmar que o consumo
estava se alastrando em mais lugares, sob novas influncias, em novos grupos
que buscavam novos bens, mais frequentemente e em funo de necessidades
novas, tanto culturais, quanto sociais.
Tais fatos so de suma importncia, pois temos no sculo XVIII o primeiro
perodo na tradio ocidental em que se configura um consumo de massa. Todo
esse processo acarretou em uma situao de consumo to intensa que os
observadores contemporneos a chamaram de loucura epidmica
(McCRACKEN, 2003). Aquilo que homens e mulheres uma vez esperaram herdar de seus pais, agora tinham a expectativa de comprar por si mesmos. Aquilo que uma vez foi comprado sob os ditames da necessidade, agora era comprado sob os ditames da moda. Aquilo que antes era comprado uma vez na vida, agora podia ser comprado vrias e vrias vezes. Aquilo que uma vez esteve disponvel somente em dias solenes e feriados atravs das agncias de mercado, feiras e vendedores ambulantes era cada vez mais posto disposio todos os dias, com exceo de domingo, pela agncia adicional de uma rede sempre crescente de lojas e comerciantes. Como resultado, as luxrias passaram as ser vistas como meros bons costumes, e os bons costumes passaram a ser vistos como necessidades. Mesmo as necessidades sofreram uma dramtica metamorfose em estilo, variedade e disponibilidade (McKENDRICK, apud McCRACKEN, 2003, p. 37).
Outra particularidade da poca foram os primeiros desenvolvimentos das
tcnicas de marketing. McCracken considera o caso de Josiah Wedgwood o
-
29
primeiro sucesso no controle consciente das foras de marketing. Wedgwood
detectou que as modas no vesturio comeavam nas altas classes e, como um
efeito cascata, iam se popularizando para a nobreza, pequena nobreza e classes
mdias at atingir as classes mais baixas, sendo conduzida por uma espcie de
duplo mecanismo no qual o subordinado imita o superior e o superior busca se
diferenciar da massa constantemente. Assim, Wedgwood utilizou essa
observao para benefcio prprio, ao posicionar seus bens primeiramente para
as classes mais altas, na esperana de se popularizarem at as classes da base
social atravs do consumo trickle-down. Reside aqui um importante marco, no
momento em que, pela primeira vez, ocorre uma espcie de domesticao de
uma fora natural do mercado, sofisticando as estratgias de marketing na
manipulao da demanda. Logo, enquanto a dominao de fora da natureza
anteriormente desconhecida for essencial para conduzir a revoluo industrial
deste perodo, a paralela revoluo de consumo tambm segue essa lgica,
porm atravs de uma nova compreenso e domnio de regularidades da
sociedade e do mercado (McCRACKEN, 2003).
A partir da, os comerciantes passaram a dar uma ateno muito mais
prxima s regularidades da sociedade, de modo a entender os movimentos de
mercado para melhor inserirem seus produtos no mesmo. Assim, foi possvel criar
novas e mais ntimas conexes entre cultura e consumo. Dentro dessa lgica, o
consumidor dessa poca era objeto de estratgias cada vez mais desenvolvidas
para incitar desejos e preferncias, comeando a habitar um clima artificialmente
estimulado. Os consumidores cada vez mais tinham seus gostos e preferncias
transferidos para a posse das emergentes foras do mercado (McCRACKEN,
2003).
tambm no sculo XVIII que se consolida o crescimento do consumo de
moda. Ocorre o triunfo do estilo e da esttica dos produtos, que agora ocupam um
lugar acima da funo utilitria do mesmo, alm do fato de que um objeto ainda
cumprir sua utilidade no ser mais um motivo forte o bastante para fazer o
consumidor mant-lo consigo. O fator decisivo agora se o produto cumpre a
funo de estar na moda. Gera-se, assim, uma forte obsolescncia resultante da
hegemonia do sistema de compra pela moda, j que o consumidor levado a
substituir seus objetos com muito mais frequncia. Todo esse processo acarreta
em um forte encargo semitico adicional em relao aos bens de consumo:
-
30
Os consumidores ocupavam agora um mundo preenchido por bens que encarnavam mensagens. Cada vez mais, eram rodeados por objetos carregados de sentido que s podiam ser lidos por aqueles que possussem um conhecimento do cdigo-objeto. Assim, os consumidores estavam, por necessidade, se tornando semiotistas em uma nova mdia e mestres em um novo cdigo. Em suma, cada vez mais o comportamento social convertia-se em consumo e o indivduo era mais e mais subordinado a um papel de consumidor (McCRACKEN, 2003, p. 40).
McCracken ainda nos traz um interessante pensamento de Campbell, que
diz que os novos padres de consumo so ao mesmo tempo a causa e a
consequncia de definies romnticas do self do indivduo: A insistncia romntica no carter nico e autnomo do self, bem como em sua realizao atravs da experincia e da criatividade, ao mesmo tempo deriva-se da e corrobora para a revoluo do consumo. Cada vez mais, os indivduos estavam preparados para supor que o o self construdo atravs do consumo [e que] o consumo expressa o self (CAMPBELL, apud McCRACKEN, 2003, p. 41).
Foi atravs de todo esse contexto mercadolgico e social que o sculo
XVIII viu o nascimento da atual sociedade de consumo e os primrdios da cultura
de consumo moderna que ainda hoje persiste, atravs da coextenso do mundo
dos bens ao mundo da vida social: O Ocidente se engajava em um grande
experimento, no qual cultura e consumo estavam se tornando intrinsecamente
ligados (McCRACKEN, 2003, p. 38).
Ao atingirmos o sculo XIX, a revoluo do consumo j faz parte da
estrutura da vida social, e consumo e sociedade j so conceitos que se fundem
num contnuo processo de mudanas. Por esse motivo, no houve um boom
consumista no sculo XIX, uma vez que as mudanas no Ocidente j estavam
intrinsicamente ligadas ideia de mudana social e de consumo. O que torna
esse sculo de suma importncia para este apanhado histrico o surgimento de
agrupamentos distintos de estilos de vida interdependentes, marcado por trs
comportamentos de consumo na Frana (McCRACKEN, 2003).
O primeiro comportamento o Consumo de Massa, que adotava novas
e fantsticas ideias de luxria ao mesmo tempo em que preservava as da
aristocracia. Profundamente ligado a este estilo de consumo est o
desenvolvimento alucinante de lojas de departamento. Estas foram agentes de
difuso do consumo de massa, funcionando como sala de aula para que os
-
31
indivduos aprendessem seu papel vital no mundo: o de consumidores. A
revoluo de consumo no poderia estar melhor instalada atravs de seu principal
locus: a loja de departamento (McCRACKEN, 2003).
O segundo modelo de consumo era o estilo de vida da elite que, atravs
dos dndis, acreditava que seu modo especial de consumo era capaz de coloc-
los acima da massa por causa de sua viso aguada em relao esttica e
arte. Os dndis se declaravam como a nova elite, uma nova aristocracia, por
causa de seu bom gosto superior. Este estilo de consumo um claro exemplo de
como um grupo pode se apropriar dos bens para moldar significados culturais e
para servir-lhes de suporte (McCRACKEN, 2003). O cultivo deste estilo de elite nada menos que um esforo em utilizar a linguagem emergente dos bens para gerar um conjunto nico de conceitos culturais capaz de especificar uma nova noo de pessoa e de uma nova definio da relao desta pessoa com a sociedade mais ampla, bem como um grupo de conceitos e de valor que funcionasse como diretriz para a ao social. A linguagem dos bens estava sendo utilizada aqui muito deliberadamente e com total habilidade para empreender um ato de inveno social: a criao de uma nova organizao de vida social. Inovaes deste tipo eram anteriormente impossveis, no somente porque uma sociedade tradicional no toleraria tal experimentao, mas como tambm porque no havia nenhum sistema de discursos que viabilizasse o ato necessrio de repensar e de inventar, do qual poderia emergir um novo conceito de vida social. Podemos encarar o dndi, que funciona como eptome deste novo estilo elitista de consumo, como a figura que, de maneira muito autoconsciente, tira vantagem de uma sociedade desordenada para forjar um espao para si prprio que, antes, no existia para ningum (McCRACKEN, 2003, p. 46).
O terceiro estilo o Modelo Democrtico de Consumo, que se derivou
do movimento das artes decorativas. Ao contrrio dos dndis do estilo de vida de
elite, no buscavam forjar uma nova aristocracia, e sim um consumo acessvel,
modesto e dignificante. Aqui, o significado impresso nos bens distinto, j que o
intuito ressocializar o povo. Isso era feito atravs da alterao das modificaes
acerca do consumo e dos bens, o que transformava as aspiraes sociais destes
indivduos e at seus conceitos de si mesmos e de sociedade. Esse experimento
com a linguagem dos bens possui um tom proselitista, utilizando os bens de
consumo como suporte para um novo conceito dos prprios bens. Ao passo que
os dndis faziam uso de suas posses para reivindicar um estilo de vida para eles
mesmos, os adeptos ao modelo democrtico utilizavam o consumo com
-
32
propsitos institucionais, para tentar reformar um grupo social no qual no
estavam includos (McCRACKEN, 2003).
2.2.1 Zeitgeist Ps-Modernista
No existe uma definio predominante do termo ps-modernismo.
Alguns autores o consideram equivocado, pois o prefixo ps nos d a ideia de
uma continuidade da modernidade, enquanto deveria expressar uma quebra,
ruptura. Embora muito utilizado, ainda difcil definir o termo com preciso,
possivelmente porque no possumos o distanciamento histrico necessrio para
entender o que de fato o ps-modernismo, uma vez que nos encontramos
dentro de seu contexto. Lemert (2000), inclusive, nos prope trs divises
relativas a teorias ps-modernistas, evidenciando a falta de um pensamento nico
entre os estudiosos. Primeiramente, o modernismo radical seria um grupo de
teorias sociais simultaneamente crticas e leais aos principais valores do
modernismo e da modernidade. O ps-modernismo radical, por sua vez, seria
outro grupo de teorias sociais que encaram a modernidade como passado ou, no
mnimo, em seus ltimos momentos de histria; suas teorias sociais consideram o
presente como algo mais caracterizado pela hiper-realidade do que pela
realidade. Completando as trs perspectivas, o ps-modernismo estratgico tem
suas teorias sociais objetivando reconstruir a histria poltica, social e cultural da
modernidade, com a finalidade de expor as iluses da mesma; este grupo no se
caracteriza nem pelo hiper-realismo, nem pelo realismo.
O incontestvel o fato de que o mundo est mudando, e que os pilares
fundamentais que sustentavam a modernidade desde o sculo XV esto ruindo.
Lemert (2000) fixa as trs principais mudanas que entraram em colapso com a
transio da modernidade para a ps-modernidade: 1) atravs dos movimentos
de descolonizao de regies como frica e Caribe e a derrota americana na
Guerra do Vietn, o sistema mundial euro-americano moderno clssico e fundado
em meio milnio de colonizao entrou em colapso; 2) a quebra da hegemonia
norte-americana do ps-guerra marca a ausncia de um centro poltico e
econmico no mundo dos negcios, desnorteando a ordem mundial. Assim, com
a ausncia de um Estado centralizado e dominante, a estrutura clssica do
mundo moderno ruiu, trazendo consigo uma nova ordem distinta ao sistema da
-
33
era moderna; 3) a queda da ideia de um mundo cultural unificado e universal
baseado em valores euroamericanos.
De maneira mais geral, Giddens (1991) tambm indica que estamos rumo
a uma nova ordem social que no inclui as instituies tidas como modernas.
Assim, no ps-modernismo, nada pode ser conhecido com alguma certeza; a
histria destituda de teologia, logo nenhuma verso do progresso pode ser
definida; e que a crescente projeo das questes ambientais e de novos
movimentos sociais gerou uma nova agenda social e poltica.
Em relao ao perodo anterior, enquanto os modernistas procuravam
incansavelmente um centro para substituir o vazio da ruptura e da desiluso de
antigas crenas e pensamentos, o ps-modernismo dispensa qualquer tipo de
centro. Ao invs disso, existe uma descentralizao, pois no existe mais uma
necessidade vital de uma estrutura apenas para reger o homem (POWELL, 1998).
O vcuo que os modernistas buscaram incessantemente preencher no era
mais um problema: o ps-moderno sabe conviver com isso, como indica Giddens: A condio da ps-modernidade caracterizada por uma evaporao da grans narrative o enredo dominante por meio do qual somos inseridos na histria como seres tendo um passado definitivo e um futuro predizvel. A perspectiva ps-moderna v uma pluralidade de reivindicaes heterogneas de conhecimento, na qual a cincia no tem um lugar privilegiado (1991, p. 12).
Essa questo relativa falta de uma narrativa tambm descrita por
Powell (1998, p. 33), quando rev os pensamentos de Jean-Franois Lyotard: A
sociedade ps-moderna feita de zilhes de incompatveis pequenas histrias
micronarrativas. E nenhuma dessas pequenas histrias pode dominar ou explicar
o resto. No ps-modernismo, trata-se de um carnaval de micronarrativas que
subvertem a lgica moderna e substituem uma presena monoltica de uma
metanarrativa (POWELL, 1998).
Dessa maneira, para Lyotard, o ps-modernismo incredulidade em
relao s metanarrativas (POWELL, 1998, p. 33). Lemert (2000, p. 58)
igualmente vai ao encontro desse pensamento, afirmando que a maioria das
teorias ps-modernas afirma que o mundo outrora linear e bem-definido cedeu
lugar a um caracterizvel por eptetos como fragmentado, descentrado, jocoso,
anrquico, irnico, indeterminado.
-
34
Lemert (2000) tambm nos descreve sua visita a um templo budista nas
montanhas de Kyongju, na Coria do Sul. L, ele percebe a presena da
eletricidade, encanamentos, antenas parablicas, alm de ter adquirido na sada
um CD com o cntico dos monges O antigo vive com a tecnologia moderna, e
por meio dela! (p. 41). Isso tudo para nos mostrar que: Nos termos mais simples, dizem alguns que o ps-modernismo se refere a esse estranho fato de aspectos histricos do mundo no relacionados entre si se acharem hoje embaralhados uns com os outros. O ps-modernismo, embora seja uma coisa deveras complicada de compreender, tem a ver principalmente com essa ideia. Em consequncia, so ps-modernistas os que acreditam que o mundo mudou de alguma maneira bem difcil de descrever, mas inconfundvel, em que as coisas esto fora de ordem, se bem que de uma maneira dotada de sentido. As ordens racionais da vida moderna esto meio que rearranjadas de modos estranhos e incongruentes, que, no obstante, parecem normais apesar de sua anormalidade (LEMERT, 2000, p. 42).
Powell (1997), ao analisar Frederic Jameson, afirma que este v o ps-
modernismo como parte de um capitalismo tardio, e ainda nos traz a diviso
histrica dos sculos XIX e XX de Ernest Mendel em trs momentos. Primeiro, de
1700 a 1850, fase do capitalismo de mercado e era na qual o capital industrial se
acumulava principalmente nos mercados nacionais. O segundo momento ocorreu
durante a idade do imperialismo e do capitalismo monopolista, poca em que os
mercados nacionais se expandiram, tornando-se globais, embora ainda
dependessem de reas perifricas para obter mo de obra barata e matria-prima
de baixo custo. O terceiro momento diz respeito fase ps-moderna propriamente
dita, que irrompeu na cena mundial com o crescimento irrestrito de empresas
multinacionais, como a Coca-Cola. Essa seria a forma mais pura do capitalismo,
que invadia a natureza com a destruio de formas pr-capitalistas de agricultura
e tambm se adentrando nas mentes inconscientes atravs da publicidade.
Siqueira (1997) ainda faz apontamentos mais profundos em relao
economia ps-moderna, diferenciando-a da economia fordista ou de escala
atravs das novas atividades materiais de produo e consumo e o novo sistema
financeiro global: A reestruturao ps-fordista, envolvendo novas tecnologias, novos mtodos de gesto da produo, novas formas de utilizao da fora de trabalho e novos modos de regulao estatal, baseia-se em elementos que definem o chamado "modo de acumulao flexvel de capitais", e esto intrinsecamente relacionados condio histrica ps-moderna. Esses elementos so:
-
35
1. A globalizao: produo, troca e circulao de mercadorias esto globalizadas, caracterizando o escopo transnacional do capital; 2. A efemeridade: o turn-over da produo e do consumo extremamente veloz; acelerao do tempo de giro na produo (produo flexvel: pequenos lotes, variedade de tipos de produto e sem estoques), e reduo do tempo de giro no consumo; 3. A disperso: geogrfica da produo, feita atravs de uma mudana na estrutura ocupacional; do trabalho (com as novas modalidades de empregos: temporrios, de tempo parcial e a terceirizao); do monoplio, num amplo conjunto de produo desterritorializada.
Castells (1999) tambm faz uma anlise entre as mudanas do mundo
ps-moderno com a sua economia, afirmando que no final dos anos 60 um novo
mundo comeou a tomar forma. Esse processo iniciou paralelamente a uma
coincidncia histria de outros trs processos independentes: a revoluo da
tecnologia da informao; a crise econmica do capitalismo e do estatismo e a
consequente reestruturao de ambos; e o pice de movimentos sociais culturais,
como libertarismo, feminismo, ambientalismo e os direitos humanos. As reaes
desencadeadas por estes processos ao interagirem entre si fazem surgir uma
estrutura social dominante indita, que trazem consigo uma nova economia
informacional/global e uma nova cultura da virtualidade real. Essa nova estrutura
a sociedade em rede: A lgica inserida nessa economia, nessa sociedade e
nessa cultura est subjacente ao e s instituies sociais em um mundo
interdependente (CASTELLS, 1999, p. 412).
Siqueira (2005) ainda ressalta que existe uma dinmica de consumo
diferente entre a sociedade moderna e a sociedade ps-moderna, assinalada pela
frase de Baudrillard: j no consumimos coisas, mas somente signos: A sociedade-cultura de consumo ps-moderna est associada complexidade humana, ou seja, envolve seus valores, desejos, hbitos, gostos e necessidades numa escala extremamente intensificada. No contexto ps-moderno, a estetizao da vida cotidiana e o triunfo do signo retratam a subordinao da produo ao consumo sob a forma de marketing, com uma ascenso cada vez maior do conceito de produto, do design e da publicidade.
Para Lipovetsky (2005), era de fato necessrio nomear um momento de
profundas transformaes, e o neologismo ps-moderno teria o mrito de
demarcar uma mudana de direo, relativa rpida expanso do consumo, surto
do processo de individualizao, consagrao do hedonismo e psicologismo e a
perda da f no futuro revolucionrio, paixes polticas e militncias. Considera,
entretanto, a expresso como ambgua e vaga, pois acredita que se trata de um
-
36
novo gnero de modernidade que tomava forma, e no apenas uma superao da
modernidade anterior. Dessa maneira, o termo ps-moderno j esgota a sua
capacidade de traduzir o mundo ao seu redor, tornando-se obsoleta, incompleta.
Para o autor, a atualidade j se encontra em um novo nvel, que pode ser
exprimido atravs do prefixo hiper: hipercapitalismo, hiperclasse, hipertexto,
hipermercado. Trata-se de uma modernidade elevada potncia superlativa.
Esse processo ocorreu muito rapidamente, de forma que, enquanto nascia o ps-
moderno, j se esboava a hipermodernizao do mundo, do ps ao hiper: a
ps-modernidade no ter sido mais que um estgio de transio, um momento
de curta durao. E este j no mais o nosso (LIPOVETSKY, 2004, p. 67). Se a
sociedade de consumo j indicava o excesso como trao caracterstico, ocorre na
hipermodernidade que esse processo se exacerba com os hipermercados e os
shoppings centers gigantescos: Na hipermodernidade, no h escolha, no h alternativa, seno evoluir, acelerar para no ser ultrapassado pela evoluo: o culto da modernizao tcnica prevaleceu sobre a glorificao dos fins e dos ideais. Quanto menos o futuro previsvel, mais ele precisa ser mutvel, flexvel, reativo, permanentemente pronto para mudar, supermoderno, mais moderno que os modernos dos tempos hericos. A mitologia da ruptura radical foi substituda pela cultura do mais rpido e do sempre mais: mais rentabilidade, mais desempenho, mais flexibilidade, mais inovao. Resta saber se, na realidade, isso no significa uma modernizao cega, niilismo tcnico-mercantil, processo que transforma a vida em algo sem propsito e sem sentido (LIPOVETSKY, 2005, p. 57).
-
3 A SOCIEDADE DE CONSUMO
Douglas e Isherwood definem o consumo como uso de posses materiais
que est alm do comrcio e livre dentro da lei (2006, p. 102), adequando tal
conceito para usos paralelos tambm em tribos que no possuem comrcio. O
consumo nas sociedades ocidentais, por sua vez, possui tal importncia em
nossa histria contempornea que existe uma crtica ao destaque dado
revoluo industrial em detrimento da revoluo do consumo. Foi dada
demasiada nfase no lado da oferta atravs da mudana nos meios e fins
produtivos da revoluo industrial, e ignorado o lado da demanda, uma vez que
esse processo teve como consequncia uma mudana comensurvel nas
preferncias dos consumidores. Ainda importante salientar que essa revoluo
de consumo simboliza mais do que essa mudana nos hbitos e preferncias de
compras: trata-se de uma mudana estrutural na cultura mundial da Idade
Moderna, podendo, inclusive, rivalizar com a revoluo neoltica, quando
analisada a profundidade de sua transformao social (McCRACKEN, 2003).
Podemos perceber, dessa maneira, que a revoluo do consumo mudou
drasticamente a posio dos bens na vida das sociedades ocidentais.
Featherstone (1995) nos prope trs perspectivas fundamentais sobre a cultura
de consumo, com as quais podemos analisar seu poder e presena no mundo
atual: perspectiva econmica, sociolgica e psicolgica
Atravs de uma abordagem econmica, examinamos a cultura e a
sociedade de consumo baseando-nos em sua premissa bsica de expanso da
acumulao capitalista de mercadorias, que originou uma poderosa cultura
material que exalta os bens de consumo e o ato de comprar. Pode-se argumentar,
assim, que ocorre o triunfo do valor de troca e que o clculo instrumental racional
pode ser aplicado a todos os aspectos da vida, uma vez que possvel quantizar
todas as diferenas essenciais, tradies culturais e qualidades de nossa
sociedade (FEATHERSTONE, 1995).
Essa perspectiva estritamente econmica enfrenta duras crticas
enquanto tentativa de explicao nica em relao s motivaes que levam os
indivduos a adquirirem bens. Douglas e Isherwood (2006) defendem a viso do
consumidor como um ser social, afirmando que essa abordagem materialista das
-
38
necessidades humanas cumpre seu propsito apenas para as limitadas teorias
em que tem sido aplicada. Por conseguinte, uma abordagem sociolgica mais
consistente enriqueceria essa viso e contribuiria para a construo de uma
tecnologia do consumo forte e concreta.
Wellausen, por sua vez, afirma que encaramos a economia como uma
espcie de ordem transcendental automovida, o que pode ser conveniente para
os indivduos, uma vez que alivia as responsabilidades de pessoas e grupos,
embora, ao mesmo tempo, confere s coisas uma falta de controle aparente. Por
esse motivo, acredita que preciso dar mais ateno s fontes extraeconmicas
do valor monetrio, a fim de que nos alertemos para o fato de que muitas vezes a
abordagem adequada de um problema, mesmo social, psicolgica e no
econmica (1988, p. 35). Dessa forma, Wellausen prope um estudo da
Psicologia da Economia como meio de elucidar questes que foram
equivocadamente transladadas para o campo da economia unicamente. Assim,
podemos acreditar que, em um sentido geral, os objetivos de nossa sociedade
so econmicos; nosso real propsito, contudo, se revela ser a sobrevivncia
individual e coletiva. somente a partir deste objetivo primordial que se
desenvolvem as maneiras dos indivduos e das sociedades de lidar com a
sobrevivncia e, por conseguinte, onde se administram os meios econmicos
(WELLAUSEN, 1998).
Como podemos observar, uma abordagem estritamente econmica para
justificar a sociedade de consumo se mostra incompleta e equivocada.
Featherstone (1995) no ignora tal fato, propondo ainda mais duas perspectivas,
uma que vai ao encontro da abordagem social requerida por Douglas e Isherwood
(2006) e outra que contempla a questo psicolgica proposta por Wellausen
(1988).
Na perspectiva sociolgica da sociedade de consumo, entra em cena o
fato das pessoas utilizarem os bens como forma de criar vnculos ou estabelecer
distines sociais. O desenvolvimento histrico da marcao de status atravs da
histria j foi tambm abordado no tpico anterior, A evoluo do consumo.
Featherstone (1995, p. 35) acredita que, se possvel conceber uma lgica do
capital derivada da produo, tambm possvel perceber uma lgica do
consumo que aponta para os modos socialmente estruturados de usar os bens
para demarcar relaes sociais. Dessa maneira, as funes mais primitivas dos
-
39
bens de consumo, como alimento e abrigo, ainda existem; inegvel, entretanto,
que as posses materiais tambm funcionam para estabelecer e manter relaes
sociais. Esse aspecto revela o materialismo de nossa existncia, expandindo os
significados sociais para alm da mera competitividade individual (DOUGLAS;
ISHERWOOD, 2006).
Essa capacidade dos bens de comunicarem marcadores sociais deve-se
principalmente sua capacidade como signos. Por este motivo, McCracken
(2003) afirma que no conta quem ns somos, mas quem ns gostaramos de
ser. Baudrillard nos traz a noo de que, nas sociedades capitalistas tardias, o
signo e a mercadoria se fundem, produzindo a mercadoria-signo. A opulncia,
assim no seria nada mais do que a acumulao dos signos da felicidade
(BAUDRILLARD, 2003). Raros so os objectos que hoje se oferecem isolados, sem o contexto de objectos que os exprimam. Transformou-se a relao do consumidor ao objecto: j no se refere a tal objecto na sua utilidade especfica, mas ao conjunto de objectos na sua significao total (BAUDRILLARD, 2003, p. 17).
Logo, o consumo no deve ser entendido apenas como o uso das
utilidades materiais dos bens, e sim primordialmente como um consumo ativo de
signos. Por conseguinte, os bens de consumo corriqueiros passam a ser
associados a diversas imagens, como luxo, exotismo, beleza e fantasia, sendo
cada vez mais difcil desvendar o uso original ou funcional do bem em questo.
Essa superproduo de signos resulta numa estetizao da realidade na qual as
massas ficam fascinadas pelo fluxo infinito de justaposies bizarras que levam o
espectador para alm do sentido estvel (FEATHERSTONE, 1995, p. 34).
Como exemplo de bem de consumo como marcador social, Featherstone
(1995) utiliza a garrafa de vinho do porto. Ela desafia a mxima de que comida e
bebida so mercadorias de vida curta, uma vez que o vinho pode nunca ser
consumido efetivamente (no sentido de ser bebido). A garrafa pode, entretanto,
ser consumida simbolicamente de muitas outras formas, gerando uma alta
satisfao no indivduo, como: contemplada, desejada, comentada, fotografada ou
manipulada. por isso que podemos afirmar que as mercadorias nas sociedades
ocidentais possuem um aspecto duplamente simblico, uma vez que o
simbolismo no est presente apenas no design dos produtos e no imaginrio
-
40
embutido nos bens atravs das estratgias de marketing. A segunda face das
associaes simblicas revela-se no momento em que os bens de consumo so
utilizados e renegociados a fim de demarcar diferenas de estilo de vida,
delineando as relaes sociais (FEATHERSTONE, 1995).
McCracken (2003, p. 99) ainda traz outra abordagem, na qual afirma que
a maior limitao no estudo do significado cultural dos bens reside no fato delas
no observarem o carter mvel deste significado. Ele afirma que o significado
est ininterruptamente fluindo das e em direo s suas diversas localizaes no
mundo social, com a ajuda de esforos individuais e coletivos e designers,
produtores, publicitrios e consumidores.
Figura 1: Movimentao do significado
Fonte: McCracken (2003)
Dessa forma, existem trs localizaes para o significado: o mundo
culturalmente constitudo, o bem de consumo e o consumidor individual. Alm
disso, existem dois momentos de transferncia: mundo-para-bem e bem-para-
indivduo. Dessa forma, os consumidores e os bens de consumo so estaes
intermedirias de significado, e atividades como a publicidade e os rituais de
consumo so instrumentos de movimentao deste significado (McCRACKEN,
2003). Incentiva-nos, aqui, a atentar para a presena de um grande e poderoso sistema no corao da sociedade moderna, que confere a esta
-
41
sociedade parte de sua coerncia e flexibilidade, ainda que funcione como fonte ininterrupta de incoerncia e de descontinuidade. Em suma, uma compreenso plena da qualidade mvel do significado cultural e de consumo pode ajudar a demonstrar parte da total complexidade do consumo atual e revelar de modo mais detalhado exatamente o que uma sociedade de consumo (McCRACKEN, 2003, p. 101).
Os rituais pessoais de consumo so especialmente interessantes, pois
denotam a fora do smbolo no bem de consumo. Douglas e Isherwood afirmam
que viver sem rituais viver sem significados claros e, possivelmente, sem
memrias. Tais rituais so como uma verso microscpica dos instrumentos de
transferncia de significado que os movimentam no mundo dos bens, cabendo a
eles transportar o significado dos bens para o consumidor (McCRACKEN, 2003).
Os rituais de troca so aqueles nos quais ocorre a transferncia de
significado atravs de presentes, por exemplo. O doador identifica o presente
como dotado de significados culturais que ele busca passar adiante ao
presenteado. Dessa forma, o pai compra para o filho um presente que contm
propriedades simblicas que ele gostaria que a criana absorvesse, ou a mulher
que recebe um vestido em particular tambm recebe um conceito particular de
como ela mesma como mulher vista (McCRACKEN, 2003). nesse sentido que
em nossa sociedade a linha que separa o dinheiro do presente cuidadosamente
traada. socialmente aceito mandar flores para um parente hospitalizado, mas
nunca seria permitido enviar o dinheiro das flores com um bilhete dizendo
compre flores (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2006). Isso porque as flores so um
signo de carinho, lembrana; o dinheiro, mesmo equivalendo quantitativamente s
flores, no comunica o mesmo; pelo contrrio, visto como um signo sem
profundidade, valioso, porm vazio.
Os rituais de posse ajudam a completar o estgio do movimento do
significado, no momento em que permitem ao consumidor reivindicar e assumir
um tipo de posse sobre o significado de seus bens de consumo. Atravs dos
rituais de posse, o indivduo transfere o significado do mundo cultural atrelado ao
bem pela publicidade e pelo mundo da moda para si mesmo. o caso da
contemplao da garrafa de vinho do Porto vista anteriormente. Os rituais de
arrumao, por sua vez, acontecem, por exemplo, quando o indivduo se arruma
para sair: estes rituais equipam o indivduo que est saindo para um programa
com as propriedades significativas especialmente glamorosas e exaltadas que
-
42
residem nos melhores bens de consumo. (McCRACKEN, 2003, p. 117). O
estado do indivduo to profundamente refletido nos bens que foi observado que
idosos em casas de repouso viam a si mesmos como no fim da linha e, por isso,
iniciavam um projeto de descarte de objetos significativos em suas vidas.
J os rituais de despojamento so uma oportunidade para percebermos
como a presena dos smbolos nos bens muito profunda. Ao adquirir um bem
que pertenceu anteriormente a outra pessoa, como um carro ou uma casa, o
indivduo necessita lanar mo do ritual de despojamento para apagar o
significado associado ao dono anterior. Assim, atravs do ritual, o dono evita o
contato com as propriedades significativas do sono anterior, alm de libertar o
significado da posse e reivindic-lo para si. O que pode parecer uma mera
superstio evidencia, na verdade, um reconhecimento implcito da qualidade
mvel do significado investido nos bens (McCRACKEN, 2003, p. 118).
Uma abordagem psicolgica em relao sociedade de consumo leva
em considerao a esfera emocional dos prazeres envolvidos no consumo,
atravs de um imaginrio cultural consumista que exalta sonhos e desejos atravs
das compras, produzindo os mais diversos tipos de prazeres estticos e
excitaes fsicas (FEATHERSTONE, 1995). A sociedade de consumo oferece
inmeros objetos substitutivos que propiciam gratificaes vicrias e, por
conseguinte, frustrantes e compulsivamente renovveis. a nsia de prazer, j
que conflitos neurticos impedem o prazer genuno (WELLAUSEN, 1988, p. 61).
Faz-se necessrio visualizar o consumidor como um ser engajado em um projeto
cultural, uma busca incessante em completar o self. Dessa maneira, a sociedade
de consumo oferece os bens culturais necessrios para configurar as ideias
mltiplas do indivduo acerca do que ser homem, mulher, criana, idoso, e
assim por diante. Assim, todas nossas referncias culturais esto associadas aos
bens de consumo, e somente atravs de sua posse e uso conseguimos assimilar
ns mesmos e a vida ao nosso redor (McCRACKEN, 2003).
O significado deslocado consiste em uma estratgia extremamente
corrente, tanto entre indivduos quanto coletividades, para encarar a dura lacuna
que separa o real do ideal na vida social. Ao remover seus ideais a partir do
deslocamento de significado, uma comunidade ou indivduo os remove com
segurana da vida cotidiana e os resguarda em um lugar ao seu alcance, mas
fora do perigo da realidade e da prova de testes empricos que provariam seu
-
43
carter irreal. Tal estratgia encontra diversas alocaes no tempo e no espao:
no passado, atravs da idealizao de uma idade de ouro em uma poca
passada ou pessoal, como na infncia; no futuro, atravs de utopias como o
estado socialista perfeito que coloca o bem comum frente dos interesses
individuais e a perfeita sociedade laissez-faire na qual o individualismo econmico
decide os assuntos coletivos, ou ento em momentos pessoais futuros marcados
pelas recorrentes frases quando eu me casar..., quando eu me formar...; e
tambm no espao, atravs da idealizao de uma sociedade que vive em plena
comunho e remota o bastante para garantir que tal viso no seja desfeita. Em
suma, a estratgia do significado deslocado remove os ideais em segurana,
garantindo que ns no tenhamos que enfrentar a realidade de que estes no
passam de ideais sem espao na realidade cotidiana. Alm disso, ela
extremamente eficaz, pois possui uma