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Antonio Beristain

Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimologia

Apêndice: Declaração sobre os princípios fundamentais de justiça para as vítimas de delitos

e do abuso de poder (ONU)

Tradução C ândido Furtado M aia N eto

Professor do Curso de M estrado em Direito da U nivers idade Paranaense - U N IP A R

EDITORAImprensa Oficial!UnB

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E q u ip e ed ito ria l : A irton L ugarinho (S u p e rv isão ed ito ria l) ; R e jane de M en eses (A co m p an h a m en to editorial); W ilm a G onça lves Rosas Saltarelli

(P rep a raçã o de o r ig ina is) ; M auro C a ixe ta de D eus, W ilm a G o n ça lv e s R o sa s S a lta re l l i e S o n ja C av a lcan t i (R ev isão ) ; E u g ê n io Felix B rag a

(E d ito ração eletrônica); W ag n e r Soares (C apa).

Copyright © 2000 by Editora Universidade de Brasília

Título original: N ueva criminología desde el derecho penal y la victimología

Impresso no Brasil

Direitos exclusivos para esta edição:

E dito ra U nivers idade de Brasília S C S Q. 02 B loco C N- 78 Ed. O K 2- andar 7 0 3 0 0 - 5 0 0 - B r a s í l i a , D F T e l : (0 x x 6 1 ) 226 -6874 Fax: (Oxxfil) 225-5611 ed i to ra@ u n b .b r

Im prensa Oficial do EstadoRua da M oca, 19210 3 1 0 3 - 9 0 2 - S ã o Paulo, SPT e l : ( 0 x x l 1 )6 0 9 9 -9 4 4 6Fax: (Oxxl 1 )6 6 9 2 -3 5 0 [email protected] A C 0800-123401

T o d o s o s d ire itos reservados. N enhum a parte desta pub licação p o d erá ser a rm azen ad a ou reproduzida por qualquer meio sem a au to rização por es­crito da Editora.

F icha ca ta lográfica e laborada pela B ib lio teca Central da U nivers idade de Brasília

Beristain, A ntonio B511 Nova criminologia à luz do direito penal e da

v it im olog ia / Antonio Beristain; tradução de Cândi­do Furtado M aia Neto. - Brasília : Editora U n i­vers idade de Brasília : São Paulo : Im prensa Oficial do Estado, 2000.

194p.

T radução de: N ueva crim ino log ía desde el derecho penal y la v ic tim ología .

ISBN 85-230-0591-9

1. D ireito crim inal. I. M aia N eto , C ând ido Furtado. II. T ítu lo .

C D U 343 .2

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Às pessoas c às instituições que, inteligente, generosa e valentemente, trabalham em favor da assistência às vítimas do

terrorismo do ETA.

Àqueles que cientificamente desmascaram e recusam as ideologias que encobrem e disfarçam o problema de Euskadi (País Vasco) como mero enfrentamento de duas violências.

Àqueles que, em alto-mar, com barco afundado, crêem, esperam e amam.

Aqueles que, em plena noite, vêem/criam a aurora.

Às pessoas privadas de liberdade, das que tanto tenho aprendido a respeito do sentido de viver e de morrer. Perdoem

nosso “esquecimento” imperdoável e nossa cotidianainsolidariedade.

A Pedro Láin EntraIgo, autor de Esperança em (empo de crise.

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Sumário

P r e f á c io , 11E u g ê n io Ra ú l Z a f f a r o n i

N o t a d o t r a d u t o r , 1 5

p a r t e I CRIMINOLOGIA

C a p ít u l o 1A p r o x i m a ç ã o c r i m í n o l ó g i c a e d e p e n d ê n c i a d e d r o g a s , 1 9

Interdependência: terrorismo internacional-tráfico de drogas, 19 Contribuição artística e mística, 22 Religião e arte: novos horizontes e respostas, 25

C a p ít u l o 2T r a b a l h a d o r e s v o l u n t á r i o s n o m u n d o d e h o j e e d e a m a n h ã ( a s r e g r a s m í n i m a s d e s a n ç õ e s c a r c e r á r i a s

E N Ã O -CA RCERÁ R1AS), 29Os voluntários estrulunidores da pessoa e da sociedade, 29 Exemplos de voluntários na Europa e na América, 33 Perfil do trabalhador voluntário penitenciário, 35 O voluntariado penitenciário como direito e como serviço, 42 Universitários e trabalhadores voluntários com jovens em risco, 46 As regras mínimas de sanções não-carcerárias, 47 Resumo e conclusões, 49

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8 Antonio Beristain

C a p ít u l o 3EPISTEMOLOGIA CR1MINOLÓGICA: DA RETALIAÇÃO AO PERDÃO, 53

Resumo histórico-comparativo do Talião na política criminal e no direito penal, 53Talião dialético de integração cósmica, não-unidimensional, 54 Direito dos delinqüentes ao perdão, 57 Epistemologia criminológica metarracional, 59 Dessacralização e ressacralização do Talião, 62

PARTL II V ITIM O LOG IA

Ca p ít u l o 4N o v a f i l o s o f i a p o l í t i c a d e e p a r a a n o v a p o l í t i c a c r i m i n a l

(o E s t a d o n ã o t e m o m o n o p ó l i o d a v i o l ê n c i a ) , 69 Metas, 69Pilares fundamentais comuns, 71 Evolução histórica paralela?, 73Da política criminal privada ao caos e à filosofia política absolutista, 74Da política criminal sacra à filosofia política do poder que emana de Deus aos cidadãos, 75Do poder que rotula e marginaliza ao abolicionismo da pena de morte, ao abolicionismo do cárcere e ao utópico abolicio­nismo do direito penal, 75Da filosofia política assislencial à política criminal vitimo- lógica, 77Da política criminal estatal à filosofia política supra e inter­nacional, 77Olhando para o futuro, 78

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Sumário 9

C a p ít u l o 5A SO C IED A D E/JU D ICA TU RA ATENDE A SUAS V ÍTIM A S/

T E ST E M U N H A S ?, 83 Vitimologia, 83Conceitos básicos e importância da vitimologia, 88Dificuldades e perigos da vitimologia, 91Vítimas/testemunhas, 96Graus de vitimação, 103Sociedade/judicatura, 109Conclusões de lege ferenda, 123

A p ê n d ic e

D e c l a r a ç ã o s o b r e o s p r i n c í p i o s f u n d a m e n t a i s d e

JU STIÇ A PARA AS VÍTIM AS DE D ELITO S E DO ABUSO DE PO D ER

(ONU), 127As vítimas de delitos, 127 As vítimas do abuso de poder, 131

Pa r t e III D IR EITO PENAL

C a p ít u l o 6A HISTÓRIA CAMINHA PARA A ABOLIÇÃO DA SANÇÃO CAPITAL, 135

Coordenadas fundamentais, 135 Evolução histórica, 138 Assistência religiosa, 150 Sigamos discorrendo, 152

C a p ít u l o 7V lN CULAÇÃ O HISTÓRICA EN I RE RELIGIÃO E DIREITO PENAL, 1 5 7

Luzes e sombras, 157 Apoenci cullei, 160 indultos e anistia, 163

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10 Antonio Beristain

C a p í t u l o 8J u s t i ç a p e n a l r e c r i a d o r a , d a r e t r i b u t i v a à r e s t a u r a t i v a , 171

Uma terceira cosmo visão da justiça penal, 171 Linhas fundamentais das cosmovisões retributiva e restau­rativa, 173Comentários a favor da justiça recriadora, 176 Traços fundamentais do novo modelo recriador, 187

C a p í t u l o 9D A V 1TIM OLOG IA À REFO RM A DO CÓ D IG O P E N A L , 191

Não confundamos o sujeito passivo com as vítimas, 191 A reparação no Código p en a l do século XIX não é a do século XXI, 1920 juiz deve atender primeiro às vítimas, 193

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Prefácio

Em algum ponto do infinito desconhecido, achar-se-ão carti­lhas, porque são comuns os livros de autores latino-americanos prefaciados por europeus, mas o inverso é tão estranho que quase pertence ao inexplicável. Essa rara honra confere-me o professor Beristain, e, por certo, trata-se de uma distinção que - sem falsa modéstia - não creio merecer. Pode-se afirmar que supõe uma transgressão, o que por hora chamará a atenção do leitor, mas que ao final do livro julgar-se-á natural, porque se verá que todo seu conteúdo é transgressor. Aceito comovido a honra que me confere o mestre da Universidade do País Vasco e trato de estar à altura de tamanha infração, o que constitui um singular desafio.

O autor e seu pensamento são amplamente conhecidos e apre­ciados, de modo que seria vã a tarefa de insistir nisso. Não obstan­te, nem sempre se interpreta o que se conhece, e creio que por ali deve ir a via do prefácio.

Os escritos de Beristain não são simples. Não nos devemos enganar com a prosa clara, a leitura fácil, a ocasional falta de con­clusões - nada criado está concluído - e as citações que pulam sé­culos e milênios, continentes e idiomas, disciplinas e culturas, em forma de terremoto epistemológico; terremoto que faz emergir a profunda unidade radical. Tudo isso provoca estupor, porque jus­tamente é esse o efeito buscado pelo autor. E não se creia que por isso ali acaba a intencionalidade: nada estaria mais longe da verda­de que pretender sair do estado de surpresa atribuindo sua provoca­ção à ânsia de originalidade sensacionalista.

A grande transgressão do professor de San Sebastián começa pela própria estrutura de seu trabalho. Às vezes, contém uma linha que leva a conclusões que quase se lhe escapam da caneta, o que oferece como concessão ao clássico, mas, diferentemente do tradi­

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1Z Eugênio Raúl Zaffaroni

cional, quase nunca são a idéia central, tampouco a mais valiosa, porque não quer arrastar-nos a elas, não escreve para isso. Cada um de nós, ao escrever, propõe-se a ganhar adeptos para sua causa (nesses termos cabe falar dos difíceis debates das ciências penais), todos, salvo Beristain, que somente se propõe a desconcertar-nos, e por certo que o consegue como ninguém. Sua “não-estrutura” pare­ce calculada na dose necessária para nos desestruturar, porque não busca convencer-nos de que suas soluções são melhores que as nossas (até o ponto que, às vezes, nem sequer as menciona), mas sim pretende quebrar nossos limites para que meditemos livremente.

Foucault ensinou-nos, como poucos, a forma pela qual o poder nos fabrica como sujeitos cognoscentes. O saber penal, sempre tão ligado ao poder, caracteriza-se por extremar essa reprodução, por limitar duramente horizontes científicos, gerando “verdades” ao preço da marginalização de dados. A moderna tendência progres­sista orienta-se para a crítica mais ou menos radical ao poder de fora, ao sistema de reprodução do poder, mas Beristain comete uma transgressão de maior calibre, porque se opõe ao poder intro- jetado mediante uma espécie de terapia de choque, e, para conse­guir seu objetivo, sequer duvida em apelar ao incentivo de soluções conservadoras, para que, ao responder, devamos esforçar-nos e ultra­passar os limites que nos traça o poder. Não teoriza nossas limitações de poder introduzido, mas, sim, diretamente nos força a quebrá-las. Sem dúvida, trata-se de uma atitude francamente religiosa; a socio­logia da religião faz muitos anos que chamou a atenção a respeito dos trabalhos dos benzedores, pais-de-santos, beatos e outros ope­radores religiosos populares americanos, para os quais sempre o mal “encerra” , e sua expulsão requer “abrir” , libertar para deixar que o bem opere.

Em cada página, muito discretamente, Beristain trata de dizer aos sábios que não são tão sábios, que todas as suas “verdades” são provisórias pela estreileza de seus horizontes e que não sonhem com abarcar o universo do inexplicável, porque não é um universo, mas um infinito. Esse é o máximo da transgressão, e, ainda que sempre prevenido de que seus trabalhos iam em prol da desestrutu- ração por meio de uma não-estrutura calculada, neste livro desco­brirá o leitor que, com elegante citação de Unamuno, o autor o confessa abertamente.

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Prefácio 13

Desse modo, Beristain incorre, continuamente, na mais grave infração contra a Inquisição, que, desde sua origem até hoje, tem mudado o discurso, mas não a forma, quando, ao ampliar os hori­zontes, semeia a dúvida, não fazendo mais que erradicar a “here­sia” como conceito, ainda que a tipifiquem os mesmos cientistas, e cai na mais alta “heresia”, ao pôr em dúvida a autoridade dos in­quisidores. Reprova-lhes o maniqueísmo e convida-os a “re-ligar”.

Mas esse percurso implica um constante trânsito por um fio suspenso 110 vazio. Sem correr o risco de que a reprovação do ma­niqueísmo se converta em satanização e, desse modo, se incorra em um novo maniqueísmo, ou bem que o “re-ligar” vá dar em um novo dogmatismo. Beristain coloca uma rede de segurança em seu experimento, contendo uma nova transgressão: apela à fraternidade. E tem razão, porque não há outra vacina contra o disparate autoritá­rio e genocida. O eixo superador do “des-encantainento” não pode passar senão pela fraternidade, que, inclusive, já não se limita a uma regra ética entre os homens de hoje, mas sim que a ética eco­lógica deve reconhecer como sujeitos de direitos a respeitar entes não-humanos e humanos que ainda não estão 110 mundo. Sem fraterni­dade, a fuga do desencantamento não resultaria 110 “re-encantamento”, mas sim 11a feitiçaria que continuaria o ciclo das inquisições.

Como já dissemos, essa apelação fraterna de Beristain, que lhe salva do irracionalismo e lhe permite mover-se com singular ma­estria e comodidade sobre o fio, constitui outra de suas transgres­sões. Com efeito, apelar à fraternidade em um mundo em que está a ponto de desaparecer 0 direito trabalhista, simplesmente porque é necessário obter preços competitivos, é uma nova transgressão do professor do País Vasco. Não é possível nenhum reencantamento sem superar esse holocausto em função da absolutização dos inte­resses setoriais que antagonizam classes, etnias, países, faixas etá­rias, religiões, etc. Não há fraternidade sem igualdade para os desiguais, que é o antídoto da discriminação. E a discriminação é a arma que hoje se esgrime para suprimir competidores e opositores, para calar os protestos, para cobrar o que não se deve e para não pagar 0 que se deve.

Ainda que Beristain não o diga, esta última transgressão leva-o à busca da utopia, mas não no sentido romântico (e autoritário) de quem parte de uma utopia para deduzir 0 mundo e impô-la a todos,

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14 Eugênio Raúl Zaffaroni

mas que o mundo nos convida a não cessar na sua busca, ainda que com a advertência de que nunca a alcançaremos, e quando nos de- temos, satisfeitos do que conseguimos saber, nos desconcerta para nos moslrar que sabemos pouco.

Sua intolerância às “verdades” que, por indiscutíveis, abrem vias ao autoritarismo, é quase visceral. Muitos sabem disso, mas especial testemunho, nós, os argentinos, podemos dar, pois, em 1980, vimo-lo rejeitar toda tentativa limitante de sua voz, falando de direitos humanos; em plena ditadura genocida, ela nos recordou o valor da liberdade acadêmica, dando-nos ânimo em meio à ca­tástrofe. Naquele momento ficou claro que não importavam muito suas conclusões, mas sim o impulso à utopia como destino, inclu­sive nas condições mais negativas.

O espírito profundamente religioso do catedrático do País Vasco (portanto, absolutamente antidogmático) leva-o a assumir a função que há décadas vem cumprindo, ainda que às vezes resulte incômoda: é algo assim como o instrutor de vôo do penalismo atual, que não suporta que mostremos nossa plumagem com orgu­lho das “cornijas e chaminés” .

Eugênio Raúl Zaffaroni Catedrático de Criminología e Direito Penal

Universidade de Buenos Aires

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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Reitor Lauro Morhy

Vice-Reitor Timothy Martin MulhollancI

E d i t o r a U n i v e r s i d a d e d e B r a s í l i a Diretor

Alexandre Lima

C o n s e l h o E d i t o r i a l

Alexandre Lima, Airton Lugarinho de Lima Camara, Emanuel Araújo, Hermes Zaneti, José Maria G. de Almeida Júnior,

Moema Malheiros Pontes

Im p r e n s a O f i c i a l d o E s t a d o

Diretor-Presidente

Sérgio Kobayashi

Diretor Vice-Presidente

Carlos Conde

Diretor Industrial

Carlos Nicolaewsky

Diretor Financeiro e Administrativo

Richard Vainberg

Coordenador Editorial

Carlos Taufik Haddad

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Nova criminología à luz do direito penal e da vitimologia

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Nota do tradutor

De igual maneira, ao sentir-se honrado o prof. Raúl Zaffaroni com o convite para prefaciar a obra do catedrático europeu dr. Antonio Beristain, devo, também, com muita humildade e sinceri­dade, dizer o mesmo quanto à tradução, e mais, sinto-me imensa­mente gratificado espiritualmente, primeiro porque como brasileiro fui sorteado pela generosidade de Antonio Beristain, e também porque no seu livro se lêem coisas como: “o efetivo é o afetivo” ; “a força do amor supera o ódio”; “direito penal medieval em sua cos- movisão infantil da liberdade...” ; “unia justiça penal defasada no tempo é uma injustiça”; “quem exerce o poder se considera dele­gado da divindade vingativa”; etc., e isso tudo se traduz em um marco essencial para a definição da compreensão do verdadeiro sentido das “expressões” e da práxis jurídico-penal dos tribunais contemporâneos.

Verdadeiramente, o conteúdo das palavras de Ajilonio Beris­tain e a riqueza da linguagem agradam, indiscutivelmente, a todos que lutam e pretendem transformar os usos e os costumes da admi­nistração da justiça criminal - vale dizer, pela sua substanciosa, preciosa e fluida mensagem. O livro prende, rouba a atenção do leitor, desde a primeira linha até a última palavra.

Mais do que tentar realizar justiça com o perdão, como asseve­ra o autor, é preciso aceitar que é impossível dissociar a justiça da religião, pois são duas coisas que nasceram e caminham juntas, por séculos e séculos, em todo o mundo, sem exceção, por mais que determinados regimes de governo ou homens acéticos pretendam negar a sua íntima relação.

A leitura desta obra de Antonio Beristain é, com certeza, uma fonte de luz para a reorientação da “justiça” penal, que o homem

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16 Cândido Furtado Maia Neto

(profissional do direito) espiritualmente evoluído denuncia com boa-fé dentro de suas melhores e ingênuas pretensões.

Trata-se de um livro sincero, escrito por um autor-amigo - amigo de todos os leitores —, porque nos dá bons augúrios de horas felizes.

Temos plena certeza de que o leitor desta obra poderá - e so­mente por meio da criminologia, que não é “perfumaria” alguma - compreender a função verdadeira do direito penal (política crimi­nal), a finalidade e os objetivos das sanções, em especial quanto à reação e à punição estatal - como a atual manutenção da pena pri­vativa de liberdade e dessa hedionda política penitenciária contem­porânea.

A mediação penal proposta por Beristain é o caminho mais fá­cil para a transformação da ideologia penal repressiva, já que os homens de boa vontade não estão conseguindo, por completo, fazer valer as idéias humanistas no campo das ciências penais e crimi- nológicas. Penso ser muito mais fácil, e necessário, no primeiro plano das propostas, falar de direitos da vítima, do que propugnar por medidas alternativas ou substitutivas da prisão, ou pelos direi­tos dos presos, também necessários no último estágio do sistema da administração da justiça penal.

Por todas e infinitas razões é que na tradução deste trabalho - do espanhol para o português - fizemos o maior esforço para manter as expressões usadas por Beristain, razão pela qual as cita­ções literárias permanecem no original, por suas qualidades dentro da cosmovisão, para facilitar o leitor a buscar o auxílio necessário. No mais, tudo está perfeito e flagrantemente explicado no prefácio do ilustre mestre e amigo Raúl Zaffaroni.

O professor Antonio Beristain é a utopia realizável em pessoa, é a bondade e a perfeição.

Cândido Furtado Maia Neío

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Parte I

Criminologia

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Capítulo 1

Aproximação criminológica e dependência de drogas

Interdependência: terrorismo internacional-tráfico de drogas

À luz dos trabalhos do Conselho da Europa, das Nações Uni­das, do Parlamento Europeu, da Organização Mundial da Saúde, etc., pretende-se descobrir e descrever a realidade de sua dimensão econômica, social, terrorista, pedagógica... e indicar como se pode ajudar o cavaleiro-andante, o cidadão, especialmente o jovem, para que desperte de seus delírios e de seus vícios.

Se auscultamos a sociedade de hoje, constatamos que se inicia um novo tempo criminológico para que os controles sociais estru­turem um programa de prevenção e tratamento global coerente, que inclua o direito liberador e a arte, sem esquecer o padre (de Dom Quixote) com seu evangelho, que é uma Boa-Nova ou deve ser, não um Código penal, e ao barbeiro com sua sabedoria de senso comum que “ trouxe um grande caldeirão de água fria do poço e derramou-lhe por todo o corpo repentinamente, com o qual des­pertou Dom Quixote” .

Espero que 110 decorrer destes estudos aperfeiçoemos a logística de despertar a muitos, com grande satisfação para quem tem cola­borado nos trabalhos preparatórios, na elaboração das conferências, dos seminários, do Livro branco da dependência de drogas em Euskadi (San Sebatian, Espanha), 1987, etc.

As instituições universitárias, os congressos internacionais e a sociedade “a pé” devem e podem contribuir para que todos nós

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20 Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimologia

abramos os olhos e demos as mãos (deve-se admitir a tese marxis­ta, deve-se trabalhar, deve-se “discorrer” também manualmente) para harmonizar uma política social integral que reduza os proble­mas da droga a dimensões humanas, do viril e do feminino, de nova convivência criadora, utópica e mais realista.

0 Conselho da Europa, como outras instituições supranacio­nais, ao falar do problema da dependência das drogas, toca, repeti­das vezes, nas vinculações da droga com o terrorismo. Faz poucos dias, de 23 a 28 de agosto 1994, nos Estados Unidos celebrou-se um congresso internacional sobre “Terrorismo e tráfico de drogas”, na Universidade de Chicago.

Nesse campo não quero ser dogmático, mas somente sugesti­vo. Não é fácil entrar nas intrincadas e discutidas relações entre abusos de drogas, narcotráfico e terrorismo, relações às vezes con­traditórias e que passam de um branco neve a um negro ou a um vermelho. Não se mantém uma linha constante nem no narcotrafi­cante nem no terrorista.

Quando falo de terrorismo não falo de heroísmo, falo do que em direito penal e em criminologia se considera terrorismo, isto é, aterrorizar a sociedade tentanto atingir fins que não se conseguem por esses meios, em definição dialogai. A definição técnica, creio, é o que menos interessa aqui, nesse momento.

É difícil avançar nos labirintos e nas pontes internacionais en­tre abuso, tráfico de drogas e terrorismo. No entanto, o Conselho da Europa tem tido a valentia de, em repetidas ocasiões, falar sobre a relação entre a droga e o terrorismo. Concretamente, a Recomen­dação de 1984 diz: para lutar com êxito contra o narcotráfico, devem-se levar em consideração “as relações que existem, indis­cutivelmente, com as redes de tráfico de armas e o terrorismo, ten­do em conta o fato extremamente preocupante de que grandes somas de dinheiro que provêm da venda ilegal de drogas são utili­zadas para financiar o terrorismo internacional”. No congresso internacional que se celebrou em San Sebastián sobre “Legislação e drogas”, de 2 a 5 de julho de 1985, dois representantes do Con­selho da Europa não se atreveram a manifestar-se em público, mas, secretamente e com um dos chefes da Erízain/za (polícia), sim, apresentando provas concretas e absolutas dessas relações. Nos

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Antonio Beristain 21

arquivos da sede do Conselho da Europa, em Estrasburgo, há cons­tatações dessas lamentáveis vinculações.

Conhecidos especialistas afirmam algo parecido a respeito de determinados países. Assim, I-Iurtado Pozo, catedrático de direito penal da Universidade de Friburgo, na Suíça, ao analisar o terro­rismo 110 Peru, afirma: “Uma hipótese que se apresenta cada vez com mais insistência é o financiamento dos subversivos pelos tra­ficantes de drogas” (pode-se ler seu estudo “Terrorismo y tráfico de drogas”, La droga en Ia sociedad ac (uai Nitevos horizontes en criminología, San Sebastián, 1985, p. .169 e ss.). Da mesma manei­ra, o juiz italiano de 47 anos, Giovanni Falcone, participante da reunião do Parlamento Europeu, em 20 de março de 1986, afirmou que a relação entre os narcotraficantes e as organizações terroristas não está diminuindo.

Em junho de 1987, estudei o tema - o problema na Colômbia dialoguei com autoridades governamentais, com professores uni­versitários, com pessoas acusadas de narcotráfico; na prisão de Cali falei com Gilberto Rodríguez Orejuela, extraditado pelo governo espanhol para a Colômbia. Como conclusão, reafirmei a complexa interdependência do terrorismo internacional com o tráfico de dro­gas, que constatam o Conselho da Europa e os especialistas.

Se defendemos a metologia e a práxis global para responder e solucionar o problema das drogas, isto se deve à inerente globali- dade de suas origens, sem excluir as interconexões que vão e vêm, desde o terrorismo ao narcotráfico e deste para aquele. Os crimes não-convencionais, os de maior importância e a vitimação (às ve­zes hecatômbica) - como o genocídio, a tortura, as desaparições autorizadas pelos governos, etc. - entrelaçam-se em suas raízes e em suas fontes, ainda que um ou outro delinqüente isolado ignore ou negue este fato. Em parte, porque lhe interessa e, em parte, por­que não o tem analisado.

Creio que é interessante comentar a dupla relação, passiva e ativa, no campo da dependência de drogas da Europa para a Espa­nha e do nosso país para a Europa. Vivemos cada dia mais na Europa, e a Europa vive cada dia mais em nós (Espanha). Por isso, ao abordar as questões, estudamos atentamente as informações e as recomendações do Conselho da Europa, conscientes de que em

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22 Nova criminología à luz do direito penal e da vitimologia

suas páginas se encontra (escrito, estudado e sentido), acertada- mente, o mundo enigmático da toxicomania e do narcotráfico.

Contribuição artística e mística

Conhecidas a imaturidade de nosso campus universitário e a nossa crise criminológico-judiciai, parece natural que acolhamos com gratidão - ainda que não às cegas - as autorizadas lições do Conselho da Europa, das Nações Unidas, etc., em todos os terrenos e, especialmente, no das drogas. Somos conscientes de que o mo­vimento deve ser de vinda e ida. Escutamos e recebemos o que nos dizem o Conselho da Europa e as instituições supranacionais, mas também temos algo a dizer-lhes. Fixar-me-ei, agora, 11a contribui­ção artística e mística da Espanha. Em um problema global como 0 das toxicomanias e seu correspondente mercado, influem muito e têm uma incidência extraordinária a arte e a cosmovisão (vivência) religiosa ou espiritual.

É uma lástima que o Conselho da Europa e outras instituições similares não se refiram mais expressamente à incidência da arte na enigmática subeultura dos viciados em drogas e nas substâncias psicotrópicas. Indiretamente, trata-se da arte quando se fala da educação, na Recomendação de 1983, relativa aos meios culturais e educativos para reduzir a violência.

Uma obra de arte pode contribuir mais e melhor que mil frases nos trabalhos pedagógicos de conscientização, sensibilização, etc., para solucionar nossos problemas concretos. Assim, vem a reco­nhecê-lo a Conferência Internacional das Nações Unidas sobre o uso indevido e o tráfico de drogas, celebrada em Viena de 17 a 26 de junho de 1994, em Background information, de 28 de abril de 1987. Diz textualmente que importantes artistas de nosso tempo têm contribuído com suas obras para promover eloqüentes mensa­gens para 0 progresso de toda a humanidade e, em seguida, apre­senta um posíer (distribuído a todos os assistentes), que para esta Conferência Internacional o artista árabe Mohamed S. Burhaud pintou em várias cores a frase: “Sim à vida, não à droga” . Deste poster foram feitas edições com a frase em seis idiomas.

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Passando ao campo de nossa arte, limito-me a insinuar parte da mensagem artística vinculada por alguns dos artistas que ulti­mamente têm ornamentado publicações do Instituto Vasco de Cri­minologia. Recentemente, Jorge Oteiza, na capa do livro La droga en !a sociedad aclual. Nuevos horizontes en criminologia, coloca um pé-base na parte inferior e separa-o do alabastro resplandecente que coloca acima “como a estrutura (é um comentário escrito por ele) espiritual alucinada, transparente, que a enfermidade separa de sua atadura racional, quando no inferno se destrói o abraço sagrado indivisível da alma com seu terrenal suporte” . Frases de Oteiza, como sempre densas, ajudam a compreender tudo o que ele trans­mite nessa enfermidade (que pode ser superada, e nessa separação pode se reunir em fusão indivisível). A maior parte das obras artís­ticas de Oteiza leva o selo direto do misterioso, do vazio, do trans­cendente.

Eduardo Chillida envolve e abre o livro Ciência penal y crimi­nal ogía com sua ímpar força e ternura, com um abraço ao delin­qüente e um grito contra a injustiça. Quem sentir em suas veias o abutre da heroína compreenderá e consentirá este símbolo bipolar. Nele, Chillida “utiliza códigos que se podem rastrear e nos levam até a pré-história. Esses códigos são precisos e livres, estão basea­dos na percepção e seus limites, assim como na razão da intuição e seus constantes conflitos” .

“Nesta hora de urgente e vital renascimento coletivo, cultural e político, Néstor Basterretxea trabalha com o sentimento claro do poder testemunhai da arte, que é a ferramenta definidora de novas luzes e enriquecimento espiritual”, e em várias páginas do volume Estúdios vascos de criminologia mostra que, quando se fala por meio da própria vitimação (fala por meio de uma ferida na mão, o profeta que recria Néstor Basterretxea), quando um ex-viciado di­aloga com outro “colega” , brotam a escuta e a sintonia que facili­tam a desejada repersonalização.

Andrés Nagel, nas capas de Presondegiak, Gazíeen Gaizkin/za Drogak e de Cuesiiones penales y criminológicas, desnuda o ho­mem caído, tira-lhe a roupa da falsidade, dos ritos falsos e insigni­ficantes da nossa sociedade atual; na solidão do vício, o homem exposto à intempérie, sem conseguir decifrar a caixa do enigma do mistério que leva nas mãos, porque, sobretudo, é o jovem que leva

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o mistério da vida, da dor e, inclusive, da morte, e é ele também que, com os braços cruzados, os olhos fechados e no silêncio, aju­dado, talvez, pela sociedade, deve intuir, preparar e aprofundar o significado desse “além” que está dentro.

Entre as apertadas e harmônicas pétalas do Egnzkilore que pintou Rafael Ruiz Balerdi, conseguiu-se recolher toda a energia do sol para proteger-nos da epidemia e da bruxaria do haxixe, da coca, do álcool, do craque, contra a crença das coisas mais precisas de que padece a juventude, “a droga não é causa, mas sim resultado de unia desconformidade (doença) profunda que afeta mais e mais a uma parte importante da juventude de todo o mundo”, como afirmou Regine, em Viena, no dia 17 de junho de 1987.

Se a resposta ao problema social (e, portanto, problema espi­ritual) da toxicomania deve ser global, logicamente há de se levar em consideração, também, a dimensão espiritual. Esta agíutinante estrutura, base de qualquer povo, integra-o e amortiza-o com seus conflitos - como testemunha a moderna antropologia (Julio Caro Baroja, Los fundamentos dei pensamiento antropológico moderno, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Madri, 1985). Seu aspecto negativo e, sobretudo, seu aspecto positivo devem ser levados em conta para responder às questões que aqui nos preocupam.

Toda sociedade amadurece por meio de um agíutinante espi­ritual, ainda que este, talvez, em muitas épocas, a prejudique.

Não falo agora de uma religião concreta e, desde já, prescindo de todo o “dogmático” que possa dar-se nas religiões. Falo so­mente do valor espiritual próprio (e transcendente) à pessoa, pres­cindindo dos dogmas, porque destes, com freqüência, brotam fontes muito potentes de violações de direitos humanos: inquisição, guerra e religião, etc.

Neste setor, o povo vasco (e outros povos da Espanha) tem tido algo peculiar para oferecer a outros povos, como eles o reco­nhecem com freqüência: refiro-me aos místicos. Sem nenhum mé­rito nosso, apesar de nossa culpabilidade e finidade, ontem e hoje pessoas místicas, como Inácio de Loyola, Angeles Sorazu, Francis­co Javier, Juan de la Cruz, Teresa de Ávila, encontram acolhida em todos os países, suas obras se traduzem para os idiomas de qualquer ideologia, de qualquer pensamento, de qualquer postura política, porque contêm algo que leva à realidade básica do eu profundo, do

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mais humano. A doutrina de nossos místicos, com seu silêncio so­noro - estou recordando uma obra de Chi Ilida com sua vida es­condida, com seu vazio (os apóstolos de Aránzazu), com seu integrar a morte na vida, com suas lágrimas, com seus êxtases e visões, com suas viagens (110 duplo sentido), com sua caridade ili­mitada, comunica-nos (com força imponente) um sentido da vida, da dor e do gozo, um transpassar o horizonte que, se soubermos pô-lo ao alcance de todos e se soubermos senti-lo, tiraremos o solo onde se apóiam os pés do viciado e do traficante, e colocaremos em suas mãos um báculo com que se apoiar para andar e uma ferramenta para cravar nos cumes para subir e transcender, reco­nhecendo a lição de Immanuel Kant (Die Reiigion innerhaib der Grenzen der blossen Vernunft - A religião dentro dos limites da mera razão): a especificidade e a irredutibilidade do campo da transcendência são indiscutíveis.

Com satisfação, pode-se ler que — e por que - o Grupo Pompi- dou convida para alguma de suas reuniões um representante do Vaticano, pois a dimensão religiosa pode beneficiar a prevenção geral, e a especial, assim como a repersonalização do toxicômano e do narcotraficante.

Religião e arte: novos horizontes e respostas

Opinamos que durante a preparação e a realização da primeira conferência das Nações Unidas, celebrada em Viena em 1994, pres­tou-se menos atenção à arte (ainda que se tenha preparado e difun­dido o posier a que antes nos referimos) e à religião.

Merecem aplausos algumas referências parciais e indiretas aos valores espirituais no documento de antecedentes 11° 5, de janeiro de 1987, que, ao tratar das “Atividades para as horas livres”, diz: devem-se

conccbcr e iniciar atividades para que, com o alternativas positivas às d rogas , as realizem os g rupos p ropensos a incorre r no uso in­devido das d rogas . P repara r p rogram as que p ro m o v am estilos de vida salu tar e livres de d rogas e fazer partic iparem todos os segm en tos da co m u n id ad e governam en ta l e não -governam en ta l

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na integração plena dessas pessoas e atividades dentro do am biente cultural. Partic ipação ativa do so c ia l-co u n se llin g (referente à consc ien tização da com unidade), educação p reven tiva e ativ i­dades de proteção em nível da família, da escola, das instituições re lig iosas (m elhor se não são g o v e rn a m e n ta is ) e de o rg a n is ­m o s enca rregados de fazer cum prir a lei.

Este mesmo grupo de trabalho reconheceu a necessidade de criar uma visão e um enfoque amplo da prevenção como solução prioritária para combater o uso indevido de drogas. Destacou tam­bém a conveniência de que membros da sociedade (das instituições não-governamentais, não-piramidais) proclamem a necessidade de restabelecer a “dimensão espiritual” e a importância dos valores.

Nesse sentido, Regine, a presidenta da Asociación S.O.S. Drug International, em Viena, em 17 de junho de 1994, disse: “O pro­blema reside na capacidade de nossa sociedade para desenvolver os valores nos quais a juventude possa acreditar e aos quais deseja aderir”. Considero que quem opina que a dimensão espiritual do homem está hoje em descrédito não tem examinado devidamente os símbolos dos tempos. Muitos especialistas concordam em que a juventude está cada dia mais faminta de religiosidade, mas que os adultos não lhes damos, nem a oferecemos, nem cooperamos (cf. Croyanls en Hausse, em L'ActuaIité Religieuse, 15 de outubro de 1986).

Parece patente, por outra parte, o perigo da sacralização desses temas, sobretudo quando se admitem posturas dogmáticas “ reve­ladas” , indiscutíveis, o qual, em criminologia, se considera equi­vocado e criminógeno. Nessa linha, em 15 de janeiro de 1987, os professores Ferracuti e Bruno, na Reunião Científica da Comissão do Comitê Europeu da Direção-Geral de Emprego, Assistência So­cial e Educação, que se celebrou em Luxemburgo, de 14 a 16 de janeiro de 1987 (o tema era “Abuso de cocaína, bases clínicas e programas de tratamento farmacológico”), nas conclusões

lam en tam (traduzo li teralm ente do italiano), co m o possível, que p rob lem as éticos c filosófico-re lig iosos, de não fácil so lução , tenham con tribu ído para inibir todo intento serio de investiga­ção a respeito da capacidade hedonística do hom em .

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Não poucos coincidem com estes autores. Preconceitos éticos e filosófico-religiosos foram obstáculos que detiveram — e ainda detêm, embora menos — a nave da cultura, da investigação, da ci­ência e da capacidade hedonística do homem.

Atinadamente, Don José Miguel de Barandiarán destaca outro perigo (no que tem caído parte do povo vasco) ao interpretar o Evangelho com excessiva coloração política e com excessivo dogmatismo e fanatismo.

Oxalá atinemos e colaboremos todos para a necessária dessacra- lização da idolátrica sociedade e da justiça, oxalá tiremos (pondo uin dado simbólico concreto) os crucifixos dos palácios de justiça. Mas, oxalá também, atinemos (abramos os olhos e manchemos as mãos) para conseguir a oportuna ressacralizaçao espiritual, não-confessional, ecumênica, da nossa sociedade e da nossa justi­ça. Ma veremos de colocar pedras similares na casa onde devemos morar, trabalhar, descansar, dormir, sonhar, comer e beber fraternal e gozosamente tudo.

Nestes dois aspectos — religião e arte —, partindo do nosso povo, podemos brindar o Conselho da Europa e talvez a todos os países com algo - não muito - que contribua para abrir novos hori­zontes de melhor qualidade de vida, com menor abuso e tráfico de drogas. Fora de nossas fronteiras, conhecem-se e apreciam-se, de maneira peculiar, os artistas e os místicos vascos. Por intermédio deles, permitimo-nos oferecer novas respostas pessoais e humanas ao holocausto do vício.

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Capítulo 2

Trabalhadores voluntários no mundo de hoje e de amanhã

(as regras mínimas de sanções carcerárias e não-carcerárias)

O homem perfeito é aquele que é mais útil aos demais.

Corão

Os voluntários estruturadores da pessoa c da sociedade

Considerando que o objetivo do Conselho da Europa - como se reconhece na Recomendação nB R(85) do Comitê de Ministros do Conselho da Europa aos Estados-membros sobre o trabalho voluntário em atividades de bem-estar social - é o de realizar uma união mais estreita entre seus membros, a fim de, singularmente, favorecer seu progresso social, seu Comitê de Ministros estima que c conveniente promover e desenvolver ações voluntárias a serviço da comunidade e reconhecer a necessidade de lixar algumas regras para o exercício de tais ações, sem privá-las de seu caráter espon­tâneo, e recomenda aos Estados-membros que reconheçam o papel, as características e o valor do trabalho voluntário realizado, de ma­neira desinteressada, por pessoas que, por sua própria vontade,

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participam na ação social e que tomam medidas apropriadas a fim de definir e melhorar as modalidades de realização de tal trabalho.1

Diante da variedade e da complexidade - inclusive do parado­xo - dos processos históricos supranacionais, temos de reconhecer que a estratégia empresarial e econômica de nossas sociedades oci­dentais - e das não-ocidentais - pode incidir, e incide positiva e/ou negativamente, no desenvolvimento, na mudança social. Temos de reconhecer o perigo de que essas técnicas empresariais e econômi­cas avoquem o capitalismo e o neocapitalismo extremos; assim como temos de admitir o perigo de que alguns anátemas contra a economia de mercado conduzam à ditadura e à miséria...(como o patentizam movimentos de abertura atuais nos países do Leste eu­ropeu. Para que não caiamos nesses perigos, é necessária a existên­cia de atitudes e estruturas sociais humanitárias, de instituições não-governamentais, como a do voluntariado, que freiem os abusos inerentes aos poderes políticos, econômicos e, inclusive, culturais e religiosos. Esses freios podem ser uma das funções do voluntaria­do. Ele pode e deve atuar contra os abusos do poder e, simultanea­mente, promover o desenvolvimento social-humanitário. Pode ser um eficaz modelo cultural inovador e favorável à mudança social progressiva. Como escreveu Meurant, “certos grupos de voluntários questionam a estrutura e, inclusive, o lundamento da sociedade” . O voluntariado pode ser, em última instância, um reparador dos fundos residuais, dos buracos negros do capitalismo e das ditaduras da Nomejiclatura (não nos esqueçamos do arquipélago de Gulag e que dentro deste gênero brotam diversas espécies).

O voluntariado pode apresentar seus grãos de areia para muitas construções fomentadoras do progresso humanitário. Também para romper e superar a excessiva e consolidada estratificação social, contra a qual se levantam as vozes de Karl Marx, Max Weber,

1 Cf. Conselho da Europa. Recomendação n“ R (85), do Comitê de Ministros aos Estados-membros. sobre o trabalho voluntário em atividades de bem-estar social.

2 Cf. F. de Ia Sierra, Los dircctores de las grandes empresas espanolas ante e! cambio social, Madri, CIS, J981.

3Jacques Meurant, El servicio voluntário de la Crtiz Roja en Ia sociedad de hoy, Cruz Vermelha Espanhola, Madri, 1986, p. 21 ss.; Cruz Vermelha Espanhola, Departamento de Voluntariado, Conferência Nacional sobre Voluntariado, Se- vilha, 8-10 de maio 1986, 110 p.

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Talcott Parsons, etc. Pode introduzir em seu tronco uma cunha de mobilidade social (facilidade de passos de um estrato social a outro) e uma cunha de superação do acesso diferencial (isto é, privilegiado e desproporcionado à dignidade comum de todas as pessoas) e fo­mentar a igualdade de oportunidades. Assim, pode propugnar con­tra a acumulação de desigualdades institucionalizadas.

Quando falamos do voluntariado como estruturacior da pessoa e da sociedade, empregamos esta palavra (estruturador) no sentido técnico, mais amplo e, quiçá, ambíguo, à luz das modernas e diver­sas doutrinas sociológicas do estruturalismo.

Talcott Parsons, em sua obra PolHics and social stm cture (Nova York, The Free Press, 1969), faz alusão a processos de implicação relacionai, realmente observáveis, subjacentes (mas observáveis) aos fenômenos sociais, que têm caráter (rasgos) de composição e de permanência, com incidência nos comportamentos, inclusive nos criminosos. Da diversa, ainda que parecida, perspec­tiva, à luz das obras de Gurtvich, Merton e outros, referimo-nos a um conjunto estabilizado de interações sociais. Como declarei, em Buenos Aires, em meus Diálogos com Elias Neuman:

C onvém confia r a so lução de certas s ituações a serv iços não- jud ic ia is . Existem países de direito consue tud inár io e ou tros s o ­cialistas que p roporc ionam , abundan tem en te , ex em p lo s desta técn ica p ro fundam en te arra igada na trad ição popula r. O País V asco e a C ata lunha d ispõem de usos e cos tum es com rico con teúdo “p riva tis ta” , isto é, onde a atuação de pessoas não- públicas chega a cotas altas e benefic iosas . O s an teceden tes n iu ltissecu lares da H erm an d ad e do A pell ido vascos e do So- m atén catalán estão por se r es tudados .4

A relativa privatização do sistema penal, propugnada nestas páginas, encontra, também, argumentos em seu favor, ao constatar o aumento das empresas privadas de segurança e/ou empresas de polícia privada em alguns países, por exemplo nos EUA.

Diante da estruturação da sociedade competitiva, capitalista, que confere caráter básico (estrutural) aos binômios “dar para re-

A. Beristain, E. Neuman, Criminología y dignidad humana (Diálogos), Buenos Aires, Depalma, 1989, p. 119 s.

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ceber”, “oferecer para esperar”, etc. (recordemos algumas leituras das vantagens criadas, de Jacinto Benavente), o voluntariado tece a estrutura social da gratuidade e brinda outra da frugalidade e tes­temunha também outra da austeridade, sem perda do lúdico/

Nosso voluntariado elabora um tecido gratuito das pessoas e das sociedades, consciente de que o efetivo é o afetivo, e que a for­ça do amor supera a do ódio. Consciente de que a paz, da qual tanto se fala, é algo mais e distinto que a ausência de guerra, se­gundo vêm propugnando pessoas como Gandhi (e muito antes Só­crates e Jesus Cristo) e instituições internacionais, como a Anistia Internacional, a Assembléia Ecumênica em Basiléia (maio 1989), etc. Esta paz se logrará quando - e não antes que - a maioria dos cidadãos atuar por motivações mais altruístas, quando aumentarem, notavelmente, o número e a qualidade dos voluntários.

Outro ponto concreto: a lentidão da administração de justiça, que foi estudada e universalmente lamentada na XXI Conférence de Recherches Criminologiques, em Estrasburgo, no final de no­vembro de 1989, não poderá ser superada até que um número alto de voluntários trabalhe na administração de justiça, com a paralela modificação estrutural desta/’

O voluntário, como toda pessoa que trabalha nas instituições judiciais - mais especialmente ele, por seu altruísmo - , deve saber que o delito “é resultado de um extenso processo de marginaliza- ção de muito difícil detecção”7 e que exige outro extenso processo de acompanhamento respeitoso, mais do que reincorporador. Não se nega a liberdade jurídica, mas sim evita-se o simplismo do “di­reito penal medieval em sua cosmovisão infantil da liberdade e da

5 Constituição pastoral do Concilio Vaticano II sobre a Igreja no mundo atual, Gaudium et Spes, nü 64 ss., Roma, 7 de dezembro de 1956.Enrique Ruiz Vadillo. “La crisis dei Deredio y el recurso de casación penal”, em Varios, Estúdios de Derecho p e n a iy criminologia (em homenagem ao prof. José Maria Rodríguez Devesa), Universidad Nacional de Educación a Distan­cia, Madri, 1989, p. 249 s., p. 266, p. 260: “A situação atual é gravemente injusta e intolerável. Entre todos, com objetivos elevados, haveremos de buscar soluções práticas que garantam plenamente a justiça. O que não é nem mini­mamente aceitável é seguir assim: uma justiça penal defasada no tempo é unia injustiça” .

7 Raul Pena Cabrera, “Pena y Estado capitalista” ,...p. 57.

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culpa”, e corrige-se a miscelânea primitiva, submissa e heterônoma com a moral.

Exemplos de voluntários na Europa e na América

Falemos agora de certas associações de voluntários, na Europa e na América Latina, que pretendem colaborar com esse tecido es­trutural da gratuidade, com essa privatização e melhora da justiça penal e com esse desenvolvimento dos direitos humanos.

José Lu is L. Aranguren, em suas recentes publicações,8 insiste na necessidade de intensificar os movimentos comunitários e asso- ciacionistas (ressaltando a diversidade entre ambos) em todos os campos da convivência. Não se refere, obviamente, às associações de gente de vida irregular, que em outros momentos tanto interes­sam aos criminólogos.J

Atualmente, no final do século XX, o voluntariado (sobretudo o juvenil), como instituição nova em muitos sentidos (apesar de seus antecedentes multisseculares), apresenta resultados positivos - e cada dia mais - a todos os setores da sociedade, também aos jovens em gerai, e não somente aos marginalizados. Os setores marginalizados beneficiam-se da assistência que lhes prestam os voluntários. E, simultaneamente, os trabalhadores voluntários (em particular os juvenis) beneficiam-se duplamente: porque se dão aos marginalizados e porque recebem dos mesmos marginalizados.

Esse movimento do voluntariado (especialmente o juvenil) en­contra ampla acolhida em diversos ambientes, sobretudo em alguns países estrangeiros.

Merecem ser citadas, estudadas e imitadas muitas associações e comunidades de voluntários mais além de nossas fronteiras, e também várias instituições jesuíticas de voluntários que vão se es­tendendo por não poucas cidades do mundo.

José Lu is L. Aranguren, “Eli ca y comunidades adultas” , Etica de la fe lic idad y otros lenguajes, Madri, Tecnos, 1988, p. 133 ss.

yJulio Caro Baroja, Realidad y fantasia eu ei mundo criminai. Consejo Superior de Jnvestigaciones Científicas. Madri, 1986, p. 45 ss.

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Na Europa, a Jesuit European Volunteers, que reúne um gran­de número de jovens, apóia-se nas quatro coordenadas seguintes:1) Compromisso com a justiça. Compromisso e opção, como Jesus,

compromisso e opção pelos pobres à luz do Concilio VaticanoII, das publicações de Medelim e de Puebla. Compromisso que exige algo mais que pura teoria; que exige conhecer e mudar o mundo, como indicou Marx em sua tese de número onze, e muito antes Jesus Cristo.Desenvolvimento da semente conhecida já no livro do Gênesis, quando Jeová pede que o homem domine todo o mundo. Este compromisso inclui um conhecimento e uma atuação político- social nas estruturas.

2) Espiritualidade. A relação profunda e existencial entre os ho­mens e do homem consigo mesmo é fonte e efeito da relação

V

sobrenatural com Deus. A luz do Evangelho, os voluntários je- suíticos europeus procuram encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus, como celebra a Bibiia. Cultivam a li­turgia e a contemplação pessoal.

3) Comunidade. Mais que em associação, estes jovens pretendem viver em comunidade. Comunidade que inclui uma diversidade, uma variedade. Uma unidade radical apoiada nos direitos huma­nos e na mensagem evangélica, a qual supõe uma ocasião e uma missão. Ocasião de complementar-se mutuamente, e missão de respeitar e desenvolver o direito de ser diferente para conseguir a unidade que harmoniza o mistério trinitário.

4) Vida simples. É fundamental nos grupos dos JEV optar por uma alternativa contra a sociedade de consumo que predomina em muitos campos da humanidade atual. Tomando consciência da situação no Terceiro Mundo e do conflito Norte-Sul, esses voluntá­rios comprometem-se a desenvolver a cultura da simplicidade e da sobriedade e descobrir a felicidade que se encontra melhor no dar que no receber e a solidariedade com os marginalizados e os pobres.

Vários grupos de voluntários austríacos trabalham em Viena e em outras cidades próximas. Na Alemanha, há uma dúzia de grupos.

Também encontramos voluntários na América do Norte e do Sul. Por exemplo, nos EUA, o Jesuit Volunteer Corps (JVC) de­nomina-se um importante movimento de leigos dirigido pelos

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jesuítas. Esse movimento nasceu 110 ano 1956, promovido por Kack Morris. S. J., 110 Alasca, e atualmente conta com muitos gru­pos de voluntários que vivem em pequenas comunidades. Grupos de seis a dez jovens, que se comprometem a viver um ou dois anos trabalhando em favor dos marginalizados, sem nenhum ganho.

Em novembro de 1983, na Universidade de Georgetown, de Washington, nasceu outra organização similar: Jesuit International Volunteers (JIV).

Na América de língua espanhola, também existe voluntariado jesuítico. Assim, o superior geral, Peter-Hans Kolvenbach, quando visitou El Salvador, de 29 de fevereiro a 5 de março de 1988, falou desses Voluntários do Serviço Jesuíta aos cristãos do Refúgio San José em Calle Real.

Perfil do trabalhador voluntário penitenciário

Recentemente, descreveu-se o voluntário penitenciário como a pessoa especialmente sensibilizada e formada, associada livre­mente, que colabora altruisticamente respeitando e potenciando o assistido, e sendo consciente de que seu trabalho lhe enriquece não menos que ao interno na instituição penitenciária.10

Aqui acrescento algumas considerações a respeito da obriga­ção de que o cárcere cumpra sua missão ressoeializadora e a im­prescindível colaboração do voluntário devidamente instruído e formado. Resta dizer que a este se deve considerar dentro do pes­soal penitenciário como um a mais, porém muito diferente. As “Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos De­tentos” (de 1955), como a Ensemble des règles minimes poitr le traiíemení des déleiuts do Conselho da Europa (de 1973), acerta-

10 Cf. A. Beristain, “Voluntários y/o benévolos en favor de los presos y en contra de nuestras cárceles”, Revista cie Estúdios Penitenciários, nL> 239, 1988, p. 17; idem, “Relaciones enlre los privados de libertad y el mundo exterior (El volun­tariado)”, Eguzkiiore. Cuaderno dei Instituto Vasco de Criminologia, número extra, San Sebastián, 1988, p. 29 ss.; idem, Crimen y castigo. Crislianos ante la justicia penal aciuai (vídeo produzido por Audiprol, 28006 Madri, Maldonado l-A-1989).

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damente falam dele quando se referem ao pessoal penitenciário." Todo legislador - também o espanhol - deve tê-lo em conta ao atua­lizar a legislação penitenciária.

As regras penitenciárias européias do Conselho da Europa do ano de 1987, em sua Regra 57. 2, que trata do pessoal penitenciário, nos dizem que este pessoal deve normalmente estar assentado sobre uma base permanente, mas também se podem convocar au- xiliares em tempo parcial ou voluntários, no caso de necessidade, quando sua participação seja considerada oportuna.

Ainda que seja muito difícil,12 o Estado necessita ressocializar o interno nas instituições penitenciárias. Manilesta-o claramente o art. 25 da Constituição Espanhola. E, também, Pena Cabrera o re­conhece quando assinala que:

afirm a-se c postula-se nas constitu ições e nas leis pena is que as sanções e as m edidas dc segurança estão o r ien tadas para a res- soc ia l ização e a reinserção social. Seria absu rdo recusar que essa proposta tenha realm ente represen tado um p rogresso . R e­je i tando -se a pena com o exp iação e retribuição, não há dúv ida dc que se tem avançado . D essa m aneira , o Estado não é o Levi- alã on ipo ten te e indiscutível, nem a pena é o rem éd io a todos os m ales que se p re tende condenar. O im portan te é que detrás d e s ­sa desm ist if icação do Estado as penas ab rem c a m in h o s dc d e ­bate e de c r ít ica .13

Para que o Estado consiga este fim repersonalizador, necessita do voluntário, necessita de pessoas que ajudem a “apresentar dife­

11 Regras Mínimas da ONU, na 49. 2; “Ensemble Conseil de PEurope, regra 49.2; e de especial interesse as Regras 128 a 135, dos “Minimum standard guidelines for corrections in Auslralia and New Zealand”, 1987, em International Pena! and Penitentiary Foundation, The elaborai ion o f standard inininuini rides fo r non-institucioiial treatment, Bonn, 1989, p. 154-167, cf. Anexo I.

12 Miguel He má n dez, quando recebe a notícia de que seu filho já aprendeu a an­dar, lhe escreve da prisão: “Manolito de mi alma... Puesto que ya andas, ven aqui conmigo y aprenderás a ser hombre en la cárcel, donde tantos hombres de­saprendeu”. em Josefina Manresa. Recuerdos da la vinda de Sfignel ílernández, Madri, Ediciones de la Torre, 1980, p. 129.Raúl Pena Cabrera, “Pena y Estado capitalista”, Libro Homenaje a Alfonso Reyes Echandia , Bogotá, Temis, 1987, p. 309.

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rentes alternativas para a solução tios conflitos propriamente indi­viduais e os sociais” que implicam a maior parte dos delitos.14

Não esqueçamos a obrigação do Estado democrático de pro­porcionar a participação dos cidadãos nas decisões gerais do Esta­do e, portanto, na política criminal e 11a política penitenciária, pois, como se indica 110 livro Estado mundial da infância, do Fundo das Nações Unidas para a Infância, do ano de 1989:

Até a data, a experiênc ia dos p rog ram as de d esen v o lv im en ­to...indica que existe um a d iferença abso lu tam en te crucial entre o tipo de ajuda que capacita e p rom ove a partic ipação e a ajuda cjuc aliena a confiança e cria dependência . O êxito ou o fracasso de qua lquer a t iv idade de desenvo lv im en to , 110 geral, dependerá de cm que lado desta linha divisória., às vezes tênue, se situe a a juda em q u e s tã o .15

Pena Cabrera insiste que “a potestade punitiva deve andar de mãos dadas com o humanitarismo”.16 Para alcançar essa meta, re­sulta indispensável a colaboração dos voluntários antes, durante e depois do internamento dos delinqüentes, isto é, na tarefa preventi­va, 11a ressocializadora penitenciária e na crítica das estruturas so­ciais injustas. Dito com outras palavras, na luta pacífica contra a macrovitimação carcerária, no empenho constante por uma justiça penal (destacando a justiça versus o penal).

A nossos voluntários compete trabalhar, se possível em equipe,17 para cooperar de “fora” (da esfera privada, não-estatal), para elaborar e levar a cabo diversas tarefas que podem consistir em assessorar, controlar, avaliar, etc. o que se passa nas instituições penitenciárias, antes que 0 marginalizado ingresse na instituição penitenciária. Também, e sobretudo, durante o tempo do internamento para lograr, na medida do possível, múltiplas metas: a ressocialização do interno,

14 ibidem. p. 310.Fundo cias Nações Unidas para a Infância, Estado mun dia! da infância, 1989, p. 57. Raúl Pena Cabrera, “Pena y Estado capitalista”,.- p- 311.Alfonso Paslore, Pastoral carcerária e você. Experiências, estudos e perguntas de um trabalho com presos. Aparecida (Brasil), Ed. Santuário, 1986, p. 18 ss.;Joaquín Gimenez, “E! juez y la cárcel”, Eguskilore, Cuaderno dei Instituto Vas­co de Criminologia, n- extra, San Sebaslián, 1988, p. 71.

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os impedimentos aos profissionais funcionários de instituições pe­nitenciárias de excessivas deformações profissionais, etc., etc.

E, não menos, corresponde aos voluntários, durante esse tem­po, estar próximo dos familiares dos internos para possibilitar, par­tindo do seu lar, essa desejada e difícil recuperação do delinqüente. Fazer-lhe ver e perceber, compreender e sentir que, como já afir­mou Platão, em seu diálogo mais moderno, mais do homem de

18 • hoje, o Górgias, “o melhor gênero de vida consiste em viver emorrer praticando a justiça e todas as demais virtudes” .

Conseguir essa tão problemática e difícil recuperação do de­linqüente exige, antes de tudo, uma mais justa e humana estrutura­ção do trabalho penitenciário, como indica José Lu is da Costa.19

Também lhes cabe conhecer e difundir “que a pena privativa de liberdade assinala uma espécie de justiça seletiva, visto que em todo o mundo cai nela, preferentemente, quem pertence aos setores sociais mais desfavorecidos” e que os novos progressos criminoló- gico-vitimológicos e os novos sentimentos humanitários superem as teses retribucionistas e consigam sobrepujar o freqüente instinto de buscar um “bode expiatório” para levá-lo ao cárcere/"

A sensibilidade feminina (como indicamos em outro lugar)-1 capacita, de uma maneira especial, a mulher para atuar como bálsamo nas feridas de todas as pessoas presas e de seus familiares. A história nos mostra a ação eficaz de muitas dessas mulheres vo­luntárias - pessoas como a religiosa Magdalena de São Gerônimo, Concepción Arenal e Victoria Kent, na Espanha, e Mary Bell Harris, nos Estados Unidos, para só citar algumas.

Convém insistir que ao voluntariado feminino competem tare­fas, em certos casos mais urgentes e mais peculiares — e, desde logo, mais profundas - que aos homens. Re feri mo-nos, particular-

18Platão, Górgias, 527 e.

19José Lu is de la Cuesta. Ei trabajo penitenciário resociolizador. Teoria y Regu- lación Tos Uiva, San Sebastián, Caixa de Ahorros Provincial de Guipúzcoa, 1984. p. 403 ss.Raúl Zaffaroni. “Tratado c!e derecho penal”, torno V, Buenos Aires. 1983. p. 123; Raúl Pena Cabrera. “Pena v Estado capitalista” ,... p. 311.Cf. Anlonio Beristain, “ La mujer víctima y proctetora en la cárcel”, em A. Be­ristain, J. L. de la Cuesta (compiladores). Cárcel de mujeres. Ayer y hoy de la mujer deiincuente y víctima, Bilbao, Mensajero, 1989, p. 159 ss.

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mente, à atenção e à assistência aos menores inocentes, mas “con­denados” e internados durante anos e anos (na Espanha, até os seis anos, e em outros países, inclusive, até mais tarde).22

Alguns especialistas das religiões e das etnias primitivas, por exemplo Mircca Eliade e José Miguel de Barandiaráu, descrevem os mitos da Deusa Mãe sentada na entrada da caverna com um es­pelho e penteando sua longa cabeleira. Com esse espelho, entram também mulheres voluntárias 110 cárcere para ensinar a quem sofre ali, dentro das celas, o que Sonia ensina a Raskolnikoff, o protago­nista de Crime e castigo: “És delinqüente, sim, mas podes estabe­lecer o diálogo eu e tu, podes ver-te em meu espelho com todo meu apreço. Podes nascer de novo” .

O espelho 11a mão da mulher voluntária mostra ao delinqüente (se é cristão) sua identificação com Jesus, porque alguém lhe de­volve uma vida nova. A mulher, não menos a voluntária, sempre pode ser mãe. Também dos presos.

No âmbito propriamente religioso, 0 voluntário pode ajudar o interno. Também pode aprender com ele, pois, entre os internos, não faltam - hoje como ontem ~ pessoas que encontram Deus com profunda experiência de gozo e exultação.

Algo assim recorda Cario Maria Martini, cardeal de Milão, em23seu livro Palavras sobre a Igreja, quando escreve:

E recordem os tam bém a Paulo, co locado 110 fundo de um a p r i­são. Ferido, com chagas e acorren tado , até a m eia-noite . Pau lo e S ilas es tavam em o ração can tando hinos a D eus (A tos dos A pósto lo s 16, 25). Esla p lenitude de conso lo em meio ao so fr i­m en to se experim enta lam bem , hoje, sob form as que às vezes parecem m ilagres e que revelam a p resença do Espírito Santo , sem pre pronto a confo rta r c san tif icar seu povo. Seria fácil a p re ­sen tar ex em p lo s que conhec i no cárcere , nas prisões.

2“ Cf. E. Gimenez-Salinas. “Condena o privilegio?”, em J. L. de la Cuesta, I. Den-

daluze, E. Echeburua (compiladores), Criminología y derecho penal al servicio de la persona. Livro em homenagem ao professor Antonio Beristain, San Se-bastián. Instituto Vasco de-Criminologia. 1989. p. 1.153 ss.: Ms L. Lima, Cri- minalidad femenina (teorias v reacción social). México. Ed. Porrúa. 1988.Cf. Cario M' Martini, Pa/abras sobre la Iglesia. Puehlo de Dios para la vida deI mundo , Santander. Sal Terrae. 1988, p. 106 ss.

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Como detalham Pierre Raphael e a irmã franciscana Bernade- tte, capelã da prisão de Rikers Island, em Nova York: “Os voluntá­rios influem muito nas questões religiosas”.24 Também diversos internos americanos de língua espanhola testemunham a vida pu- jante religiosa dentro do cárcere."

Com sobra de razão, as Regras penitenciárias européias 46 e 47 (do ano 1987) recordam o direito dos internos à sua vida reli­giosa, às suas crenças. Mas não esqueçamos as atinadas e “bené­volas” considerações de Nils Christie, quando escreve:

C laro eslá que, ao abrir-se para a im portância das crenças, tam ­bém se está abrindo às c renças que d em an d am dor. O P alác io da Inqu is ição cm C artagena é um edifíc io m uito bonito , onde v ive­ram com d ign idade e com od idade benévo lo s sacerdotes , com a câm ara dc torturas som en te a um piso mais abaixo . E uso aqui a pa lavra benévo lo sem nenhum a ironia. Estou convenc ido de que entre e les havia pessoas justas e boas que acred itavam em Deus, c que resgatavam as pobres almas. Para o s inquisidores, o in fer­no era um a realidade, e repartiam a dor com um propósito pre-

26venhvo .

Nos cárceres, a religião pode e deve ser não o ópio do povo. e sim a fonte de uma critica não desesperada que, como o Evange­lho, simultaneamente com a crítica, comunica a força para que o criticado atue melhor.

Por desgraça, múltiplos casos concretos patentizam que as instituições penitenciárias em muitos países (quiçá em todos) vio­lam direitos humanos fundamentais. Mas, afortunadamente, não faltam vozes religiosas que se atrevem, “voluntariamente”, a criti-

24Cf. Pierre Raphael. com a colaboração de Menri Tincq. Dans I 'enfer de Rikers Island. Un prêire frança is dans la plus grande prision des Etats-Unis, Paris, Cenlurion, 1988, p. 103 ss.; Adolfo Bachelet, S. J. “La preghiera nelle carceri” , Oración y Servicio, nü 4, Roma, 1989, p. 61 ss.

25Pierre Raphael, com a colaboração de Henri Tincq, Dans ie n fe r de Rikers Is- land..., p. 119 ss.

26 Nils Christie, Los limites dei dolur, trad. Mariluz Caso, México, Ed. Fondo de Cultura Econômica, 1984, p. 123 s.

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cá-las. Basta recordar um exemplo: o cardeal Wyszynski, em seu Diário de la cárcel,27 no dia 18 de fevereiro de 1955, escreve:

O com andan te - Padre, nos lhe tra iam os c o m am abilidade . Q uan to à co rrespondênc ia , olhe, m e lho r é que se ja lida que proibida.

Eu - D ispenso seus bons m odos. P ode-se fazer muito mal com toda am ab ilidade . 12 o s senhores m e vêm m altra tando há um ano c meio. N ão com partilho da sua op in ião a respeito de m inha co rrespondênc ia . Por isso, escrevo raras vezes a meu pai, para ev itar-lhe o mal de que leiam m inhas carlas e f iquem com elas. C om o m e explica o senhor, v am o s ver, este tipo de in ter­vencion ism o , jam ais usado com outros p ris ioneiros? .. . O s s e ­nhores são os que têm o rgan izado o bo ico te contra m inha co rrespondênc ia , a tal ponto que, de ou tubro de 1953 a abril de 1954, não recebi nenhum a caria. N em sequer a fe lic itação de N atal. N ão se cham a a isto v io lação dos d ire itos hum anos?

Muitíssimos são os presos que recordam como tal ou qual sa­cerdote lhes ajudou durante sua detenção, e como se atreveram a criticar os abusos de autoridade. A viúva de Miguel Hernández recorda a ajuda dos sacerdotes: Don Monserrate Abad Huertas, vigário de Cox, graças a quem pôde falar três vezes em comunica­ção extraordinária com Miguel, no cárcere de Alicante.28 Também recorda o vigário anterior, Don Manuel Serna,

que d isse às novas au to ridades que, se não tirassem os presos, sairia dali. D epo is de três ou quatro m eses, saiu d esp rezando -os , pois lhe doía e não achava ju s to que es tivessem no cárcere lio-

27 Stefan Wyszynski, Diário de la cárcel, trad. José Luís Ixgaza, Madri, Bibliote­ca de Autores Cristãos, 1984, p. 163.Josefina Manresa, Recuerdos de la vinda de Miguel Hernández, Madri, Ed. de la Torre, 1980, p. 139. Também podemos recordar Francisco de Quevedo. que três séculos antes agradece aos jesuítas o muito tjue lhe ajudaram durante sua prisão em San Marcos de León, como indica a atual reilora da Universidade de Sorbonne, Michèle Gendreau-Massaloux, Heritage et creation: recherches stir riiiimanisme de Ouevedo, Paris, 1977, p. 36 j ss.

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niens que lhe haviam sa lvado a vida, tanto a dele com o a de29o u tro s do povoado.

Não esqueçamos que uma alta porcentagem (mais de 50%) dos cidadãos encontra apoio na religião, como constatam os estudos socioiogicos.

O voluntariado penitenciário como direito e como serviço

O voluntariado é mais que, e diferente de, uma profissão socioassistencial. O voluntário distingue-se em mil facetas do tra­balhador social. Pode-se considerá-lo como um recurso social e,sobretudo, como um direito e também um serviço muito diferentes 1em países desenvolvidos do que em países em desenvolvimento.

Como “recurso”, todos podemos recorrer ao voluntariado. Concreta mente, ao voluntário, no âmbito prisional, recorrem os internos, suas famílias, seus amigos, os companheiros funcionários penitenciários e, não menos, qualquer cidadão ou instituição que se ocupe e/ou se preocupe com o mundo carcerário, sobretudo com sua humanização e democratização.

Também nós, que nos ocupamos e nos preocupamos em con- seguir sua maior privatização. A luz do art. 1, 1, da Constituição Espanhola, que desenha um modelo de Estado democrático, deve­mos reservar um papel importante ao indivíduo e às associações dos cidadãos em todos os campos, também no da justiça penal, isto

2 l)Ibidem, p. 113. Podem-se ler também as diversas manifestações orais e escritas dos pontífices romanos Pio XII, “Mensaje a los encarcelados de todo e! mun­do”, Ecclesia , n° 548, 1952; Paulo VI, “Alocución en la cárcel ‘Regina Coeli’ de Roma”, Ecclesia , n~ 1.188, 1964; João Paulo II. “Encuentro con los presos”. Ecclesia, na 2.156, 1983; João Paulo II, “Mensaje radiado a los presos de Fran- cia”, L 'OsseiTatore Romano, 19 de outubro 1986, p. 4 (664).Jan Kerkhofs, “Cambio de valores en Europa?”, em Varios, Jíonibrey religión , Universidad de Deusto (centenário), Bilbao, 1988, p. 32. Segundo estatísticas, quanto mais avançada a idade das pessoas, maior é o seu apoio à religião.Pierre-Henri Bolle, “General Report”, em International Penal and Penilentiary Foundation, The e laborai ion o f standard minimum rui es fo r non-institudonal treatment, Bonn, 1989, p. 186.

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é, devemos abrir as portas a uma democrática privatização da justi­ça penal.

Como “direito” , todo cidadão (individual ou coletivamente) tem direito a colaborar e/ou participar, livre e eficazmente, no desenvolvimento político, social, econômico, cultural e espiritual dos concidadãos, com base no que se diz na Constituição Espa­nhola, art. 9. 2 e 48, e na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, arts. 20 e 27:

Artigo 9. 2. Compete aos poderes públicos promover as condi­ções para que a liberdade e a igualdade do indivíduo e dos grupos em que se Íntegra sejam reais e efetivas; remover os obstáculos que impeçam ou dificultem sua plenitude e facilitem a participação de todos os cidadãos na vida política, econômica, cultural e social.

Artigo 48. Os poderes públicos propiciarão as condições para a participação livre e eficaz da juventude no desenvolvimento po­lítico, social, econômico e cultural.

Artigo 20.1. Toda pessoa tem direito à liberdade de reunião e de associação pacíficas.

Artigo 27.1. Toda pessoa tem direito a tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, a gozar das artes e a participar 110 progresso científico e nos benefícios que dele resultem.

O poder político tem o dever de regulamentar esse direito de todos os cidadãos ao trabalho voluntário para coordená-lo com os demais direitos e deveres. Em muitos países existem normas con­cretas, mais ou menos setoriais. Por exemplo, a Cruz Vermelha na Espanha, a partir dos anos setenta, tem descrito com nitidez seu voluntariado.

Para nós e para tantos especialistas, a desejada formulação legal da figura do voluntariado na normativa penitenciária pode servir de orientação, apesar de suas limitações, à Lei italiana de 26 de julho de 1975; especificamente, seu artigo 78, que trata dos assistentes voluntários, e também diversos artigos do Regulamento de execu­ção desta Lei 354; sobretudo, os artigos 4, 63, 103 e, mais especi­almente, 0 107. Este último reconhece que a autorização que proclama o artigo 78 da lei se concederá àqueles que demonstrem interesse e sensibilidade em relação à condição humana dos priva­dos de liberdade e que dêem prova de capacidade concreta na as­sistência a pessoas necessitadas.

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Em certo sentido, Platão pode ajudar-nos a entender como os voluntários servem, acompanham e animam o marginalizado, não lhe oferecem resistência, senão que cedem a seu movimento. Pla­tão, no único diálogo que trata da linguagem como problema, o Crátilo, explica o nome “voluntário” : hekoúsion como “o que cede” (o eikon) e não oferece resistência. “Como digo, estaria re­presentado por este nome, que está em conformidade com a ‘von­tade’ (boulé), ‘o que cede ao movimento’ (o eikon lôi iónti)” .32

Ao voluntariado como “serviço” competem missões próprias e de suplência para cobrir as lacunas dos diversos poderes e das diversas instituições. Mas não somente missões de suplência. A luz do princípio geral (ainda que às vezes esquecido) de subsidiariedade, às instituições políticas, econômicas, sociais, religiosas, etc., não lhes é permitido “cortar” os campos do voluntariado, nem expulsar deles quem leva a cabo suas tarefas próprias e específicas. Parece desacertada a postura do Conselho da Europa, em sua Resolução sobre as associações sem fins lucrativos na Comunidade Européia, de 13 de março de 1987, quando afirma:

C onsiderando a am plitude do m ovim en to associa tivo no seio da C om un idade , o apoio constan te que recebe por parte dos c id a ­d ãos cm todos os Estados, o im portante serv iço que as a s so c ia ­ções p res tam à C om unidade , servem , com eficácia , ao interesse geral, de form a com plem en ta r ia à ação dos Estados.

Em nossa opinião, o voluntariado não é somente uma forma complementaria. Quiçá, ao contrário, seja complementaria a ação dos Estados. Acerta o Concilio Vaticano H33 quando reconhece e pede que se reconheça, se respeite e se promova o direito de todos os cidadãos a participar na vida pública, e quando exige que se res­peite, como um direito peculiar, como uma parcela própria da ação da Igreja, a assistência aos mais necessitados (por meio de seu vo­luntariado). Instituições eclesiásticas (privadas), como a Caritas, devem ter - e merecer — certa preferência, antes mesmo de outras instituições estatais e similares, com fins lucrativos.

Platão, Crátilo. 420 d.Gaudium et Spes, t f 42.

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Há muito tempo, existe o voluntariado como serviço, ainda que sem esta denominação concreta. Ajudar aos demais gratuita­mente é algo inerente à humanidade, por isso tem acompanhado desde sempre o homem, como sua sombra, ainda que com rasgos muito distintos. Algo que vem sendo exigido desde as raízes antro­pológicas da pessoa, e tende a seu topo mais elevado (também en­tre os animais constatamos a lei da ajuda mútua).

Sobre o que hoje chamamos voluntariado ou, melhor dito, suas coordenadas fundamentais, dissertaram alguns grandes pensadores, Kant (1724-1804) nunca menciona a expressão “voluntariado”, mas, em vários de seus livros, formula princípios, metas e comen­tários que são o alfa e o ômega do atual voluntariado. Assim, em // religião dentro dos limites da mera razão (Die Religion hvierhalb der Grenzen der biossen Venmnft), escrito em 1793, na terceira parte “O triunfo do princípio bom sobre o mau e a fundação de um reino de Deus sobre a terra” , fala de “a ganância suprema que pode alcançar o homem: ser liberado da escravidão sol) a lei do pecado, para viver a justiça” ,., “manter-se sempre preparado para a luta” . Essas afirmações podem aplicar-se a qualquer voluntariado, e mais ao que se dedica gratuitamente a sua tarefa no labirinto carcerário; ele vive para a justiça e se mantém sempre preparado para a luta.

Pouco depois, Kant contrapõe o estado civil do direito sob leis coativas ao estado civil ético, no qual os homens estão reunidos sob leis não-coativas. Os homens em estado civil ético, segundo Kant, chegam a lograr o que não se alcança com leis e meios de coação. Também se pode aplicar esta consideração aos voluntários, pois eles alcançam muito mais do que se consegue com as sanções penitenciárias como resposta às faltas dos internos (e/ou dos fun­cionários).

Como “serviço”, o voluntariado alcança as metas que deseja Kant (p. 188 s.), pois tende a promover o bem (moral), é um servi­ço dos corações, e um conjunto de ações destinadas aos homens, não exclusivamente a Deus.

Segundo o filósofo de Kõnigsberg, o homem, para superar o estado originário de interna amoralidade (p. 98), deve procurar sair desse estado “tão logo seja possível” , e tem um dever de índole peculiar de todo o gênero humano para consigo mesmo, “pois to­dos estamos determinados” à promoção do bem supremo como

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bem comunitário ou como “uma contribuição efetiva ao bem do mundo” (p. 169). Essas considerações de Kant encontram cumpri­mento na maioria dos voluntários penitenciários.

Esperamos que, entre os universitários e todos os cidadãos, a cada dia, encontre mais amplo eco este novo e velho movimento do voluntariado em favor dos menos favorecidos, marginalizados e/ou condenados.

Muitos investigadores, que com afinco buscam sanções alter­nativas à privação da liberdade, insistem em que um pivô dessas futuras sanções deve ser o voluntário, e desde a idade juvenil. Com satisfação, encontramos em algumas salas e corredores de univer­sidades anúncios e posters de estudantes que se oferecem para tra­balhar e organizar tarefas de voluntariado em campos diversos e, concretamente, 110 campo penitenciário. Pode servir de exemplo a atividade de muitos universitários no GENEPI - Groupe Étudiant National d ’Enseignement aux Personnes Incarcerées (247 rue St. Honoré, 75038, Paris, Cedex 01, telef.: 1-49270463).

Universitários e trabalhadores voluntários com jovens em risco

Um exemplo que pode iluminar a teoria e a prática do volunta­riado nos oferece Manuel Segura Morales,34 quando fala da insti­tuição que se encontra na cidade de Chatham, na zona rural de Kent (Inglaterra): 0 Medway Center. Está orientado para menores entre os dez e os dezesseis anos que, sem ser delinqüentes habituais, te­nham cometido uma ou várias infrações não-graves: são os meno­res considerados oficialmente em risco, aí risk.

No centro - localizado em uma casa antiga, um pouco som­bria, que parece muito atrativa para os jovens que a utilizam —, tra­balha, junto ao pessoal profissional assalariado, uma dezena de voluntários. Esses voluntários levam o peso dos sete grupos, que vêm do Community Service Volunteers, ou Voluntários para o Serviço Social, ou outros simplesmente universitários ou trabalha­

Manuel Segura Morales, Trotamientos ejicaces de delincuentes juven il es. Mi­nistério da Justiça, Madri, 1985, p. 379 ss.

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dores locais: tiveram também algum universitário vindo da Cali­fórnia para fazer sua tese.

Na atualidade, estes voluntários são recrutados amistosamente, por meio de amigos que trazem outros amigos. Evita-se, por prin­cípio, pôr anúncios nos jornais, pois esse procedimento atraiu um alto percentual de neuróticos no passado. Mas, ainda que se realize informalmente, o sistema de recrutamento e seleção de voluntários é cuidadoso e eficaz: depois da apresentação, feita por quem o trouxe ao Centro, e de ter tido com ele a primeira entrevista, é contratado por um mês, como experiência. Para contratá-lo, são tomados em consideração, principalmente, dois aspectos: a maturi­dade pessoal do condi d ato, e que possua algum conhecimento ou habilidade técnica que possa ensinar aos menores em tratamento. Por exemplo, se oferece: carpintaria, mecânica de motos, montanhis­mo, música e teatro, pintura e filatelia, além dos esportes comuns.

Durante o mês de experiência, avalia-se, preferencialmente, a capacidade de relação do voluntário com os menores. Se o voluntá­rio é mulher, aprecia-se também sua aptidão para oferecer aos mais novos uma figura materna, que provavelmente nunca tenham tido. Como mínimo, se exige de cada voluntário que coordene e anime um dos sete grupos uma vez por semana, durante três horas; mas existem alguns voluntários que, tendo terminado seus estudos e estando sem trabalho, colaboram três ou quatro dias na semana.

As regras mínimas cie sanções não-carcerárias

Foram publicadas pela International Penal and Penitentiary Foundation (Fundação Internacional Penal e Penitenciária) as re­gras mínimas para o cumprimento das sanções e das medidas não- carcerárias que implicam uma restrição de liberdade.35

Convém ressaltar o que se afirma na introdução deste docu­mento:36 para o correto cumprimento dessas normas orientadoras

35 International Penal and Penitentiary Foundation, Standard minimun m /es fo r the implementation o f non-custodiai sanctions and mesures involvíng rcstriction o f liberíy, Bonn, 1989.

36 ibidem, p. 19.

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de como devem ser cumpridas as sanções não-carcerárias, fazem falta muitas pessoas responsáveis e organizações não-governamentais. As pessoas responsáveis pelo cumprimento dessas sanções devem ser, portanto, capazes de organizar a ajuda do voluntariado. Os tra­balhadores voluntários devem ser selecionados, formados e ajudados, de maneira que possam desenvolver as competências profissionais necessárias. Em particular, os profissionais devem estar capacita­dos para vigiar e ajudar os benévolos que estão aptos a participar nos processos de vigilância.

Entre todas essas regras, merecem especial atenção a 16 e a 34.A Regra 16 diz:

O s vigilantes, que têm a seu cargo o s de linqüen tes, deverão ser responsáveis perante um a au toridade estatal constitu ída para este fim. O s voluntários exercerão um a tarefa de superv isão som en te a título de de legados de um funcionário , de um a a u to ­r idade estatal, ou constitu ída para este fim.

Com entário. Se bem convém fomentar o trabalho dos volun­tários e o com prom isso da com un idade no que se refere à e x e ­cução das sanções e m edidas não-carcerárias, po r outra parte os d ire itos dos delinqüen tes devem es tar pro teg idos, p e rm a n ecen ­do a au toridade estatal responsável pelo c u m p rim en to dev ido dessas sanções ou m edidas não-carcerárias. Isto é tam bém neces­sário para garantir que o delinqüente d isponha da proteção de um instrum ento de recursos.

De modo semelhante, o comentário à Regra 8 fala também a favor do trabalho e do compromisso dos voluntários e das organi­zações comunitárias, e, indiretamente, insistem no mesmo os co­mentários às Regras 29 e 33.

Segundo a Regra 34,

. . .fom entar a co laboração co m p ro m etid a dos voluntários. Estes deverão ser se lec ionados e, se necessário , gu iados pelo pessoal profissional, e capacitados para cum prir as tarefas que co rrespon ­dem às suas qualidades e possib ilidades. O briga-se - lhes tam bém o segredo profisssional.

C om entário , O s voluntários podem prestar uma contribuição im portan te na execução das penas e m edidas não-carcerárias .

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Suas m issões estarão re lacionadas com suas capac idades , que podem ser desenvolv idas , quando resulte necessário , m edian te a o rien tação do pessoal profissional.

Todos esses textos podem ajudar na, por nós desejada, parcial privatização da justiça penal. Um passo nesta direção significou o convênio de colaboração entre o governo vasco e o Conselho Geral do Poder Judiciário para a criação de um serviço de assistência e orientação social ao detento, firmado em 27 de novembro de 1987.37

Resumo e conclusõesV

A luz do indicado nas páginas anteriores, podemos formular, telegraficamente, as proposições-conclusões seguintes: l 3 - Em alguns países, a teoria, a prática e a legislação correm o perigo de ignorar e/ou menosprezar o trabalho do voluntariado. Também podem esquecer os direitos prévios e inalienáveis das pessoas individuais e das associações privadas, à luz do princípio da subsidiariedade. As competências do Estado começam onde terminam as dos cidadãos; não antes.2a - As autoridades devem tomar as medidas apropriadas para de­finir e melhorar as modalidades de realização dos diversos traba­lhos dos voluntários. Aos voluntários masculinos e femininos cabe um papel imprescindível, rentável e fecundo na administração da justiça penal e em sua desejada privatização. Essa missão do vo­luntariado exige - para seu eficaz desenvolvimento - uma modifi­cação estrutural do funcionamento da administração da justiça.33 - Atualmente, o perfil do voluntariado, em geral (e do penitenciá­rio, em particular), pede que seja uma pessoa especialmente, sensi­bilizada e formada, associada livremente, que trabalhe altruísticamente no serviço aos demais (especialmente os menos favorecidos) e colabore com seus colegas profissionais.4a - Diversos exemplos da legislação, da teoria e da práxis provam a grande importância, no passado e 110 presente, do voluntário (também o penitenciário), isto é, todo aquele que trabalhe em favor

37Joa(|uín Gimenez, “El juez y la cárcel”, em Varios, Eguzkilore, Cuaderno dei fm iiiitto la sco de Criminologia, número extra, San Sebastián, 1988, p. 74 ss.

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de uma maior justiça social, da prevenção da delinqüência e da as­sistência às vítimas. Olhando para um futuro próximo, convém in­tensificar, remodelar e melhorar este campo.5a — Compete, também, ao voluntariado (inclusive ao penitenciário)- devidamente formado como “técnico” - estar aberto à dimensão teológico-espiritual, sobre a base do direito fundamental da liber­dade religiosa.63 - Nossos voluntários penitenciários devem trabalhar em equipe para cooperar, elaborar e levar a cabo múltiplas tarefas, que podem consistir em assessorar, controlar, avaliar, etc., tudo aquilo que contri­bua para a prevenção da delinqüência, antes do internamento em instituições penitenciárias, durante o tempo em que permanece a pes­soa em privação de liberdade e depois de sua saída da instituição penitenciária.T - De acordo com as Regras Mínimas das Nações Unidas (1955), do Conselho da Europa (1973 e 1987) e da Fundação Internacional Penal e Penitenciária (1989), o voluntariado penitenciário deve en­contrar acolhida expressa na legislação, nos artigos referentes ao pessoal penitenciário — ainda que não-profissional —, assim como nos artigos correspondentes à assistência social.8~ - Para que o Estado cumpra sua missão social, deve fomentar a participação dos cidadãos, e não menos dos jovens, também nos trabalhos de reabilitação dos delinqüentes. Também na assistência aos familiares e amigos dos internos.

Ao Estado compete estruturar de tal maneira as instituições penitenciárias que elas permitam o trabalho do voluntariado e sir­vam para a repersonalização do condenado.9Ü - Interessa conhecer diversos exemplos concretos do voluntaria­do penitenciário, em sentido estrito (e em sentido amplo), no exte­rior, para superar as lacunas teóricas, legais e práticas acerca do voluntariado espanhol (não obstante, a Direção-Geral de Institui­ções Penitenciárias, com data de 2 de novembro de 1989, redigiu uma circular a respeito do trabalho do voluntariado nos cárceres espanhóis e forãneo; em muitos países onde falta a regulação for­mal, infelizmente, não se cumpre, a este respeito, nem o mínimo das Regras Mínimas do Conselho da Europa, das Nações Unidas e da Fundação Internacional Penal e Penitenciária.

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10° - Pani conseguir uma privatização aconselhável do direito pe­nal, da criminología e da vilimologia, podem e devem ajudar a acertada legislação e a práxis do voluntariado penitenciário, incluin- do-o junto aos funcionários profissionais (nestes, claro, está incluí- do o criminólogo, formado em nossas universidades).'

Antonio Beristain, “Ensenanza eriminológica desde y liacia las eapellanías pe- nitenciarias”, em XLt Curso Internacional de Criminología, La ensenanza uni- versitaria de la criminología en el mundo de hoy, llguzkilore. C uadenw deI Instituto lasco de Criminología, ntJ 3. extra, San Sebastián, 1990. p. 111.

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Capítulo 3

Epistemologia criminológica: da retaliação ao perdão

Resumo histórico-comparativo üo Talião na política criminai e no direito penal

Uma investigação diacrônica desde o momento zero1 através dos séculos e sincrônica ao longo do mapa geográfico dos países modernos acerca do Talião, ou seja, das respostas sociais e go­vernamentais às condutas criminais e às pessoas marginalizadas, mostra-nos, em enfrentamcnto dialético, dois critérios e duas práti­cas de controle social:- por uma parte, a sanção severa, punitiva, que hoje se centraliza na privação da liberdade como castigo, sem concessões ao trata­mento e, em casos extremos, logicamente à pena de morte;- e, por outra parte, as sanções alternativas ao cárcere, como a multa, a “provação”, os arrestos de fins-de-semana, a prestação de serviços à comunidade, a plea bargaining, a diversion , a não- intervenção e (segundo alguns teóricos extremos) a substituição do direito penal por medidas de segurança ou por instituições pa­ralelas ao direito civil ou ao direito administrativo.2

1 Ernst Bloch, N atw recht mui menschliche Wiirde, Frankfurt am Main, Et!. Suhrkamp, 1961, p. 276 ss. Jacques Leclercq, “Réflexions sur le droit de punir”. Estúdios Renal es. Homenaje o1P. Julián Pereda (preparado por A. Beristain), n"s 25-26, Universidad de Deusto, Bilhão, 1965, p. 473 ss.

2Jacqueline Bernal de Celis, “Aboiitionisme du système péual et politique crimi­nei le en faveur des viclimes”, em L. Hulsman/J. Be mal de Celis, Peines perdues.

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Essa descrição panorâmica ou telegráfica, a vôo de pássaro, omite muitos pontos e deforma outros, pois pretende descrever um problema sumamente complexo que exigiria mil detalhes e matiza- ções. Entretanto, para nos introduzir no tema que desejamos expor, resulta suficientemente orientativa. Esta visão de conjunto nos le­vanta (e se aclara com) três considerações fundamentais, que des­envolveremos a seguir:a. Diante da criminalidade e da marginalidade, temos de responder com critérios de integração cósmica. Temos de evilar as respostas unidimensionais vindicativas, tanto as totalmente permissivas ou simplesmente mecânicas, técnicas, amorais, sem sentido humano, como as utopias exclusivas de tratamento.b. A faceta criadora de todo ser humano deve gerar algo novo no sistema penal (especialmente na seníencing) de finais do século XX. Concretamente, deve criar (e/ou desenvolver) o direito ao - maior ou menor - perdão a toda pessoa, também ao delinqüente.c. Os até hoje desconhecidos horizontes que vai alcançando a consciência da pessoa pós-moderna exigem ler e formular o Talião como uma original epistemologia metarracional.d. Ainda mais, com uma epistemologia espiritual, mística, não- dogmática; com o único freio do razoável (não do radonal-lógico) e do real “de seu”, além do fenomenológico.'

Talião dialético de integração cósmica, não-iinklimensionai

Por respostas (ao delito e ao desvio) de integração cósmica entendemos, dito brevemente, algo assim como aqueles controles sociopenais que, quase sem julgar,4 vão além do juízo; pois procu­

Le système pénale en question, Paris, Le CerUurion, J982, p. 123 ss. Ver Lola Aniyar de Castro* Alternativas ai sistema penitenciário.

* Peter Noll, Diktate iiber Sterben ct Tod, com Totenrede von Ma.\ Frisch Pendo, Zurique, 1984, p. 132 ss. Xavier Zubiri, Inteligencia y razón , Madri, Alianza Editorial, 1983, p. 91 ss., p. 263 ss.Thomas Merton, Zen and birds o f apetite, tradução para o espanhol de Rolando, Hanglin, 3a ed., Barcelona, Kairós, 1979, p. 43. Ninguém nega que existem - e devem existir - as estruturas e as instituições jurídicas. Ninguém opina que deve-

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ram refletir, como um espelho,5 a realidade (além da aparência) do conflito-delito e facilitar a harmônica simbiose da ação-reação- criação, isto é, dar a cada um o que necessita mais do que merece, pela sanção-compensação dinâmica e solidária.

A história sociológica e a filosofia jurídica ensinam que sem sanções penais resulta impossível a convivência, ao menos nos tempos historicamente conhecidos e na atualidade. Talvez e oxalá, as próximas gerações possam prescindir da sanção penal. Nossa geração não pode evitar as penas como resposta a certos delitos. Há séculos, Platão, em seu Górgias, repete com diversas matizações: “o que tem sido injusto e ímpio deve ir ao cárcere da expiação e do castigo que chamam Tártaro” {Górgias, 532 b); “se alguém faz al­gum mal, deve ser castigado e satisfazer a culpa por meio do casti­go” {Górgias, 527 b).6

Em semelhante sentido se expressam, posteriormente, muitos penalistas e criminólogos em todos os tempos e lugares.7

Entretanto, esta necessidade de defender-nos aplicando sanções penais não significa, ou não deve significar, que os deliqüentes te­nham que ser encarcerados entre quatro paredes para castigá-los com intuito unicamente vingativo, sem gastar um minuto para sua integração na sociedade.

Atualmente, muitos países islâmicos, os Estados Unidos, etc., exageram no aspecto severo das leis e esquecem a dimensão eqiii- tativa e conciliadora da justiça.

Muitos governos e muitos tratadistas, decepcionados com o escasso resultado dissuasivo e repersonalizador obtido pela ideolo­gia penitenciária do tratamento, que tanto eco encontrou na década de 1960 e começo da de 1970, têm sido vítimas de uma reação excessiva em sentido contrário; reacionariamente, pedem que os policiais, os juizes e os funcionários das prisões adotem posturas técnicas exclusivamente punitivas, inclusive vingativas. Ao delin-

mos tratá-las como não existentes e necessárias...Realmente, no fundo, a estru­tura é vazia em si mesma.O espelho reflete a realidade, carece de pré-juízos...O espelho carece de uma mente que distinga, julgue, categorize e classifique.Platão. Diálogos, Górgias. trad. J. Ca longe, Madri, Gredos. 1983, p. 145 ss. Giuseppe Bettiol. Diriito penale. parle generale. 203 ed., Pádua, Cedam, 1966, p. 779 ss.

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qüente, dizem, deve-se dar o que lhe corresponde legalmente (just de ser t). A cada um, segundo seus méritos. Aos assassinos com agravantes dever-se-á aplicar uma injeção letal. Os cárceres devem ser de máxima segurança, e sempre com orçamento menor ao dos pobres e dos desempregados não-deIinqüentes.v

Por desgraça, não poucos cidadãos e especialistas em direito penal e em criminologia olham o Código penal, a lei penitenciária e a norma policial como instrumentos para acusar e encontrar - criar? - delinqüentes puníveis.

Ao contrário, segundo nossa opinião, os princípios básicos re­pressivos dos controles sociais admitem e devem admitir exceções e formas de benefício em todos os estratos. O oposto (exigir que se apliquem sem dar certa chance ao perdão, à generosidade, à indul­gência) seria suma injustiça, como declararam, há mais de vinte séculos, os romanos em seu adágio summum ius sitmma injuria.™

Antes, Platão, em seu Proíágoras (324 b), ensina-nos que:

Ninguém sanciona os criminosos prestando atenção ao que te­nham delinqüido ou pelo fato dc haver delinqüido, a não ser quem se vingue, irracionalmente, como uni animal. Mas aquele que tenta sancionar com razão não se vinga por causa do crime cometido - pois não se lograria que o fato não tenha acontecido - senão com vistas ao futuro, para que não obrem mau dc novo nem este mesmo nem outro, ao ver que este sofre sua sanção... pois sanciona para efeito de dissuasão.

A eqüidade e a epiquéia devem protagonizar a interpretação e a aplicação do direito penal."

£

No âmbito da psiquiatria forense, tende-se hoje a substituir o conceito de não- imputabilidade ou imputabilidade diminuída pelo conceito de mérito, desert, como afirmam F. Ferracuti e F. Bruno, Enciclopédia Médica Italiana, vol. XH, Florença, 1985, coluna 1691.Manuel Lopez-Rey y Arrojo, Compêndio de criminologia v política criminal, Madri, Tecnos, 1985, p. 190 ss., 215 ss.

1(1 Elias Neuman, “El sistema penal y sus víctimas” , Estudios de derecho penal en homenaje a í prof. Luis Jittténez de Asúa, Revista Facultad de Derecho, Univer- sidad Complutense, Monográfico 11, Madri, junho 1986, p. 483 ss.

11 Horst Schüler-Springorum, “Was làsst der Strafvollzug für Gefühle übrig?”, Festschriftfür Giinter Blau zuni 70 Geburststag am 18, dezembro 1985, Berlim, Nova York, Walter de Gruyter, 1985, p. 259 ss.

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Outros especialistas propugnam que os controles sociais se limitem aos dados puramente fenomenológicos e prescindam de toda a atenção à culpabilidade, apoiados em que ninguém pode provar cientificamente a liberdade de uma pessoa. Alguns teóricos (vítimas de sua boa vontade, de sua compaixão diante da violação dos direitos humanos nos cárceres e nos patíbulos) colocam pela borda, sem prévio discernimento, um valor adquirido pelos esfor­ços culturais de muitos séculos: a culpabilidade jurídica.12

Entretanto, todos deveríamos ver nos controles sociais a prote­ção dos cidadãos inocentes e criminosos, a Carta Magna da liber­dade, a arte da compreensão, da solidariedade, da mútua criação.

Direito dos delinqüentes ao perdão

A moderna psicologia mostra que, afortunadamente, supera­mos o antigo homo fa b er , trabalhador, e o homo sapiens, que constata a realidade exterior a ele. Chegamos ao homo pius , com­passivo e solidário,13 ao homo creator, que do seu interior vai fa­zendo e refazendo as coisas, inclusive as pessoas às quais gera e dá vida ao material corporal, ao instintivo animal e também ao espi­ritual. Toda pessoa é fundamental e essencialmente criadora, auto- criadora e heterocriadora.14

Claramente aparece essa força criadora 110 âmbito dos direitos elementares, pois ao longo dos séculos constatamos como vão crescendo e desenvolvendo-se. Hoje, com relação ao direito à li­berdade, estamos muito longe de pensar como pensavam os gregos contemporâneos de Aristóteles a respeito de seus escravos. Hoje desapareceu 0 ius vitae et necis do pciter-familias romano, e a pena

P~Munoz Conde, “Culpabilidad y prevención en derecho penal”, Cuadernos de

Poli fica Criminal, n'J 12, 1980, p. 41 ss. Angel Torio Lopez, “El concepto indi­vidual de culpahilidnd”, Crime and Criminal Policy, em homenagem a M. Ló- pez-Rey, Milão, Franco Angeli, 1985, p. 675 ss.

*' A. Beristain, “La dimensión religiosa en la filosofia de la política criminal (El derecho penal dei homo pius)”, Estúdios Vascos de Criminologia, Bilbao, Men- sajero. 1982, p. 330 ss.Xavier Zubiri, Infeligencia y logos, Madri, Alianza Ed., 1982, p. 209 ss.

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de morte encontra cada dia mais abolicionistas.15 Hoje, o direito trabalhista difere diametralmente do vigente nos lins do século XIX: nenhuma criança menor de dez anos trabalha nas minas de carvão.

Essa energia inovadora - Vèlcm vital de I-Ienri Bergson16 - te­mos de aplicá-la urgentemente no campo das respostas ao delito, e á subcontracultura. Concretamente, temos de criar o direito ao per­dão. Melhor dizendo, temos de recriá-lo, pois, em certo sentido, já existia antes. Pensemos no secular direito ao asilo, no direito de graça dos monarcas, no indulto em casos de pena de morte, como no julgamento de Jesus.17

O direito ao perdão - ativo ou passivo, total ou parcial - como direito básico de todas as pessoas e, portanto, também dos autores de faltas, de delitos e de crimes graves não está formulado expres­samente em nenhuma das declarações, nem nos pactos internacionais. Mas, segundo nossa opinião, deve reconhecer-se teórica e eficaz­mente, em nível universal, nacional e local.

Muitos estudos jurídico-sociológicos, muitos textos e usos legais, muitas práticas jurídicas e extrajurídicas oferecem apoio suficiente para que tal direito se coloque junto a outros inquestiona­velmente consagrados em nossas Constituições e em nosso convívio.

Se lermos os jornais, se escutarmos o rádio, eles nos dirão que existem conflitos e delitos. Mas, se olharmos a realidade com pu­pila iluminada, sem preconceitos, veremos a realidade, o alfa e o ômega de perdões e conciliações. A indulgência generosa precede e supera o ódio fratricida. Por isso, o poeta Jorge Guillén, depois de contemplar e descrever a guerra e a tortura, vislumbra algo mais real e harmônico que lhe faz exclamar concluindo:18 “O mundo está bem-feito” .

15 Marino Barbero Santos. Pena de nuterte (Ei ocaso de itn mito). Buenos Aires, Depalma, 1985. Idem “La peine de mort en Espngne. Histoire de son abolition”, Mélanges en 1'honneur dtt Doyen Pierre Bouzat, Paris, Pedone, 1890, p. 103 ss.Henri Bergson, Les deitx sources de la morale et de la religion, 1932 (trad. esp.: Las dos fuentes de la moral y de la religión, 1942).Jean imbert, La peine de mort, Paris, Press Universitaires de France, 1972, p. 20 ss.Jorge Guillen, Aire Nuestro. Cântico. Clamor. Ilomenaje, A ll’Insegna dei Pesce d ’Oro, 1968, p. 245, 524-527.

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Para os cristãos, o sentido evangélico do pecado realiza-se uni­camente na revelação do perdão: se esquecêssemos isto, estaríamos falseando radicalmente a concepção neoteslamentária do pecado e esqueceríamos o que confessamos no Credo: “Creio no perdão dos pecados” , que é algo muito diferente de crer 110 pecado. Em relação a este tema, há um episódio extraordinariamente eloqüente 11a vida de Jesus, o da mulher adúltera (João 8, 3-11).1<J

Epistemologia criminológica mctarracional

O mundo ocidental, por mil motivos, não somente pela rapidez das comunicações, encontra-se cada dia mais próximo do mundo oriental, e este faz com que nos demos conta de como nossas po­tências interiores possuem uma consciência quadridimensional, um “sexto sentido” (chamemos assim), que em muitos de nós jaz cala­do, oculto, esquecido 110 fundo do nosso porão subconsciente. No interior da “pessoa-cosmos” , aninham mundos mais grandiosos, luminosos, quentes e dinâmicos que todas as galáxias.

Como explicam historiadores, antropólogos e outros especia­listas, passamos da cultura mágica à cultura mítica e depois ao

2uhomem racional, ...onde permanecemos estancados, ancorados, por muitos séculos.

Urge abrir os olhos para dentro, para a realidade harmônica além do fenomenológico, para descobrir todo 0 horizonte redondo que temos diante de nosso nariz...mas não vemos. Esta cegueira faz com que venham as drogas como um deus ex machina, permitindo que a consciência cartesiana autoperceptiva expanda sua percepção de si mesma com aparência de sair de si mesma. Em outras pala­vras, as drogas proporcionam ao eu autoperceptivo um substituto da autotranscendência metafísica e mística.21

19Bernard D. Marliangeas, Culpabdidad, pecado, perdòn, Santander. Ed. Sal Terrae, 1985, p. 101.

■>!)Hugo-M. Enomiya-Lassa!!e, A dònde va ei hombre'!, (rad. do alemão A. M. Schliiler, Santander, Sal Terrae, 1982.

21 Jose Luis L. Aranguren, “El problema de la drogodependencia en el momento actual, desde una perspectiva ética”, La droga en la sociedad actual y iiuevos

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O ministro da Justiça alemão e penalista, Radbruch, fala em não fazer um direito penal melhor, mas sim de fazer algo melhor do que o direito penal.22

Depois de tantos decênios desde 1845, quando Marx escreveu sua tese XI sobre Feuerbach, esta há de ser entendida por meio de outra leitura: “Os filósofos não têm feito mais que interpretar, de diversos modos, o mundo, porém o que se trata é de transformá- lo”. Sim, mas esta transformação não se consegue, principalmente, com as mãos, nem com a razão, nem com a ciência lógica, nem com a prática revolucionária.

Recordemos Aurobindo quando afirma que a pessoa consegue mais, faz mais, quando sobe ao topo de um monte, senta-se em si­lêncio e cruza os braços.

No campus universitário, há e haverá sempre espaços para falar, salas para explicar lições. Mas, já que um fundamento da ciência é o espelho, necessitamos de mais espaços para estar simples­mente em silêncio, para converter nosso tempestuoso mar interno em um lago tranqüilo que reflita a realidade “de cima”

Nos cárceres, oxalá haja escolas para ensinar a ler e escrever, mas convém que haja mais locais para aprender e exercitar em paz as técnicas de relaxamento, de ioga, de meditação transcendental e as práticas correspondentes para poder auscultar, conhecer e con­templar sem tanto alvoroço passional.

Salomon Asch, em seu artigo “Opinions and social pressure” , publicado no Scieníific American, comenta a incapacidade de muitos jovens de perceber e “registrar” (arquivar) detalhes diferen­ciais nos comportamentos humanos, tanto que jovens de uma inte­ligência, por dizer assim normal, podem chegar a qualificar como branco o negro, e o inverso. Isto se deve à socialização que nos educa mal a ver somente o que queremos perceber.

Segundo Jean Pi age t,23 não é fácil traçar a linha divisória entre a capacidade de percepção herdada e a aprendida ao longo da con­

hohzoníes en crim inologia , San Sebastián, Caja Ahorros Provincial de Gui- púzcoa, 1985, p. 17 ss.

22Gustav Radbruch, Rechtsphilosophie, 4a ed., Stuttgart, 1960, p. 269 ss. Ideni, Einfiihrung in die Rechtswissenschoft, 9a ed., Stuttgart, 1950, p. 143 ss.

' Jean Piaget, Eíudes d'épistémologie génétique.

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vivência com os adultos. Mas o mestre francês afirma que a socia­lização nos ensina a ver, discernir e constatar “o que consideramos conveniente”.

Em sentido parecido, uma investigação apresentada na Uni­versidade de Londres, pelo professor John Wilson, comenta que depois de projetar um filme a trinta aldeães de uma tribo primitiva de tradição oral na África (o filme versava sobre diversos métodos sanitários), nenhum dos trinta espectadores foi capaz de “ver” o conteúdo do filme, que haviam contemplado com seus olhos bem abertos.

Unicamente puderam responder às suas perguntas, dizendo que lhes havia agradado a galinha...que em um momento secundá­rio aparece na cena.

A trilogia de Xavier Zubiri sobre a inteligência viva, o íogos e a razão,24 avança nessa direção e chega mais adiante; já o intuiu no ano 1931, quando em sua conferência sobre “Hegel e o problema metafísico” , depois de recordar com Ortega que o saber até nosso século tem vivido de duas metáforas - o saber como pegada sobre a superfície de uma lâmina de cera, e o saber como conteúdo da mente humana profetiza que hoje o saber pode expressar-se com outra terceira metáfora: “não se trata de considerar a existência humana como um pedaço do universo, nein como uma envoltura virtual dele, senão (de pensar) que a existência humana não tem mais missão intelectual que a de iluminar o ser do universo. Não consistiria o homem em ser um pedaço do universo, nem em ser sua envoltura, mas simplesmente em ser a verdadeira luz cias coisas. Portanto, o que elas são, não o são mais que a luz dessa existência humana. Segundo esta terceira metáfora, o que se constitui em uma luz não são as coisas, senão seu ser; não o que é, senão o que seja; mas, reciprocamente, essa luz ilumina, funda, o ser das coisas e não do eu, não as faz pedaços meus. O grave do caso está - acres­centa ~ em que toda luz necessita de um foco luminoso, e o ser da luz não consiste, em definitivo, senão na presença do foco lumino- so na coisa iluminada” .

24Xavier Zubiri, Jnteligenciay razón , Madri, Alianza Editorial, 1983, p. 350 ss.

^ Lain Entralgo, “Zubiri hacia el futuro”, Zubiri ( 1898-1983). Ed. I. Teilechea Idfgoras, Depto. de Cultura do Governo Vasco, Vitoria, 1984, p. 161 ss.

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Dessacralização c ressacralização do Talião

Os juizes primitivos foram sacerdotes vingadores da ira ceies* te. Depois “ revelaram” a lei divina do Talião. Hoje, afortunada­mente, dessacraiizaram-se; mas a justiça secular, sem abandonar o critério do razoável, deve recuperar alguma dimensão transcen­dente, melhor diríamos, mística.

Tanto a mística ocidental como a oriental devem oferecer suas claridades escuras (porque profundas e substanciais) à exegese científica e à práxis penal-criminológica não menos que à física nova.2r>

Entre suas múltiplas possíveis contribuições, destaco agora duas: a conveniência de (superando o enfrentamento maniqueísta dos mitos primitivos) descobrir a realidade harmônica do dia e da noite, do inocente com o criminoso, como duas faces de uma mes­ma moeda; e a utilidade de atualizar as instituições de Heráclito sobre a justiça que brota da injustiça, como a luz brota das trevas, como a vida da morte.

Se Zubiri, em 1934, escreveu que “no fundo da evolução da fí­sica atual se assiste à elaboração de uma nova idéia da realidade física da natureza”, de modo semelhante, em 1988, podemos escre­ver que no fundo da evolução do direito penal de hoje se assiste à elaboração de uma nova epistemologia da realidade “criminalidade” e da realidade “controle social”.27 Esta idéia não cabe em expressões meramente racionais, nem pode transmitir-se somente em for­mulações literais, porque, antes de ser idéia, é também experiên- cia-realidade pessoal.

26 A ciência jurídico-penal dispõe de uma capacidade muito limitada de autotrans- formação, como indica Baralta, “Criminologia y dogmática penal. Pasado y futuro dei modelo integral de la ciência penal”, La reforma dei derecho penal, Barcelona, Ed. de S. Mir, 1981, p. 59. O mesmo autor. na continuação, mostra que a teologia tem maior capacidade de renovação, quanto à sua estrutura con­ceituai e axiológica. Igualmente, em Papers, Revista de Sociologia, Univ. Au­tônoma de Barcelona. 1980. p. 13 ss.

"7 Ferrando Mantovani. “II problema delia difinizione di criminalità", Studi in memória di G. D elitala , cit. vol II, p. 725 ss. Ericli Buchholz, “The term of criminality today”, Crime and criminal policw homenagem a López-Rey, F. Angeli, 1985, p. 133 ss. Em todos os países diz-se que se busca maior humani- zação, também nos países ditatoriais. Cf. pp. 137,139, 141.

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O “ foco” dessa experiência não deve localizar-se 110 ser indi­vidual como ego sapiens, mas como vazio,28 na autotranscendên- cia. As vezes, não se trata de compreender, senão de iniciar a ver e a escutar 0 crípüco, o cabalístico.

Assim como os místicos Juan de la Cruz, Teresa de Ávila e Inácio de Loyola sentiam e viam eles e os demais como pecadores, mas amados de Deus, de modo semelhante os juizes e penalistas de hoje e de amanhã devem sentir a experiência de nossa própria e alheia culpabilidade jurídica e de nossa própria e alheia sanção ge- nerosa-perdoadora, difícil de formular, mas experimentável.

A nova espistemologia tem de prestar atenção ao direito penal solidário, fra terna l generoso e criador, que saiba converter o es­terco do delito em flores do companheirismo, o direito talional no direito premial.29

Devemo-nos aprofundar na capacidade da pessoa para escutar 0 silêncio interior, para desenvolver cuidadosamente as potenciali­dades do hemisfério cerebral direito.

O centro do epistemólogo futuro tem de estar mais 11a cabeça que no coração ou, melhor ainda, 110 ponto central do ventre, o que os japoneses denominam Hara. Mais que grandes pensadores e mais que pessoas de grande coração, necessitamos de pessoas intros- pectivas, pessoas que vivam de seu interior, onde tudo desemboca e de onde tudo brota, como 0 mar. No oceano desembocam as pes- tíferas cloacas, mas, paradoxalmente, nesse oceano se encontram as nuvens da água purificadora.

Essa epistemologia inovadora surge de raízes multisseculares, pois já a conhecia o mundo grego com seus mitos, com sua Sofro- sine (deusa grega), sua medida não-exagerada para reagir perante a dor, a morte e o delito; com sua força purgativa do delito nas tra- gédias.' Estava latente e patente na “ iluminação” aristotéhca, na “ luminosidade” heideggeriana, 11a “luz derramada sobre as coisas” orteguiana, 11a “ inteligência viva” zubiriana.

Ademais, como vazio, também como ou por meio da intuição vital (H. Ber- gson), fenomenológica (Husserl), emotiva (M. Scheler), ética (H. J. McCIoskey, Afeía-eíhfcs and normafive eíhics, 1969).

29Mario Pisam, “ Lu is Jiménez de Asúa e il diritto premi ale” , Estudios de derecho penai. En homenaje a Luís Jiménez de Asúa. Re v. Facidtad de Derecho, Univ. Complutense, Monogrâfico I I , Madri, 1986. p. 541 ss.

30 E. Wo!f, Griechisches Rechtsdenken, Frankfurt am Main, 195U. 1952,1954,1956.

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Na Universidade de Salamanca, seu reitor, Unamuno, compre­endeu e falou, com freqüência, da morte cotidiana como manancial do realmente pessoal, satisfatório e vital comunitário. São experi- ências-limite (peak experience, na terminologia de alguns psicólo­gos contemporâneos) que despertam as pessoas de seus sonhos teatrais para distinguir seu ser real de seu “papel’7 no cenário.31

Desde o ano de 1973, os recentes simpósios internacionais de vitimoiogia, iniciados em Jerusalém, assim como destacados mem­bros da Sociedade Internacional de Vitimoiogia, vão abrindo portas que mostram como até a vitimoiogia pode e deve ser fecunda em resultados de convivência, de melhor qualidade de v id a /2

Os documentos internacionais das Nações Unidas, do Conse­lho da Europa, da Sociedade Internacional de Criminología, da As­sociação Internacional de Direito Penal e da Nova Defesa Social33 entrevêem algo desta epistemologia da realidade profunda, cósmi- co-mística, quando enfatizam tanto a dignidade da pessoa. Por exemplo, o preâmbulo do pacto relativo aos direitos civis e políti­cos, quando estabelece que “o reconhecimento da dignidade ine­rente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo”.

Como ponto de partida para a hermenêutica de dimensão espiritual mística, muitos abandonamos o dogmatismo e o so- brenaturalismo, pois preferimos a clara e sólida sobriedade das vias da justiça e da dignidade humana. Claro está que, partindo da ordem natural, a justiça, para salvar o hiato que introduz sua pró­pria finidade, terá de abrir-se à claridade e desembocar no trans­cendente.34

31 Lain Entralgo, “Zubiri hacia el futuro”, Zubiri (1898-1983). Depto. de Cultura do Governo Vasco, Vitoria, 1984, p. 143 ss. M. de Unamuno, Diário intimo, Ma­dri, Alianza, 1979.

32 A. Beristain, “Proyecto de declaración sobre justicia y asistencia a las vícti- mns”, Estúdios de derecho penal. Homenaje a Jiménez de Astia, Uev. Fac. De­recho, Univ. Complutense, Monográfico 11, Madri, 1986, p. 117 ss.

33" Conseil Superior de la Poli tique Penitenciaire, “Rapport sur les travaux, avis et grands options de politique pénilentiaire, 1978-1982”, Revue de droit pénal et de criniinologie, nL’ 7 (julho 1986), p. 693 ss.

34 J. L. L. Aranguren, Etica, 3a ed., Madri, Alianza Universidad, 1983, p. 225.

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Não desfrutará da liberdade quem não experimentar as exigên­cias básicas da estrutura antropológica, quem não compreender que é melhor dar que receber e quem não compreender que o bem é dilusivo de sua própria natureza.

Não haverá justiça enquanto os homens, os juizes, se atreverem a formular condenações sobre a moralidade do interior-teológico de outras pessoas. Não haverá paz verdadeira até que à agressão, à vitimizaçao se responda com o mimetismo da misericórdia divina, como escreveu o insigne penalista Dorado Montero.?s

Não haverá paz verdadeira até que se compreenda e se “sinta” a dignidade infinita de toda pessoa, também a do vitimário, como proclama a sentença, de 11 de abril de 1985, do nosso Tribunal Constitucional, por seu “valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que leva a pretensão ao respeito por parte dos demais”.

Dorado Montero, Bases para un mievo derecho penal, Barcelona, M. Soler Editores. 1902, pp. 15, 19 ss., 43. 171, 190. No senlido parecido, escreve Eno- miya-Lassalle, A dônde va el hom brel, p. 32: “O homem que chegou à auto- realizaçíio, ao encontro com seu verdadeiro “eu” e à experiência de Deus não se escandaliza facilmente com as limitações (infrações) humanas que existem sem [ire em qualquer parte onde convivam seres humanos”. Sem misericórdia, não existe justiça. Melhor dito, sem misericórdia religiosa. B recordo-me da profunda formulação de Radbruch quando, em 1974, escreveu: “Débil é todo direito carente de dimensão religiosa” (Ein Recht, das der religiõse Weihe entbehrt, ist schwacht). “Die Erneurung d es Recht”, Die IVand/ung, 2 Jarhg. p. 39.

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Parte II

Vitimoiogia

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Capítulo 4

Nova filosofia política de e para a nova política criminal

(o Estado não tem o monopólio da violência)

Principis est facere suos súbditos felices. É próprio dos políticos fazer felizes seus súditos.

Francisco de Vitoria, R eledio de Imiis, Salamanca, 1538.

E chi ha responsabilità politiche non sarà schiavo dei consenso sociale, bensl un ministro, cioè un saggio servitore. preoecupalo dei bene di tutti.

E quem tem a responsabilidade política não será escravo do consenso social, senão um ministro, como um sábio servidor, preocupado com o

bem de todos.

Cario Maria Marlini. St o alia porta. Milão. 1992. p. 53.

Metas

Ao abordar as “novas perspectivas da filosofia e da sociologia políticas”, convém formular uma breve introdução, desenhar com grandes traços os caminhos que projetamos andar e algo sobre as metas que desejamos alcançar.

Podemos dizer que a filosofia e a sociologia têm, mais ou menos, fracassado. Assistimos aos “funerais” da modernidade e temos de ajudar a criar uma nova ciência, e consciência de filosofia política. A comoção produzida pela queda do muro de Berlim, em novem­

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bro de 1989, não somente provocou conseqüências econômicas e sociais, como também científicas. É necessário um novo modo de confrontar as linhas do pensamento que unem o que até agora ha­via estado separado: o empirismo e a especulação, a ortopráxis e a ortodoxia.

Já não tem vigência a máxima marxista: “Temos passado muito tempo conhecendo o mundo, vamos transformá-lo” ; mas sim, ao contrário, “ Levamos já vários anos transformando o mundo, vamos conhece-lo” . Entre os nossos diversos objetivos, desejamos, pois, que se fale e se reflita sobre pós-capitalismo, pós-comunismo, pós-sabinismo, pós-zubirismo e, inclusive, sobre algum pós-catolicismo.

Ao final do século XX, depois dos acontecimentos políticos que convulsionaram e estão convulsionando o Leste da Europa e que, por extensão, têm afetado a política mundial, vivemos um “tempo” novo e uma consciência nova. Como cientistas, devemos rebater o materialismo marxista, pois durante anos se pensou que a realidade era a que configurava as idéias; entretanto, os aconteci­mentos têm demonstrado que quem mais dinamiza e dirige o mun­do são os sentimentos lúcidos e, segundo alguns, concretamente, os sentimentos profundos metarracionais, os religiosos (sem que isto implique confessionalidade de nenhum Estado, mas, ao contrário, evita o fanatismo que tanto nos ameaça em nossos dias).

Concretamente, em algum sentido, pode-se dizer que aqui per­siste certa política do “nacional-catolicismo” vasco, e que ainda, em alguns aspectos, não superamos a pré-modernidade. Enquanto muitos lares já celebraram os funerais da modernidade, aos nossos não chegou ainda a Revolução Francesa. A universidade do País Vasco e as universidades espanholas carecem de uma cátedra de teologia, enquanto todas ou quase todas as universidades alemãs conservam e desenvolvem cátedras de diversas teologias. A Espa­nha mantém dimensões religiosas católicas que atuam com menta­lidade pré-conciliar e não-ecumênica, como já não admite nenhum país de nosso âmbito cultural.

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Pilares fundamentais comuns

Depois desta breve introdução, começo a refletir sobre minha tarefa concreta: estudar a nova filosofia e sociologia política desde e para a nova política criminal. Muitos estranharam este enunciado, dado o pouco conhecimento-reconhecimento (e grande desconhe­cimento) da política criminal e da criminologia na Espanha, muito menor que na América e 110 resto da Europa.

Desde que - há séculos - apareceu o homem (“animal político”), este convive cm sociedade e, para isso, elabora uma filosofia polí­tica mais ou menos madura. Também desde a primeira geração (mito de Adão e Eva) emerge uma política criminal mais ou menos desenvolvida, para responsabilizar 0 fratricida Caim. Da evolução dessa política criminal e suas relações com aquela contemporânea filosofia política, convém refletir sobre estas páginas para deduzir algumas conseqüências concretas, iluminadoras de ambas as disci­plinas, como escreve D. Glaser (“Science and politics as crimino- logists’ vocations”, Criminal Justice, Research Bulletin, vol. 5, 11a 6, 1990).

Freqüentemente, a política criminal influi na filosofia política com incidência importante, por vários motivos. Entre outros, por­que os governos de alguns países - não só os EUA - constatam que 0 problema mais grave, ou um dos mais graves, que devem resol­ver seus governantes - e seus cidadãos - é a criminalidade e sua cada dia mais sangrenta vitimação. Recordemos os inumeráveis jovens vítimas do narcotráfico, a hecatombe da criminalidade or­ganizada, etc. Recordemos o montante do orçamento anual das instituições policiais, judiciais, penais e penitenciárias. Um dado concreto: 11a maioria dos países de nosso âmbito cultural, para cada cem mil habitantes existem quarenta a oitenta pessoas privadas de liberdade, mas em outros (como os Estados Unidos e, até a um par de anos, a URSS) existem mais de quatrocentas pessoas dentro dos muros carcerários.

Resta dizer que essas realidades incidem, radicalmente, nas decisões e teorias dos políticos, e estas últimas retroalimentam as dos criminólogos, pois 0 crime brota como um “fato social” a mais, e o delinqüente emerge como produto de sua liberdade individual em interação com suas circunstâncias comunitárias.

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Enquanto tentamos conhecer os pilares fundamentais de nossa filosofia política européia atual, detectamos que provêm de múlti­plas fontes, mas todas elas comuns à nossa moderna política crimi­nal (cf. Ch. Lazerges, La poliíique criminelle, Paris, PUF, 1987):

- o monoteísmo judeu com suas duas Tábuas da Lei;- a filosofia helênica de Aristóteles e de Platão;- a concepção jurídica da antiga Roma;- a cosmovisão medieval cristã (atualmente em mudança radical);- a Revolução Francesa com í\ Aujklarung;- a superação do modernismo, ou melhor, a superação do raciona-

lismo e o começo de um novo paradigma da ciência e da consciên­cia, da ética e da filosofia política.

Especial consideração merece a cosmovisão medieval cristã do poder, observada com a ótica de hoje. Como prova com sólidos argumentos Oswaid von Ncll-Breuning (Unsere Verantwortung. Fiireine solidarische Gesellschaft, Freiburg, Herder, 1987, p. 107 ss.), para o cristão, contra o que alguns asseveram, o poder nunca deve considerar-se como algo questionável, senão como algo eternamente bom, se o homem ou a mulher souberem usá-lo com sabedoria e amor.

Ainda que alguns afirmem (não o afirma Max Weber, segundo depois veremos) que o poder estatal tem o monopólio da violência; ainda que muitos repitam tjue o poder corrompe ao que o exerce e que o poder absoluto corrompe absolutamente, tal como constata a experiência de modo bastante preocupante, deve-se proclamar que a cosmovisão cristã sobre a onipotência de Deus criador como cau­sa primeira também vale, conseqüentemente, para o poder do que faz de suas criaturas causas segundas: falamos de algo completa­mente inequívoco.

Entretanto, a nossa experiência mostra muito questionavel- mentc esse axioma cristão. Ocorre com o poder o mesmo que com a técnica; também se lhe reprova a influência perigosa que exerce sobre a convivência, quando na realidade são estas ou aquelas pes­soas que podem usar dela para fins reprováveis, sem se verem re­almente obrigadas a isso. No entanto, pode suceder que, às vezes, a pessoa que detém o poder se encontra - em certo sentido - obriga­

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da a tomar decisões que superem sua capacidade de conhecer e para as quais lhe falta a qualificação requerida, ou os correspon­dentes conhecimentos teóricos, ou a experiência prática, ou o tem­po requerido, ou a firmeza necessária diante de nossas debilidades da pressão externa, etc. Por mil motivos, pois, quem exerce o poder muitas vezes se deixa levar pela ética da responsabilidade e “es­quece” a ética da convicção. Em algumas dessas suposições, tor­nou-se sumamente difícil precisar o grau de reprovação ética pela conduta dessa pessoa; não tão difícil é precisar a determinação da reprovação jurídica.

A partir do ponto de vista da teologia cristã, comprende-se que, em não poucos casos, as decisões a tomar e o peso da conse­qüente responsabilidade superam, em muito, o que uma pessoa “média” é capaz de suportar, e não nos faz eticamente responsáveis de todas as conseqüências objetivas de nossas decisões, senão de nosso honesto esforço subjetivo, por preparar e formular resolu­ções com a dose de cuidado que corresponda ao positivo que pro­duzem e ao negativo que inevitavelmente causam. Sabemos que quem ocupa um posto de direção, às vezes, se lhe exigem decisões, diante das quais reconhece sua total ou parcial incompetência, sua falta de conhecimento..., mas está (ou “se sente”) obrigado a assu­mir uma postura e a “arcar” com as conseqüências. Em casos ex­tremos, alguns juizes e, com maior freqüência, alguns políticos têm de formular respostas importantes sem possibilidade de conseguir a certeza a respeito da correção delas; além do mais, os políticos (mas não os juizes) têm de aparecer diante do público como se es­tivessem firmemente convencidos, sem fissuras nem dúvidas. (Aqui não nos podemos deter em analisar a sobrevivência da grave responsabilidade jurídica e social e ademais, às vezes, da leve - ou nula - responsabilidade moral, interna.)

Evolução histórica paralela?

Também nos interessa observar de que maneira e até em que grau ambas as disciplinas têm evoluído, paralelamente, através dos séculos até hoje. Podemo-nos referir, arbitrariamente, às cinco eta­pas seguintes que, às vezes, se superpõem e/ou se deslocam:

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Da política criminal privada ao caos e à filosofia política absolutista

Nos povos primitivos, à infração respondem - direta e exclu­sivamente - os sujeitos passivos do delito e/ou seus familiares. Este sistema leva a múltiplos abusos de vinganças exageradas. Para limitar esses excessos, vai intervindo, cada dia, mais e mais, o po­der político para desbancar as vítimas e monopolizar a resposta, mediante a coerção soberana. Com freqüência, quem exerce o po­der considera-se delegado da divindade vingativa; além disso, essa autoridade pública opina que, para superar o caos e a extralimita- Ção das respostas privadas à criminalidade, ela pode e deve julgar, sentenciar e castigar sem limite algum, inclusive buscando causar a maior dor possível.

Apesar de sua aparente contradição, comprovam essas considera­ções a história de Castela entre 1500 e 1700, com sua maremagnum de pleitos inacabados, encaixotados nos armários dos Tribunais (R. L. Kagan, “A golden age of litigation: Castile, 1500-1700” , em 1. Bossy, Disputes and sett/ements. Law and human relations in the West, Cambridge, Cambridge University Press, 1983) e a história do País Vasco do século XI ao XVI, com sua repetida súplica à autoridade superior para que controlasse os desmandos, os confli­tos e a delinqüência “onipotentes” (cf. A. Beristain, Maria A. Lar- rea, R. Maria Mieza, Fuentes de derecho penal vasco (siglos XI- XVI), Gran Enciclopédia Vasca, Bilbao, 1980, p. 169 ss).

Com sólido argumento, em sua obra El derecho peitai de la monarquia absoluta. Siglos XVI-XVII-XVI1I (Madri, Tecnos, 1969, p. 409), Francisco Tomás e Valiente concluem:

A im p ressão do m in an te que sc d esp ren d e des te livro, ou ao m enos a que em m im fica ao te rm inar de escrevê-lo , é triste e penosa. Demasiados sofrimentos, desgraças e castigos; dem asiadas o fe n s a s e v in g a n ças . D e m a s ia d a v io lên c ia , e n f im .. .E q u em desa ta essa violência?

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Da política criminal sacra à filosofia política üo poder que emana de Deus aos cidadãos

Inteligentes conhecedores e herdeiros da doutrina dos cano- 11 i st as de nosso Século de Ouro (Vitoria, Suárez, J. de Acosta, Bartolomé de las Casas, etc.) divulgam seus argumentos de que às pessoas leigas não compete sancionar os delinqüentes. Recordam, por exemplo, Lugo, em sua Disputai ionwn de justitia et jure, tomo I (Venetiis, 1718), disput. X, sec. 2, n“ 56 ss., quando utiliza inteli­gentes razões para manter o que a autoridade pode sancionar; mas não, ao contrário, os leigos. Somente ao monarca corresponde tal poder. Este o recebe não diretamente, mas de Deus, por intemédio dos cidadãos, com as ricas matizes que aparecem em F. Suárez, e nas diversas doutrinas do pacto social, de Rousseau e de seus se­guidores, etc.

Praticamente, a política criminal durante este longo período estrutura a resposta ao delito como uma virtude/obrigação do poder absoluto que aplica as penas com crueldade arbitrária, sem partici­pação alguma da vítima, O reflexo desta política criminal abarcará depois (também por reação) uma filosofia política liberal burguesa preocupada, especialmente, em proteger o delinqüente. O Código pena! e a Lei de Procedimento Criminal (CPP) são elaborados e interpretados como a Carta Magna de liberdade do criminoso; por isso, in dubio pro reo (em caso de dúvida, em favor do réu), o juiz haverá de sentenciar em favor do réu, ao qual jamais se pode tortu­rar (José Luis de la Cuesta, El delito de tortura. Concepto. Bien

jurídico y estructura típica dei art. 204 bis dei Código Penal, Bar­celona, Bosch, 1990).

Do poder que rotula e marginaliza ao abolicionismo da pena de morte, ao abolicionismo do cárcere e ao utópico abolicionismo do direito penal

No início do século XX, os estudos empírico-sociológicos (e em parte também os psicológicos) mostram que o Estado e suas instituições não se limitam a responder (com freqüência, indigna­mente) ao delito e ao delinqüente, mas também (prévia e posterior­

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mente) estruturam o delito e rotulam o delinqüente mediante a ela­boração de leis que outorgam tratamentos preferenciais para os detentores do (e os próximos ao) poder. Também, mediante a apli­cação das leis nos campos judicial e penitenciário que beneficia escandalosamente os membros das classes privilegiadas. Essa triste e inegável constatação, ainda que às vezes exagerada, advoga por uma crítica contra o poder de coerção e punição. Logicamente, pede-se que nas tarefas políticas haja uma maior participação dos especialistas e de todos os cidadãos como indivíduos e como insti­tuições, associações, etc. Postula-se uma mais real democratização do poder, que permitirá e/ou exigirá a intervenção mais direta pos­sível do povo na tarefa legislativa e nos organismos judiciais, como, por exemplo, o jurado (cf. artigo 125 da Constituição Espa­nhola de 1978).

Conseqüentemente, o delito fica estruturado como um com­plexo que resulta de todos os ingredientes sociais, adquire impor­tância sua “normal” dimensão social, e a intervenção comunitária limita e controla o abuso do poder, já não teocrático, mas plutocrá- lico. Logicamente, deseja-se, e em muitos países se consegue, a abolição da sanção capital. Também, ainda que com menos força, se propugna o desaparecimento do cárcere, substituído por sanções alternativas. Também alguns excelentes criminólogos chegam a pedir, com forte dose dc utopia irrealizável, o desaparecimento do direito penal (cf. L. Hulsmann, A. Baratta, E. R. Zaffaroni).

Nessa direção, encontram atentos e bifrontes comentários os sólidos argumentos de Elías Neuman, quando planeja a legalização das drogas (cf. Neuman, La legalización de las drogas, Buenos Aires, Ed. Depalma, 1991), e as reflexões de Rubert de Ventos e outros quando explicam que em alguns setores de política criminal o impotente é o poder, tal como hoje se exerce (por exemplo, quando as autoridades policiais e/ou penitenciárias não conseguem evitar os maus tratos, ou a tortura, que praticam seus subordina­dos). Por isso, a filosofia política procura limitar mais ainda o po­der, enquanto a política criminal leva em consideração as vítimas (A. García-Pablos, Manual de criminologia. Iníroducción v teorias de la criminalidad, Madri, Espasa-Universidad, 1988, p. 76 ss.; G. Landrove, Vicdmologia, Valência, Tirant lo Blanch, 1990).

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Da filosofia política assistencial à política criminal vitiniológica

Desde o Primeiro Simpósio Internacional de Vitimologia, ce­lebrado em Jerusalém no ano de 1973, a grande novidade dos últi­mos tempos é a atenção assistencial preventiva e reparadora que a atual política criminal presta às vítimas. Estas, ainda que às vezes tenham colaborado na mesma gênese do delito, devem sempre in­tervir 110 iter, o caminho, dos operadores da justiça restauradora, para destacar menos punição, e mais prevenção, o indenizatório, o compensatório e, sobretudo, o reconciliador, e para facilitar ao de­linqüente o caminho rumo à reconciliação com a vítima, consigo mesmo e com a sociedade. Seguindo esse programa, a filosofia po­lítica defenderá e assistirá a vítima mais que o delinqüente: em lu­gar do tradicional axioma in clubio pro reo, se dirá /'// efubio pro victima: em caso de dúvida, em favor da vítima.

Essa cosmovisão reclama amplas modificações nos orçamentos estatais para poder arcar com os gastos da mais completa atenção médica, psicológica, sociológica, policial, etc. às vítimas da crimi­nalidade e das estruturas sociais injustas. Ainda não foi alcançada a mentalização desejável da comunidade (Elias Neuman, Victimologia. El rol de la victima en los delitos convencionales y no convencio- nafes, Buenos Aires, Ed. Universidad, 1984; A. Beristain, J. L. de la Cuesta (comps.), Victimologia, San Sebastián, UPV/EHU, 1990).

Da política criminal estatal à filosofia política supra e internacional

Os protagonistas da política criminal contemporânea, com sua orientação supra-estatal (cf. M. C. Bassiouni, trad. e notas de J. L. de la Cuesta, Derecho penal internacional. Proyecto de Código penal internacional, Madri, Tecnos, 1984), influem fortemente na filosofia política, como registram os documentos do Conselho da Europa e das Nações Unidas; também os trabalhos dos especialis­tas teóricos e dos operadores da criminal justice. Os juizes e os magistrados, os diretores do voluntariado, os protetores da ecolo­gia, etc. pretendem a criação de um espaço europeu de política criminal. Os cultivadores da filosofia política que assistem aos

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congressos das Nações Unidas aceitam e aplaudem suas declara­ções e pactos internacionais, que propugnam visões e resultados que alcançam toda a aldeia planetária, em dinâmica e ininterrupta conexão sincrônica.

Essa filosofia política supera as nacionalidades e tenta conse­guir a defesa e o desenvolvimento dos valores fundamentais da di­gnidade pessoal. Constata que cada dia suscita menos entusiasmo o sentimento pátrio, e encontra menos eco o grito do “Tudo pela pá­tria” ; mas, ao contrário, o fanatismo étnico semeia cadáveres nas cidades do Leste da Europa e alimenta o terrorismo em muitos paí­ses, como na Espanha.

Conseqüentemente, muitos especialistas da atual filosofia política fomentam tendências - e pactos internacionais - que exigem maior conteúdo social, ético, religioso, econômico, político e cultural; pretendem e conseguem superar propostas burguesas, ditatoriais, marxista-totalitárias, etc., mediante a reformulação básica da digni­dade de toda pessoa, com especial atenção à infância, à mulher, aos indivíduos e aos povos marginalizados; recordam, também, que os povos geralmente carecem de soberba exclusivista de algumas etnias (Peter Waldman, Ethnischer Radikalisnms. Ursachen und Folgen gewaltsamer Minderheitenkonflikte, Opladen, 1989, passim , p. 188 ss.).

Olhando para o futuro

Olhando para o futuro, os especialistas em filosofia política deparam com questões - e também com soluções - muito similares, e, em parte, idênticas às dos especialistas em política criminal - por exemplo, as que enuncio, telegraficamente, a seguir:1. Segundo Ignacio Sotelo {Sociologia de América Latina. Estrnctu-

ras y problemas, 2~ ed., Madri, Tecnos, 1975, p. 203), pode-se afirmar que em um amanhã próximo as já grandes diferenças entre os países latino-americanos tendem a aumentar e que os últimos vinte anos demonstram a impossibilidade, para a Améri­ca Latina, de um desenvolvimento capitalista segundo o modelo europeu e norte-americano do séculos XIX e XX. Algo parecido afirmam alguns (não todos) criminólogos a respeito da diferente

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e deficiente política criminal na América Latina, em comparação com a européia e/ou a norte-americana. Basta a esse respeito re­ler o Manifesto do México assinado no ano de 1981, com forte ideologia marxista (cf. Capítulo Criminológico, nQS 9/10, ano 1981/1982).

2. No entanto, enquanto podemos dizer que a pós-modernidade reintegra a ciência à filosofia política (cf. Ignacio Sotelo, “Filo­sofia y ciência social: la actualidad de la ‘Escuela de Francfort” ’, Barcelona, Working Papers, 1989, p. 21 s.), no mesmo sentido podemos afirmar que a pós-modernidade reintegra a ciência à política criminal, por exemplo, no campo das investigações cri- minológicas sobre o prognóstico criminal, tão importante para a concessão das permissões penitenciárias aos condenados e aos internos preventivos (cf. Ley Orgânica General Penitenciaria, arts. 47 e 48; Reglamento Penitenciário, arts. 45.7, 254. 255).

3. Entre os filósofos e os políticos abundam hoje os “ intelectuais proletaróides” (na terminologia de Max Weber) que se opõem ao estilo da filosofia política “oficial” , que contestam a estrutura política de seu partido, por motivos diversos: desde o excessivo laicismo até o extremo fundamentalismo (cf. G. Kepel, La re- vanche de Dieu. Chrétiens, ju ifs et musulnmns à la recoucptête du monde, Paris, Editions du Seuil, 1990). Diante dessa realidade, convém investigar se (e provavelmente concluir que) a religião, ou melhor, as religiões fomentarão, em um futuro próximo, a filosofia política, pois sem a religião como base ninguém cons­trói ciência nem consciência alguma de perenidade. Por isso, de­pois de meio século de regime comunista, os Leinder orientais da Alemanha (nos quais o poder marxista havia feito desaparecer a instrução religiosa em todos os centros docentes, com a preten­são foucaultiana de que seu poder chegasse até a domesticação das almas dos jovens) voltam a estabelecer aulas de religião em todas as instituições docentes da juventude (cf. Bildung und Wissenschafl, n~ 7/8, Bonn, Inter Nationes, p. 17). (Oxalá se imi­tasse esta norma na Espanha.)

4. A filosofia política necessita ter presente e respeitar mais - muito mais - os critérios básicos da política criminal para poder

E no Brasil também. (N. do T.)

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conseguir a difícil harmonização da ética de convicção com a ética da responsabilidade (cf. J. R. Recalde, “Gobierno legítimo y ética dcl gobernante” , em J. L. de la Cuesta, I. Dendaluze, E. Echeburúa, Criminología y derecho penal al servicio de la persona, San Sebastián, Instituto Vasco de Criminología, 1989, p. 1.191-1.202). Nunca é permitido ao governante malversar nem fraudar tantos e tantos milhões de pesetas, como nos revela a imprensa diariamente, aqui e acolá, nem cometer um delito de tráfico de influências (cf. o Projeto de Lei Orgânica do Código Penal espanhol de 1992, artigo 409 ss., Boleiín Oficial de las Cortes Generales, Congreso de los Diputados, 23 de setembro de 1992), nem autorizar e conseguir escutas telefônicas dos adver­sários políticos, etc.De modo semelhante, o operador da política criminal deve ob­servar e cumprir os princípios político-jurídicos que foram se formando ao longo da evolução jurídico-penal como necessários e irrenunciáveis, e não pode prescindir de valorizar os dados empíricos, se traia de ser convincente. Concretamente, no pro­cesso de valorização, devem-se resolver todas as dificuldades relacionadas com a transposição do saber experimental às deci­sões jurídico-políticas e à unificação de numerosos pontos de vista, em parte opostos, tão opostos como a ética da convicção à ética da responsabilidade.

5. Tanto a política criminal como a filosofia política, ao programar seu futuro imediato, devem resolver os gravíssimos problemas que cria a violência que exercem membros do poder político e — também por mimetismo — minorias éticas em facções terroristas em todos os continentes. Basta ler os relatórios anuais da Anistia Internacional para constatar que na maioria dos países o poder comete atrozes abusos, e que, por desgraça, grande parte deles fica impune.Para se conseguir que diminua tanta violência estabelecida, subversiva e repressiva, convém esclarecer algumas noções fun­damentais, e em concreto atualizar a diferenciação entre a vio­lência, por uma parte, e a potestade punitiva, por outra (cf. Cobo dei Rosai, Vives Antón, Derecho penal. Parle general, 39 ed., Valência, 1990, p. 51 ss.).

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Hoje, a filosofia política coincide com a política criminal em que ao poder político compete a coerção; somente ao poder político, não aos leigos. Também ontem os canonistas escolásticos do Renascimento proclamavam esse axioma. Pelos mesmos critérios, a Anistia Internacional - teórica e praticamente — exclui da lista dos presos de consciência, e de seus lógicos benefícios, os con­denados que cometem delitos de violência ou que fazem apolo­gia desta.Max Weber resume uma de suas leses fundamentais afirmando que o Estado possui o monopólio da Gewalt. Muitos mal interpre­tam e traduzem, equivocadamente, sua formulação; em alguns idiomas, por exemplo em castelhano e em francês (cf. G. Picca, La criminologie, Paris, PUF, 2~ ed., 1988, p. 94, e sua tradução para o castelhano, México, Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 111), dizem que o Estado tem o monopólio da violência. Esta versão, radicalmente inexata, dá margem a doutrinas e a práticas violentas e terroristas. Urge aclarar o sentido autêntico de Gewalt 110 contexto weberiano. A palavra alemã Gewalt engloba muitos significados. Emprega-se para designar realidades diver­sas. Em cada caso, deverá traduzir-se, tendo em conta o contexto. Max Weber, em seu esludo sobre o poder estatal, não equipara a Gewalt com a violência, senão com a coerção da autoridade estatal (cf. P. Hafner, “Überlengungen zu Freiheit und Macht” , Orieniierung, nü 1, 56 Jahrgang, Zurique, 15 de janeiro de 1992; 110 mesmo sentido, os comentaristas weberianos K. Rõttgers, G. Holzherr, etc.).Outro exemplo paradigmático do perigo das traduções no tema do poder e da violência nos oferece a excelente revista Seleções de Teologia (n~ 101, vol. 26, 1987, p. 17). Cita um parágrafo de KarI Rahner (Escritos de Teologia, IV, p. 499), com estas pala­vras:

Q u em considerasse o poder com o o mais certo c o mais claro, q u em pensasse que c o mais real e no fundo o ún ico acred itado , q u em não traba lhasse para supcrá-lo e sup rim i- lo seria o cu l ta ­m ente um herege c um apósto lo do v e rdade iro cris tian ism o, p o rque não afirm aria que tal poder p rovém do p eca d o e que, por isso. tem de ser. com o ele. superado .

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Essa versão castelhana emprega nessa citação, equivocadamen- te, a palavra “poder” em lugar de dizer “força bruta” . O leitor desse texto (como aparece na referida revista, sem o contexto) fica com um idéia falsa da opinião do teólogo alemão. K. Rahner, em todo o artigo, comenta positivamente que “o poder é uina criatura de Deus” (p. 517) e que “em uma ordem paradisíaca haveria também, naturalmente, poder como faculdade de eficiên­cia física, haveria realidade social e, com isso, subordinação e superioridade, direção e lei” . Como se vê, a opinião de Rahner coincide com a opinião da maior parte da teologia cristã (de que antes falávamos) e não com quem, por ignorância ou por malí­cia, traduz mal e formula textos fora do contexto, de maneira que muda radicalmente seu sentido.

6. O desencantamento que Max Weber detecta em sociologia e em filosofia política suscita um amplo eco em política criminal, so­bretudo em alguns pontos centrais, como o da ressoeialização do delinqüente. Muitos desencantados consideram equivocada a exigência de nossa Constituição, quando seu artigo 25 proclama que “as penas privativas de liberdade e das medidas de seguran­ça estarão orientadas para a reeducação e a reinserção social” . Nós, sem dúvida, e muitos especialistas de política criminal, pretendemos superar qualquer desencantamento em um proble­ma, do qual depende a felicidade de tantas pessoas e famílias.

Esperemos que as mútuas relações que medeiam a filosofia política e a política criminal sejam catai is adoras de uma sociedade com mais respeito à dignidade e aos direitos humanos, com menos criminalidade e com mais filosofia, enquanto esta significa encon­trar “sabor” e “sentido” nas realidades da convivência das pessoas no seu ecossistema, em seu ambiente, tanto social como físico.

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Capítulo 5

A sociedade/judicatura atende a suas vítimas/testemunhas?

Vitimoiogia

Origem da vitimoiogia

Pode-se dizer que a atual vitimoiogia nasceu como reação à macrovitimação da II Guerra Mundial e, em particular, como res­posta dos judeus ao holocausto hitleriano/germano, ajudados pela reparação positiva do povo alemão, a partir de 1945.

Em 1973, celebrou-se em Jerusalém o Primeiro Simpósio In­ternacional sobre Vitimoiogia, e ali encontraram eco os poucos tra­balhos que, anteriormente, haviam sido publicados a respeito das vítimas de delitos. Pode-se dizer que oficialmente nasce a vitimo­iogia, no âmbito científico e mundial, no ano de 1979, no Terceiro Simpósio Internacional de Vitimoiogia, celebrado em Münster (Alemanha), quando é fundada a Sociedade Mundial de Vitimoio­gia, à qual pertencem, atualmente, umas trezentas pessoas, e que tem dado impulso a inúmeros livros, revistas, estudos, cursos, simpó­sios, congressos, etc.

Entre os trabalhos da vitimoiogia, destaco o de Hans von Hen- tig, do ano de 1948.1 Segundo ele, convém ter em conta três noções fundamentais:

1 Mans von Hentig. The criminal and his victim, 1948.

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Primeiramente, a possibilidade de que uma mesma pessoa pos­sa ser delinqüente ou criminoso segundo as circunstâncias, de ma­neira que comece no papel de criminoso e siga no de vítima, ou ao contrário. Também cabe a possibilidade de ser ao mesmo tempo delinqüente e vítima. Esta figura dual dá-se, com freqüência, atual­mente, nos jovens viciados que, para conseguir o dinheiro de que necessitam para comprar drogas, se vêem compelidos a cometer delitos contra a propriedade.

A segunda noção é a “vítima latente”, que inclui aquelas mu­lheres e aqueles homens que têm uma predisposição a chegar a ser vítimas, ou seja, uma certa atração para o criminal. Concretamente, escreve von Hentig:

O indivíduo frágil, tanto entre os anim ais com o cntrc as pessoas, é aquele que veross im ilm en tc será v ítim a de um ataque. A lguns, com o as crianças, os velhos, são frágeis fisicamente: outros, com o as m ulheres, pertencem ao sexo frágil, ou tros são frágeis de e s ­pírito.

Hoje, poucas pesquisas levadas a cabo por mulheres mantêm o critério formulado, há meio século, pelo professor alemão.

Por fim, a terceira noção básica refere-se à relação da vítima com o delinqüente, relação que pode provocar uma inversão dos papéis do protagonismo. A vítima pode ser o sujeito, mais ou me­nos desencadeante, do delito.

Sobre esses problemas escreveu, acertadamente, também oprofessor espanhol Luis Jiménez de Asúa, já no ano de 1961, páginas♦ » 2 ' * pioneiras, dignas de serem relidas. Assim mesmo, poucos anosantes havia tratado do tema Benjamin Mendelshon,'1 e J. Pinatel,

2 Luis Jiménez de Asúa, “La llamada vietimología”, Estudios de derecho penal y criminologia, Buenos Aires, Oineba, 1961, p. 19 ss.; A. Beristain, “Proyeclo de declaración sobre justicia y asistencia a Ias víclimas”, Estudios de derecho penai en hom enaje a l Profesor Luis Jim énez de Asúa. Revista de la Facidtad de D erecho de la U niversidad C om phitense , M onográfico nü 11, junho 1986, p. 117, 120; Idem. “La vietimología en un momento clave”. Noias dei III Sym- posio internacional sobre Vietimología”, Anuário de derecho penal. 1980, p. 93 ss.B. Mendelshon, La victiniologie, Revue Française de Psychoanalyse, 1958, p. 96 ss.

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nos oferece ampla informação do que durante o começo dos anos 1960 se publicou sobre vitimologia.4

Quanto à legislação de auxílio sobre as vítimas de delito, re­cordemos que já 110 ano de 1891 o Terceiro Congresso Jurídico Internacional, em Florença, aprovou a proposição de Garofalo de instituir um fundo de compensação estatal para assistir as vítimas de certos delitos. Prescindindo-se de outros muitos dados, na Nova Zelândia, no ano de 1963, formulou-se um programa importante de compensação às vítimas de delitos. Na América Latina, foi o Mé­xico o pioneiro, no ano de 1969. No Distrito Federal, elaborou-se e aprovou-se, por inspiração de Sergio Garcia Ramirez, então procu­rador-geral da Justiça, uma lei de proteção e auxílio às vítimas de delito. Num de seus artigos, fixa-se, claramente, a maneira de comprovar o estado econômico das vítimas as quais a lei protege. Consegue-se por meio de um organismo de antigas raízes em vários estados do país: o Departamento de Prevenção e Readaptação So­cial. Fixam-se as formas de arrecadar os fundos (recursos) necessá­rios para o auxílio previsto, sem necessidade de recorrer a impostos dos contribuintes. Oferecer-se-á ajuda econômica ao maior número de pessoas, outorgada com um fundo de reparação integrado com as seguintes percepções, que expressa o artigo 3° da lei:1 - - A quantidade que o Estado arrecada por conceitos de fianças

que se façam efetivas nos casos de não-cumprimento de obri­gações inerentes à liberdade provisória sob fiança, a suspensão condicional da sentença e a liberdade condicional, segundo o previsto pelas respectivas leis.

2 ~ - A quantidade que o Estado arrecada por conceito de multas impostas como pena, pelas autoridades judiciais.

3S- A quantidade que, por conceito de reparação do dano, devam cobrir os réus sentenciados a tal pena pelos Tribunais do Estado, quando o particular beneficiado se abstenha de recla­mar a tempo a referida reparação, ou renuncie a ela, ou quando a mesma se deva ao Estado em qualidade de prejudicado.

4 - -C in c o por cento da renda líquida anual de todas as indústrias, serviços e deniais atividades lucrativas existentes nos reclusó- rios estatais.

J. Pinatel. Criminologia. tomo III do Tratado de derecho pena l y crim inologia .trad. Ximena Rodriguez de Canestri. Caracas, 1974, p. 492 ss.

4

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5 ~ - A s aportações que para este fim façam o próprio Estado e osparticulares.5Dada a situação econômica nacional mexicana, e por outros

motivos, muito poucas vítimas têm recebido a compensação devida.Como já sabemos, em 1979 celebrou-se em Münster o Terceiro

Simpósio Internacional de Vitimoiogia, e comentou-se a necessi­dade de institucionalizar, de alguma maneira, os conhecimentos, as idéias e os projetos que, desde 1973, têm surgido com tanta apro­vação internacional. No último dia do simpósio, decidiu-se a criação da Sociedade Mundial de Vitimoiogia, que, imediatamente, conse­guiu quase duzentos membros. Esta sociedade, com seu impulso juvenil e eficaz, conseguiu criar e propagar a todo 0 planeta uma doutrina e uma práxis que tornam realidade o que antes de 1979 era somente uma idéia quase utópica.

Com o transcorrer dos anos, a vitimoiogia encontrou acolhida 11a maioria dos países e nas instituições supranacionais. Basta re­cordar a Convenção Européia sobre a assistência às vítimas de de­litos violentos, do Conselho da Europa, dentro do Comitê Europeu para os problemas criminais (Estrasburgo, 1983), a Declaração so­bre justiça e assistência para as vítimas, que se elaborou no encon­tro inter-regional de especialistas das Nações Unidas, em Otawa (Canadá) no ano de 1984, a Recomendação n9 R (85) 11, do Co­mitê de Ministros aos Estados-membros, sobre a posição da vítima no campo do direito penal e processual penal (adotada pelo Comitê de Ministros 110 dia 28 de junho de 1985, 11a Reunião número 387 dos Delegados dos Ministros),6 a Declaração sobre os princípios fundamentais de justiça para as vítimas de delitos e do abuso de poder, aprovada na Assembléia-Geral das Nações Unidas (Resolução 4U/34) 110 dia 29 de novembro de 1985, o Documento do Comitê II do Oitavo Congresso das Nações Unidas, em Havana, sobre “Pro­teção dos direitos humanos das vítimas da delinqüência e do abuso de poder” , no que o Congresso das Nações Unidas

5 BI ias Neuman, i'ictimologia. El rol de Io víctima en los delitos convencionales yno convencionales. Buenos Aires. Ed. Universidad, 1984. p. 279 s.A. Berisiain, De leyes penales v de Dios legislador (Alfa v Omega de! controlpenal humano), Madri, Edersa, 1990, p. 253 ss.

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. . .recom enda que os listados p reparem prog ram as de fo rm ação baseados nos princíp ios desta D ecla ração , com o ob je tivo de d e ­finir c dar a conhecer os d ireitos das v ít im as da de linqüência c do abuso de poder, que deveriam incorporar-se aos p rog ram as de es tudos das facu ldades de direito , institutos de c rim ino log ia , cen tros de fo rm ação de pessoal para a ap licação coerc itiva do d ireito e escolas jud ic ia is

e a Convenção do Conselho da Europa sur la responsabilité civile cies dommages résultant d 'activités dangereuses poitr {'environnement, Lugano, 21 junho 1993, cujo arligo 9 estabelece:

Si la v ic tim e ou une personne dont la v ic tim c est responsab le en vertu du droit interne a, par sa faute, con tribué au d o m m ag e , 1 'indem nité peut être ou supprim ée, en lenant com pte de tou tes les c irconstances , ctc.

Do desenvolvimento teórico da vitimologia dão provas os numerosos estudos apresentados no 1~ Simpósio Internacional de Vitimologia, celebrado no Rio de Janeiro, em agosto de 1991 (uma pequena parte de suas teses e comunicações aparece no livro compilado por Ester Kosovski)9 e no XI Congresso Inter­nacional da Sociedade Internacional de Criminologia, que teve lugar em Budapeste, de 22 a 28 de agosto de 1993. Neste, as questões vitimológicas têm sido, provavelmente, as mais co­mentadas e debatidas: como tema central em uma seção plená­ria, nos programas da Sociedade Húngara de Criminologia, em oito grupos de trabalho, etc.

7 Oitavo Congresso ilas Nações Unidas sobre prevenção do delito e tratamento do delinqüente, Havana (Cuba), agosto-setembro 1990, A/Conf. 144/C.2/L.5.5, 3 de setembro de 1990, p. 2 s.Conseil de L’Europe. Convention sur la responsabilité civile des clommages résultant d ’activités dangereuses pour renvironnement, Lugano, 21 junho 1993, Série dos irniiés tiuropéens nü 150, p. 7.Ester Kosovski, Vitimologia: enfoque inierdisciplinar, Rio de Janeiro, 1993, 380 p.

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Conceitos básicos c importância da vitimologia

A vitimologia é filha da criminologia, muito mais que do di­reito penal. Desta afirmação se deduzem conseqüências muito es­clarecedoras, já que a ciência e a práxis jurídico-penal diferem notavelmente da ciência e da práxis criminológica."1 Diferem nos princípios básicos, nas propostas dos problemas e na exagerada (ainda que necessária) divisão do trabalho científico para evitar a superficialidade.

Convém superar algumas das discrepâncias radicais entre ambos os campos - o jurídico-penal e o criminológico - e, para consegui-lo, recordar a necessidade da interdísciplinaridade, intradisciplinaridade e transdisciplinaridade no controle social penal pós-moderno. O pena- lista ocupa-se de temas parcialmente diversos e conduz um estilo de pensamento muito diferente. Preocupa-se com a igualdade for­mal e com a legalidade real. procura evitar a valorização do ato, assim como a culpabilidade do autor, e pretende prevenir, controlar e reconciliar mais que castigar, mais que “fazer justiça”.

Se alguém duvida de que a vitimologia deriva da criminologia muito mais que do direito penal, é só recordar que, ao se criar em Münster, no ano de 1979, a Sociedade Mundial de Vitimologia, seus membros fundadores discutiram se deveriam formar uma seção dentro da Sociedade Internacional de Criminologia ou constituir uma sociedade autônoma independente. A ninguém passou pela idéia a possibilidade de integrar-se à Associação Internacional de Direito Penal. Outra prova de que a vitimologia nasceu e cresce mais perto da criminologia que do direito penal nos oferece o fato de que a reparação, tal e qual se concebe e pratica o direito penal, tem muito castigo (perto da multa) para repreender e sancionar o delinqüente; por isso, se diz “aquele que fez, que pague” . Ao con­trário, os vitimólogos concebem a reparação, antes e sobretudo, para dar assistência à vítima.

1,1 Kaiser, Kriminologie. 73 ed., C. F. Miiller Juristischer, Heidelberg. 1985. p. 28 s.: Idem, Kriminologie. 9a ed., 1993, p. 23 ss., p. 184 ss.; H. J. Schneider, Krimi­nologie, Berlim, Walter de Gruyler, 1987, p. 89 s.; A. García-Pablos, M anual dc criminologia. Introducción y teorias de la erintinalidad, Espasa Universidad, 1988, p. 76 ss.

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Isso pode explicar por que a vitimoiogia encontra tão pouca acolhida entre a polícia, a judicatura e as instituições penitenciárias, em alguns países “afastados” da criminologia. (Recordemos, entre parênteses, que 110 âmbito universitário e penitenciário espanhol se tem marginalizado a criminologia; não se apreciam, suficientemente, seus estudos, nem sua diplomação, nem seu mestrado. Tampouco se respeita o regulamento penitenciário no que se refere ao crimi- nóíogo, em seu artigo 281

Hlías Neuman acerta, quando afirma:

N ão há dúv ida de que se deva am p lia r o cam po noso lóg ico (e s ­tudo das m oléstias) e conceitua i d a v itim oiogia . P oder-se - ia d i­zer que a soc icdadc dc capital e consum o tem criado m arcos de ideo log ização que lhe perm item v it im ar um a quan tidade notável de seres humanos: delinqüentes, loucos, doentes, minorias raciais, m enores, o ligo frên icos , anciãos.

Dentro do círculo da política criminológica, que é conseqüên­cia de outro círculo concêntrico maior de política social geral, a vitimoiogia deve proclamar-se uma ciência para a liberdade e a liberação moral e material de todo tipo de vitimados (delinqüentes marginalizados e submergidos sociais), que engloba também atin­gidos pelos acidentes de trabalho, sem esquecer da sociedade, ou grande parte dela, quando se trata do abusivo poder governamental, econômico, religioso, acadêmico 011 jornalístico, etc.

Se os criminólogos alemães Günther Kaiser e II. .1. Albrechtafirmam que existe um déficit de investigação 110 campo vitimoló-gico, com muito maior motivo devemos nós, na Espanha, insistir11a urgência de aumentar os estudos correspondentes para conseguirmetas de alto valor humano, científico e criminológico, como indi-

12ca A. García-Pablos.

11 Elias Neuman, Victimología, p. 291 ss.12

A. García-Pablos. “El moment actual de la criminología", De ies causes dei delicie a la producció de! control. El debat actual de la criminologia, Juslfcia Í Soeietat. Bar­celona, Centre d :Esütdís Jurídics i Formado Especialitzada tle la Generalitat de Ca- talunya, 1992, p. 81; Kaiser, “Victim-research at the Max-Planck-Institut. Point of deparlure, issues and problems”, Victims and Criminal Justice, editado por Kaiser- Kury-Albrecht, Freíburg i. Br., 1991, vol. 50, p. 3 ss.: H.-J.-Albrecht, “Kriniinolo- gische Perspecliven der Wiedergutmachiing. 'ITieoretische Ansatze und empirisehe

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Segundo Kaiser, as investigações vitimológicas contribuem para a legitimação do sistema penal e para sua maturidade.13 Nas últimas décadas, têm aportado, em alguns países, importantes avanços para a ciência criminológica e para o controle do crime. Na opinião de H. Arnold,14 também se pretendem e se podem atingir fins políti­cos, no amplo e positivo sentido da palavra; isto é, para conseguir melhorar a qualidade da vida em vários níveis sociais.

A atual hecatombe nos territórios da ex-Iugoslávia e em tantos oulros lugares patentiza a urgência de prestar mais atenção aos di­reitos humanos das vítimas coletivas.1' Por exemplo, em casos de guerras, genocídio, tortura, crimes contra a humanidade, terrorismo, discriminação racial e étnica, pirataria, seqüestro de diplomatas, crianças maltratadas, etc. Esse campo tem sido pouco investigado, mas o suficiente para que se possa afirmar que é um setor em evo­lução, intimamente relacionado com o direito internacional, quevem crescendo, paralelamente, com novos capítulos em todas as

!6ciências.Com toda razão, Herman e Julia Scliwendiger17 propugnam

que os delitos sem vítimas não se qualifiquem “como delitos dentro dessa nova perspectiva” (p. 183); isto é, quanto mais se pretender

Befunde”, em A. Eser, G. Kaiser e K. Madlener, Neite liege der Wiederguímadnmg im Strafrecht, Freiburg i., Br., 1992, p. 43-72.

1 ' G. Kaiser, “Victim survey. Stocktaking, needs, and prospects: a German view”,

Victimohgr in comparative perspective, editado por Koichi Miyazawa, MtnoruOliya, Tóquio, 1986, p. 133 ss.

14 t ÉH. Amold, “Krimínalilãt, Viktimisierung, (Un-) Sicherheitsgefühl und Wohnzufrie-denheil. Effekte objektiver und subjektiver Krimiualitatsindikatoren in der Bewer-tung vou Nachbarschaft und Gemei nde”, em G. Kaiser, H. Kury (comps.),Criwinological Research in lhe Í990's, t. 66/2, Freiburg. 1993, p. 1 ss,M. Joutsen, The role o f lhe victim o f crime in Etiropean crimina! justice systeins. A crossnational stitdy o f the role o f the victim, Euni (Helsinki Institute for Cri­me Prevention and Control). Helsinki. Government Printing Centre. 1987.

’ Ph. Coppens, “Médiation et philosophie du druit”. Archives de Politique Crinti- nelle, nü 13, 1991, p. 13 ss.; C. Lazerges, “Essai de classificalion des procedures de médiation”, Archives de Politique Criminelle, i r 14, 1992. p. 17 ss.; G. llu- ber, “Heraklit íiber Krieg und Frieden”, em M. Siguan (ed.), Plnlosophia pacis. Homenaje a Raimon Panikkar, Barcelona. Símbolo editorial, 1989, p. 37 ss.Herman e Julia Schwendiger, “Defensores dei orden o custodios de los dere- chos humanos?”, em Taylor. Walton, Young (comps.), Criminologia crítica, México, Siglo Veitiuno Editores, 1981, p. 149 ss.

17

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manter a ordem legal estabelecida, mais se procurará proteger e desenvolver os direitos humanos das pessoas e instituições mar­ginalizadas. O progresso desses direitos, segundo veremos nas seguintes reflexões teológicas, pede que a vitimologia leve em consideração as fundamentais cosmovisões de todas as grandes religiões, sabendo que estas podem também enriquecer com as propostas dos vitimólogos.

Dificuldades c perigos da vitimologia

Está claro que a intensificação indiscriminada da assistência às vítimas, assim como certas críticas sem piedade (ainda que em grande parte fundadas) ao sistema penal atual, pode avocar um esquecimento ou um enfraquecimento das bases metafísicas ele­mentares do sentido de justiça em geral e da justiça penal em particular.18

Ninguém duvida de que, mediante as estratégias do delin­qüente - vítima, mediação, reconciliação - se conseguem, com certa freqüência, maiores satisfações imediatas que por meio dos sistemas do direito penal tradicional; mas essa constatação não basta para justificar o desenvolvimento sem limites das práticas da mediação e da compensação e, também, da reconciliação. Por esse caminho, pode-se chegar ao funesto sistema punitivo germânico medieval de deixar total e unicamente em mãos das vítimas e seus familiares a sanção ilimitada contra os delinqüentes, sem participa­ção alguma racional e moderadora da sociedade e da autoridade. Certas investigações vitimo!ógicas em alguns países, sobretudo nos EUA, têm servido, paradoxalmente, para reforçar as tendências favoráveis a sancionar com mais dureza o delinqüente, como mos-

ISII. J. Hirsch, “Acerca de la posición de la victima e» el derecho penal y eti el dereclio procesal penal”, Ji/slicia Penai y Sociedad , Revista Guatemalteca de Ciências Penafes, nu 2, Guatemala. 1992, p. 5 ss.; R. Panikkar, “La faute origi- nante...”, Archivio di Filosojia, Roma, 1967. p. 65 ss.; E. A. Fattah, “Beyond metaphysics: the need for a new paradigm. On aclua! and potentia! contributions of' crimmology and the social sciences to the reforni of the criminal law” (manuscrito).

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tra Kaiser.Iv Entre nós, na Espanha, estamos ainda em véspera des­se excessivo abuso da vitimoiogia. Mas, de todas as maneiras, con­vém ter presente que também a vitimoiogia deve reconhecer suas fronteiras. Como recordam alguns especialistas, o diálogo e a me­diação, concretamente, nem evitam nem cobrem toda a missão da justiça penal tradicional.20

Algumas publicações de vitimoiogia podem, por excesso de zelo, confundir a participação da vítima 110 iter do delito com sua co-culpabilidade, se se limitarem a descrever os fatos, sem se dete­rem em sua análise científica e metodológica.21 Especialmente, trata-se da vítima “reincidente”. Para superar esse perigo, convém analisar as linhas de sua personalidade e as modernas técnicas de possível superação de sua vitimação freqüente e repetida.

Aqueles que trabalham em escritórios de assistência à vítima devem evitar alguns perigos - por exemplo, o de esquecer os mui­tos métodos e caminhos de soluções conciliadoras que a sociedade, tradicionalmente, exercita para alguns delitos22 - ou, também, o de transferir para a vítima suas características de personalidade viti­mai, isto é, influenciar negativamente a vítima, fortalecendo alguns

* 2 pontos negativos, psíquicos, psicossomáticos e sociais. ' Por suavez, pode-se dizer o mesmo da possível influência negativa sobre as testemunhas da vitimação, especialmente durante o processo penal, mas também antes dele.

E falsa a opinião, geralmente admitida, de que o fato de sofrer um delito seja um acontecimento do qual se recorda a vítima du­rante muito tempo. Por isso, nas investigações, convém limitar-se a delitos sofridos nos últimos seis ou doze meses. Além do mais, as vítimas correm o perigo de transladar a data de sua vitimação ao período a que se refere a investigação, se elas conhecem esse período.

|9Kaiser. Introducción o la criminología (trad. A. Rodríguez Núnez). Madri, Dykinson, I98S, p. 474.

2(1P. Coppens, “Médiation et philosoptiie...”, 1991, p. 16 ss.

“I Schneider, Kriminologie, Berlim. Nova York, 1987. p. 87 ss., p. 188 ss., p. 693 ss. E. Vescovi, “Le réglement des conflils hors des tribunaux”, em H. Kotz. R. Ottenhof (comps.), Les conciliateurs. la conciliation. Un elude compar ative, Paris, Econômica. 1983, p. 173 ss.; a respeito da Espanha, p. 178 s.L. Rodriguez Manzanera, Victimología. Estúdio de la víctinta, México, Porríia, 1988, p. 349 ss.

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Por desgraça, muitos cidadãos carecem de motivação para colabo­rar em estudos sobre essas questões. Para superar essa limitação, convém que quem leve a cabo a pesquisa conheça as técnicas para incentivar o pesquisado a expor tudo o que lhe sucedeu e tudo o que sabe.

Maiores dificuldades obstruem as investigações acerca da vi- timação dos menores, especialmente quando se trata de delitos se-

24xuais. Com atinadas considerações, Martinez Arrieta argumenta que, durante o processo, nem sempre se exige ao menor estar pre­sente diante do suposto delinqüente. Ainda que o exijam as normas processuais vigentes, e alguma excepcional sentença do nosso Tri­bunal Supremo (em geral, suas sentenças transbordam sensibilida­de jurídica e vitiniológica, especialmente nos últimos anos, sob a presidência do professor e magistrado Enrique Ruiz Vadillo),25 pa­rece que à luz do artigo 40, 3.b, da Convenção das Nações Unidas sobre os direitos do menor, de 1989, se se interpreta com critério progressivo, quando nos casos extremos não se possa evitar o re­correr aos procedimentos judiciais, muitas vezes deverá evitar-se o cumprimento de alguns preceitos formais, em detrimento de novos direitos humanos dos menores. Ninguém negará a possibilidade de novos direitos nesse campo. Basta ler a Convenção de 1989, à qual estamo-nos referindo.

Muitos vicíim services podem, às vezes, pretender chegar à conciliação e à reconciliação sem antes solucionar o conflito, acre­ditando que conseguem abortar um problema quando este, na reali­dade, há tempo nasceu; correm o perigo de tapar uma ferida sem limpá-la previamente. Essa falta de realismo debilita o ligamento social e a estrutura jurídica; esquece a força imponente do mito da pena, superior ao poder dos deuses.26 Em alguns casos, não se pode prescindir da sanção exigida pelo princípio da culpabilidade; ne­cessita-se de um “bode expiatório1’, no sentido positivo da expres-

24Martinez Arrieta. “ La victima en el proceso penal", Actualidad Pena!. 11“ 5, janeiro - fevereiro 1990, p. 50 s.E. Ruiz Vadillo, “El futuro inmediato dei derecho penal. Los princípios básicos sobre los que debe asentarse. Las penas privativas de liberlad. La jurisprudência dei Tribunal Constitucional v dei Tribunal Supremo”, Eguzkihre. Cita der no dei Instituto l asco de Criminologia. nü I extr.. 1988. p. 162.R. Panikkar, “La faule ongmante...”, p. 70.

2(,

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7são, tal como fala René Girard.“ Além disso, se se exagera na pu­blicidade sobre os direitos da vítima, pode-se aumentar suas frus­trações e cair-se em um angelismo que esqueça a necessidade da

* 28justiça penal humana para a convivência.\ 29

Kaiser reúne as investigações de A. Reiss e de outros, que constatam os erros que cometem alguns vitimólogos. Em certos casos, esquecem que o ponto de vista da vítima é grandemente di­ferente do ponto de vista do juiz, por exemplo, nos delitos sexuais e nos delitos de perigo, e em casos de tentativa ou delito frustrado. Também são distintos os critérios em diversos países; mas, apesar disso, convém levar a cabo investigações in cross cultural perspective.

Também se toma difícil a investigação vitimológica nos delitos socioeconômicos de conhecida importância, pois muitas pessoas implicadas não consideram delitos algumas ações sancionadas no Código penal, mas localizáveis subjetivamente na moral fronteiriça.™ Algumas investigações levadas a cabo no Max-Plank-Institut, de Freiburg, constatam essas dificuldades. Os informes das vítimas não oferecem suficientes dados de interesse para completar e con­cluir a investigação. A delinqüência econômica, investigada no ano de 1980, implica um número relativamente pequeno de processos (3.226) e de acusados (5.896), mas, com um grande número de ca­sos particulares (single cases, 145.209), e de pessoas prejudicadas (156.004) e um considerável prejuízo econômico total: 2.600 mi­lhões de marcos alemães. Por razões diversas, nessa delinqüência econômica, os questionários e os diálogos com as vítimas não têm

J vsido suficientes para recolher os dados totais.' As vezes, os méto­dos de controle privado são mais eficazes.

R. Girard, El mistério de nuestro mundo. Claves para uno inlerpreíación antro­pológica, Salamanca, Ed. Sígueme, 1982, p. 478 ss.A. Beristain, “Los límiles dei perdem”, Cuadernos de Política Criminal, n" 49, 1993, p. 5 ss.; João Paulo II. Encíclica Dives in misericórdia, Roma, 1980.

29Kaiser, fic tim surveys - stocktaking, needs, and prospecfs: a German víeir, Tóquio, 1986, p. 136. p. 140.M. Bajo Femandez, Derecho penal econômico aplicado a la actividad empresarial, Madri, 1978, p. 53 ss.; A. Beristain, “Delincuencia econômica: eficacia de las sanciones penales”, em idem, Ciência penal y Criminologia, Madri, Tecnos, 1986, p. 182 ss.Kaiser, Viciim surveys..., 1986, p. 139.

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Apesar dos múltiplos estudos que estão sendo realizados, ain­da restam muitos aspectos importantes desconhecidos que devem ser objeto de futuras investigações, como indica Gottfredson, em seu trabalho de 1989. Como ele demonstra, sabemos ainda pouco acerca da percentagem de vítimas que sofrem perturbações emoti­vas, muito pouco dos fatores que fazem a vitimação mais traumáti­ca em umas pessoas que em outras, menos ainda sobre a evolução desses diversos efeitos, ou sobre a capacidade de superação desses prejuízos causados pelo delito. Existem fortes obstáculos para in­vestigar cientificamente todos os efeitos da vitimação, como, por exemplo, os efeitos perturbadores de qualquer intervenção do ci­entista observador que se introduz na vida privada das vítimas; a dificuldade e os custos de levar a cabo investigações longitudinais dessas conseqüências da vitimação; a tendência de quem assiste às vítimas, prestando-lhes serviços que não estão incluídos no con­texto da investigação e que, portanto, “perturbam” os resultados científicos; a difícil imparcialidade dos investigadores, que geral­mente procuram atender mais às metas das instituições de poder que aos interesses das vítimas, etc.

Diante da intensificação dos estudos e das ações para proteger as vítimas dos delitos, eminentes especialistas detectam alguns ex- cessos e perigos de orientações/posturas extremas. As vezes, pola­rizam-se demasiado ou quase exclusivamente ao redor dos delitos convencionais mais ou menos graves.32 E, ao contrário, não aten­dem devidamente aos delitos econômicos, de colarinho branco, ecológicos, de produção e venda de produtos perigosos.‘,;, Tampou­co atendem, na devida proporção, às vítimas da injustiça social, da discriminação étnica, do abuso do poder público, econômico, reli­gioso, etc.34

Fíiltali, “Prologue: 011 some visible and hidden tlangers of victim movements”. em idem (comp.). From crime policy (o victim policy. Reorientiiig the justice system , Londres, Macmillan, 1986, p. 5, p. 14.B. Schuenemann, “Allernative control of economic crime”, em A. Eser e J. Tliormundsson (comps.), Old irc/vs and m \v needs in crimina! legislatioif. Frei- burg L Br., 1989, p. 187 ss.R. Ottenliof, “Crime and abuse of power”, informe apresentado ao 5th Joint Collot|uium 011 Crime and Abuse of Power, Bellagio, 21-24 abril 1980; A. Be­ristain, “Elogio criminológico de la locura erasmiana imiversitaria”. Lección

34

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35Graças aos estudos de J. Shapland,' na Inglaterra e em Gales, conhecemos as diversas posturas das pessoas encarregadas do poli­cial e do judiciário a respeito da vítima. Este especialista realizou uma pesquisa, em nível nacional, baseada em questionários envia­dos pelos correios aos chefes de polícia, ao pessoal que trabalha na administração da Justiça e aos juizes, com o fim de conhecer os principais problemas das vítimas ao longo do processo penal. De- duz-se que a polícia avalia e estima, de maneira distinta do pessoal do Judiciário, os problemas da vítima, e também difere no que se refere aos desejos de como e em que sentido se deve melhorar o sistema de controle social. A polícia declara-se interessada em atender às necessidades de quem sofreu um delito, deseja sensibili­zar a quem ingressa nela com esta finalidade e indica algumas re­formas concretas que devem ser realizadas. Ao contrário, grande parte do pessoal do Judiciário opina que as vítimas não necessitam de um tratamento especial e demonstra não possuir suficientes es­truturas adequadas para atendê-las. Além disso, desconhece algu­mas das facilidades que o sistema judicial oferece às vítimas.

Vítimas/testem unhas

Enquanto o acordo “ interpartes” for possível, sem perda do interesse social, porque não tentá-lo?

José Ricardo Palacio, “A assistência às vítimas do delito em

Biscaia”, Eguzkiiore ne 6, 1992, p. 164.

Conceitos básicos

Neste momento, convém chamar a atenção, brevemente, sobre o conceito de vítima (e de testemunha), que pode ser uma pessoa, uma organização, a ordem jurídica e/ou a moral, ameaçadas, lesa-

inaugural dei curso acadêmico 1990-91, Universidatl dei País Vasco-Euskal Herriko Umbertsitatea, Bilbao, 1990. p. 39 ss.

35“ J. Sliapland, “Victims and the criminal justice system”, em E. A. Fattah, Front

crime poUcy to victim policy, 1986, p. 210-217; J. Sliapland, “Victim assistance and the criminal justice system: the victim‘s perspective”, From crime policy..., p. 218-233.

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el as ou destruídas/* Além disso, ainda que resulte difícil, evil a re­mos a identificação da vítima como o sujeito passivo do delito. Dentro do conceito das vítimas, há que se incluir não somente os sujeitos passivos do delito, pois aquelas superam muito freqüente­mente a estes. Por exemplo, nos delitos de terrorismo, os sujeitos passivos de um delito são cinco, dez ou cinqüenta pessoas; em lu­gar disso, as vítimas podem ser cem ou, ainda, mil pessoas. Em alguns casos, podem ser mil os militares ou os jornalistas que, di­ante do assassinato de um militar ou de um jornalista por grupo terrorista, se sintam diretamente ameaçados, vitimados, se antes sofreram também ameaças dos terroristas. Ou um grande número de funcionários de instituições penitenciárias que, diante do fato de que o grupo terrorista assassina um funcionário de prisão, se sin­tam aterrorizados pelo medo de que o seguinte sujeito passivo do delito seja ele ou um familiar seu.

Seria interessante, ainda que indiretamente, comentar algumas sentenças sobre o delito de omissão de socorro à vítima de acidente causado pelo omisso (artigo 489 do Código penal espanhol, mas su­pera o espaço de que dispomos).37

Nas literaturas alemã e norte-americana, presta-se merecida atenção, também, às testemunhas da vitimação, que tanto podem e devem levar à devida atividade processual e à compensação, assis­tência posterior, ressoeialização, etc.38 A. R. Roberts comenta que muitas pessoas têm seu primeiro e desagradável contato com o apa­rato judicial como conseqüência de ter sido testemunha de um de­lito; que em muitos juízos não se consegue o fruto desejado pela cooperação das testemunhas. Essas tristes realidades motivaram o início de dez programas de assistência às testemunhas, outro pro-

' (' H. J. Sehneider, “Das Opfer im Verursachungs - und Kontrollprozess der K.H- minalitãt” , em idem (comp.), Kriminaiitüt und ahweichendes Verhalten, t. 2, Beltz, Weinheim und Basel, 1983, p. 81.

37Poder Judiciai, nL> 7, setembro 1987, p. 276 ss. (sentença de 3 março de 1987). Poder Judiciai, ne 11, setembro 1988, p. 214 ss. (sentença de 23 março de 1988). A esse respeito, ver o artigo 135 do Código penal brasileiro. (N. do T.)G. Norquay, R. VVeiler, Service o f victims and wifness o f crime in Canada. Communication Division. Ministry of the Solicitor General, Ottawa. 1981. A. R. Roberts. “Victim/witness pragrams. Questions and answers'’, em FBI. Law Enforcement Bulleiin, dezembro de 1992, p. 12 ss., p. 16.

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grania de assistência às vítimas/testemunhas, em Palm Beacli County, Flórida, etc. Entre 1981 e 1985, 28 estados norte-americanos criaram, por lei, novos programas de assistência às vítimas e às testemunhas.

A. R. Roberts, depois de responder a sete perguntas acerca dos serviços de assistência às vítimas e às testemunhas, conclui: “A evolução dos programas de assistência às vítimas e às testemu­nhas está sendo cada dia mais estimada e reconhecida legalmente em uma crescente rede de escritórios de assistência”.

Predisposições das vítimas

Sobre a possível predisposição de algumas pessoas e de alguns membros de certas profissões a sofrer os efeitos da vitimação, me­recem ser recordados os trabalhos de E. A. Fattah. Já no ano de 1979, encontra como fruto de sua investigação a existência de três diferentes tipos de predisposições específicas na vítima: as biopsi- cológicas, como a idade, o sexo, a raça, o estado físico, etc.; as so­ciais, como as condições econômicas, seu trabalho e lazer; e as psicológicas, como os desvios sexuais, a negligência e a imprudên­cia, a extrema confiança em si mesmo, os traços do caráter de cada pessoa, etc.

Posteriormente,40 o mesmo professor constata que diversos estudos de tipo psicossocial e vitimológico evidenciam que muitos delinqüentes, antes de cometer o delito, antes de passar ao ato, fa­zem uma racionalização e uma maturação dos processos mentais e do desenvolvimento real de uma vitimação, com a pretensão de justificar seu crime, anular as possíveis inibições e apagar os nor­mais sentimentos de culpa ou de remorso subseqüentes ao delito. Já Dostoievski, em seu romance Crime e castigo, adiantou-se com sua minuciosa análise psicológica de Raskolnikov, e coincide, no fundo, com as pesquisas atuais. Certamente, muitos delinqüentes conseguem com essa técnica - mais ou menos inconsciente - neu­

39E. A. Fatlah, La victime est-elle coupable? La rôle de la viefime dans te meuríre en vite de vol, Montreal, Les Press de PUniversité de Montréal, 1971.

40E. A. Fattah, “Some recent theoretical developments in Victimology”, 1’ieti- mo!og\\ 1979. 4. 198; idem, “Victims of abuse of power: the David/Goliath Syndrome”, em idem (comp.), The plight o f crime victims in m odem society, Londres, Macmillan. 1989, p. 68 s.

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tralizar sua consciência e estigmatizar a vítima, convertendo-a em vítima culpável ou culturalmente legitimada. Fattah sugere o que depois amadureceram outros investigadores: a possibilidade de que, em alguns tipos de delito - por exemplo, os de terrorismo a vítima se ligue afetivamente à pessoa e à “causa75 de seu vitimador (e, em certo sentido, bem-feito), de maneira tal que brote a síndro- me de Estocolmo.41

Merece também ser lembrado o estudo de R. F. Sparks42 sobre como pode a vítima contribuir para a sua própria vitimação de ma­neiras diversas, segundo os diferentes tipos de sua personalidade e suas circunstâncias. Pode dar-se a “precipitação” , isto é, que a ví­tima com seu comportamento anima e excita o vitimador; assim, com freqüência, em supostos delitos de estelionato e sexuais. Ou­tras vezes, a “vítima, por negligência ou por excessiva audácia”, facilita o comportamento do vitimador, isto é, expõe-se voluntaria e inconscientemente ao perigo. Outras vezes, não é por negligência nem inconsciência, senão por vulnerabilidade, que pode consistir em sua situação social ou em suas qualidades pessoais. Por fim, em não poucos casos, as “vítimas atrativas”, por sua maneira de com- portar-se, ou por seu estilo de trabalho ou de diversão, atraem o vitimador.

Hilda Marchiori, segundo o Relatório da Sociedade Mundial de Criminologia, de 25 de setembro de 1992, investigou atenta­mente a influência que tem, na comissão dos delitos, a relação en­tre o delinqüente e sua vítima. Esta relação pode ser dividida em três grupos. Primeiro: dentro da família, são muitos os delitos co­metidos contra menores; estes, facilmente, se convertem em delin­qüentes quando chegarem a certa idade: também é freqüente o homicídio pela “identificação emocional” ou ciúmes; o álcool con­tribui para um maior número deste tipo de delitos. No segundo, entram os casos em que as vítimas são conhecidas do vitimador, mas não são familiares; a aproximação profissional, a domiciliaria,

41F. Alonso-Femandez, Psicologia dei terrorismo, Barcelona, Salvat. 1986, p. 314 ss., p. 364.R. F. Sparks. Research on victims o f crime: accomplishmenis. issues. and new directions. U.S. Department of Health and Human Services. Rockville (Md.). 1982.

42

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etc. permitem a ocorrência de situações e costumes das vítimas para facilmente cometer os delitos de roubo, sexuais, inclusive homicídio, por vingança, etc. O terceiro grupo vem composto por aqueles que não se conhecem pessoalmente; mas o autor do delito, com freqüência, tem notícias prévias de algumas circunstâncias do lugar, da profissão ou dos costumes da vítima - por exemplo, quem comete algum delito de roubo, abuso sexual ou lesões a uma pros­tituta.43

José Luis da la Cuesta Arzamendi dirigiu um estudo, no Insti­tuto Vasco de Criminologia, sobre as vítimas de roubos e agressões violentas na cidade de Vitória-Gasteiz, para comparar os resultados com a pesquisa de Johan Goethals e Tony Peters, do Departamento de Criminologia da Universidade Católica de Lovaina. Constata-se que, na capital de Alava, em 53 casos (70,7%), as vítimas não co­nheciam o agressor e supõem que eram viciados em drogas (19 casos; 25,3%), pessoas com problemas psicológicos (11 casos; 14,7%), jovens (5 casos; 6,7%), pessoas que já estiveram em pri­sões (2 casos; 2,7%)...

Em 22 casos (29,3%), a vítima conhecia o agressor, por ter uma relação pessoal ou profissional, ser vizinho...; em trinta casos (40%), havia pessoas que viram o sucedido e cuja reação foi valo­rizada pela vítima, de maneira positiva, em 76,7% dos casos e ne­gativamente só em 16,7%.44

Paralelamente, ou melhor dito, algo depois das pesquisas a respeito das coordenadas clínico-individualistas da vítima, intensi­ficaram-se os estudos a respeito da situação e do contexto sociai que, sem dúvida, influem mais ou menos no perigo da vitimação. J. Garofalo, M. Hindelang e M. Gottfredson4 trabalharam sobre o modelo de vitimação baseado no estilo de vida e na exposição ao perigo e a colocação em perigo {Life style/exposure model o f victi- mization). Esses autores entendem por estilo de vida a costumeira

43Elias Neuman, Personal idad dei delincuente, México, Porrúa, 1978, p. 67.44

J. L. de la Cuesta, Informe sobre víctimas de robos y agresiones violentas en la ciudad de Vitoria-Gasteiz, Annales Infernationales de Criminologie, vol. 31. n - 1-2, 1993. n. 107 ss.

45M. Hindelang e M. Gollfredson, Victims o f personal crime: an empírica/ fo ttn - da t ion fo r a theory ofpersonal viciimization, Cambridge (Mass.). Ballinger.

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atividade cotidiana que desenvolve a pessoa 110 campo de trabalho, de lazer e de tempo livre. Pela “colocação cm perigo” , o grau de perigo da pessoa concreta, levando em conta o lugar e o momento que influenciam no fato de serem vítimas do delito; por “associa­ção”, a freqüência com que a pessoa estudada se relaciona ou se associa com outros indivíduos, mais ou menos inclinados a come­ter delitos. Analisam em que percentual cada uma dessas variáveis influi 11a sua vitimação.

J. G aro falo chama a atenção sobre 0 paralelismo que existe entre “o modelo baseado no estilo de vida” e o “modelo baseado 11a atividade rotineira ou cotidiana”, que haviam estudado L. E. Cohen e M. Felson, 110 ano de 1979.46 Finalmente, destaca a importância da conduta e do comportamento do grupo social mais que os dados e as características pessoais.

47Seguindo essa linha de trabalho, S. Smith investiga, na cida­de de Birmingham, a influência das atividades realizadas 110 tempo livre. Observa que quem desenvolve sua atividade mais de três dias por semana é vítima em 40% dos casos, enquanto quem a desenvolve em atividades de tempo livre unicamente dois ou um dia por semana só é vítima em 30% ou 10%. Naturalmente, influem muito o dia, o momento (a tarde ou os fins-de-semana) e as situa­ções: contatos diretos pessoais. Em resumo, a probabilidade de vitimação diminui para quem se envolve menos nas atividades de tempo livre.

Eminentes especialistas chegam à conclusão de que, em muitos casos, convém considerar o crime como uma forma de interação social que brota de específicos contextos sociais; neles, a distinção entre delinqüente e vítima nem sempre aparece como conceitual- mente útil.

Fattah, em sua conferência pronunciada em 4 de novembro de 1992, na Si 111011 Fraser University, no Halperna Centre, sobre a vi-

4 riJ. Garofalo, “Social change and crime rate trends: a routine aetivity approach”.American Socioloqical Review, 1986, 44, 588.

47 .S. Smith, “Victimization in lhe inner city". British Journal o f Criminolngy, 1982. 22. 386: idem, Crime, space and societv, Cambridge, Cambridge Univer- sity Press. 1986.

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48limação como antecedente do delito, estuda atentamente a não- dualidade “delinqüente e vítima”, a relação entre suas duas condu­tas, e comenta o laço que une a vítima ao delinqüente, pois são dois lados da mesma moeda. Por isso, torna-se impossível conhecer o delinqüente sem conhecer a vítima. A personalidade daquele e desta coincidem muitas vezes.

Contra o que se costuma crer, as pessoas vítimas e as pessoas delinqüentes não são coletivos distintos e que se excluam. Em certo grau, são homogêneas e se encobrem mutuamente. A pessoa vítima de ontem com freqüência é a delinqüente de amanhã, e a delinqüente de hoje é a vítima de amanhã. Os papéis de vitimador e de vitimado não são fixos, nem estáticos, nem permanentes, mas sim dinâmicos, mutáveis, intercambiáveis. O mesmo indivíduo pode, sucessivamente ou simultaneamente, passar de um papel a outro.

Dentro dessa problemática, Smith diversifica três classes de delitos:

a. Aqueles em que a ausência de elo entre delinqüente e vítima é patente, porque não existe entre eles comunicação alguma. Por exemplo, quando a vítima cai ferida por um desconhecido que dispara em direção a todos os que passam em um lugar público muito concorrido.

b. Aqueles em que existe uma certa, mas frágil, relação entre de­linqüente e vítima. Por exemplo, o jovem ao qual o mesmo gru­po de vizinhos lhe roubou, repetidas vezes, a bicicleta.

c. Aqueles em que existe uma intensa conexão entre delinqüente e vítima. Por exemplo, quando o delito é levado a cabo entre fa­miliares e/ou amigos.

Essas conclusões confirmam a intuição inicial de Luis Jinienez de Asua e Hans von Hentig, â qual nos referimos antes.

4KE. A. Fattah, “Victimization as antecedent to offendmg. The revolving and in- terchangeable roles of victim and victimizer”, Simon Fraser Universily. Hal- pern Centre. 4 de novembro de 1992 (ma n use ri (o); W. liasse me r. F. Mu noz Conde. Introducción a Ia criminologia y al derecho penal. Valência, Tirant !o blanch, 1989, p. 30.

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Graus de vitimação

Vitimação primária

Sobre os graus de vitimação, estão sendo realizadas várias pesquisas, porque nesle problema não basta o sentido comum, nem os critérios tradicionais. Esses estudos matizam os diferentes fato­res etiológicos e as diversas conseqüências e soluções a respeito do primeiro, do segundo e do terceiro danos. Por primeiro dano enten­de-se o que deriva diretamente do crime. Ao contrário, o dano se­cundário emana das respostas formais e informais que recebe a vítima; e o terceiro dano procede, principalmente, da conduta poste­rior da mesma vítima. Outra terminologia, mais freqüente, fala de vitimação primária, secundária e terciária.

Agora recordemos 11111 par de pesquisas sobre a primária. E. Amanat,JV como resultado de um exame clínico em 54 pacientes, vítimas de agressões sexuais, distingue entre uma resposta inicial de “alarme” e uma subseqüente reorganização. A reação inicial provoca intensos efeitos múltiplos negativos, como desespero dos pacientes (86%); lembrança de outros pretéritos sucessos traumáti­cos (76%); hiperemotividade intensa, como ansiedade, medo, sen­sação de abandono, de humilhação, depressão, raiva, sensação de culpa (86%); sintomas físicos, como espasmos musculares e náuseas (43%); perturbações 110 sono (68%); bloqueio do pensamento (72%); dificuldade de concentrar-se (72%); idéias hipocondríacas (78%); problemas sexuais (78%).

A pesquisadora do Ministério do Interior do Reino Unido Pat Mayhew, em seu trabalho “Les effets de la délinquance: les victí- mes, le public et la peur”,50 opina que a delinqüência comum em suas formas mais freqüentes não produz conseqüências muito gra­ves. Mas o número de pessoas afetadas é alto em termos absolutos, e merecem grande consideração os traumatismos afetivos, etc.

4*>E. Amanal, “ Rape trauma syndrome: developmentat variations", em 1. R. Stu- art, J. G. Greer (comps.). Victims o f sexual agression: treatment o f chiidren. wonien and men. Nova York, Van Nostrand Reinhold, 1984.P. Mayhew, “Les effets de la délinquance: les victimes, le public et la peur", Recherches sur la victimisalion. Consejo de Europa, Comi té Europeo de pro­blemas penales, Estrasburgo. Í9S5. p. 69 ss.

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(p. 76 s). Comenta alguns dados do British Crime Survey, de 1982, 1983 e 1984, a respeito dos efeitos imediatos em três mil vítimas e suas famílias; ressalta que 40% declararam que não sofreram efeitos notáveis; ao contrário, 12% das vítimas afirmam que têm sofrido muitíssimo, também 24% de quem sofreu um roubo, e de modo semelhante 20% das pessoas as quais lhes haviam furtado seu veí­culo e 30% dos sujeitos passivos de lesões ou roubo com armas.

Segundo Miguel An gel Soria Verde e Aiigel Rincon Gascon,51 no estudo realizado nas delegacias de La Bonanova e Saut Gervasi, em Barcelona, durante os meses de janeiro e fevereiro de 1992, com um questionário aplicado a cem vítimas no horário da manhã, tarde e noite, repartidos ao acaso, e realizado por estudantes de quinto ano de psicologia; - deles, 53 do sexo masculino, contra 47 do sexo feminino deduz-se que em sua primeira reação, ao sofrer o descobrimento do delito, predominam o aborrecimento e o cho­que diante do sucesso, transformando-se, posteriormente, em um sentimento de aborrecimento/ansiedade, ao tempo que, progressi­vamente, a pessoa se acalma.

No estudo dirigido por José Luis de la Cuesta Arzamendi, ao que nos referimos anteriormente, observa-se que os sentimentos das vítimas no momento exato da agressão foram, sobretudo, de impotên­cia, raiva, aborrecimento (30 casos; 40%), medo, susto, nervosismo, angústia (30 casos; 40%). Depois da agressão, em 29 casos (38,6%) continuaram nervosas, com medo, susto, angústia, indefesos, inse­gurança, intranqüilidade e se manteve o sentimento de impotência, raiva, enfado, em 16 casos (21,3%), dez vítimas (13,3%) indicaram que se sentiam mal, muito mal.52

Lamentamos as lacunas de investigação vitiniológica no pro­blema do terrorismo53 e dos imigrantes. Estes, cada dia mais ire-

51 Miguel An gel Soria Verde e An gel Rincon Gascon, “Análisis descriptivo de las víctimas denunciantes en comisaría”. Ciência Policial, n- 18, julho-selembro de 1992, p. 75 ss.

' “ J. L. de la Cuesta, Informe sobre víctimas de robos y agresiones violentas en la ciudad de Vitoria-Gasteiz. Atmales Internationales de Crim inologie , vol. 31, nc* 1-2,1993. p. 107 ss.A. Serrano dedica inteligentes páginas ao tema das vítimas do terrorismo, em El cosfo dei delito y sus víctimas en Espana. Madri, Universidad Nacional de Edu- cación a distancia. 1986, p. 92 s.. e em “El terrorismo en el derecho espanol*’,

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qüentes na Espanha e na Europa, com gravíssimos problemas. Como indica Separovic, a principal característica do imigrante não é a de delinqüente, mas sim a de vítima.54 Atualmente, a crescente onda de imigrantes na Espanha e na Europa aumenta seus problemas vitimológicos e merece que se lhe preste mais atenção.

Vitimação secundária e terciária

Por vitimação secundária entende-se os sofrimentos que às vítimas, às testemunhas e majoritariamente aos sujeitos passivos de um delito lhes impõem as instituições mais ou menos diretamente encarregadas de fazer “justiça” : policiais, juizes, peritos, criminólo­gos, funcionários de instituições penitenciárias, etc.

Segundo Bernhard Villmow,55 a história do sistema penal de­monstra que a vítima nos últimos séculos se encontra desamparada, e também vitimada durante o processo penal; ela praticamente não é levada em conta; somente atuam o poder estatal, por uma parte, e o delinqüente, por outra. Ambos abandonam e desconhecem a vítima. “Muitas declarações oficiais e muitos estudos científicos lamentam que as vítimas se encontrem marginalizadas, reduzidas à impotência e que padeçam de importantes problemas afetivos”.

Durante o processo, a vítima é, no mais, um convidado de pe­dra. Outras vezes, nem convidado. Tão injusta postergação do su­jeito passivo do delito produz nele uma segunda vitimação, que aparece patente em todos os países de nossa cultura. Mais margi- nalização sofrem as vítimas que não são imediatamente sujeito passivo do crime. Por exemplo, em dezembro de 1992, uma autori­dade judicial do País Vasco afirmou que o escultor Agustín Ibar- rola não tinha nada a dizer no processo em que se julgava quem havia destruído uma obra artística dele, em Vitoria, porque a obra

em de la Cuesta, Dendaluze, Echeburua (comps.). Criminología y derecho p e ­nal aí servicio de la persona, Libro-homenaje al Prof. Antonio Beristain, San Sebastián, Instituto Vasco de Criminología, 1989. p. 919.

54Zvonimir Paul Separovic, l'ictimo!og};. Studies o f victims. Zagreb, 1985. p. 161 ss.

5:> Bernhard Vi 11 mo w. “Les implications de la recherche sur la victimisation en ce qui concerne la politique criminalle et sociale". em Consejo de Europa. Comitê Europeo de problemas penales. Recherches sur la victimisation. Estrasburgo. 1985, p. 113 ss.. p. 116.

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era propriedade da municipalidade, não de A. Ibarrola. “O autor da obra artística não é parte no processo penal”, disse.

Graças a numerosas investigações, vamo-nos conscientizando de que quem padece de um delito, ao entrar no aparato judicial, em vez de encontrar a resposta adequada às suas necessidades e d i­reitos, recebe uma série de posteriores e indevidos sofrimentos, incompreensões, etc., nas diversas etapas em que transcorre o pro­cesso penal: desde a policial até a penitenciária, passando pela ju ­dicial, sem esquecer a pericial.

Durante o curso sobre assistência às vítimas do delito, cele­brado em San Sebastián de 8 a 10 de abril de 1992,56 um dos conferencistas, Inaki Garcia Arrizabalaga, expôs, com detalhes concretos, as múltiplas dificuldades que encontram as vítimas do terrorismo em Guipúzcoa, concretamente, para receber informa­ções do que devem fazer para solicitar ajuda e assistência. Nos centros oficiais encarregados desse serviço, são recebidos com estranheza e distanciamento; somente lhes são oferecidos um for­mulário impresso, ou pouco mais; e, por certo, o pessoal parece carecer dos conhecimentos necessários, assim como de interesse e da sensibilidade desejável.

Ao longo do processo penal (já desde o começo da atividade policial), os agentes do controle social, com freqüência, se despreo­cupam com (ou ignoram) a vítima; e, como se fosse pouco, muitas vezes a vitimam ainda mais. Especialmente em alguns delitos, como os sexuais. Não é raro que nessas infrações o sujeito passivo sofra repetidos vexames, pois à agressão do delinqüente se vincula a postergação e/ou estigmatização por parte da polícia, dos médi­cos forenses e do sistema judiciário.57 Durante todo o processo, que termina no sistema penitenciário (dirigido majoritariamente por homens), observa-se, freqüentemente, que os agentes masculinos têm mais medo de condenar e/ou tratar injustamente os homens que as mulheres; nesse aspecto, move-lhes menos que o devido o princípio de justiça e eqüidade. Não observam a Declaração das Nações Unidas sobre a eliminação da discriminação contra a mu-

56 Eguzkilore, Cuadernos dei Instituto lasco de Criminologia. nL> 6, 1992, p. 123 ss.E. Neuman, Los víctimas deI sistema penal. Opúsculos de Derecho penal y Criminologia. Córdoba (Argentina), Marcos Lerner, p. 37 ss.

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!her, de 7 de novembro de 1967, nem a Convenção, também das Nações Unidas, sobre a eliminação de todas as formas de discrimi­nação contra a mulher, de 18 de dezembro de 1979.

Especial consideração merecem as investigações longitudinais de J. Shapland e D. Cohen,5* que junto com outros colaboradores, depois de estudar 278 delitos violentos, lesões e agressões sexuais, chegam à conclusão de que suas vítimas, nos primeiros contatos com a polícia, se encontram satisfeitas com o comportamento poli­cial, mas esta sensação vai piorando ao longo do tempo (os casos foram conseguidos durante três anos). No começo, a polícia acode de imediato, dá mostras de apreciar a gravidade do delito. Mas, depois, geralmente a vítima vai encontrando menos compreensão e, sobretudo, se queixa da falta de informação. Raríssimas vezes lhe é comunicado se o delinqüente foi preso, julgado, condenado, etc.; se reparou os danos, se devolveu o que roubou, etc. Também muitas vítimas manifestam que a polícia não está à altura devida para prestar-lhes a ajuda necessária ou esperada. Algumas vítimas de­claram que jamais voltarão a recorrer à polícia. Outras investiga­ções, em vários países, coincidem com essa avaliação negativa de Shapland e Cohen a respeito da atuação da polícia. Talvez essa fa­lha se deva, em grande parte, à escassa formação científica e hu­mana que receberam nas academias policiais. Não se esqueça de que ainda hoje existem muitas denúncias por casos de tortura policial em inúmeros países, segundo detalham, por exemplo, os relatórios anuais da Anistia Internacional, que os meios de comuni­cação poderiam divulgar e dar a conhecer com mais amplitude.

A atitude da vítima, quanto ao seu desejo de que ao delin­qüente se lhe imponha a justa sanção punitiva, vai mudando com o transcorrer do tempo de maneira distinta que a exigência de receber ela sua devida compensação. Esta permanece proeminente ao lon­go de todo o processo, como indicam Günther Kaiser e seus cola­boradores no Max-Plank Institut für auslãndisches und internationales Strafrecht.'

58J. Shapland e D. Cohen. “Facilities for victims: the role of the police and the courts”, The Criminal Law Review, 1987, 34. 28.G. Kaiser, “Criminology in a society of risks. Looking backward and ahead”, em G. Kaiser e H. Kury (comps.), Criminológica! Research in the J990's, t. 66/2, Freiburg i. Br., 1993, p. 20 s.

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O pessoa! judicial, às vezes, se esquece de que as vítimas ne­cessitam de um tratamento especial e não cumpre as medidas ade­quadas para a sua atenção. Com freqüência, desconhece algumas das facilidades que o sistema judicial oferece às vítimas,60 ou essas facilidades não chegam ao grau desejado.

Apesar das pesquisas realizadas em diversos países, parece que ainda restam importantes pontos obscuros para aclarar. Con­vém estudar mais detalhadamente os motivos pelos quais tanto po­liciais como pessoa] judicial contribuem, com freqüência, para uma ampla vitimação secundária daquelas pessoas a quem eles deveriam prestar unicamente justiça e assistência eficaz. Como indica Marti- nes Arrieta,61 também na Espanha, no âmbito judicial, temos de lamentar a vitimação secundária.

No estudo anteriomente citado de Soria Verde e Rincon Gas- con (Rev. Ciência Policial n2 18, julho-setembro, 1992), constata- se o diferente grau de satisfação e de desagrado das vítimas em su­as relações com a polícia. Em mais da metade dos casos, conside- ram-nas como positivas, 18% eiogiam-nas como muito positivas, e o mesmo percentual como mais negativo que positivo. Os dados seguintes detalham o grau de satisfação das vítimas em seu trato com a polícia: extremamente positivo, 7%; muito positivo, 18%; positivo, 55%; mais negativo que positivo, 18%; negativo, 2%.

Merecem ser estudados, principalmente, a vitimação secundária nas instituições penitenciárias e, concretamente, o caso de assédio sexual às mulheres internas e também às funcionárias.62 As vítimas queixam-se, especialmente, de atos como os seguintes: contatos físicos não desejados, comentários desagradáveis com alusões se­xuais, agressões psicológicas - como comentários de mau gosto ou humilhantes - , olhares mal-intencionados, imagens e ilustrações pornográficas, fotos degradantes, etc.

60Michael Kaiser. “Implementation and evaluation of legai provistons. Objectíves and enforcement of lhe Victim’s Protection Act” , em G. Kaiser e H. Kury (comps.), Crimino/ogica/ rcsearch in the 1)90 's, t. 66/2. Freiburg i. Br., 1993, p. 45 s.; G. Landrove Diaz, “La víctima y el juez”. Victimología, San Sebastián, 199Ü, p. 188 ss.Cf. Martinez Arrieta, Actualidadpenal, 22-28-29 de janeiro e 4 de fevereiro de1990, p. 121-132.Lisa Hitch, “Creating a harassment-free workplace”, The correctional se/ vice o f Canada, Report on the Conference for Wonien in CSC, Montreal, 1992, p. 23 ss.

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A respeito da vitimação terciária, limitamo-nos a recordar que, às vezes, emerge como resultado das vivências e dos processos de atribuição e rotulação, como conseqüência ou “valor acrescentado” das vitimações primária e secundária precedentes. Quando alguém, por exemplo, consciente de sua vitimação primária ou secundária, avoca um resultado, em certo sentido, paradoxalmente bem-sucedido (fama nos meios de comunicação, aplauso de grupos extremistas, etc.), deduz que lhe convém aceitar essa nova imagem de si mes- mo(a), e decide, por meio desse papel, vingar-se das injustiças sofridas e de seus vitimadores (legais, às vezes). Para vingar-se, se autodefine e atua como delinqüente, como viciado em drogas, como prostituta.63 Talvez a biografia de alguns mártires e santos possa ilustrar, com novas luzes e novas valorizações, a relação e o paralelismo que necessitam de profunda revisão entre vítimas, he­róis e canonizados/’4 Convém estudar mais a possível relação entre certos martírios e a vitimação terciária. Entre a pessoa heróica ou canonizada e a vítima terciária, podem ocorrer não poucos pontos comuns. Tão difícil é sair do círculo virtuoso como do vicioso.

Sociedade/jmlicatura

Haverá que dar aos jovens, drogados e não-drogados, elementos que lhes permitam fazer fluir sua criatividade. Que seus sentimentos e suas

mãos possam concretizar para eles e para os demais, para a sociedade toda, um mundo mais imaginativo e em paz. Dar-lhe um conteúdo para

essa dessacralização do homem que temos criado, e ter o tino, a har­monia interior, de oferecer a esses jovens coisas concretas para viver

e ideais pelos quais sonhar.

Elias Neuman.C rim inologiay dignidad humana (Diálogos), 2a edição. 1991, p. 200.

63 F. Dunkel, “Fundamentos victimológicos generales de la relación entre victima y autor en derecho penaP’, em A. Beristain, J. L. de la Cuesta (comps.), Victimolo­gia , VIII Cursos de Verano, UPV/EHU. San Sebastián, 1990. p. 170; G. Landrove. “La victimización dei delincuenle”, Victimologia, San Sebastián, 1990, p. 153 ss.

64A. Beristain, “La victimologia ante las persecuciones a Ignacio de Loyola y los jesuitas", em J. Caro Baroja, A. Beristain (comps.). Ignacio de Loyola, Magis- ter A r ti um, p. 95 ss.

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Controles informais e arf. 117 da Constituição Espanhola

Por “sociedade/judicatura” entendemos aqui todas as pessoas individualmente consideradas e também enquanto associadas em instituições privadas, não-governamentais, e públicas, especialmente o Poder Judiciário e as relacionadas com ele: a judicatura.

Atualmente, a mulher e o homem da rua - queiram ou não queiram - necessitam recobrar seu protagonismo no controle social, também 110 campo da justiça penal, que têm abandonado, excessi­vamente, em mãos do Poder Judiciário, com funestos resultados, não somente o de sua lamentável lentidão. Com muita freqüência, grande número de sentenças chega tarde, quando o trem já saiu da estação, quando os interessados já faleceram. Os controles sociais formais hoje em uso - polícia, juizes, cárceres - não funcionam como devem. Quando os acudimos, às vezes, é pior o remédio que a doença. Por isso, Marc Ancel propugnou a desjuridização do di­reito penal.65 Por isso, muitos abolicionistas (não só L. Hulsmann) pedem 0 desaparecimento total (melhor dito, quase total) do direito penal. Já ninguém, ou quase ninguém, nega que os cidadãos hão de participar mais ativamente nos assuntos judiciais e nos assuntos penais; o jurado parece, cada dia, mais necessário, ainda que não 0 exigisse 0 artigo 125 da Constituição Espanhola. Todos recorda­mos que a justiça emana do povo, como reconhece a mesma Cons­tituição, em seu artigo 177.66

Ontem, nas sociedades pré-modernas, o controle informal dos vizinhos, dos grêmios, dos familiares, etc. filtrava grande parte dos comportamentos socialmente chainativos e criminais; hoje, nas macrourbes do terceiro milênio, os vizinhos da mesma casa (do mesmo arranha-céu) nem se conhecem, as famílias vivem mas não convivem, superaram a tradicional coerência e a força educativa controladora.

65 A. Beristain, La pena-retribución y Ias acluates concepcioues criminológicas, Buenos Aires, Depalma, 1982, p. 69 ss.

66 A. Beristain, “La justicia emana dei pueblo? Consideraciones criminológico- victimológicas acerca dei jurado”, El jurado si: pe.ro cómo y ctiándo?, Studin Juridica 2, Consejo General dei Poder Judicial, Barcelona, Center dEstudis Jurf- dics i Formació Especial itzada de la Generalitat de Catalunya, 1992, p. 225-240.

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Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimoiogia H 1

A todos, mas especialmente aos operadores da justiça penal, nos compete abrir urna porta muito larga para que a cidadania tome parte ativa - não somente subsidiária - no controle social e, especi­almente, na assistência às vítimas do delito.

Programas de acolhimento, assistência e indenização

Entre as metas para as quais tende a vitimoiogia, destacam-se a prevenção (que não tratamos aqui) e a resolução final dos con­flitos sociais e delitos, evitando, todo o possível, a sanção penal e também o processo penal.

Já desde finais dos anos 1970 se tem analisado como os escri­tórios de assistência às vítimas encontram muito boa acolhida por­que a todos satisfaz saber que se atende a quem sofre; e também porque se espera que, atendendo às vítimas, diminuirá notavel­mente a criminalidade e aumentará o respeito aos direitos huma­nos. Além disso, por outro lado, a vítima que não recebe o tratamento devido da sociedade pode cair na delinqüência/'7

J. J. M. Van Dijkfil< mostra outros fatores que contribuem para a intensificação de pesquisas e de ações assistenciais, por exemplo: a convicção de que, atualmente, o sistema penal não consegue os fins que pretende; que, para conseguir, necessita de uma injeção nova, como pode ser a vitimoiogia praticamente restaurativa e criativa. Aqui e agora, para alguns, teria aplicação analógica a tese XI de Marx para Feuerbach: deixemos já de continuar conhecendo os sujeitos passivos do delito e começemos a fazer algo e a transformar nossas pesquisas em ações. Para outros, “tem, entretanto, um gran­de caminho desde a teoria à prática”, como escreve Claus Roxin M

Também contribui, para o desejo de atender mais e melhor às vítimas, o aumento de certos tipos de delitos que afetam muitas

67Susíhi Hillebrand, “Legal aid to crime victims”, em Fattah (comp.), The plighi o f crime victims in m odem society, HoundmiHs. Macmillan, 1989, p. 310 ss. “Research and the victim movement in Eu rape”, em Consejo de Europa, Co­mitê Europeo de problemas penales, Research ou victimization, Estrasburgo, 1985, p. 3 ss.C. Roxin, “La reparactón no sistema jurídico-penal de sanciones”, Ctiadernos dei Consejo General dei Poder Judicial Jornadas sobre la "Reforma dei Dere­cho Penal en Alemania", Madri, 1991, p. 23

6‘J

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112 Antonio Beristain

pessoas (como os furtos e roubos domésticos), que exigem repara­ção, e a constatação de que a justiça penal abandona e marginaliza as vítimas, sobretudo algumas mais indefesas (crianças, anciãos, mulheres, estrangeiros). Também as denúncias e as propostas de programas concretos que formulam as novas instituições de defesa dos direitos da mulher. E, notavelmente, o ressurgir da ciência vi- timológica a partir de seus simpósios nacionais e internacionais.

Encontram especial eco as freqüentes pesquisas por meio de questionários sobre vitimação (inctimization surveys) que têm re­colhido dados sumamente críticos contra a eficácia do direito pe­nal, e os paralelos questionários de opinião sobre a criminalidade (pnblic opimon surveys), sobre o medo dos cidadãos perante a cri­minalidade atual ou futura e a eficácia de alguns programas as- sistencíais de prevenção contra o medo. Muitos governos, como o francês, o australiano, o estadunidense e outros, têm criado comissões governamentais que têm realizado estudos e análise do medo di­ante da criminalidade e do resultado da assistência às vítimas.

Concretamente, a respeito da assistência às vítimas, e das in­vestigações correspondentes, merecem algum comentário os três programas seguintes:

A. Programas de acolhimento urgente ou imediato;B. Programas de assistência dentro do sistema de direito penal, eC. Programas de indenização econômica.

A. Quanto aos centros de assistência imediata (shelters, crisis center), muitas investigações - por exemplo, a de B. Villmow70 - mos­tram a necessidade desses centros, pois a polícia, que costuma ser a que primeiro entra em relação com a vítima, geralmente não está suficientemente formada para cumprir sua missão as­sistencial. A tarefa consiste, basicamente, em escutar a vítima, ajudar-lhe a formular a denúncia, buscar-lhe alojamento, assis­tência médica e, sobretudo, assistência psicológica. Alguns paí­ses conseguem, suficientemente, essa assistência primeira, mas

70 .B. Villmow, “Les implications de Ia recherche sur la victimisation en ce qui concer­ne la polilique crimineUe et sociale”, em Consejo de Europa, Comitê Europeo de problemas penales, Recherche sur la vicdnnsaikm, Estrasburgo. 1986, p. 73 ss.

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outros se encontram ainda dando os passos iniciais. Em algu­mas comunidades autônomas espanholas, vai-se conseguindo não pouco, como veremos depois.

Em geral, escassas são as vítimas que encontram atenção ime­diata com a urgência desejada. Em nenhum país, exceto talvez o Reino Unido, chegam a vinte por cento. Villmow insiste em que para evitar desperdício pessoais e econômicos, etc., antes de proce­der à abertura desses centros, urge pesquisar as necessidades por meio de estudos locais que descubram quais as mais urgentes e graves (ocultas, em geral), que constatem os tipos de delitos mais freqüentes, as características das vítimas e as coordenadas do sis­tema penal (suas lacunas principais) e do serviço da polícia, etc.

B. O segundo grupo de centros de assistência dentro do sistema do direito penal, o que em inglês se denomina Victiin/wiítwss assistance programs v/waps, abunda mais nos EUA e Canadá; também existe na Inglaterra e um pouco menos na Alemanha e em outros países europeus. Procuram prestar assistência contí­nua às vítimas, tanto em nível emotivo como em nível prático: antes, durante e depois do processo. Antes, facilitando-lhes as gestões da denúncia que em algumas situações de terrorismo deveriam manter certo anonimato, como se pretende legalizar no País Vasco; durante, evitando-lhes a segunda vitimação; e, depois, com os programas de compensação e os possíveis in- tentos restaurativos e reconciüadores, etc.

Kaiser insiste na importância da denúncia da vítima (e das testemunhas). Ainda que não ignore que, freqüentemente, o viti- mador ameaça as vítimas (e as testemunhas) para que não o denun­

71 G. Kaiser, Kriminologie, E im Einfühnmg (fie Gnmdlagcn, 9~ ed., Heidelberg, C. F. Miilier Juristischer, 1993. p. 33U ss, p. 463 ss.; idem, Iniroducción a la Criminoh- gía, T ed., trad. J. Arturo Rodríguez Núnez, sob a orientação de J. M3 Rodríguez Devesa, Madri, Dykinson, 1988. p. 134 ss., p. 340 ss.; H. Kury, U. Dõrmann, H. Ri- chter, M. Würger, Opfei■erfalnimgen und Meinungen zur Inncren Sicherheit in Deutschand. Eiu empirischer Vergleich von Viktimisiemngen, Anzeigeverhalten und Si dlerhe il.s cinsci lüízt mg in Osf und IVest vor der Vereinigimg, Wiesbaden, Bim- deskriminalamt. 1992, p. 45-163.

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ciem. Concretamente, segundo a investigação que Geis realizou no Brooklyn em 1983, questionando e entrevistando 153 vítimas, cons- tata-se que a maioria das ameaças do delinqüente para evitar que o denunciem consiste em agressões físicas, ameaças verbais e atos de vandalismo que atemorizam, ao menos, 10% das vítimas.

A respeito dos resultados desses escritórios assistenciais, G.72Norquay e R. Weiler concluem que, em geral, seus clientes os

consideram positivos, sobretudo porque lhes têm poupado muito tempo e muitos desgostos em suas relações com o aparato judicial, tão complexo e “distante” das vítimas. Mas também se constata a insuficiente eficácia das respostas que oferecem ao delito tanto as instituições judiciais como as comunitárias.

Na Espanha, atualmente, os principais centros desse tipo fun­cionam em Valêneia (desde o ano de 1985), Barcelona, Palma de Maiorca (onde foram realizadas algumas jornadas internacionais sobre o tema) e em Bilbao.

Em Valêneia, foi aberto o primeiro Escritório de Ajuda às Ví­timas dos Delitos, em 16 de abril de 1985, com meios escassos, mas com frutos satisfatórios, como indica Fely Gonzaiez, que foi o

* » 7 «pioneiro. ‘ Quatro anos mais tarde, em 6 de abril, começou a funcio­nar o segundo Escritório, em Barcelona, dependente do governo municipal. Dependente da Comunidade Autônoma Balear, criou-se o terceiro, em Palma de Maiorca. Este tem fomentado também atividades de pesquisas no campo vitimológico. Depois comenta­remos a práxis no País Vasco.C. A respeito dos primeiros programas de compensação econômica,

já havíamos indicado que surgiram na Nova Zelândia, no ano de 1963, e na Inglaterra, no ano seguinte.74 Atualmente, existem em muitíssimos países europeus e extra-europeus. Merece ser citado o Centro de Assistência à Vítima do Delito, em Córdoba,

72Service o f victims and wifness o f crime in Canada, Communication Di vision, Ministry of the Solicitor General, Ottawa, 1981.

71 F. Gonzaiez, “Derechos humanos y la vícti ma”, Eguzkiíore. Cnadernn dei Ins­tituto Vasco de Criminologia, n~ 3, 1989, p. 107-114.

74 A. Berislain, “Proyecto de declaración sobre justicia y asistencia a ias vícti- mas”, Estúdios de derecho penal en hornenaje a l Profesor Lu is Jhnénez de A sita, Revista de la Facultad de D erecho de ia U niversidad Cotuplutense, Monográfico nü 11, junho de 1986, pp. 117, 120.

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Argentina, dirigido por Hilda Marchiori, com 22 pessoas inte­grantes e seis colaboradores.75 Na Espanha, a legislação foi co­mentada por José Lu is de la Cuesta,76 Alfonso Serrano,77 Jaime M. Peris Riera,78 Gerardo Landrove,™ F. Benito,M) K. Madle- nersi e outros especialistas.

No México, uma pesquisa séria vitiniológica foi realizada 110 ano * * *de 1976, dirigida pelo prof. Luis Rodriguez Manzanera." A respeito

do ponto que especialmente nos interessa agora - a compensação à vítima temos de reconhecer, como conclui o diretor da investi­gação, que apesar de que já desde agosto de 1969 existia no Méxi­co uma lei modelo, entretanto, muito poucas pessoas têm recebido a compensação econômica propugnada.

Foram discutidos os fundamentos e as finalidades dessa com­pensação. Alguns baseiam-na no Estado social de direito, outros na estrita justiça, outros na compensação que deve 0 poder governa­mental, por não conseguir evitar a criminalidade, etc.83 Ainda não se conseguiu que esses sistemas cheguem à meta desejada. R. Elias

73 H. Marchiori, “ Informe anual de gestión 1991”, Victimologia, Córdoba (Argen­tina), nu 3, 1992, p. 73 s.J. L. de In Cuesta, “A reparação da vítima no direito penal espanhol”, Fasckulos deciências penais, ano 5, vol. 5, nu 4. outubro-dezembro de 1992, p. 77 ss.A. Serrano Gomez, FJ casto dei delito y sus rictimas en Espafia, Madri, Univer- sidad Nacional de Educación a Distancia, 1986, p. 111 ss.

78J. Peris Riera, Provecciones penales de la victimologia. Excesas dogmáticos ante deficiencias prácticas, Valência, Generaíitat Valenciana. 1989.

79G. Landrove Diaz, Victimologia, Valência, Tirant lo blanch, 199Ü, p. 100 ss.F. Benito. “Hacia un sistema de indemnización estatal a las víctimas dei delito en Espafia'’, i a ley, 1988, 3, fundamentalmente p. 903.K. Madlener, “La reparacíón dei dano sufrido por la victima y el derecho pe­nal”, Estúdios de derecho penal y criminologia, en homenaje al prof. José Ma­ria Rodriguez Devesa, Madri, Universidad Nacional de Educación a Distancia. II, 1989, p. 12.“Victimización criminal en la ciudad de Xalapa, Veracruz’,! Estúdios Jurídicos, nL’ 10, p. 21 ss. A versão alemã está publicada em I I. J. Schneider, Das Verhre- chensopfer in der Strafrechtspflege, Walter de Gruyter. 1982, e em inglês um resumo pode ver-se em Victimization and fea r o f crime, de Richard Block, Washington, Departamenl of Justice, 1984, Cf, Rodriguez Manzanera, Victi- mologia, p. 76.A. Karmen, Crime vicíims. An introduction to victimology, Belmont (Cal.), 1984.

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compara o programa de Nova York com o de New Jersey e desco­bre que a maioria das vítimas necessitadas não é compensada, e quando o é não fica satisfeita. Muitas vítimas desconhecem a exis­tência desses programas. De fato, essas compensações não têm conseguido que os cidadãos colaborem mais com a justiça e, às vezes, advogam resultados negativos, de maneira que sua ação pode, muito bem, considerar-se meramente “simbólica” .84

Conciliação, mediação e reconciliação

A Humanidade está saudosa de reconciliação.

José Gomez Caffarena, “La conversión humanista dei Concilio Valicano II, aportación católica a una humanidad reconciliada"’,

P hihsophiapacis, 1989, p, 482.

Comecemos agora indicando algo a respeito das novas formas de conciliação, mediação e reconciliação. Aqui se dá um avanço qualitativo para a frente, pois se pede e se consegue a participação ativa do vitimador.

Segundo alguns especialistas, encontramos a mais avançada teoria e normativa legal dessas respostas à vitimação nos últimos anos na Alemanha, Áustria, Finlândia, França, Inglaterra/País de Gales, Noruega e Países Baixos. Façamos, pois, algumas conside­rações a respeito.

No curso de verão que se realizou em San Sebastián, de 1 a 4 de agosto de 1989, o prof. Dünkel falou, detalhadamente, sobre “A conciliação delinqiiente-vítima e sobre a reparação de danos: desenvolvimentos crescentes do direito penal e da prática no di­reito comparado” .115 Na República Federal da Alemanha, nos cinco

R. Elias, Victims o f the system: crime victims and compensaiion in American pulitics and criminal justice, New Brunswick (N. J.), Transaction Books, 1983; idem, “Alienating lhe victim: compensation and victim attitudes” , Journal o f Social fcsues, 1984, 40, 103; idem, “Community control, criminal justice and victim services”, em E. A, Fattali (comp.), From crime poiicy to victim policy, Londres, McMillan, 1986, p. 290 ss.F. Dünkel, “La conciliación dei incuente-vícti ma y la reparación de danos; de- sarrollos recientes dei derecho penal y de la práclica dei derecho penal en el derecho comparado”, Victimología, VIII Cursos de Verano, UPV/EHU, San Sebastián, 1990, p.. 113 ss.

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anos anteriores à pesquisa de Schreckling (1988), estabeleceram-se uns vinte projetos de programas de conciliação entre o delinqüente e a vítima. Em um deles, tive a sorte de participar, no dia 5 de julho dc 1989, em Münster. Infelizmente, ao procurar e/ou ao comentar a ressocialização do condenado, quase nunca os juristas de língua castelhana levam em consideração (nem falam da) a inci­dência positiva da relação pessoal, do diálogo do delinqüente com

✓ 87a vitima.A maioria dos projetos alemães refere-se aos jovens infratores

de quatorze a vinte anos. Mas, excepcionalmente, o projeto piloto de Tubingen dirige-se a adultos, com a finalidade de alcançar, me­diante a conciliação do delinqüente com a vítima, um incremento no número de sobrestamento de processos (de acordo com o pará­grafo 153 a do StPO).88

Algumas reformas penais - por exemplo, a de 1987 na Áustria - acolheram a proposta de importantes correntes vitiinológicas e am­pliaram as possibilidades de sobrestamento quando se constata um esforço sério do delinqüente para remediar e/ou eliminar, em geral, as conseqüências do delito, e especialmente em relação direta com a vítima.89

A moderna legislação austríaca de menores acolhe amplas cor­rentes vitimológicas tendentes a, somente com a resolução prejudi­cial, resolver o conflito manifestado pelo delito (pessoalmente, me parece imprópria a terminologia que considera delito a infração dos menores (inimputáveis) de quatorze e/ou de quinze anos... A Con­venção do Menor, das Nações Unidas, 1989, em seu artigo 37. fala de delitos dos menores, porém, no artigo 40, fala unicamente de infrações das leis penais). Em 90% dos casos, os trabalhadores so­ciais conseguiram estabelecer o contato pessoal entre o jovem e sua vítima, e em mais de 70% dos assuntos conseguiu-se a solução

Cf. Vietimología, San Sebaslián, 1990, p. 223.7Indiretamente, com relação ao art. 25.2 da Constituição Espanhola, cf. Plácido Fernandez Viagas Bartolome. “Las dilaciones indebidas y su incidência sobre la orientación de las penas”, Poder Judicial, i r 24, dezembro de 1991. p. 51 ss.88Rõssner/Hering. Tater-Opfer-Ausgleich im Ai/gemeinen Sírafrecht, 1988, p. 1.043.H. V. Schroli, “Aklives Reueverhalten - Moglichkeit einer Prozessbeendigung im Vorverfahren”, Õster. Juris. Zeil, 44, 1989, p. 7 ss.

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prejudicialmente. Os especialistas austríacos acertam ao pretender incluir nessas resoluções também pressupostos de que as vítimas são anônimas e múltiplas, como pode ser, também, uma empresa, uma instituição pública, etc.

Comprovou-se que, tanto na Alemanha (República Federal), como na França e na Inglaterra, a maioria dos vitimadores — entre 60% a 80% - cumpre com as prestações de reparação que prome­teu à vítima.w

Na França, estão sendo realizados, com caráter inovador qua­litativo mais que quantitativo, múltiplos programas de assistência às vítimas, que os especialistas analisam. Bonafe-Sc!imitt'íl informa a respeito do Programa de Estrasburgo, que surgiu de uma iniciati­va privada. Mantém um escritório que oferece ajuda às vítimas, e outro que oferece aos ex-presidiários. Suas tarefas têm lugar fora do sistema processual judicial oficial. Realizam-nas trabalhadores sociais com características de sua profissão social mais que da ju ­dicial. Atendem a poucos casos, mas as vítimas obtêm ajuda maior que a que obteriam no sistema judicial.

A respeito dos programas de mediação, na Itália oferecem inte­ligente informação T. Bandini, U. Gatti, M. I. Marugo e A. Verde.92

Nos EUA, tem-se discutido se os programas de reparação di­reta, mais ou menos direta, do delinqüente à vítima, contribuem para diminuir o número de penas privativas de liberdade. Os re­sultados das pesquisas até agora concluídas são contraditórios, pois, enquanto cm uns casos diminuem, em outros aumentam.

Autorizados penalistas e criminólogos consideram que a re­conciliação {Versõhmtng) ultrapassa o marco jurídico (que somente

90 F. Dünkel, “Tíiter-Opfer-Ausgleich und Schadenswiedergutmachung. Neuere Entwicklungen des Strafrechts und des Strafrechtspráxis im internationalen Vergleich”, em E. Marks, D. Rõssner (comps.), Tater-Opfer-AusgleielvVom Zwischenmenschlichen Weg zur Wiederherstellung des Rechtsfriedens, Bonn, 1989, p. 447 ss.; idem, “La conciliación delincuente-víctima y la reparación de danos: desarrollos recientesdel derecho penal...”, Victimología, 1990, p. 136.

91 J. P. Bonafe-Schmitt, La médiation: une justice douce, Paris, Syros-Altematives, 1992, p. 185 ss.

92 T. Bandini, U. Gatti. M. I. Marugo, A. Verde, Criminologia. II contributo delia ricerca alia conoscenza dei crimine e delia reaziom sociale, Milão, Giuffrè,1991, p. 764 ss., p, 768 ss.

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chega à compensação - Ausgleich) e, em certo sentido, ainda do controle social; consideram-no próprio, unicamente, do campo re­ligioso.91 Entretanto, a reconciliação vai abrindo caminho também em programas judiciais, graças sobretudo a alguns movimentos religiosos e de voluntários. Nos EUA, convém conhecer importantes conquistas dos menonitas e dos quakers. Os menonitas iniciaram o programa Victim/Offender Reconciliai ion Program em Ontário, no ano de 1974, dirigido por Kitchener, reconciliador dos jovens que haviam causado 22 vítimas em uma noite vandálica.94 Esse programa pretende organizar e conseguir o encontro reconciliador entre o autor do delito e sua vítima, a fim de que eles, com a ajuda de um terceiro, determinem as modalidades da reparação e da reconcilia­ção. Esse aspecto reconciliador ressurgiu em 1979, em Edhart (In­diana), fomentado por vários oficiais da Probaíion, que pertenciam a um grupo religioso preocupado com a ressocialização dos prisio­neiros - Elkart County Prisoner and Community Together”.95 De Michigan City, em Indiana, este Victim/Offender Reconciliation Re- souvce Ceníer (o programa) estendeu-se rapidamente a mais de 25 estados, com participação de vários profissionais e voluntários.'*’

O Prisoner and Community Together, com os menonitas, criou o Victim/Offender Reconciliation Resource Center e, desde o ano de 1985, estudou atentamente os programas que se utilizam nos EUA para vítimas e delinqüentes, com o fim de distinguir os de natureza civil ou penal dos de reconciliação. Como critério caracte­rístico desta, exigem três peculiaridades:1. Encontro pessoal-diálogo entre delinqüente e sua(s) vítima(s) na

presença de um terceiro mediador, devidamente especializado com formação específica.

2. Trata-se de problemas penais, não meramente civis. Cabe, natu­ralmente, a reparação civil e.x delicio.

93A. Beristain, “Paz y reconciliación en Euskadi”, Actuaüdad Penai, 22, 31 de maio a 6 de junho 1993, p. 305 ss.

94Peacliey, D., “The kitchener experiment'7. Mediai ion and criminal justice, Mar­tin Wright, Burt Galaway (eds.). Londres, Sage Publications, 1989. p. 14.

95Zehr, H., Media/ing the victim/offender confjict, Victim 01 fender Reconciliation Program, sem ano.

96Umbreit, M., “Victim/offender mediation: a national survey” , Federal Probation, vol. L, n“ 4, 1986, p. 53.

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3. A meta deve ser não somente a reparação, mas também a recon­ciliação, as quais exigem certos elementos - por exemplo, expressão de sentimentos, compreensão do sucedido, reconhe­cimento de seu delito e de sua culpabilidade, etc.47

De um total de 32 programas que se estudaram, 78% eram do setor privado e 22% do setor público. 0 conjunto desses programas cobria 2.400 problemas por ano, que haviam sido enviados por 42 tribunais; destes, mil provinham de Oklahoma Stcitewide Post- Convicíion Victim/Offender MedicUion Program. Cinqüenta e qua­tro por cento de todos os casos referem-se a jovens.

98Na França, segundo indica Bonafe-Schmitl, são poucos os programas desse estilo, excetuando-se o caso de Prado, em Bor- déus, pois numerosos juizes de menores opinam que nos casos de menores (enfants) se torna preferível aplicar a legislação nacional.

O mesmo especialista considera difícil calcular o número de programas que funcionam nos EUA com mentalidade de reconci­liação, mas opina que certamente superam a centenas, e encontram reconhecimento público. A US Association for Victim/Offender Médiation tem ajudado, notavelmente, quanto à formação dos tra­balhadores sociais e para o começo e o desenvolvimento eficaz desses programas.

Se tivéssemos mais espaço, convinha dizer algo a respeito das novas tendências da “justiça restaurativa” que brotam da vitimolo- gia, mas pretendem superá-la.w Amplamente, expôs-se o tema no XI Congresso Internacional de Criminologia, em Budapeste, de 22 a 27 de agosto de 1993.

97 Cf. Umbreit,...p. 54.98

J.-P. Bonafe-Schmitt, La médiation.... p. 177.99

Tony Pele rs, H. J. Hirsch, “Acerca de la posición de la víctima en el derecho penal y en e! derecho procesal penal”, Justicia penal y sociedad, Revista Gua­temalteca de Ciências Venales, nu 2, outubro de 1992, p. 13 ss.; Elmar Wei- tekamp, “Reparative justice; towards a victim oriented system”, Critica! Issues on European Crime Policy. European Journal on Criminal Policy and Rese­arch, vol. 1, nc 1, 1993, p. 70 ss.

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Centros de assistência às vitimas na Comunidade Autônoma Vasca

Em Bilbao, criou-se, em 14 de outubro de 1991, o Serviço de Assistência às Vítimas (SAV), dependente do Departamento de Justiça do Governo Vasco, e concretamente de sua Direção de Di-] (X) ♦rei tos Humanos, Ao final de outubro de 1992, trabalhavam no centro um advogado responsável pelo serviço (Juan Luis Euentes), uma psicóloga e um funcionário administrativo. Até esta data, re­ceberam atenção mais de 360 pessoas; uma média de trinta e tantas pessoas a cada mês. Durante os três primeiros meses, 80% das pes­soas que acorreram ao centro o fizeram por publicidade colocada nos meios de comunicação. Posteriormente, o maior percentual tem chegado por remessa das delegacias de polícia, dos juizados de guarda de menores e dos serviços sociais de base, com os quais se mantém uma estreita relação. Majoritariamente, atendem-se casos de maus-tratos (13,70%), ameaças (6,85%), delitos contra a liber­dade sexual (8,21%), agressões e transtornos psíquicos, delitos de “colarinho branco” , de violação de domicílio. 58,80% dos usuários foram mulheres. A maioria das pessoas demanda, fundamental­mente, informação sobre procedimentos judiciais (80,55%) e 56,25% propõem a necessidade de apoio emocional criada pela sensação de raiva e impotência que se produz na vítima de um delito. Outras atividades desse serviço consistiram na redação de informações periciais, na petição dos juizes e nas tentativas de mediação e con­ciliação. Ao SAV não compete a assistência às vítimas de terrorismo.

Em Bilbao, além do Escritório de Atenção às Vítimas do De­lito, e no mesmo local - no subsolo do Palácio da Justiça funcio­nam com os mesmos ou muito parecidos critérios e programas de atenção, informação e defesa das vítimas os serviços dependentes de bem-estar social da Prefeitura e da Assembléia Legislativa (Dipu- taciôn Foral) de Emakunde, os serviços de assistência à mulher do Instituto Vasco da Mulher e de outras associações feministas, e, mais recentemente, a Mesa de Segurança da Cidade de Biscaia, dependente do Centro Industrial e Mercantil da Câmara de Comér-

J. R. Palacio Sanchez-lzquierdo, “La asistencia a Ias vícti mas dei delito en Vizcaya”, Eguzkifore, nu 6, 1992, p. 160 ss.

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cio (com a colaboração da “Prefeitura de Bilbao”, de Eu dei, do Departamento do Interior do Governo Vasco, de promotores de justiça e de juizes da Audiência Provincial de Biscaia), e é de ca­ráter setorial e pretende atender, sem exdusivismos, aos comer­ciantes e empresários que sejam objeto de delito ou de agressões, Não havia coordenação entre esses diversos serviços,

O Escritório de Atenção às Vítimas do Delito, de Bilbao, é o único em seu gênero em Euskadi. Pretende-se instalar outros similares também em Vitória e San Sebastián. Nesta cidade, o Instituto Vasco de Criminologia iniciou gestões para esse fim, na Assembléia Le­gislativa (Diputación Foral) de Guipúzcoa.101

Na capital guipuzcoana, funciona, desde 1989, um programa de atenção psicológica às vítimas de agressões sexuais, dependente da Universidade do País Vasco, com apoio da Diputación Foral de Guipúzcoa e da “Prefeitura” de San Sebastián, dirigido por Enrique Echeburua, catedrático de terapia de conduta (personalidade, avalia* ção e tratamento psicológico), e Paz de Corra 1, professora da UPV.U)2 Foram atendidas, até finais de julho de 1992, 58 mulheres, a maio­ria delas jovens; uns 72% oscilam entre os 14 e os 25 anos de ida­de. Em 41% dos casos, violação com penetração; 36% dos casos foram delitos contra a liberdade sexual; 16% de incestos e 7% de violações dentro do matrimônio. O lugar mais freqüente em que se comete a agressão sexual é a rua, seguida do lar da vítima. Qua­renta e três por cento dos responsáveis pela agressão eram conhe­cidos da mulher e, ocasionalmente, familiares. Além do tratamento às pacientes, esse serviço psicológico realizou, no ano de 1991, outras atividades, com o fim de atender, da melhor maneira possí­vel, as pessoas que necessitam de socorro na ocasião de um delito sexual.

O Instituto Vasco da Mulher, em Emakunde, desde 1990, presta assistência à mulher vítima de delitos, principalmente de caráter sexual e de maus-tratos, em San Sebastián; posteriormente, abriu-se uma instituição similar em Vitória e, na primavera de 1992, outra em

Cf. Egm ki/ore , nu 3, 1989, p. 107 ss.E. Echeburua, P. Corrat, B. Sarasua, “El impacto psicológico en las víctimas de violación”, em Beristain, de la Cuesta (comps.), Cárcel de mujeres. Ayer y hoy de la mujer delincuente y víctima, Bilbao, Mensajero, 1989, p. 58 ss.

1(12

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Bilbao. Em San Sebastián e Vitória, colaboram as prefeituras e a Universidade do País Vasco; em Bilbao, a Universidade e a Dipu- tación Foral.

Conclusões de lege fere/t da

A arte pode melhorar a espécie humana e sua nova ordem social

Josepii Beuys

I. A vitimologia ultrapassa o âmbito, geralmente admitido, da ciência total do direito penal, que abraça a dogmática jurídico- penal, a política criminal e a criminologia. Trata-se de uma fecunda ruptura paradigmática. A vitimologia pode e deve enriquecer, radi­calmente, a teoria e a práxis do nosso controle social e, em espe­cial, do Poder Judiciário (penal). Algumas das dificuldades que obstaculizam esse desenvolvimento e essa aplicação da vitimo­logia explicam-se pelo fato de que a vitimologia provém da cri­minologia mais que do direito penal. Também porque opta pelas pessoas e instituições frágeis mais que pelas poderosas.

II. Para o progresso e o desenvolvimento de nossa nova ciência, a universidade pode e deve aportar sua metodologia própria. Concretamente, é seu desejo cada vez mais “armazenar” siste­maticamente investigações abertas, não-conclusivas, com meto­dologia interdisciplinar e empírica das realidades sociais, sem esquecer a criminologia, a medicina, a sociologia, a arte, a her­menêutica, etc.

Convém dedicar ampla atenção às pesquisas empíricas que se realizaram e que se têm realizado em diversos países, principal­mente por duas razões:-porque necessitamos conhecer seus resultados positivos, e tam­

bém os negativos; e- porque interessa mostrar, publicamente, que entre nós se pesquisa

menos do que o devido, por mil motivos; também por uma falsa interpretação do adágio latino prius est vivere deinde phdosopha- re , “primeiro se deve viver, depois se pode filosofar” , “que inves­tiguem eles” . Nosso orçamento nacional, destinado ao ensino e à

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pesquisa criminológico-vilimológica, não deve ser menor que em muitos países de nosso âmbito cultural.

Lamentamos a quase total carência, na Espanha, de estudos vitimológicos em geral, e, em particular, a respeito do abuso de poder, da síndrome de Estocolmo, das vítimas do terrorismo e dos fatores etiológicos deste. (Sem esquecer o influxo negativo da Igreja Católica vasca, especialmente em Guipuzcoa, como se indi­ca no Informe da Comissão Internacional sobre a violência no País Vasco, elaborado por C. Rose, F. Ferracutti, H. Horchem, P. Janke e J. Leaute, de 5 de junho de 1985 a 5 de março de 1986. No núme­ro 3.15.3 do Informe, afirma-se que, “ao julgar o terrorismo em Euskadi, a Igreja não tem cumprido sua missão”.)

III. Urge que se programe uma radical, mas inteligente, desjuridi- zação do controle social penal, especialmente no referente à prevenção da vitimação e à assistência à vítima do delito, e da seguinte vitimação secundária e terciária. Isso exige uma ex­tensa participação ativa da vítima, como protagonista da restau­ração, mediação, conciliação e reconciliação. Urge que se conceba uma nova estruturação da resposta (que a sociedade programe e realize) ao delito e â violência, com método não expiacionista, nem vingativo, senão restaurativo e, melhor ain­da, criativo, recriativo.

IV. A judicatura, mediante sua exigência de justiça, de liberdade, de racionalidade, de metarracionalidade e de legalidade, pode contribuir para uma baixa do fanatismo e da ignorância das re­ligiões ancoradas na pré-modernidade; e, por outra parte, pode enriquecer-se com a dimensão compreensiva e compassiva das mensagens teológicas em favor das vítimas marginalizadas e contra as estruturas injustas do poder político, religioso, eco­nômico, acadêmico, etc.

V. Para conseguir a eficácia desejada, urge estudar e conhecer mais profundamente o fenômeno derivado da criminalidade concreta de cada país e de cada época, e os reais danos (materiais, psi­cológicos, etc.) sofridos pela vítima, sem esquecer os aspectos epidemiológicos, a duração da vitimação, sua intensidade, sua valorização objetiva e subjetiva, em cada classe de vítimas.

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Também necessitamos de mais pesquisas a respeito da atuação tanto dos jornalistas e dos advogados como das instituições gover­namentais: universidade, polícia, pessoal de justiça e do sistema penitenciário. Capítulo à parte merece a questão da oportunidade e da eticidade de certas intervenções autorizadas legalmente, mas que podem violar a intimidade e a privacidade.

VI. Apesar de todas as limitações e deficiências que se observam na teoria e na práxis vitimológica, temos de reconhecer e aplaudir os notáveis progressos que estas têm conseguido no campo da dogmática penal e da criminologia. Tanto esta como aquela têm conseguido, nos últimos vinte anos, uma melhoria quanti­tativa e qualitativa que supera todo o alcançado no resto do século XX. Entretanto, a administração da justiça penal está hoje em crise profunda, como manifestam os temas que se expõem e se discutem nos congressos nacionais e internacionais, assim como os artigos encontrados nas revistas especializadas.

VII. No regulamento penitenciário, deve-se introduzir, em vários artigos, a possibilidade de que a vítima intervenha ativamente. Por exemplo, no art. 281, que estabelece as funções de jurista- criminólogo, deve-se incluir:

9 a. Inform ar aos in ternos a respeito de sua pussível relação atual c fu tu ra com os sujei los pass ivos e as d em a is v ít im as de seu delito, po r p rópria iniciativa, sem pre que ju lg u e adequado , ou por petição do(a) inlerno(a).

l ü a. A ssesso ra r e aconse lhar aos internos a respeito das possi­b ilidades e van tagens concre tas de co n seg u ir um a m ediação , um a co m p en sa ção e. inclusive, urna reconc iliação com os s u ­je i to s pass ivos e as dem ais v ítim as de seu delito.

Na Lei de Procedimento Criminal, há de fazer-se mais refe­rências às vítimas, e não equipará-las, necessariamente, aos sujeitos passivos do delito. Urge, pois, redigir com fórmulas radicalmente diferentes vários artigos, entre outros, os seguintes: 13, 109-113, 282,615-622, 650.

No Código penal, o legislador há de levar mais em conta os sujeitos passivos do delito e, também, as demais vítimas do mesmo.

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Por exemplo, nos artigos 101 e seguintes, referentes à responsabi­lidade civil. Especiais e mais radicais inovações devem ser intro­duzidas nos artigos 8-11 e 112-117 para dar entrada à mediação, à conciliação e à reconciliação, como circunstâncias que eximem, atenuam ou agravam a responsabilidade penal e como causas que a extinguem. O novo artigo 117 do Projeto de Código Penal de 1992 resulta insuficiente.

VIII.Esperamos e desejamos que a sociedade toda, com a universi­dade e as instituições do controle social, continue nesta d i­reção de solidariedade e de busca de intensificação de uma proximidade (vítima-vitimador) mais pacífica e mais gratifi- cante desde uma perspectiva nova das, já bisseculares, questões kantianas: Quem pode conhecer as vítimas e os vitimadores? O que devem fazer as vítimas e os vitimadores? O que devem esperar as vítimas e os vitimadores? Quem são - em nível mental, afetivo e energético - as pessoas vítimas e vitimadoras?

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Apêndice

Declaração sobre os princípios fundamentais de justiça para as

vítimas de delitos e do abuso de poder (ONU)

(Adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas por sua Resolução i r 40/34, de 29 de novembro de 1985).

As vítimas de delitos

1. Entender-se-á por “vítimas” as pessoas que, individual ou coleti­vamente, tenham sofrido danos, inclusive lesões físicas ou mentais, sofrimento emocional, perda financeira e prejuízo substancial dos seus direitos fundamentais, como conseqüência de ações ou omis­sões que violem a legislação penal vigente nos Estados-membros, incluída a que condena o abuso de poder.

2. Poderá considerar-se “vítima” uma pessoa, de acordo com a presente Declaração, independentemente de que se identifique, apreenda, processe ou condene o perpetrador e independentemente da relação familiar entre o perpetrador e a vítima. Na expressão “vítima” , incluem-se também, em seu caso, os familiares ou as pessoas a cargo que tenham relação imediata com a vítima direta e as pessoas que tenham sofrido danos ao intervir para assistir à vítima em perigo ou para prevenir a vitimação.

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3. As disposições da presente Declaração serão aplicáveis a todas as pessoas sem distinção alguma, seja de raça, cor, sexo, idade, idioma, religião, nacionalidade, opinião política ou de outra índole, crenças ou práticas culturais, situação econômica, nascimento ou situação familiar, origem étnica ou social, ou impedimento físico.

Acesso à Justiça e trato justo

4. As vítimas serão tratadas com compaixão e respeito por sua dignidade. Terão direito aos mecanismos da Justiça e a uma pronta reparação do dano que tenham sofrido, segundo os dispositivos da legislação nacional.

5. Estabelecer-se-ão e reforçar-se-ão, quando for necessário, meca­nismos judiciais e administrativos que permitam às vítimas obter reparação mediante procedimentos oficiais ou oficiosos que sejam expeditos, justos, pouco custosos e acessíveis. Informar-se-ão às vítimas seus direitos para obterem reparação mediante estes meca­nismos.

6. Facilitar-se-á a adequação dos procedimentos judiciais e admi­nistrativos às necessidades das vítimas:

a) informando às vítimas de seu papel e do alcance, do desen­volvimento cronológico e da marcha das atuações, assim como da decisão de suas causas, especialmente quando se trate de delitos graves e quando hajam solicitado essa informação;

b) permitindo que as opiniões e as preocupações das vítimas sejam apresentadas e examinadas em etapas apropriadas das atua­ções sempre que estejam em jogo seus interesses, sem prejuízo do acusado e do acordo com o sistema nacional de justiça penal cor­respondente;

c) prestando assistência apropriada às vítimas durante todo o processo judicial;

d) adotando medidas para minimizar os incômodos causados às vítimas, proteger sua intimidade, caso necessário, e garantir sua segurança, assim como a de seus familiares e a das testemunhas a seu favor, contra todo ato de intimidação e represália;

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e) evitando demoras desnecessárias na resolução das causas e na execução dos mandamentos ou decretos que concedam indeni­zações às vítimas.

7. Utilizar-se-ão, quando proceder, mecanismos oficiosos para a solução das controvérsias, incluídas a mediação, a arbitragem e as práticas de justiça consuetudinária ou autônomas, a fim de facilitar a conciliação e a reparação em favor das vítimas.

Ressarcimento

8. Os delinqüentes ou os terceiros responsáveis por sua conduta ressarcirão, eqüitativamente, quando proceder, as vítimas, seus fa­miliares ou as pessoas a seu cargo. Esse ressarcimento compreen­derá a devolução dos bens ou o pagamento pelos danos ou perdas sofridas, o reembolso dos gastos realizados como conseqüência da vitimação, a prestação de serviços e a restituição de direitos.

9. Os governos revisarão suas práticas, regulamentações e leis, de modo que se considere o ressarcimento como uma sentença possí­vel nos casos penais, além de outras sanções penais.

10. Nos casos em que se causem danos consideráveis ao meio ambiente, o ressarcimento que se exigir compreenderá, na medida do possível, a reabilitação do meio ambiente, a reconstrução da infra-estrutura, a reposição das instalações comunitárias e o reem­bolso dos gastos de relocalização, quando esses danos causarem a desagregação de uma comunidade.

11. Quando funcionários públicos ou outros agentes que atuem a título oficial ou quase oficial hajam violado a legislação penal nacional, as vítimas serão ressarcidas pelo Estado, cujos funcioná­rios ou agentes tenham sido responsáveis pelos danos causados. Nos casos em que já não exista o governo sob cuja autoridade se produziu a ação ou a omissão vitimadora, o Estado ou o governo sucessor deverá prover o ressarcimento das vítimas.

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Indenização

12. Quando não for suficiente a indenização procedente do delin­qüente ou de outras fontes, os Estados procurarão indenizar finan­ceiramente:

a) as vítimas de delitos que tenham sofrido importantes lesões corporais ou prejuízos de sua saúde física ou mental como conse­qüência de delitos graves;

b) a família, em particular as pessoas responsáveis, das víti­mas que tenham sido mortas ou tenham ficado física ou mental­mente incapacitadas como conseqüência da vitimação.

13. Fomentar-se-ão o estabelecimento, o reforçamento e a ampliação de fundos nacionais para indenizar as vítimas. Quando proceder, também poderão estabelecer outros fundos com esse propósito, incluídos os casos em que o Estado de nacionalidade da vítima não esteja em condições de indenizá-la pelo dano sofrido.

Assistência

14. As vítimas receberão a assistência material, médica, psicológica e social que for necessária, por intermédio dos meios governamen­tais, voluntários, comunitários e autônomos.

15. Informar-se-á ás vítimas a disponibilidade de serviços sanitários e sociais e, além disso, a assistência pertinente, e facilitar-se-á seu acesso a eles.

16. Proporcionar-se-á ao pessoal de polícia, de justiça, de saúde, de serviços sociais e demais pessoas interessadas capacitação que o faça receptivo às necessidades das vítimas e diretrizes que garan­tam uma ajuda apropriada e rápida.

17. Ao se proporcionar serviços e assistência às vítimas, prestar-se-á atenção às que tenham necessidades especiais, pela índole dos danos sofridos ou devido a fatores como os mencionados no pará­grafo 3 supra.

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As vítimas do abuso de poder

18. Entender-se-á por “vítima” as pessoas que, individual ou coleti­vamente, tenham sofrido danos, inclusive lesões físicas ou mentais, sofrimento emocional, perda financeira ou prejuízo substancial de seus direitos fundamentais, como conseqüência de ações ou omissões que não cheguem a constituir violações do direito penal nacional, mas violem normas internacionais reconhecidas relativas aos di­reitos humanos.

19. Os Estados considerarão a possibilidade de incorporar na le­gislação nacional normas que proscrevam os abusos de poder e proporcionem remédios às vítimas desses abusos. Em particular, esses remédios incluirão o ressarcimento e a indenização, assim como a assistência e o apoio material, médico, sociológico e social necessário.

20. Os Estados considerarão a possibilidade de negociar tratados internacionais multilaterais relativos às vítimas, definidas no pará­grafo 18.

21. Os Estados revisarão, periodicamente, a legislação e a prática vigentes para assegurar sua adaptação às circunstâncias mutantes, promulgarão e aplicarão, em seu caso, leis pelas quais se proíbam os atos que constituam graves abusos de poder político ou econô­mico e se fomentem medidas e mecanismos para prevenir esses atos, e estabelecerão direitos e recursos adequados para as vítimas de tais atos, facilitando-lhes seu exercício.

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Farte III

Direito penal

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Capítulo 6

A história caminha para a abolição da sanção capital

Coordenadas fundamentais

Paradoxalmente, a história muda, permanece e torna a mudar nas principais essências.humanas, como explica Zubiri. Algo pare­cido sucede ao tema da sanção capital, pois hoje tem plena atuali­dade o que 110 ano de 1912 escreveu P. E. Ugarte de Ercilla, S. J.:

Um dos p rob lem as dc mais aluai idade e in teresse social é, sem dúvida , o da pena dc m orte. A cada passo sc es tá ag i tando a questão na C âm ara Legislativa, e em livros, jo rn a is e rev istas se fala dela, c con tra ela, em todos os tons da sens ib il idade e ro ­m antism o, qualif icando-a de ím pia d ian te da relig ião e de ilícita d ian te da moral, de injusta diante do dire ito natura l, de a rb itrária ou d esp ropo rc ionada d ian te do dire ito positivo, e de ineficaz, ou m enos eficaz ou eficaz em dem asia , c, portan to , e respec t iva­mente, dc inútil ou inconven ien te , ou bárbara d ian te da p s ico lo ­gia do sen tim en to . '

Se se respeitam as coordenadas básicas da dogmática penal, deve-se falar de “medidas” mais do que de “pena” de morte, já que a maioria das pessoas condenadas à sanção máxima são sujeitos de

P. E. Ugarte de Ercilla. S. J., “La pena de muerte ante los eternos principios de verdad y ante o coeficiente de variabilidad”, Razón y Fe, niJS 139 e 140. Madri, 1912.

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suma periculosidade criminai, mas de mínima ou nenhuma liberdade. São pessoas inimputáveis, às quais não se pode aplicar pena alguma, pois todos os especialistas incluem na definição da pena o requisito de que o acusado atuou com conhecimento e vontade, com liberdade jurídica, por uma parte, e, por outra, que, como escreve Silvela, a pena serve para “a conveniente emenda do delinqüente”.

Os condenados por nossos tribunais não cumprem esses requisi­tos. Sim, cumprem, ao contrário, os requisitos das medidas penais.3

Apesar dessa observação crítica semântica, às vezes respeita­mos a (inexata) terminologia tradicional, pois estas páginas não pretendem elucidar problemas dogmáticos da licitude ou da ilicitu- de técnica.

A sanção capital implica a imposição da privação da vida, se­gundo as normas formais requeridas, pela autoridade judicial, e executada por uma ou várias pessoas legalmente competentes aos delinqüentes cuipáveis, autores de determinados delitos graves. É a sanção mais severa da administração da Justiça admitida em mui­tos países, cujas origens (e permanência), desde os primeiros tem­pos da humanidade, mostram uma lenta evolução relativamente unânime para o abolicionismo, ainda que com muitas particulari­dades, segundo os tempos, os regimes sociais, políticos e religiosos. Logicamente, nas sociedades primitivas, carecia das formalidades processuais que hoje se consideram substanciais e indispensáveis.

Desde datas imemoráveis e em nossos dias, essa sanção sus­cita discussões apaixonadas, dadas a sua complexidade e a sua transcendência, assim como seus efeitos tão graves que derivam em múltiplos campos científicos e sociais. De sua manutenção ou sua abolição, assim como das diversas técnicas legais para sua im­posição e sua execução, resultam conseqüências de suma impor­tância.

O instinto de vingança mortal encontra-se tão profundamente enraizado no “animal racional” que, para muitos, o fato de recusá- lo e de proibir sua expressão coletiva, mediante a abolição da san­

Francisco Agusíín Silvela. Con.sideraciones sobre la necesidadde conservar en los C ódigosy de aplicar en sn caso la pena capital, Madri. 1835, p. 15.A. Beristain, Medidas penales en derecho contemporâneo. Teoria, legislación p o sitiva y realizaciónpráctica, Madri, Reus, 1974, p. 52 ss.

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ção capital, implica uma frustração intolerável. Pelo menos, o aboli­cionismo significa um triunfo da solidariedade sobre a vingança, o medo e o ódio. um triunfo da humanidade sobre si mesma.

Em muitos países se vem conseguindo, mas ainda não o bas­tante, que as instituições culturais, políticas e eclesiásticas se inte­ressem e atuem eficazmente em prol da abolição total. Merece um aplauso excepcional a Anistia Internacional que, constantemente, fomenta ações antipena de morte. Também se pode recordar aqui a Associação de Direitos Humanos da Espanha, a Associação Espa­nhola contra a Pena de Morte, os catedrãticos de direito penal, etc.

Afortunadamente, a tendência abolicionista vem progredindo em muitos especialistas teóricos e em algumas legislações nacio­nais. Como fruto digno de mencionar-se nesta corrente, em 28 de abril de 1983 ficou aberto à assinatura dos Estados-membros do Conselho da Europa o Protocolo nQ 6 da Convenção Européia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, em relação à pena de morte. Em l e de março de 1985, entrou em vigor, depois de ser ratificado pelo mínimo necessário de cinco países: Áustria, Dinamarca, Espanha, Luxemburgo e Suécia. Esse protocolo é o primeiro tratado internacional de caráter preceptivo que proíbe a pena de morte. Na atualidade, outros nove Estados-membros firma­ram o protocolo, mas ainda não o ratificaram. Sete Estados- membros não o firmaram nem o ratificaram: Chipre, Irlanda, Islân­dia, Liechtenstein, Malta, Reino Unido e Turquia.

Esse protocolo obriga os Estados a abolir a pena de morte para os delitos cometidos em tempos de paz. Mas ficam permitidas sua imposição e execução em tempos de guerra, ou de perigo iminente de guerra, se as leis previamente estabelecerem. Ao contrário do que prevê o art. 64 da Convenção, esse protocolo não admite reser­va alguma no momento da assinatura.

Em 17 de janeiro de 1986, o Parlamento Europeu adotou uma Resolução mediante a qual insistia em sua decidida aspiração de abolir a pena de morte em toda a Comunidade Européia. A Resolu­ção exortava todos os Estados-membros do Conselho da Europa a ratificar o 6" Protocolo, ao qual nos referimos, da Convenção Européia dos Direitos do Homem.

Até chegar a essa petição-exigência abolicionista, o animal racional tem caminhado e descaminhado mil passos difíceis que

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convém conhecer, ao menos em suas grandes linhas. Essa petição- exigência abolicionista não se entende bem se é esquecida a cosmovisão geral do evolucionismo ao longo de miihões de anos. Razoavelmente, advoga a estigmatizar menos (ou nada) nossas gerações pretéritas partidárias da pena capital, e nos permite com­preender e “perdoar” alguns partidários dessa sanção. Por exemplo, Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica 11-11, q. 64, a.2 escreve:

Se um hom em resulta perigoso para a com unidade e corrom pe-a por cu lpa dc algum pecado, é louvável e ju s to m atá-lo para p re ­servar o bem com um . Mt. 13 (parábo la da c izân ia ) o b r ig a a p ro ­ceder com prudência; m as q uando não se corrc per igo dc m atar a um inocente, há que se fazer justiça com os pecadores. O m esm o que faz o próprio D eus, tam bem a jus tiça hu m an a m atará ao que resulta perigoso para os dem ais e reservará para a pen itênc ia o s que. ainda tendo pecado, não são g ravem ente perigosos. Q uando o hom em peca, cai da o rdem racional e da d ig n id ad e hum ana, que consis te no fato de que o hom em é, po r natu reza , livre e ex isten te por si m esm o; ao perder esta d ign idade, cai no nível d o s an im ais , e en tão se p ro ced e rá com e le em fu n ç ã o da u ti l i­dade dos dem ais.

Evolução histórica

A evolução da sanção capital cobre e, em certo sentido, desco­bre toda a história e a pré-história da humanidade no âmbito dos pensamentos e dos sentimentos mais profundos da pessoa e de seus grupos. Por isso, se tem escrito sobre este tema mais que sobre qualquer outro no direito penal. Trata-se de uma história vitimai e triste, mas cada dia menos triste. Uma história ambivalente para alguns, como todo o acontecer humano, criativo, histórico, social e jurídico.

Na história do direito e da criminologia, não penetrou, suficien­temente, a cosmovisão evolucionista. Faltam estudos epistemológi- cos desde a aurora da antropologia biológica e desde a aurora da antropologia cultural, assim como desde o evolucionismo inorgâni­co (pré-biológico), orgânico (biológico) e humano (cultural e jurí­dico).

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Neste capítulo (o menos honroso) do direito penal, podem ver­se, 110 entanto, algumas facetas positivas.

- a conveniência de estudar os antecedentes pré-humanos das prin­cipais instituições jurídico-penais;

-sua própria evolução abolicionista, símbolo e paradigma da ma- croevolução abolicionista do atual direito penal vindicativo e re­pressivo;

- o perdão judicial, o direito de graça e a substituição por composi­ção pecuniária, em alguns povos, têm brotado (e/ou se têm desen­volvido) especialmente no campo da pena de morte;

-a transpersonalidade da pena capital tem facilitado radicais e ati­nadas novas teorias do conhecimento em alguns epistemólogos;

- o amar e 0 morrer têm uma raiz comum. Com razão, se tem es­crito que “as mais belas histórias de amor acabam com a morte, e isso não é algo sem tom nem som. Certo, o amor é e subsiste como a superação da morte, mas não porque a elimine, se não porque o amor mesmo é morte. Somente na morte é possível a entrega total do amor, porque somente na morte podemos ficar inteiramente à mercê. Daí que os amantes se lançam tão singela e puramente à morte; não se arrojam a um lugar estranho, se não ao recinto íntimo do amor” .4 Algo sobre isso diziam os versos escri­tos em euskera pelos condenados à morte no País Vasco que, des­de o momento de sua condenação, dispunham (conforme os usos e os costumes tradicionais) de um ano para redigir, poeticamente, sua experiência, de maneira que servisse de exemplo para os de­mais;

- muitas vítimas de abuso de poder (em sua manifestação mais trá­gica) adotam, diante desse cruel castigo, um talante que, com fre­qüência, limpa as mãos de seus carrascos; e, algumas vezes, aproveitam a animal vingança da pena de morte para, por meio de seu submetimento de excelso heroísmo, viver experiências de al­truísmo obl ativo transcendente e en ri quecedor da humanidade.

Desde as origens da humanidade, antes já do homo sapiens, aresposta mortal das vítimas vem acompanhando nossos progenito-

L. Boros, El hombre y su última opción, Madri, 1972, p. 66-67.4

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res. E na mais remota Antiguidade e durante a Idade Média, na imensa maioria dos países que conhecemos, era a pena mais fre­qüente. Pode-se dizer que somente a partir do século XVIII se co­meça a caminhar para uma certa postura abolicionista.

A sanção mortal aparece - historicamente - como resposta re­ligiosa ao pecado mortal, como expiação e satisfação da divindade. Por isso, os povos antigos aplicaram essa pena a todos ou a quase todos os delitos e pecados graves. Por isso, com freqüência, o sa- cerdote-juiz coloca a mão 110 réu antes da execução, para simboli­zar que se transmitem a ele os pecados-delitos da comunidade.

Durante muitos séculos, 0 mito do sangue tem identificado este com a vida e tem concedido poder de purificação e de vingan­ça ao sangue que se derramava na execução capital. As vezes, esse mito exigia sacrifícios humanos nas festas populares.

As sociedades primitivas, diante dos comportamentos vitima- dores, gravemente prejudiciais, geralmente não buscavam fazer justiça, senão evitar as vinganças injustas e/ou as vinganças dirigi­das erroneamente a pessoas inocentes, ou evitar ou, ainda, regular as contendas entre a vítima e seus familiares contra o delinqüente e os seus. Somente com 0 transcurso do tempo e com o desenvolvi­mento do poder se chega à elaboração e à imposição direta (desde a autoridade) de sanção aos delinqüentes.5 Essa evolução conhece, logicamente, muitas exceções.

Aqueles que detinham 0 poder nas comunidades primitivas impunham e executavam a pena capital em não poucos casos. Os códigos mais antigos que conhecemos estabelecem essa pena em múltiplas hipóteses. O Código de Hamurabi (século XVIII antes de Cristo) impõe-na contra 25 delitos (roubos, corrupção administrati­va, infrações sexuais...). As leis sírias, do século XVI antes de nos­sa era, estabelecem como pena mais comum a mutilação, mas também em determinadas hipóteses prescreviam a pena capital.

No direito helênico, tem grande aceitação o sistema de autode­fesa entre opostos grupos tribais ou familiares, mas também a pena

5 Jacques Leclercq, “Reflexions sur le d mil de punir”, Estudios Pemdcs, Hotne- iKtje ao P. Julian Perecia, S. J. eu su 75L' aniversario, Bilbao, Univ. de Deusto, 1965, p. 469 ss.

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de morte contra determinados crimes, a maioria deles no âmbito religioso.

O povo judeu, tal como aparece no Antigo Testamento, aplica a pena de morte a numerosos delitos, especialmente aos relaciona­dos com a idolatria ou coiri alguns comportamentos sexuais.

A moderna ciência exegética mostra que no Antigo Testa­mento muitas (não todas as) passagens deveriam ser interpretadas contra a sanção capital. Em concreto, o profeta Ezequiel, capítulo18, versículos 21-23 e capítulo 33, versículo 11, quando diz:

M as sc o ím pio sc a rrepender de todos os pecados com etid o s c guardar todas as m inhas leis, e fizer o que é d ireito e justo, v iv e ­rá com certcza e não m orrerá . N enhum dos c r im es com etid o s será lembrado contra clc. Viverá por causa da justiça que praticou.

A caso tenho prazer na m orte do ím pio? - O rácu lo do S e ­nhor Deus. N ão desejo an tes que m ude de condu ta e viva?

Ju ro po r m inha vida. d iz o S en h o r D eus, não tenho praze r na m orte do ím pio, m as antes que ele m ude de condu ta e viva!

Em semelhante sentido o salmo 130: “De ti procede o perdão. Assim infundes respeito”. Outras traduções distorcem o texto ori­ginal e traduzem: “Mas és indulgente, para que sejas reverenciado com temor”.

Introduz-se uma mudança radical no Novo Testamento. A luz do Evangelho, matar o delinqüente resulta desnecessário, inútil e indigno/’

Geralmente, as religiões e superstições primitivas exigiam que a execução fosse realizada em público, com métodos sumamente variados e cruéis, carregados de simbolismo, como o do “bode ex­piatório” , que amplamente desenvolve René Girard.

Entre as técnicas de execução mais freqüentes naqueles tem­pos figuram: 1É) o apedrejamento; 2a) a precipitação de uma altura; 3°) a crucificação; 4a) a viva-combustão; 5°) a asfixia por submersão; 6a) o soterramento vivo do condenado; 7a) o enforcamento; 8a) a empalação; 9a) o esmagamento debaixo de algum animal (na índia,

A. Beristain, “Capitai punishmeiit and catliolicism”, International Journal o f Criminology and Penolog}', 5, 1977, p. 321 ss.

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até o século XIX, colocava-se o condenado debaixo de um elefante); 10°) por açoites (especialmente na antiga China); 11a) o envenena­mento (Sócrates); 123) o desconjuntamento e ruptura de ossos por garrote; 13") o esquartejamento por meio de cavalos puxados em diversas direções, etc. Em alguns povos primitivos, mais que ma­tar, a execução consistia em deixar morrer.

Ainda hoje, em todos os países árabes onde já não rege a lei islâmica, as sentenças de morte devem ser aprovadas, como for­malidade, pelo nnifti, o erudito mais importante da comunidade a respeito de questões religiosas.

Na China imperial, o carrasco evitava olhar o rosto da vítima por temer que a alma da mesma pudesse retornar posteriormente e aparecer-lhe. Na atualidade, em 1987, na China, a vítima é forçada a ajoelhar-se com as mãos atadas nas costas e o carrasco se coloca de pé “detrás da vítima”, e costuma ser um soldado ou policial quem dispara na nuca do réu, sem que este o veja.

Com o progresso histórico das religiões e do direito, vem-se logrando uma paulatina e lenta secularização do sistema judicial, que cobra autonomia e estrutura-se sobre leis cada vez menos sa­cras. As ciências vão vencendo as superstições e a bruxaria. Como exemplo, podem ser recordadas a regulação e a prática da sanção capital no mundo romano, germânico, nas monarquias absolutas e nas ditaduras, já nos séculos XVIII.„e XX.

Durante essa época, a pena capital é aplicada a todos os delitos graves com sistemas cruéis, em publico, para conseguir intimidar o máximo possível os prováveis e futuros delinqüentes. Sêneca re­flete o sentimento popular ao escrever que “quanto mais pública seja a execução da pena de morte, maior efeito se logrará para a melhora dos costumes dos cidadãos em geral” .

Na Roma antiga, as Doze Tábuas (século V a. C.) estabelecem a pena de morte contra os condenados por incêndio premeditado, falso testemunho, calúnia grave, suborno... Durante a República, poucos eives romani foram executados; ao contrário, era a sanção mais freqüente e aplicada aos escravos. Ao final do Império, como resultado do reconhecimento do cristianismo, aumentou o campo de aplicação da sanção máxima, que se introduziu nos delitos con­tra a religião.7

Günther Kesel, Die ReligiomdeUkte und ihre Behandlung iin Künfligen Stra- frccht, Munique, 1968, p. 4 ss.

7

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Segundo os especialistas, o direito germânico continua sancio­nando todos os delitos graves com a pena capital (imposta, às vezes, arbitrariamente), executada de múltiplas maneiras: o es- quartejamento (próprio dos delitos de traição), o enterramento em vida (especialmente das mulheres, mas também dos homens, réus de crimes contra a sexualidade, principalmente o estupro), o enter­ramento ou a fogueira (majoritariamente, das mulheres, por motivo de pudor), o emparedamento (aplicado quase sempre aos eclesiás­ticos). Um dos pontos diferenciais do direito germânico é a diver­sidade na execução da pena de morte segundo a classe do delito: a modalidade menos severa - a decapitação -impõe-se pelos delitos relativamente menos graves. No extremo contrário, o enforcamento, uma das maneiras mais severas e desonrosas, só corresponde ao banditismo, considerado um dos delitos mais graves. Por fim, temos de recordar outro traço diferencial do direito germânico: ao ini- micus corresponde a perda parcial da paz, como ao traidor corres­ponde a perda geral da paz; e ambas levam a possibilidade de que o delinqüente possa ser morto pela família da vítima (vingança de sangue) ou por qualquer pessoa que o encontre,

Na legislação eclesiástica, durante a primeira época da Inqui­sição, concretamente desde o século XIII até o século XV, a pena de morte foi menos freqüente do que alguns autores indicam; An­dré Laingui e Arlette Lebigre aduzem como prova que o inquisidor Bernard Gui, do ano 1307 ao .1323, assinou unicamente 42 senten­ças de morte.

No País Vasco, no começo do século XVI, aprova-se o Foro de Bisca ia (ano 1526), segundo o qual são castigados com o máxi­mo rigor, em concreto com a pena de morte, os delitos de incêndio, disparo com pólvora, alteração de marcos nas herdades e os indí­cios de roubo, homicídio, etc.

O Título 9, da Lei X, indica em que casos se pode condenar à morte e, em concreto, assinala que basta que haja indícios em al­guns delitos,

se os tais delitos fossem de roubo, ou furto, ou ferida feita com flechas, ou m orte feita a e rm o, ou de noite à tra ição; que, cm tal caso , havendo indícios e p resunções tais, que se o m alfe ito r (não sendo fidalgo), ju s ta e dev idam en te , sc pod ia im pu tar- lhe a

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q ues tão dc to rm cnlo : que as tais p resunções e ind íc ios se jam bas tan tes para im por, c dar ao b iscaiense. pena ord inária , ainda que se ja de morte natural.

O Título 34, da Lei IX, proíbe (sob a sanção máxima) ao bis­caiense que, em Biscaia,

ouse sacar, nem atirar com nenhum tiro de pólvora con tra am i­go nem inimigo, em trégua, nem fora de trégua, sob pena de que qua lquer que atire em ou tro com tiro de pó lvora tenha pena de m orte sem p iedade, a inda que não tenha p ro v o cad o dano com tal tiro; e que a essa m esm a pena es te ja su jeita o senhor, ou p a ­rente m aior que o m andou atirar.

A Lei X concretiza “que nenhum ouse, em Biscaia, atear fogo, intencionalmente, nas colheitas do campo, 011 nas casas, para queimar em trégua nem fora de trégua, sob pena de morte sem piedade” .

Pouco depois, no mesmo Título, a Lei XVII condena com pena de morle a quem “ou por arrancar marco em herdade alheia, ou entre a alheia e a própria, por sua própria autoridade, sem mandado do juiz ou licença da parte...e pela terceira vez que morra por isso”.s

Durante as monarquias absolutas, segue-se condenando com a pena capital muitos delinqüentes, sobretudo aos que podíamos chamar de delinqüentes políticos.

Ao menos uma referência há de se fazer ao banditismo com relação à pena de morte, tema complexo e que conta com abun­dante bibliografia. Julio Caro Baroja, escrevendo sobre o banditis­mo como fato histórico e matéria literária, em páginas dedicadas ao banditismo italiano no século XIV, refere-se às leis severas ditadas por Cola di Rienzo, nos meses cíe junho e julho de 1347, e à pena de morte: de fato, “vários nobres e alguns monges foram executa­dos e outros, presos” . O banditismo medieval “segue dando-se com representantes da nobreza e do sacerdócio”, de maneira que não é de se estranhar que se condenasse à morte e se executassem os no­bres e os monges.

El fuero priviliegios, franquezas y libertadas de los cavaücros hijos dalgo deI Senorío de Vizcaya confirmados por el Rey don Felipe III, nu estro Seííor y por los Seííores Reyes sus predecessores. Tradução para o vasco: Pedro de Pujana y Aguirregabiria. Interpretação foral: José de Estomés y Lasa, Bilbao, 1981, p. 131 ss.

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A sanção capital foi praticada na Europa pré-moderna com freqüência e com brutalidade, embora algumas legislações apli­cassem como sanção alternativa a mutilação (de resultados também negativos no campo da política criminal), os trabalhos forçados e a deportação. O ponto da máxima sanção nos países da Europa oci­dental deve colocar-se nos séculos XVII e XVIII.

No ano de 1800, ainda se castigavam com a morte na Inglater­ra mais de duzentos delitos, entre os quais sc encontravam o roubo de verduras, a associação com ciganos, os danos causados aos pei­xes nos tanques, o envio de cartas ameaçadoras, o caçar ou pescar em lugar proibido, cortar uma árvore alheia, ser encontrado armado ou disfarçado em um bosque.9

A ilustração criticou com sólidos argumentos a crueldade da sanção penal e de todo o sistema penal tão desumano. Recordemos os ataques de Montesquieu em suas Cartas persas , já em 1721, os de Voltaire, etc. Na Espanha, merece ser mencionada a opinião do beneditino Frei Martin de Sarmiento. O ano 1762, dois anos antes da aparição do livro Dei delitti e deite pene , escrito pelo pai dos abolicionistas, o marquês de Beccaria, Cesare Bonesana (1738- 1798), escrevia assim o Frei Martin:

Por mais m a lvado que se ja um hom em , será m ais úlil v ivo que m orto h sociedade, sc se o separa dela cm lugar de fazê-lo tra ­balhar. O pensam ento de que um castigo de m orte serve para escarm en ta r a ou tros es tá bem pensado, m as não co rre sp o n d e na prática. O que se logra não c o castigo, po is a cada dia se m ulti­p licam as m a ldades de todo gênero ... .

Desde finais do século XVIII, podemos dizer que - de certo modo - começa a ser superada a dialética ação criminal versus rea­ção vingativa. Diante da ação criminal, começa-se a contestá-la mais freqüentemente que em tempos anteriores, com sentido hu­manitário; em alguns casos, responde-se com uma criação genero­sa, solidária, mais além do “justamente” devido.

Se na justiça dos povos primitivos o centro era ocupado pelos deuses-ídolos vingadores, se depois (um depois cronológico só em

Daniel Sueiro, La pena de mnerle: ccrcmonial, historia, proccdiinieníos, Alian- za Editorial, 1974, p. J8.

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certo sentido) era ocupado pelas leis lógico-racionais, baseadas na vingança e dirigidas para aterrorizar, agora começam a ocupá-lo o homocentrismo, a androgênese comunitária, os valores humanos, a relação eu-tu, como em nossos dias o desenvolve, entre todos, Martin Buber.

Essa cosmovisão alvorece lentamente; desde alguns decênios, vem iluminando a razão, o sentimento e as entranhas da humanida­de em prol da postura abolicionista, que vem ganhando adeptos, ainda que lentamente, e com demasiadas oscilações e involuções. Como indício desses retrocessos, constatamos que hoje, em alguns Estados, é livre o apelar ou não, enquanto já no século XVII a famosa Ordennance Crimineile de 1670 obrigava a recorrer em apelação contra toda sentença condenatória à morte. Essa Ordenança esteve vigente na França, desde sua promulgação até a Revolução.

Na Espanha, Silvela, em 1835, mostra-se totalmente oposto às posturas de quem deseja abolir a pena capital, porque

é a m aior, e m ais forte, base que se pode em pregar para susten ­tar o edifício social, quando am eaça cair em d isso lução pela con tag iosa m aldade de um de seus indivíduos, ou quando alguns deles são tão soberbos, tão audac io sos que desp rezam todos os dem ais m eios de cocrção; m as po r mais ousados que se jam , por m ais audac iosos e destem idos, ja m a is o são até o pon to de d es ­prezar, no interior do seu coração , esta terrível p e n a .1'1

Poucos anos depois, Manuel Pérez y de La Molina, em seu extenso livro La sociedady el patíbulo o la pena de muerfe históri­ca y filosoficamente considerada, expõe, ampla e sistematicamen­te, suas profundas convicções contra a pena de morte, que tem a seu favor o voto de muitíssimos homens respeitados por sua ciên­cia e por seus talentos e que se encontra encarnada em todas as so­ciedades e em todos os povos de que nos fala a história. Comenta as principais razões que, em sua opinião, mostram a ausência

das qualidades que devem jun ta r-se aos bons castigos , e cm cuja defesa não sab em o s que se a leguem m ais que argum entos , inc-

10 Francisco Aguslín Silvela, Consideraciones sobre la necesidad de conservar en los Códigos y de aplicar en su caso la pena capital, Madri, Í835, p. 219.

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ficazcs Iodos, ou porque são negativos, ou porque carecem da robustez necessária. Um por uni, lemo-los examinado, e um por um também cremos havê-los deixado todos refutados.'1

Voltam a se manifestar em favor da pena de morte, em fins do século XIX e começo do século XX, alguns tratadistas - como, por exemplo, o Pe. Montes:

C ontinuam os, pois, c rendo que é, po r certo, u m a necess idade muito terrível, mas, ao fim, um a necessidade, que a Just iça h u ­mana v ingue-se dos c rim inosos com o castigo d o s m alfeitores, c r iando cárceres e erig indo patíbulos,

apesar de conhecer a crueldade dessa sanção, já que o mesmo é consciente de que,

talvez, o infeliz tenha um a mãe; um a m ãe que lhe educou com im enso carinho no seio da religião cristã: uma m ãe que, c e r ta ­mente, não lhe ensinou aquelas co isas pelas qua is agora se acha em tal estado; e essa mãe, ao ter notícia da d esg raçad a sorte dc seu filho, q u e r vê-lo, quer dar- lhe o ultim o ab raço ; e cheia de angústia e de dor d irige-se ao cárcere , penetra na cape la e se lança ch o rando nos braços daque le filho que den tro de poucashoras será um cad áv er exposto aos o lhos do público . T a lv e z te-

12nha filhos, filhos a quem am a com todo seu co ração .

Poucas datas antes da celebração, cm La Coruna, do Segundo Congresso Penitenciário Espanhol, que se celebrou de 1Q a 10 de agosto do ano de 1914, apareceu o livro La pena de muerte, de D. José Canalejas Rubi o, sobrinho do conhecido estadista D. José Canalejas y Méndez. Nele se propugna com energia a postura abo­licionista.

Para esse congresso de La Coruna, Manuel de Cossío y Gó- mez-Acebo. em seu trabalho Sustitutivo legal de la pena de muerte. Régimen penitenciário, Madri, 1914, constata que

M. Perez y de la Molina, La sociedad y elpatíbulo , o la pena de muerte históri­ca v filosoficamente considerada, I a ed. 1854, p. 375. 23 ed. Madri. 1878.P. Jerónimo Montes, La pena de muerte. v el derecho de indulta, Madri, 1897. p. 3 s.

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as tendências con tra a pena de morte vão g anhando te rreno cm nossa pátria. D ian te da realidade deste fato, não posso de ixar de reconhecer que a idéia abolic ionista vai-se im pondo ; as co n t í­nuas d iscussões na im prensa c as tendências con tra a últim a pena m anifestam -se d iariam ente, fazem pensar que a subs t itu i­ção para os d ireitos civis, conservando-se para o foro de G uerra e M arinha, se faça ha rm onizando os ca rac teres da pena substi­tutiva com o delito com etido . Essas tendências m an ifes ta ram -sc duran te a últim a e tapa do governo liberal e, sobre tudo , no tem ­po do Sr. Canalcjas, ficando sem reso lução m uitos exped ien tes dc indulto pelas doutrinas abolic ionis tas que insp irava a política daquele g o v e rn o .1'

Foi abolida pela primeira vez a sanção capital, 11a Espanha, pelo novo Código penal de 1932, publicado na Gazeta (Diário Ofi­cial) de 5 de novembro de 1932, e entrou em vigor em l 2 de de­zembro do mesmo ano, mas foi restabelecida pela Lei de 11 de outubro de 1934 (na legislação especial comum), prorrogada pela Lei de 20 de junho de 1935. O regime franquista restabeleceu-a (Lei de 5 de julho de 1938) por considerá-la necessária e porque “se compaginava com a seriedade de um Estado forte e justiceiro” , segundo sua exposição de motivos. Logicamente, essa pena figurou 110 Código penai de 1944 e perdurou até 1978. Desde essa data tem sido abolida “salvo 0 que dispõem as leis penais militares para tempos de guerra”, nos termos do estabelecido no artigo 15 da Constituição de 1978.

O Real Decreto-Lei 45/1978, de 21 de dezembro (BOE 23 de dezembro de 1978), adaptou ao imperativo constitucional alguns preceitos legais do Código de Justiça Militar, da Lei Penal e Pro­cessual de Navegação Aérea e da Lei Penal e Disciplinar da Mari­nha Mercante.

Assim, desde 1978, a Espanha faz parte dos países abolicionistas para todos os delitos, exceto para delitos sancionados na legislação militar e/ou delitos cometidos em especiais circunstâncias - por exemplo, em tempo de guerra. Os países são: Brasil, Canadá, El Salvador, Espanha, Holanda, Israel, Itália, Malta, México, Mônaco,

Manuel cie Cossio y Gomez-Acebo, Su.sfiiiitivo legal de la pena de mnerle. Ré-gimen penitenciário, Madri, 1914, p. 1Ü6.

J1

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Nepal, Nova Zelândia, Panamá, Papua (Nova Guiné), Peru, Reino Unido de Grã-Bretanha, San Mariiio e Suíça. Nos Estados Unidos, existem legislações diversas em suas normativas estatais a respeito da sanção capital. Segundo informações privadas e públicas da Anistia Internacional e de outros documentos, está abolida a sanção de morte para toda espécie de delito e em todos os tempos nos trinta países que indicamos: Austrália, Áustria, Cabo Verde, Co­lômbia, Costa Rica, Dinamarca, República Dominicana, Equador, Fiji, Finlândia, República Federal da Alemanha, França, Holanda, Honduras, IIlias Salomão, Islândia, Kiribati, Luxemburgo, Moçambi­que, Nicarágua, Noruega, Nova Gales do Sul, Panamá, Portugal, Sué­cia, Tuvalu, Uruguai, Vanuatu, Vaticano e Venezuela.

Atualmente, uns 128 países admitem a sanção capital que se executa com os seguintes meios: enforcamento, em 54 países; fu­zilamento, em 35 países; decapitação, em oito países; eletrocussão, um país e 32 estados norte-americanos; asfixia, I I estados norte- americanos; estrangulamento, um país; apedrejamento, um país; não se têm informações de oito países.14

Em uma Declaração perante a Comissão Internacional de Di­reitos Humanos, efetuada em 26 de fevereiro de 1982, a Anistia Internacional chamava a atenção deste organismo a respeito do uso da pena de morte com fins políticos. Na dita Declaração, assinala­va-se que, das três mil e poucas execuções conhecidas, realizadas em 1981, mais de 75% se relacionavam com atividades políticas - reais ou presumidas - das vítimas, e que muitos juízos resultam em uma sentença de morte por motivos sociopolíticos alheios ao tema jurídico, e são conduzidos, freqüentemente, de maneira arbitrária e sumária. Nessa sessão, a Comissão de Direitos Humanos nomeou um relator especial sobre execuções sumárias ou arbitrárias para que preparasse um relatório exaustivo sobre a existência e o alcan­ce de dita prática. Durante 1982, a Anistia Internacional enviou ao relator especial informações sobre execuções extrajudiciais e penas de morte ditadas por juízos inadequados em 32 países.15

14Dennis Wiediman e Jerry Kendall, “Assessing the death penalty”, C. ./. Inter­national, março-abril 1987, p. 10.

' Anistia Internacional, Informe I9S3 . Madri, 1983, p. 10.

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Assistência religiosa

Desde os primeiros séculos, os cristãos vêm-se colocando a favor dos presos e dos condenados pelos tribunais de administração da Justiça. Recordemos a atenção principal que têm prestado os mercedários, os trinitários, os padres Paules e, a partir do século XVI, também os jesuítas. 0 fundador destes, Ignácio de Loyola, já no primeiro documento escrito, que descreve as coordenadas da Companhia de Jesus, a Fórmula do Instituto, aprovada por Júlio III e inserida nas Letras Apostólicas Exposcit de bit um , de 21 de julho de 1550, escreve: “E também é instituída para pacificar os desen­tendidos, para socorrer e servir com obras de caridade aos presos dos cárceres e aos doentes dos hospitais”.

No seu livro La pena de muerte y el derecho a l indulto , o P. Jerónimo Montes, em 1897, assim se expressa sobre a postura da Igreja ao longo dos séculos:

Jam ais tentou a Igreja desarm ar o s Poderes dos m eios dc que ne­cessitam para conservar a ordem na sociedade, c é a prim eira a reconhecer a legitim idade das penas e o dever dc fazer executar, quando são m erecidas e necessárias. O que procurou, dadas as c ircunstâncias dos tempos, foi harm onizar a jus tiça com a m iseri­córdia, o bem dos delinqüentes com o bem das pessoas honradas, os nobres sen tim entos do coração com os terríveis m eios de que a sociedade se vale para a conservação da ordem . E, por último, por m uitos que se jam os abusos que na aplicação do indulto se têm com etido, estão suficientem ente com pensados com sua própria utilidade: m enor mal se produz ao indultar a ccm que não m ere­çam que em negar o perdão, por não existir o direito de graça para som ente um que por justiça deve ser perdoado.

Seis decênios antes, D. Francisco Agustín Silvela, em suas Consideraciones sobre la necesidad de conservar en los códigos y en aplicar en su caso la pena capita!, escritas e publicadas em francês e traduzidas por ele mesmo, havia recusado o argumento em favor do perdão de tantos autores, com a seguinte argumenta­ção:

16 P. Jerónimo Montes, Im pena de muerte y el derecho de iudulío, Madri, 1897, p. 215.

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Já sc perm ite conhece r agora a im portância que d a m o s a um an ­tigo adágio , que não deixaria de ser útil lá q u an d o se introduziu na l inguagem : “ M ais vale perdoar a cem cu lp ad o s que condena r a um inocente” . Se c indiferen te para a o rdem social condena r ou absolver, não se deve vacilar: é necessário abso lver o s 99 cu lpados e o inocente; mas se d isso depende a ex is tência da o r ­dem social, e sc em cada caso particular foram e m p re g ad o s to ­dos os m eios possíveis de conhecer, de averiguar a verdade , e se esses m eios nos dão em cem casos ou tros tan to s delinqüen tes, en tão não vac ila rem os cm condená-los a todos: nossos erros, nossas injustiças, se há com respeito a in te ligências superio res à do hom em , não devem im p u ta r -n o s . '7

A assistência religiosa aos condenados à pena capital tem tido mais prós do que contras.1* Merecem ser destacadas algumas pu­blicações a esse respeito, por exemplo, as dos jesuítas Pedro de León, Friedrich von Spee (ano 1631) e Jacob Schmid. Em pleno século XX, também seguem trabalhando no campo da assistência dos condenados à morte os sacerdotes da Companhia de Jesus. Acjui merecem ser recordados alguns dados a respeito do padre Ur- ríza na prisão de Martutene, em San Sebastián, e do padre Moreno.

No periódico parisiense Ce Soir, apareceu parte do diário de Jean Pelletier, industrial francês, único sobrevivente dos passagei­ros do Galerna, barco correio-postal capturado na altura de San Sebastián por seis pesqueiros nacionais em 15 de outubro de 1936. Entre ou Iras coisas, escreve:

Na noite em que fuzilaram os m eus c o m p an h e iro s do G a le rn a , ao en tardecer, um guarda abriu a porta e in troduziu na cela um sacerdote.. . O capelão da prisão, o padre U rriza; um h o m e m de uns quarenta anos. alto, forte e com o ar um pouco triste c s im ­plório. Sua presença me indica que já está p róx im a m inha e x e ­cução. V em para conl'essar-me...

Má, de todas as formas, um a visita que h um an iza um pouco m inha a troz solidão.

17Francisco Agustín S 11 vela, Consideraciones sobre la uecesidad de conservar en los Códigos v de aplicar en sti caso la pena capita!, Madri, 1835, p. 131.Bernardino M. Hernando, “La pena de miierte y los cristianos” , Razón y Fe, fevereiro, 1988, p. 149.

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152 Antonio Beristain

Sigamos discorrendo

Essas e outras reflexões sobre a evolução histórica (incluindo a dimensão transcendente da realidade profunda), especialmente no campo da sanção capital, devem nos animar a seguir discorrendo no duplo sentido do verbo discorrer.

Temos que andar adiante na práxis, na corrente abolicionista, e temos que pensar também para frente. Portanto, à luz do até aqui escrito, parece oportuno formular algumas considerações que, mais que conclusões, sejam pontos de partida para seguir discorrendo.

Como homens (e - os cristãos - como cristãos), constatamos que o tempo vai deixando de lado a sanção capital em diversos as­pectos: diminuindo o número de países que mantêm essa “pena”, sendo cada dia menos os crimes aos quais a lei impõe a pena de morte, e menos as sentenças condenatórias (e destas são menos ainda as que de fato se executam). Esses dados sociológicos corro­boram o que observamos em outras ocasiões como cristãos: a se­mente do Evangelho vai frutificando e, paulatinamente, ampliando seus ramos abolicionistas, vai impulsionando, progressivamente, novos símbolos dos tempos mais solidários, menos escravizantes, mais liberadores, mais igualitários, voltados para o perdão e para o amor, mais que para o castigo e o temor, mais respeitosos à vida e mais crentes na parábola dos talentos que vão nos aproximando da utopia do amor ao inimigo, que faz sair o Sol e chover sobre os bons e os maus no processo de fermentação da sociedade, em ritmo incessante, aberto e ilimitado da infinitude do amor.

Acertadamente, afirma a Declaração da Conferência Episcopal dos Estados Unidos (9-111-78): “A história passada demonstra que a aplicação da pena de morte tem sido discriminatória e tem-se aplicado em detrimento dos fracos, dos indigentes e das pessoas pobres do ponto de vista social”.

Com sentido parecido, a Declaração da Comissão Irlandesa de Justiça e Paz “Pela abolição da pena de morte”, de 1" de fevereiro de 1981 (cf. La documentaüon catholique, de 21 de junho de 1981).

Concordo com o professor de ética social da Faculdade de Teologia da Companhia de Jesus em Chicago, James F. Bresnahan, quando, ao estudar a pena de morte nos Estados Unidos, conclui enfatizando a importância da evolução histórica de todo o cultural

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e jurídico: o problema da pena de morte somente poderá ser tratado adequadamente quando teólogos cristãos relacionarem esse pro­blema com os da escravatura e do racismo, quando captarem a pos­sibilidade de uma “evolução da doutrina” a propósito tanto do primeiro como dos segundos, e quando formularem, em seguida, uma argumentação precisa acerca do impacto simbólico e “sacra­mental”, dentro da atual civilização, da intervenção do Estado que causa a morte. Mas essa argumentação haverá de conectar, antes de tudo, com as ações positivas que supõem uma valorização da vida, em especial da vida dos indefesos e dos oprimidos... Somente uma compaixão e uma misericórdia viva farão que resultem persuasivos os argumentos de ordem política e jurídica.

Paradoxalmente, a interpretação existencial e o evolucionismo histórico introduzein-se na teologia em tempos de Bultmann, e, posteriormente, é a teologia e a moderna exegese da Sagrada Es­critura (encíclica Divino ajlonte spiriíu) as que facilitam a juris­prudência e a interpretação jurídica do caminho para a moderna ciência epistemológica evolutiva e a obrigam a romper a her­menêutica ontológica - objetiva - estática tradicional.20

No País Vasco, tem-se estudado especialmente o problema da pena de morte no território de Biscaia, desde o começo do século XV, época de conflitos de sedição, até começos do século XIX, em que se promulga o Código penal comum a todo o território espa­n h o l /1 Nesse período, pode-se afirmar que:

-a s sentenças de apelação desempenham uma função quase que de perdão, já que, com freqüência, se observa a comutação da pena de morte por outras, como o desterro, o presídio, as penas pecuniárias;

-a s sentenças de morte executadas têm sido escassas e, em sua maioria, referentes a quadrilheiros, ainda que pesquisas mais exaustivas possam encontrar algumas mais;

19J. F. Bresnalum, “La pena de muerte en Estados Unidos". Concilium, Re v. In­ternacional de Teologia, 140, Madri. Ed. Cristiandad, 1978. p. 686 s. No sentido contrário, Emílio Silva, Pena dc morte, afiU Rio de Janeiro, 1986, p. 1(39 ss.H. G. Hínderling, Recittsnonn und Verstehen. Die Methodischen Folgen eincr aUgeineinen Hennencutik fü r die P rinzipkn der Verfassungsauslegung, Bema, 1 9 7 1 ,p p .6 0 e7 0 .Maria Victoria Cabieces Ibarrondo, “La pena de muerte en et Senorío de Vizcaya”, Estudios de Deusto, fase. 63 (julho-dezembro de 1979), p. 295 s.

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- a autoridade judicial competente não consignava nas sentenças a fonte legislativa aplicada. Entretanto, a pena de morte está em concordância com a lei e fundamenta-se sempre na gravidade do delito cometido que, em geral, se encontra classificado na legisla­ção.

Ao finalizar o século XX, quando nossos satélites artificiais riscam os espaços muito mais além do plus ultra, quando nossa engenharia genética constrói montagens insuspeitas de genótipos e fenótipos, quando por inseminação artificial logramos vidas tão maravilhosas, quase diríamos milagrosas, parece impróprio seguir admitindo a pena de morte. Esta, sob nenhum conceito, cumpre, na atualidade, os fins essenciais da pena, nem no direito penal miiitar; portanto, não merece ser admitida nem nominalmente.

Além disso, mesmo supondo que cumprisse, temos de reco­nhecer que é irreparável e que leva uma sombra corruptora, uma chama ácida sobre a comunidade, pois, mais que conseguir um efeito preventivo, contribui para um fato criminógeno. Esses argu­mentos valem tanto ou mais para os casos de necessidade em tem­po de guerra.

Atualmente, a teoria e a legislação abolicionista total, para sempre e em todas as circunstâncias (embora sem absolutização), contêm um significado pedagógico extraordinário, pois manifes­tam, de uma maneira eficaz e patente, a necessidade de superar a cosmovisão repressivo-vingativo-punitiva e a de solucionar nossos delitos e nossos conflitos divergentes sem aniquilar o adversário, ou seja, o delinqüente. Respeitando (e enriquecendo-nos com) sua dignidade de pessoa, seu valor ímpar, seu ser, nosso complemento. À cosmovisão de Hobbes, do homem-lobo para o homem, podemos responder com a cosmovisão da solidariedade fraterna e humana, do amor que impõe respeito e resulta mais eficaz que o medo à pena.

À luz da história e do direito (de hoje e de amanhã), parece ser obrigatório pedir que se modifique o artigo 15 da Constituição Es­panhola por tudo que esse artigo, ao admitir a pena de morte para tempos de guerra, pressupõe, diz e sugere.

A lição dos séculos passados mostra-nos que os militares não devem ser os protagonistas do nosso presente e do nosso futuro. Os argumentos abolicionistas contra a sanção capital parecem tão

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convincentes que resulta muito provável que os parlamentares, ao aprovar este artigo 15 e admitir a pena de morte para tempos de guerra, fizeram-no movidos por motivos não lógicos nem racio­nais, senão por motivos mais “sólidos” , mais “ fortes”. Um desses motivos é a opinião de que em tempos pretéritos se consideravam os militares como protagonistas de nossa sociedade, como os de­fensores da ordem e da paz. Mas os sociólogos, políticos e juristas contemporâneos não admitem essas opiniões para hoje, e menos ainda para amanhã. Sustentam, precisamente, o oposto. Já disse Cícero in bello si/enf !eges...cedan( arma togi.s.

Nos anos próximos, não parece que sejam os militares os en­carregados de construir a convivência pacífica e solidária. Tal opi­nião carece de fundamento. Os militares fazem guerra, não a paz.

No campo do direito, resulta insustentável a formulação do ar­tigo 15. pois contradiz as coordenadas básicas do mundo jurídico. Hoje, a maioria dos especialistas, inclusive os políticos, os sociólo­gos e os teólogos, pede a total abolição da sanção capital, por con­siderá-la cruel, injusta, criminógena e retrógrada.”"

22Hugo M. Enoniiya-Lasalle. lA tlomle va el homhre?. Sanlander, S;il Terrae, 19S2, p. 135 ss. Robert Cario, “Le réíablissement de la peine de mort. Considé- rations d'ordre pénologique et criminologiciue77, em irfem (comp.). i a peine cie mort an senil chi troisième niillenaire. Hommage ait Professeur Antonio Beris­tain . Toulouse. Erès, 1993. p. 123 ss.

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Capítulo 7

Vinculação histórica entre religião e direito penal

Luzes e sombras

Temos que ser conscientes de que a realidade, como um todo que se possui, não pode se dividida. O que pode ser objeto de divisão é o

trabalho que recai sobre essa realidade e a exposição, a efeitos clarifi-cadores, dessa realidade.

F. Mu noz Conde, Introducción ai derecho p e n a l, Barcelona. 1975,p. 185.

Poucos historiadores estudaram, de maneira expressa e com se­riedade, algo que, para muitos, tem capital interesse: de que modo e em que grau, ao longo dos séculos e atualmente, a religião incide, positiva e negativamente, no direito penal, e também este naquela.

Damos por certo que a religião permeabilizou toda a cultura, sem excluir sua parcela jurídico-punitiva. Também que a cultura remodela a religião. Crenças novas forjam uma cultura nova, como aconteceu com o islamismo, criador de uma civilização nova comum acima de todas as diferenças raciais, econômicas e geográficas. Algo parecido pode-se afirmar do budismo. Um olhar retrospectivo sobre a história da vitimação própria e alheia deixa entrever o que o ser humano proíbe e perdoa em cada direito, mito e credo.' As ambivalentes influências da religião estática ou dinâmica (na ter-

1 E. Schillebeeckx, Cristo y los cristianos. Gracia v liberación, Madri, Cristiandad. 1982, trad. A. Araniayona, p. 653 ss.

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minologia de I I. Bergson) brotam inseparáveis das três funções que costumam designar esta: impor (mais que oferecer) uma cosmovi­são, ministrar alguns imperativos morais e auxiliar ou alienar os desvalidos. A pessoa “ao relento”, desmoralizada, desiludida, pode entrar na catedral ou 11a capela campestre e falar a um círio aceso e a um báculo que dêem sentido e força ao seu peregrinar. Também pode a religião ser o ópio dos marginais."

Já nas sociedades primitivas, patentiza-se que

todo o sistema social (das comunidades selvagens) está baseado na mitologia, na teoria nativa da proeriação, em algumas de suas crenças mágico-religiosas, e penetra todas as instituições e os costumes da tribo/

Ao longo da história, em todos os povos, 0 religioso cria e recria o campo cultural e, mais ou menos, o jurídico-penal-criminológico- vitimológico. Contra o que podem opinar certos fundamcntalistas de algumas religiões e, no extremo contrário, certos ateus exaltados, convém analisar e comentar tanto os efeitos criminógenos como os preventivo-ressocializadores, de intensidade diversa, das igrejas na vida comunitária, e especialmente no âmbito jurídico-penal. Com relativa freqüência, as hierarquias religiosas contribuem para manter costumes e situações tradicionais que impedem o progresso da so­ciedade. Como dizia um político italiano, se o cristianismo não ti­vesse sido criticado e, inclusive, perseguido, muitos códigos penais ainda manteriam tipificado como delito o adultério, o d i­vórcio, a blasfêmia, todo tipo de aborto... Compete às investigações científicas avaliar as guerras religiosas, as tristes épocas da caça às bruxas, a origem eclesiástica do fanatismo de certos movimentos terroristas na Itália e na Espanha.4 A Comissão Internacional que

2E. Arreaza, “Algunas aproximactones al estúdio de la religión como control social” , Capifu/o criminológico, n‘J 11-12, Maracaibo (Venezuela) 1983-1984, p. 62; L. Hulsman e J. Bemal de Celis, Peines penUtes. Le système penal en qncstion , Paris, Le Cenlurion, 1982, p. 32 ss.B. Malinowski, Crimen y costumbres en la sociedad salvaje, irad. J. y M. T. Alier, 6a ed.. Barcelona, Ariel, 1982, p. 92.J. Caro Barojn, “ El terror desde un punto de vista histórico”, em A. Beristain. J. L. Cuesta (comps.). Cárcel de mujeres. Ayer y hoy de la nnijer delincuenie v viaim a, Bilbao, Mensajero, 1989, p. 15 ss., p. 30 ss.

4

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tem analisado a violência terrorista do ET A, reconhece que a Igreja Católica no País Vasco não tem cumprido, suficientemente, sua missão diante do ET A. Por isso, os membros da comissão pedem que a recusa (contra o terrorismo), por parte da Igreja, deva ser “mais cumprida e reforçada’7.5 Esta comissão, contratada pelo Go­verno da Comunidade Autônoma do País Vasco (Espanha), em 7 de junho de 1985, estava constituída por Sir Clive Rose - presidente - (Reino Unido), pelos professores Franco Ferracuti (Itália), Hans Horchem (Alemanha Federal), Peter Janke (Reino Unido) e Ja- cques Leauté (França).

O sociológo Joseph Fitzpatrick constata que os programas re­ligiosos de prevenção são eficazes se influenciarem séria e inten­samente no clima da comunidade. Ao contrário, surtem pouco efeito, ou efeito contrário, porque se limitam à mera informação catequética e a atividades de mais ou menos breve duração. A reli­giosidade somente consegue evitar a delinqüência em indivíduos de convicções profundas, as quais também a comunidade professe publicamente, sem cair em fanatismos e fundamentalismos/’

Entre as propostas positivas da religião, destacamos uma que podemos qualificar de paradigmática no sentido kuhniano, não no platônico; ou seja, no sentido da norma das revoluções, de ruptura de estmturas, de superação dos marcos estabelecidos. Concretamente, durante os últimos anos, em alguns países do Leste europeu, a reli­gião tem contribuído notavelmente para destroçar o sistema políti­co-social. A religião que se achava dentro da cosmovisão marxista, que era recusada por ser “metafísica”, “contra-revolucionária”, cri- minógena e delitiva, motivou e exigiu o término das estruturas ditatoriais sociais, culturais, políticas, criminológicas e jurídicas. A religião, em determinadas circunstâncias, ainda que sejam adversas, ultrapassa o umbral epistemológico, o senil episfemologique, de Gaston Bachelard.

5 Comision Internacional. Informe sohre la violência en el Pais Fasco, Londres,5 de março de 1986, seção III, capítulo 11, p. 198.G. Kaiser, “ Religión, Verhreclien und Verhrechenskontrolle” , em J. Kíirzinger, E. Miiller (comps.), Feslschrift j'i\r W olf M iddendorff Bielefeld, Gieseking, 1986, p. 143 ss.

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Não parecem necessárias pesquisas científicas para provar que as pessoas que vivem em “comunidades eclesiásticas” infringem menos as leis penais que o resto dos cidadãos. Basta visitar as ins­tituições penitenciárias e folhear as estatísticas judiciais para cons­tatar que a porcentagem de pessoas consagradas em comunidades clericais condenadas pelos tribunais é muitíssimo menor que a das pessoas laicas. Mas também tem havido, e há de haver, delinqüentes entre as pessoas “consagradas”.

Tampouco resulta difícil provar que os jovens que vivem com pais de equilibradas convicções e práticas religiosas se lhes imitam nesse campo, delinqüem menos. Parece lógico, pois a sana religio­sidade fortalece o superego, a consciência, na luta contra os impulsos e os instintos tendentes à infração. Entretanto, quando falta esse equilíbrio ou essa sanidade, os especialistas mostram que o religioso pode ter efeitos contrários à prevenção geral e à prevenção especial; pode contribuir para que a criminalidade aumente e para que os delinqüentes reincidam. A cada dia se constata mais a necessidade de levar a cabo trabalhos acerca das “luzes e sombras” que o di­reito penal tem recebido da religião, não em geral, mas em campos concretos, como a eutanásia, a delinqüência relacionada com as drogas, a ecologia, a criminalidade feminina, as instituições peni­tenciárias ou a servilídade política de certas hierarquias religiosas.

A poena cullei

Desde os tempos pré-históricos, as religiões têm alimentado a matriz cultural de onde brotaram as penas mais severas, especial­mente nas religiões monoteístas (judia, cristã, islâmica), ainda que também, paradoxalmente, e em tom menor, perdões generosos, como indicaremos nestas páginas. Por motivos de limitação espa­cial, omitimos comentar atentamente como as ciências jurídico- penais têm influído beneficamente nesses temas sobre a teologia e sua hierarquia. Basta uma referência aos livros de Beccaria, no sé­culo XVIII (Dos delitos e das penas), e de M. Foucault ( Vigiar e punir) em nossos dias.

Em muitas sociedades “primitivas” das que temos notícia, a autoridade (que costuma reunir 11a mesma pessoa o sacerdote, o

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juiz e o rei) impõe penas cruéis e vingativas — principalmente a pena de morte — contra os infratores (e. principalmente, contra seus familiares) de determinados costumes sociais, especialmente as relativas ao culto a deuses, a pie/os de que fala Cícero. Múltiplos mitos e usos litúrgicos coincidem em atribuir ao representante da divindade a missão de julgar e castigar severamente a quem viola as normas estabelecidas. Doutrinas e crenças eclesiásticas fomentam, pré-cientificamente, uma tendência excessiva a castigar, e mesmo a fazer sofrer, para que o delinqüente expie sua ofensa à divindade, seu pecado, que na política teocrática primitiva (e não tão primitiva) coincide com o delito, com a marginalização e, também, com a sim­ples enfermidade. Mais ainda se é contagiosa, como a lepra. Diante do cego de nascimento, os apóstolos perguntaram a Jesus: “ ...este nasceu cego por seu pecado ou pelo pecado de seus pais?” .

A Lei de Talião, como fronteira à sanção ilimitada, é fruto de muitos séculos de evolução progressiva anti-religiosa, em certo sentido. Com ela começa a história do direito e da ciência penal. É a hora zero, na formulação de Ernst Bloch.

Platão manifesta-se na linha expiacionista, mas também pede que a pena sirva para a ressocialização. Em seu Górgias, indica a necessidade da sanção, quando escreve: “Aquele que foi injusto e sem piedade deve ir ao cárcere da ex pi ação e do castigo que se chama Tártaro” (Górgias, 523 b); “Se alguém faz mal em alguma coisa, deve ser castigado e satisfazer a culpa por meio do castigo” (Górgias, 521 b). Mas em Proíágoras destaca mais o aspecto pedagógico da sanção.

Muitas respostas sociais ao delito têm brotado e vivem marca­das por linhas, indubitavelmente, sacras. Assim, por exemplo, a poena ca Hei, de multissecular e freqüente aplicação, com sua ampla e rica simbologia da serpente, do galo, do cachorro e do macaco”.

Durante muitos séculos, as religiões, especialmente o cristia­nismo e o islamismo, têm propugnado, excessivamente, a teoria defensiva (“sem a pena tudo se perdoaria”, omnia perturbareníur, repetem os teólogos renascentistas) junto com a teoria e a práxis

L. M. Diez de Salazar Fernandez, “La ‘Poena Cullei’, una pena romana en Fuenterrabia (Guipúzcoa) en el siglo XVI”, Anuário de História do Direito Pe­nal, tomo LIX, Madri, 1989, p. 581 ss.

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retributiva.8 Como prova, basta recordar a Inquisição ou o “índice” de livros proibidos, que sobreviveu até o Concilio Vaticano II, ou ler o Corão (sura 3, 105 s.), quando profetiza com severidade: “Es­ses tais terão um castigo terrível...” . E aos descrentes: “Provar o castigo por não haver acreditado”.

O poder eclesiástico pretende controlar tudo, até mesmo que‘ não se manifestem idéias ou opiniões ou doutrinas diversas, “heré­ticas”.9 Se, apesar disso, se difundem, faz tudo que está em suas mãos para que os fiéis não as conheçam. Por isso, proíbe, sob pe­cado grave, ler publicações que se apartam da doutrina católica, com critérios tão rígidos que, às vezes, condena livros escritos por pessoas que poucos anos depois serão canonizadas, como são Pe­dro Canísio ou são Roberto Belarmino (seus Coniroversiae, de J586). Com muito mais razão, se inclui no “ índice” o ímpar livro de Beccaria, que acabamos de citar.

Algumas igrejas mantêm ainda hoje teorias e práticas excessi­vamente retribucionistas, especialmente em certos campos, como a guerra (“santa”) e a moralidade sexual. As idéias em prol da '"‘n- gança e do sacrifício expiatório seguem vigentes, por exemplo, em criminólogos-jurislas muçulmanos e em alguns defensores católi­cos da sanção capital, como Pio XII, G. Ermecke e P. Bouzat.10 No conflito bélico do Golfo Pérsico (janeiro-fevereiro 1991), Saddam Hussein a pó ia-se na religião para alienar seus cidadãos e, mais ain­da, suas tropas no ódio mortal contra os inimigos.

Sem perda de tudo o anteriormente dito, dentro de não poucas comunidades religiosas se tem pedido, por motivos muito diversos, que as penas não se imponham por vingança; nem sequer que se apliquem ao pé da letra, mas sim com eqüidade e moderação, e re­correndo à epiquéia. Mas também ao perdão.

A. Beristain, “Ecumenismo hislórico en derecho penal (La pena-retribución en los teólogos renascentistas)", em idem. De leyes penai es y de Dios legislador (Alfa v om egado controle penal humano). Madri, Edersa, 1990, p. 25 ss.

9R. Zaffaroni e A. 13. Oliveira, ‘ignacio, Cícero y el poder de! amor” , em J. Caro Ba roja e A. Beristain (com ps.), Ignacio de Loyola , Magister Artitnn en Paris, 1528-1535, Kutxn-Caja Gipuzkoa San Sebastián, 1991, p. 723 ss.

10 P. Bouzat, “Pourquoi un catliolique ]>eut être partisan de la peine de mort”, Ignacio de Loyola. Magister Artimn..., p. 147 ss.; A. Beristain: sub voce, “Pena de muerte”, Nueva Enciclopédia Jurídica., Barcelona, Ed. F. Seix, 1989, t. XIX, p. 388 ss.

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Desde a Ilustração até hoje. a doutrina e a legislação penal vêm humanizando as respostas ao delito. Nesse caminho, encon­tram sólidos apoios, mas também fortes o posições, nas religiões cristã, judaica e islâmica.

As ciências penais e criminológicas estão conseguindo crodir a cosmovisão primitivo-expiacionista de muitos mitos e ritos transcen­dentes a respeito da sanção, mas ainda tropeçam em sérios obstá­culos dogmáticos e religiosos em direção à prevenção de sanção racional ao crime. Especialmente ao que se refere à culpabilidade jurídico-penal, tão próxima - embora não-idêntica - da culpabili­dade moral, como desenvolve R. Moos, ao comentar as duas caras do único deus Jano: pena e culpabilidade.11

Indultos e anistia

Depois do indicado a respeito de como as diversas religiões, umas mais que outras, continuam insistindo na necessidade de cas­tigar o delinqüente para que expie sua culpa, sua ofensa à divinda­de, que se confunde (cada vez menos) com o delito; e como tem influído na (e tem recebido influências de) ciência e 11a práxis do direito penal, parece oportuno dizer algo a respeito da evolução, ao longo da história, com múltiplos altos e baixos, da maioria das re­ligiões que se mostram partidárias de mais ou menos indulgência aplicável no policial, processual, penal, penitenciário e pós- penitenciãrio. Também neste aspecto as igrejas resultam - não poucas vezes - beneficiadas das doutrinas e legislações penais, as­pecto que ultrapassa o marco de nosso tema.

1 Quanto ao perdão, " merece ser estudado o Código de Hamit- rabi, passagens do Antigo c, mais ainda, do Novo Testamento.

" R. Moos, “Positive Generalpravention und Vergeltung", S íra fredu , Strafpra- zessrecht und Kriminologie, Wein, Feslsclirift für F. Pallin. Manzsche Verlag, 1989, p. 292 s.; J. Cuetlo Conlreras, “ü i influencia de la teologia en el dereclio penal de la culpahilidad” , Criminologia y derecho penal... p. 483 ss.; J. Perecia, E! "Versari in re H lic ita ” en la doefrina y en el código penal, Madri. Instituto Editorial Reus, 1948.A. Beristain, ‘'Criminologia y religión”, Política criminal y reforma penal. Ho- menaje ao Prof. Dr. D. Juan dei Rosai, Madri, 1993, p. 171 ss.

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Antonio Beristain

Também o Corão. Limitamo-nos a umas breves referências, come­çando pelo código mais antigo do mundo, do século XVII antes de Cristo, que nos artigos 129 e 169 estabelece:

Se a esposa de uni sen h o r é su rp reen d id a de i tad a c o m ou tro hom em , os atarão (um ao outro) e os joga rão à água. Se o m arido da m ulher dese ja r perdoar a sua m ulher, en tão o rei pode (por sua vez) p e rdoar o seu súdito . Se com eteu con tra seu pai um a falta (o bastante) g rave para ser exclu ído da herança, (os ju izes ) pe rdoá-lo -ão na p rim eira ocasião; se incorrer em falta g rave pela segunda vez, o pai poderá exclu ir seu filho da herança.

A uma instituição, vigente já no Antigo Testamento, devíamos prestar especial atenção: o direito de asilo (Denteronômio, capítulo 19). Os templos, e algumas cidades israelitas, gozam do privilégio de acolher os delinqüentes e os marginais perseguidos pelo poder. Isso era realidade há muitos séculos e segue sendo agora. A Viçaria de Santiago do Chile, durante os anos de ditadura de Pinochet, tem servido de esconderijo e asilo a muitas pessoas. E também na vida cotidiana existe um direito de asilo, de tom menor, mas sumamente importante. Refiro-me aos costumes cristãos, da família, da paróquia, dos cidadãos, de acolher e atender aos marginais; especialmente nas igrejas e nos conventos.13

Entre os profetas, destaco Isaías, quando proclama:

Eis aqui o meu servo, meu escolhido.. . não grilará, não falará forte, nem levantará sua voz na praça; não rom perá a cana q u e ­brada, nem apagará a cham a esfumaçante... para abrir os olhos dos cegos, para tirar do cárcere os p resos (cap. 42, vers ícu lo i ss.).

De modo semelhante, o sulmista define Jeová como “o pai dos ór­fãos, o defensor das viíivas... que dá casa aos desamparados, que põe em liberdade os que estão em cativeiro” (salmo 68, versículo f> s.), pois, “como um pai sente ternura por seus filhos, sente Jeová ternura maternal (em hebreu rechen, en latim misericórdia) por to­dos seus fiéis; porque ele conhece nossa massa, recorda-se que so­

° A . Beristain. “La victimologia creadora de mievos dereclios humanos”, em A. Beristain, J. L. de la Cuesta (comps.), Victimologia, San Sebastián, Ed. Univer- sidad dei País Vasco, 199Ü, p. 225.

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mos de barro” (salmo 102, versículo 13 ss.). Em Israel, a cada sete anos se perdoam as dívidas (Deuteronômio, cap. 7, 15) e se libertao escravo (Exodo, cap. 21).

Do Novo Testamento basla recordar a parábola do filho pródi­go e o sermão da montanha ou as bem-aventuranças (Evangelho de Mateus, capítulo 5). que obrigam a perdoar sempre, “setenta vezes sete”, a todos, mas também aos aulores dos crimes mais atrozes. Comentando esses e muitos outros textos bíblicos, Paul Ricouer e Eugen Wiesnet concluíram que nossa infinidade e culpabilidade nos exigem imitar o olhar compassivo, maternal, de Deus. Tambémo pedem aos juizes.14

Recentemente, a encíclica Dives in misericórdia (30 de no­vembro de 1980), do pontífice romano loão Paulo II, desenvolve amplamente esses temas. Merece citar-se, ao menos, o parágrafo seguinte: a misericórdia,

entre tan to , tem a força de conferir à ju s t iça um con teúdo novo que sc expressa da maneira mais singela e plena no perdão. Este. com efeito , m an ifes ta que, além do processo de co m p en sa çã o e de trégua que c específico da jus tiça , é necessário o am or, para que o hom em sc fortifique com o tal. O c u m p rim en to das condi* ções da jus tiça é indispensável sob re tudo para q u e o am o r possa revelar o p róprio rosto. A o analisar a parábo la d o filho p ród igo , tem os cham ado já a atenção sobre o fato de que a q u e le q ue p e r ­d o a e a q u e le q ue é p erd o a d o se encon tram em um ponto essen ­cial, que é a d ignidade, vale dizer, o valor essencia l do hom em que não pode de ixar-se perder e cuja a f irm ação ou cu jo reen ­contro é fonte da mais g rande alegria.

Resta dizer que esse perdão não supõe a negativa da sanção justa e necessária. Sim, comprova que a justiça levada aos últimos limites pode abarcar uma grande injustiça, como indica o adágio latino summwn iits, swnma iniuria. As igrejas, atualmente, dão pouco apoio às severas doutrinas modernas do ju s t desert, a não ser os exegetas fundamentalistas que, por desgraça, não faltam.

E. Wiesnet. Die verratene Versòhmmg. Zuni Verhaltnis von Christentum und St rafe, Dusseidorf, Pa t mos Verlag, 1980, p. 26 ss.; J. Anton Oneca, “El perdón judiciar’. Revista de Ciências Jurídicas y Sociaies, Madri, 1922.

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166 Antonio Beristain

Entre os vários mananciais do perdão, merece especial menção a capacidade que a contemplação dá a seus iniciados para captar, sob a capa (muito espessa às vezes) de ações criminais, no mais fundo de toda pessoa, sem excluir do delinqüente a riqueza ímpar de sua dignidade humana, de tão alto valor que em sua comparação os delitos passam desapercebidos. As religiões ensinam seus fiéis a aproximar-se ao máximo do irmão, onde somente há dignidade e amor. Implantam em seus crentes uma pupila misteriosa, pene­trante, que descobre a semente de Deus dentro do barro de todo próximo, inclusive do criminoso. Diversas liturgias sacras fomen­tam a clemência e o indulto. Assim, nos países católicos, por moti­vo da nomeação do novo pontífice romano, costuma-se conceder indultos gerais, e durante a Semana Santa outorga-se, graciosa­mente, a liberdade a alguns presos. Também o Código de direito canônico de 1917, em seus cânones 2236-2239 ss. (como o atual, de 1983, em seus cânones 1355, 1356, 1357, 1362), estabelece am­plas normas para a remissão das penas canônicas.

Em todas as religiões se encontram, mais ou menos, cosmovi- sões similares. Entre os judeus, adquire solene celebração o dia anual do perdão. O Corão mostra, repetidamente, “Deus, o Com­passivo, o Misericordioso”, e na sura 3,103:

A ferrai ao pacto de Deus, todos jun los, sem vos d iv id ir . R eco r­dai a graça que D eus vos d ispensou quando ére is in im igos: re­conciliou vossos corações e, por Sua graça, vos tran sfo rm o u cm irm ãos; es táve is à beira de um abism o de fogo e vós vos livraste dele.

Permita-nos concluir que essa inclinação das pessoas e insti­tuições espirituais para o perdão encontrou, encontra e encontrará acolhida em todas, ou quase todas, as legislações estatais e na prá­tica dos tribunais de justiça.

Também na Espanha, segundo a Constituição de 1978, em seu artigo 62. i, “cabe ao rei exercer o direito de graça com acertos à lei, que não poderá autorizar indultos gerais”. Concrelamente, o artigo 2 de nosso Código penal (espanhol), em seu parágrafo 2S, pede aos tribunais que acudam

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Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimologia 167

o governo , expo n d o o convenien te , sem preju ízo de execu ta r a sen tença, q u an d o da rigorosa ap licação das d ispos ições da lei resultar p enosa um a ação ou om issão que, a juízo do tribunal, não deveria ser, ou a pena fora no tavelm ente excessiva , a ten d i­dos os graus dc m alícia e o dano causado pelo delito.

E, nos termos do artigo 112: “A responsabilidade penal se extin­gue: ...por indulto”. Afortunadamente, os juizes recorrem, com re­lativa freqüência, a esta solução “graciosa”, 110 melhor sentido da palavra. Um exemplo recente nos oferece sentença do Tribunal Su­premo espanhol, de 7 de dezembro de 1990 (Recurso número 4.221/87), que pede o indulto para o autor (condenado) de um de­lito de aborto.15 O governo concedeu-o poucos dias depois.

Todo perdão justo que brota de - e encontra acolhida na - re­ligião e/ou no direito penal ajuda a superar os dualismos de muitos crentes e juristas. Como indica Eduardo Correia, urge

buscar novos cam in h o s ep is tem o lóg icos que superem a ccsrtio- v isão das pessoas que som en te conhecem a tese e a an títese , o

corpo e a a lm a, a natureza e o espírito, a rea l idade c o valor, o poder e o dever, ou com o queiram que se ch am em , e que log i­cam en te se apegam a seu m étodo puro. a seus conce ito s c láss i­

cos, a sua a rgum en tação segura.

Correia prefere, pelo contrário,

q u e o ju r i s t a p e n a l is ta que , a lém d a s a n t in o m ia s , p ro c u ra ta ­teando (com o um cego ) u m a un idade superior, não tem guia s e ­guro que lhe p ro te ja con tra os passos e rrados, m as ele e so m en te

ele pode esperar que um a hora feliz chegue q uando lhe vai a p a ­recendo um a senda para um ponto alto, a partir do qual se su ­perem todas a s aparen tes an tinom ias em um a s ín te se c riadora de um a co n cep ção unitária do m undo e co m p reen d a que v iver com

l5STS, 7 de dezembro de 1990 (Recurso nü 4221/87), relator: Exmo. Sr. D. E. Ruiz Vadillo.

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os outros em sociedade é não só estar com eles. senão tê-los dentro de si cm um todo.16

Também avançam por novas orientações humanistas, não- dualistas, das recentes inovações da lingüística, Cobo e Vives Antón, que consideram a ciência jurídico-penal uma ciência hermenêutica.17

Essa fonte de perdão utópico, desde a árvore da ciência da “ reunião” do bem e do mal, espreita já na concepção histórico- metaíísica do delito como gênese da justiça que, há 27 séculos, formulou ou insinuou Anaximandro (610-547 a. C.) no famoso fragmento comentado atentamente por Heidegger, em seu Ho/zwege:

Mas de que é o nascer para as coisas, também o subtrair-se a este nasce segundo a necessidade; a saber, se dão razão c pena entre si para a injustiça segundo a disposição dos tempos (tra­dução literal).18

Em muito parecida linha, um século depois, Heráclito dirá: “Tudo flui” . “Não saberiam o nome da justiça se não existissem estas coisas” ...”0 contrário se põe de acordo; e do diverso a mais linda harmonia, pois todas as coisas se originam na discórdia”.19 Fica, pois, patente a complementariedade não-dual, transcendente.

Portanto, a justiça humana é, necessariamente, dialética, como reflexo da reparação, reconciliação divina: a Nèmesis suscitada pela Hybris humana. Em resumo, quando julgamos e sancionamos, sem nos deixar levar pela vingança animal, deparamos com a uto­pia do perdão harmônico e com a não-dual idade. O direito penal nunca foi e nunca será uma ciência social livre de valores (IVerífrei). Ao conlrário, pode-se admitir ou elaborar algo assim como um di­

16 E. Correia, “As grandes linhas da reforma pena!”. Jornadas de Direito Crimi­nal, O novo Código Penal porluguês e legislação complementar, Lisboa, Ed. Ins. Padre Antonio de Oliveira. 1993, pp. 20, 32.

17M. Cobo e T. Vives Anton, Derecho penal, parte general /, 33 ed., Valência, Tirant lo Blanch, 1990, p. 85.

I tfHeidegger, Sendas perdidas, trad. J. Rovira Annengol. Buenos Aires, Ed. Losada, 1960; Cf. J. L. Lopez Aranguren, Etica. 3L' ed.. Madri, Alianza, 1983, p. 249 ss.Heidegger, Sendas perdidas, p. 299 s., p. 302 s., p. 311.

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reito penal das religiões universais, contanto que se acomodem e se atualizem seriamente as condições formuladas por Max Weber, em seu livro A ética econômica das religiões universais (1915).

Por fim, todas essas religiões não perderão tempo se escutarem mais (e dialogarem mais com) os operadores e os estudiosos do controle social nos tribunais e nas universidades. Recordem que um teólogo pouco suspeito - pois tem mais de 57 anos e ainda não foi condenado pelo Vaticano - José Ignacio Gonzãlez Faus, afirma que “quando a religião é denominação segregante e está à margem da justiça, converte-se em cova de bandidos, por mais que invoque a Deus e creia possuí-lo” .20 Por outro lado, às mulheres e aos ho­mens do direito penal convém que se auto-auscultem a respeito de seus conhecimentos e sentimentos do mistério diacrônico e sin- crônico, ao longo da história universal.

J. I. Gonzãlez Faus, La hmuanidad ntieva, enxayo de cri.siologia. Barcelona, Actualidad leo lógica espanola, 1974, p. 84 ss.

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Capítulo 8

Justiça penal recriadora, da retributiva à restaurativa

Uma terceira cosmovisão da justiça penal

One might vtew pure reparative justice models, as utopian, but the current crisis of the punitive criminal justice system, for instance in the United States of America, shows that a reparative justice approach

inight be a way to solve that crisis. The winners o fsuch an approach wilt be the victims, the offenders, and society in general.

Elmar Weitekainp, “Reparative justice; towards a victim oriented systenf’, European Journal on Criminai Policy and Research, 1993, p. 89.

Atualmente, em linhas gerais, pode-se dizer que a ciência total do direito penal, incluindo a criminologia, avança por duas auto- estradas (com diversas “ faixas” dentro de cada uma delas):

a) a denominada justiça crimina1 retributiva, que começa seu iter na culpabilidade e tem como meta a pena como sofrimento es- tigmatizante contra o delinqüente, e

b) a justiça criminal restauradva, que dirige seus passos, prin­cipalmente, para a análise dos danos que a criminalidade causa no sujeito passivo dos delitos (a vítima) para outorgar-lhe sua justa reparação.

Para descrever esses dois modelos (no item II, “Linhas funda­mentais das cosmovisões retributiva e restaurativa”), escolhemos como base os 19 princípios característicos dessas duas concepções da justiça penal, resumo da exposição de J. David McCord, Identi­fication o f core values. Is it possib/e? IVhat might they be?, apre­

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sentada no International Symposium on the Future of Corrections (Ottawa, 12 de junho, 1991) (manuscrito que agradeço ao prof. Tony Peters).

Depois (no item 11, “Comentários a favor da justiça recriado- ra”), analisamos e comentamos os três primeiros traços desses dois paradigmas do ius puniendi e, d e s d e /m ^ v eles, tentamos elaborar outros tantos traços, os quais nos permitimos denominar nova justiça criminal “recri adora”, que consideramos mais de acordo com a criminologia, a antropologia, a sociologia e a vitimologia do terceiro milênio.

Talvez nossos comentários esqueçam alguns importantes as­pectos e contribuições da justiça restaurativa, ou transladem às recriadoras considerações e temas que esse ou aquele especialista tenha incluído já na restaurativa, pois, dentro desse modelo, se en­contram cosmovisões muito diversas, algumas delas desconhecidas por nós. Esperamos que o leitor desculpe as omissões em que po­demos incorrer.

Estas páginas pretendem, por um lado, patentear a grande dife­rença e o grande progresso que se colocam entre o sistema retribu- tivo e o restaurativo da justiça criminal, e, por outro, acrescentar reflexões àquelas que dão a entender que conviria falar de justiça “recriativa” mais que de justiça “restaurativa”, por vários niotivos, e com interessantes conseqüências.

Desejamos algo mais que modificar, suprimir ou incluir mui­tos artigos nos Códigos, que reformem e melhorem as normas substantivas e processuais do ius puniendi. Buscamos outra meta diversa, avançamos em outro nível. Apoiados em eminentes pena- listas, processualistas, criminológos e vitimólogos de aqui e acolá, tentamos algo muito diferente: insuflar um novo espírito na justiça penal de amanhã; observá-la e recriá-la sob outra perspectiva: a das vítimas como protagonistas da justiça penal e de seu insuperável processo.

Damo-nos por satisfeitos se alguém concluir que a rubrica “ restaurativa” deve ser substituída pela palavra “recriadora” . Essa nova denominação, seriamente argumentada e desenvolvida, pode contribuir para baixar o sentido vindicativo, expiacionista e estático da tradicional justiça criminal, da opinião pública, da policial, da judicial, da penitenciária e, também, das pessoas que, aUruistica-

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mente, colaboram como voluntárias e/ou benévolas. Também pode ensinar a todos a olhar menos o passado, a retribuição e a restaura­ção conservadora, porém mais o futuro dinâmico e recriador.

Convém adiantar uma observação premonitora para evitar posteriores mal-ententidos: quase sempre que falamos de delitos e delinqüentes nos referimos aos que, geral e majoritariamente, figu­ram nas estatísticas e nos edifícios das instituições privativas de liberdade. A maior parte de nossas considerações não se dirige (ou se dirige somente em parte) aos delitos e delinqüentes graves. Dá motivo a notáveis erros esquecer que mais de 90% dos que vivem tragicamente em nossos cárceres são “pobres diabos” , na termino­logia de López Rey, delinqüentes de “bagatela”, vítimas de nossas estruturas sociais injustas, mais que criminais.

Inclusive, Louk Hulsman e Jacqueline Bernat de Celis reco­nhecem que sua postura abolicionista do direito penal não chega até os crimes mais graves (cf. Peins perdues, p. 53; em castelhano: Sistema pena} y seguridad ciudadana).

Por falta de espaço, não podemos comentar os 16 restantes princípios básicos relributivos e restaurativos. Limitamo-nos a re­sumir, telegraficamente, ao final, no item IV, as 19 coordenadas do novo modelo da justiça criminal recriadora.

Linhas fundamentais tias cosmovisões retributiva e restaurativa

...deux grandes catégories de sanctions: les unes consistent essentiellenient dans une douleur. ou tout au moins dans une diminution infligée à

1'agent... Quant íi 1’autre sorl, eüe iVimplique pas nécessairement une souffrance de 1'agent, mais consiste seulement dans la remi se des choses en

état, dans le rétablissement des lapports troublés sous leur forme normal e.

Meireille Delmns-Marty, L'eiiseigiieiuenl des Sciences crhnineUesaujourd'htti, 1991, p. 16.

Os números “A ” descrevem as bases, as coordenadas e as me­tas principais do Modelo da Justiça Penal Retributiva. Os correlati- vos números “B” as do Modelo Restaurativo.

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1 A) O delito é a infração da norma penal do Estado.1 B) O delito é a ação que causa dano a outra pessoa.2 A) A justiça retributiva concentra-se na reprovação, na culpabi­

lidade - olhando para o passado - do que fez o delinqüente.2 B) A justiça restaurativa concentra-se na solução do problema,

nas responsabilidades e obrigações, olhando o futuro: o que deverá ser feito?*

3 A) E reconhecida uma relação de contrários, de adversários, quevencem e submetem o inimigo, em um processo normativo, legal.

3 B) São estabelecidos um diálogo e uma negociação normativaque imponham ao delinqüente uma sanção restauradora.

4 A) O castigo é a conseqüência (natural) dolorosa que tambémajuda (castigando se defendere) ou pretende a prevenção ge­ral e a especial.

4 B) A pena é (pretende) a reparação como um meio de restaurarambas as partes (delinqüente e vítima); tem como meta a re­paração/reconciliação.

5 A) A administração de justiça se define como um processo “de­vido” , segundo as norma legais.

5 B) A administração de justiça se define como boas relações,avaliam-se as conseqüências.

6 A) O delito é percebido como um conflito (ataque) do indivíduocontra o Estado. É menosprezada sua dimensão interpessoal e conflitiva.

6 B) O delito é reconhecido como um conflito interpessoal. E sereconhece o valor do conflito.

7 A) O dano de que padece o sujeito passivo do delito se compen­sa com (reclama) outro dano ao delinqüente.

7 B) Pretende-se conseguir a restauração do dano social.8 A) Marginaliza-se a comunidade (e as vítimas) e localiza-se

esta abstratamente no Estado.8 B) A comunidade como catalisadora de um processo restaurati-

vo versus o passado.9 A) São promovidos e fomentados o talento competitivo, os va­

lores individuais.*

9 B) E incentivada a reciprocidade.

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10 A) A sanção é a reação do Estado contra o delinqüente. A víti­ma é ignorada, e o delinqüente permanece passivo.

10 B) São reconhecidos o papel da vítima e o do delinqüente, tantono problema (delito) como em sua solução. São reconheci­das as necessidades e os direitos da vítima. O delinqüente é anintado a responsabilizar-se.

11 A) O dever do delinqüente é cumprir (sofrer) a pena.11 B) A responsabilidade do delinqüente é definida como a com­

preensão do impacto de sua ação e o compromisso em repa­rar esse dano.

12 A) O delinqüente não tem responsabilidade na solução do pro­blema (do delito).

12B) O delinqüente tem responsabilidade na solução do conflito do crime.

13 A) O delinqüente é denunciado.13 B) E denunciado o dano causado.14 A) O delito é definido no teor da formulação legal, sem tomar

em consideração as dimensões morais, sociais, econômicas e políticas.

14 B) O delito é entendido em todo o seu contexto moral, social,econômico e político.

15 A) O delinqüente tem uma dívida com o Estado e a sociedade,abstratamente.

15 B) É reconhecida à vítima a dívida/responsabilidade.16 A) O castigo considera a ação pretérita do delinqüente.16 B) A sanção responde às conseqüências prejudiciais do com­

portamento do delinqüente.17 A) O estigma do delito é indelével.17 B) O estigma do delito pode apagar-se pela ação rep ar adora/

restauradora.18 A) Não se fomentam o arrependimento e o perdão.18 B) Procuram-se o arrependimento e o perdão.19 A) A justiça penal está exclusivamente nas mãos de profissio­

nais governamentais.19 B) Na resposta ao delito (ao conflito), colaboram também os

participantes implicados nele.

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Comentários a favor da justiça recriailora

O delito como faltei de três omissores

Como se indica no esquema de J. David McCord, pode-se di­zer (com os perigos que levam os resumos) que os partidários do Modelo Retributivo definem o delito como a infração culpável da lei do Estado, enquanto os seguidores da justiça restaurativa, ao contrário, como a infração legal de uma pessoa que causa dano a outra.

A noção retributiva do crime padece de múltiplos anacronis- mos, rejeitados na maioria dos tratados aluais, por exemplo, seu crasso maniqueísmo, sua excessiva abstração filosófica, seu casa­mento com a moral religiosa, seu falso pressuposto de que toda a sociedade está de acordo com o Estado, com a classe dominante, etc. Esquece a (cada dia maior) diversidade de cosniovisões que convivem na sociedade e merecem seu amplo respeito.

O conceito restaurativo do delito avança plausivelmente, ao concretizar que o principal do delito é a causa de uni dano a outra pessoa, ao sujeito passivo do delito, que agora recebe a nova denominação de “vítima”, que entra e mostra notáveis enriqueci­mentos. Além disso, supera o excessivo protagonismo que o Estado concede (ou concedia) à justiça retributiva. Entretanto, esta noção do delito mantém uma idéia exageradamente individualista da cau­sa do delito.

Da perspectiva da justiça recriativa, essas duas descrições contêm alguns elementos que devem ser mantidos e outros não. Ambas as descrições carecem de importantes aspectos que mere­cem ser acrescentados. Por isso, optamos por uma (relativamente) nova formulação do delito, mais de acordo com as realidades sociais de hoje.

Nossa definição embrionária (necessitada de mil matizes pos­teriores, embora já sem importância e esclarecedora) concebe o delito como o comportamento do deliqüente e também de suas cir­cunstâncias, que causa dano a pessoas concretas e/ou à sociedade; como a geralmente mútua vitimação (por omissão, por “ falta” da ação devida) de duas ou mais pessoas (conseqüências da situação social e da infinitude, liberdade e culpabilidade de toda mulher e de

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todo homem), uma das quais padece maior ou muito maior prejuí­zo que a outra. A seguir esboço alguns pontos centrais deste con­ceito.

Em certo sentido, o delito não é, nem implica, uma ação; é uma desvalorização, não uma realização ou Leistimg. Mais exato seria ver o delito como a omissão da criação conveniente (que con­vém ao autor e ao “outro”), devida e gratificante. Preferimos, nesse sentido, falar de “falta” (Fehler) mais do que de delito, pois o que chamamos delito, na verdade, é uma omissão, um vazio, o que “ falta” . Dito com outras palavras: um comportamento omissivo, mas que causa dano ao sujeito passivo e a outras vítimas. Prefere- se falar de vítimas (no plural) melhor do que vítima (no singular), pois, salvo exceções, todo delito afeta negativamente várias pessoas, além e distintas do sujeito passivo do delito.

Contra o que se afirma nas duas definições anteriores, conside­ramos que, geralmente, junto com o “autor” por antonomásia, atu­am também, e são co-responsáveis, outras e outras pessoas e/ou circunstâncias (situações às quais não cabe imputação objetiva nem subjetiva ao delinqüente).

Também as vítimas, podemos considerá-las co-responsáveis como co-autoras (em maior ou menor parte) do dano causado. Fattah e outros especialistas têm escrito abundantemente nesse sentido, e já há algumas décadas D. Juan dei Rosai.

Também Gibran Khalil Gibran (O profeta), opina que “o de­linqüente não poderá fazer o mal sem o consentimento secreto de todos nós... O assassinado é censurável por seu próprio assassinato. E o roubado não está isento de culpa por ter sido roubado...”

Para estudar a fundo os problemas da autoria criminal, pode ajudar, provavelmente, a referência à doutrina física e metafísica, holística, global, dos vasos comunicantes entre todas as energias cósmicas e pessoais. A autoria criminal é a resultante ou “ato a distância” (que Francisco Suárez, se hoje vivesse, admitiria) que se torna realidade-agente no espelho pequeno que reflete e contém a situação circunstancial, a realidade inteira, no oculto microcosmos do delinqüente.

Conseqüentemente, assim como são várias as pessoas co- responsáveis, também são várias as que padecem do dano. Por con­seguinte, o sujeito passivo da infração, bem como a sociedade.

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M as também o vitimaüor sofre certa vitimação, certa desvalo­rização pessoal. Recordemos, neste sentido, o preâmbulo da Decla­ração das Nações Unidas, de 20 de novembro de 1963, ao tratar da eliminação de todas as formas de discriminação, cjue declara que também resultam prejudicados os autores desses delitos: “A Assem- bléia-Geral... convencida, também, de que a discriminação racial prejudica não só a quem é objeto dela, mas também a quem a pratica” .

Quando define o delito, a justiça recriadora presta especial e maior atenção à criminalidade e às estruturas sociais injustas, por sua máxima capacidade vitimizante e pelas excepcionais dificulda­des que encontramos para criar uma resposta eficaz. E, com isso, passemos ao ponto seguinte.

Justiça para compreender e recriar

O pensar e o atuar supondo que “eu sou assim” e “sempre serei assim” e, portanto, “pouco vou mudar” é falso biologicamente e perigoso

para o indivíduo e para suas relações sociais.

José M. R. Delgado, La felicidad, 1992. p. 221

A meta da justiça retributiva pretende sancionar o delinqüente, porque é culpado, olhando seu passado, quia peccatum est, porque infringiu a lei.

Afortunadamente, pouquíssimos penalistas mantêm esse con­ceito de culpabilidade moral que durante tantos séculos tem domi­nado — e manchado - a dogmática e a práxis penal. Assim mesmo, é já quase geral a recusa da sanção no sentido retributivo autêntico. Digo “quase geral” porque ainda alguns professores, juizes e polí­ticos, sobretudo nos países que mantêm a pena de morte, aplaudem o castigo como dor e sofrimento ao criminoso: mal um passionis propter mal um actioms (como dizia Boécio, em sua definição da pena).

A justiça restaurativa recusa, com sólidos argumentos, quase todas essas noções básicas da justiça retributiva. Ela, ao contrário, procura solucionar o problema, restaurar o dano resultante do de­lito. Estuda as responsabilidades e as obrigações do deliqüente para conseguir reparar os prejuízos causados.

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Nossa proposta de justiça recriadora vai mais adiante que as duas anteriores. Não admite uma culpabilidade moral, unicamente admite a culpabilidade jurídica, como mostra magistralmente Jes- clieck, na sua monografia sobre o tema, no livro Ignacio de Loyola, Magister Arfimn en Paris 1528-1535, p. 405 ss. Tampouco pro- pugna uma reação contra, nem diante da, suposta ação delitiva. Em penha-se a favor da restauração, mas não a considera suficiente, porque esta olha o passado mais que o futuro. O restaurador das obras de arte procura que o quadro ou a escultura recubram o esta­do anterior, tal como as fez, há anos, o artista.

O Modelo Recriador basicamente busca a compreensão do su­cedido (do comportamento do delinqüente, das vítimas e da socie­dade) e, a partir dela. como resposta, a criação que preencha o “buraco” , o dano, a omissão, que chamamos delito; e, sobretudo, que possibilite e fomente a evolução reavaliadora para o amanhã. Digamos algo dessa compreensão e sua seguinte criação.

Com acerto, alguns pena listas recordam o adágio francês Tout comprendre c fest tout pardonner, como um dos fundamentos para o perdão legal, judicial e/ou penitenciário. No sentido profundo que explica Raimon Panikkar, o delito e/ou o mal desaparecem, em certo grau, ou quase todo, quando são compreendidos. Ainda que, sociologicamente, permaneça todo o dano produzido. Por isso, os juizes podem perdoar muito menos que as vítimas. Além disso, há algo que não se deve perdoar gratuitamente, que exige a reconstru­ção pessoal do mesmo delinqüente: o que esse pequeno ou grande grau de sua liberdade desvalorizou e destruiu. Parece pouco acerta­do supor os delinqüentes totalmente carentes de liberdade ao co­meter o delito, embora não saibamos nem como, nem quanto, nem o lugar desse arbítrio.

Essa força desculpadora deve avançar e converter-se em cria­dora. Dada a importância cada dia maior da energia do perdão e da compreensão, logicamente se encontram referências em vários do­cumentos das Nações Unidas. Por exemplo, a Convenção relativa à luta contra as discriminações na esfera do ensino (de 14 de dezem­bro de 1960), que entrou em vigor em 22 dc maio de 1962, insiste na necessidade de “ fomentar a compreensão” (artigo 5). Também a Declaração dos Direitos da Criança (20 de novembro de 1959), princípio 6, constata que “a criança, para o pleno e harmonioso

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desenvolvimento de sua personalidade, necessita de amor e de compreensão”. De modo semelhante, o artigo 5 da Declaração so­bre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convicções (25 de novembro de 1981) pede que “será educada (a criança) em um espírito de compreen­são...” E, com palavras parecidas, em outros documentos.

A justiça recriadora pretende mais que restabelecer, ou restau­rar, a ordem jurídica violada, como desejavam alguns escolásticos do Século de Ouro (pois nem todos pediam a vingança, a vindicta, a expiação, a Siihne). Em verdade, restabelecer e também restaurar olha demais para o passado. O Modelo Recriador de justiça deseja, bem mais, recriar a convivência harmoniosa no avanço progressivo da evolução e da história, que difere de, e supera, a repetição cir­cular da cultura helênica. Se uma bailarina comete uma falta no balé, o bom diretor não voltará a repelir a cena, e sim seguirá adi­ante recriando um novo ritmo.

A recriação de uma ordem (jurídica) nova encontra sólido fun­damento nas diversas teorias construtivistas, cada dia mais consoli­dadas, e na moderna antropologia, que constata o poder inovador da pessoa e da construção social da realidade. Também, a partir de uma perspectiva acertada, mas não comum, em alguns pioneiros, por uma dogmática penal criadora, conscientes do “neutralismo acrítico e isolado da realidade de que, constantemente” , padece a dogmática (Cf. Santiago Mir, “Por una dogmática penal creadora”, Consejo General dei Poder Judicial, La sentencia pena l, Madri, J 992, p. 25).

Com matizes próprios, Laín Entralgo, em seu livro (Creer, es­perar, amar, 1993, p. 269), comenta, partindo de diversas perspec­tivas, “que viver humanamente é descobrir a realidade, criar a realidade” . E também o delinqüente pode auto-recriar-se:

Poucas coisas mais nobres que a reta assunção de um fracasso... E como assim ehega a ser meu fracasso, assim também meu ar­rependimento, seja intelectual, estético ou moral o motivo que o tenha determinado; tão meu, quando é sincero, que me faz renascer (icient, p. 223).

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O Modelo Recriador sublinha a tão transcendental dimensão criativa e recriadora (110 duplo sentido de fazer e desfrutar) de toda sociedade e, mais ainda, do homo faber e do homo iudens, de toda pessoa.

Urge que tanto as mulheres como os homens tomem consciên­cia da gigantesca força que existe dentro do nosso interior, conscientes “da androgênese, do dinamismo irrefreável escondido - semente soterrada - na infinitude do nosso coração” (A. Beristain, “ Intro- ducción a la edición espaííola”, em Cherif Bassiouni, Derecho pena! internacional. Tradução, notas e anexo de J. L. de la Cuesta, Madri, Tecnos, 1984, p. 11; idem, Ciência penal y criminologia, Tecnos, 1985, p. 58).

As ciências antropológicas e psicoanalíticas devem abrir novos horizontes teóricos e práticos nos agentes de controle social - le­gisladores, magistrados, policiais, advogados, funcionários das instituições penitenciárias - e, não menos, em todo(a) cidadão(ã). Devem convencer-nos de que a pessoa não consegue sua devida “maioridade”, ou, dito de outra maneira, o desenvolvimento natural de suas faculdades, até que chegue ao “nível produtivo” , na termi­nologia de Erich Fromm (cf. D. T. Suzuki e Erich Fromm, Budis­mo zen y psicoanálisis, México, Ed. Fondo de Cultura Econômica, 1985, p. 125 ss.). Quer dizer, até que libere (e aprenda a dispor de) todas as energias acumuladas, própria e naturalmente, em si mes­mo, mas que em circunstâncias ordinárias permanecem constrangi­das e deformadas, de modo que não encontram o canal adequado para a sua atividade. Até que, como efeito da luz e do calor da consciência cósmica e da oportuna pedagogia profunda, renuncia a agarrar-se a si mesmo e supera a cobiça de ter. Por esse caminho a pessoa fica vazia e disposta a receber. Disposta à percepção direta, não cerebral, da realidade que também é dinâmica.

Dessa maneira, a pessoa alcança um jeito humanamente pro­dutivo, não no sentido mercantil, fabricador de objetos, senão no pessoal, recriador de sujeitos, começando por si mesmo.

Esse sentido produtivo, não-mental, mas pleno-pessoal, pode entender-se melhor à luz da não-dual idade. O verdadeiro mestre, quando toca o violino (de uma maneira totalmente distinta de como toca o estudante), não o faz com as mãos nem com o cérebro, mas com toda a sua pessoa identificada com o violino. Ele está vazio e

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disposto a receber o violino; não o percebe nem trabalha só men­talmente. O artista, todo ele, sente e experimenta seu violino com seu arco; fáTo viver, ao mesmo tempo em que o violino o faz vi­ver. Estamos diante da não-dualidade do subjetivo-objetivo. Antes de começar o concerto, prepara a lição, repassa as notas, mas, so­bretudo, prepara-o, seu talante produtivo.

Sementes dessas cosmovisões ou rupturas epistemológicas, re- criativas, a partir de perspectivas muito diversas, encontram-se em muitos autores de tempos passados, como Platão, Spinoza, Oliver Wendell Homes, etc. Recordemos o mito da caverna: nosso cére­bro somente conhece as sombras, não a realidade. Para conhecer esta, tem que sair da caverna, do “ego” . Algo similar indicava Spi­noza, em seu tratado Ética , quando considera todo conhecimento verdadeiro em um horizonte de eternidade, sub qnadam aeter- nitatis specie. E em seus Princípios da filosofia carfesiana, ao afirmar que a ordem e a conexão das idéias são o mesmo que a or­dem e a conexão das coisas; ou quando aplaude as representações que proporcionam um conhecimento intuitivo e direto da natureza simples observada.

Com semelhante ponto de vista, para Oliver Wendell Holmes (The common law , Londres, 1881, p. 1), a vida real do direito se nutre mais que de lógica, da experiência do desenvolvimento tem­poral, das necessidades sentidas de melhoras, das intuições decla­radas ou inconscientes, acerca das linhas de crescimento. Tudo isso tem muito a ver (mais que o silogismo) com a determinação das normas pelas quais os cidadãos devam ser governados.

Em nossos dias, Gehlen (Der Mensch, Wiesbaden, 1976) con­sidera básico para a sociobiologia afirmar que tanto os comporta­mentos dos indivíduos como os dos grupos sociais refletem a interação fecunda das energias biológicas, ambientais e culturais. A pessoa é uma criatura indeterminada, indefinida, com capacidade máxima de transformar-se e melhorar-se; diferentemente dos ani­mais, não vive só o presente senão olhando para o futuro, com ca­pacidade de aprendizagem ilimitada.

Apoiado em suas pesquisas científicas, José Manuel Rodrí- guez Delgado (La felicidad, 14a ed., Madri, Ed. Temas de Hoy, 1992) conclui em favor dessa capacidade de aprendizagem e cria­ções phts ultra, pois “os seres humanos são educáveis e suscetíveis

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de mudanças pessoais e sociais, existindo fatos históricos que apoiam esta tese: recordemos que a escravidão foi abolida, os sa­crifícios humanos têm desaparecido, já não existe antropofagia, a mortalidade infantil tem diminuído consideravelmente e a duração da vida tem-se alongado bastante. As idéias originadas por seres excepcionais, como Jesus Cristo, Einstein e Karl Marx, determina­ram mudanças decisivas nas mentes e nas condutas dos homens.

Temos que dar alta prioridade à pesquisa do espaço interior do cérebro para encontrar as bases biológicas que permitam potenciar a felicidade pessoal, a convivência social e a cooperação interna­cional. Isso não é utopia, senão uma possibilidade a nosso alcance se assim o propomos. A tentativa de conseguir a paz e o bem merece ser explorada. Seu êxito internacional pode ser de incalcu­láveis benéficas conseqüências. Mas, também se o lucro interna­cional fosse difícil e prematuro, sua implantação em nível pessoal seria muito mais fácil e rápida. O êxito em nível pessoal pode po­tenciar sua posterior utilização universal.

Já 110 campo criminológico, Denis Szabo {De Vandxropologie à la criminologie comparée, 1993) e M. Le Blanc {La criminologie clinique. Un bilan rapide des fravaux sur Vhomme criminei, 1989) optam por uma criminologia déve/oppemenfale, transbordante de infervention créadve.

Em poucas palavras: a dignidade da pessoa implica muito mais do que alguns kantianos opinam. Não basta afirmar que a pessoa é sujeito com fim próprio que nunca possa fazer-se meio para outra finalidade. A dignidade da pessoa exige essa fronteira, mas exige mais. Que se reconheçam sua capacidade e sua responsabilidade para continuar a criação de tudo, inclusive de si mesma. A parábola dos talentos, a necessidade de desenvolver, de produzir, de que fala o evangelista Mateus (no capítulo XXIV, versículo 13 ss.): quem recebeu cinco talentos tem obrigação de produzir outros cinco, não basta conservá-los nem restaurá-los.

Quando nos referimos à pessoa (mas não a todos os professores de universidade), recordamos que esta tem por missão “produzir” a riqueza humana da sociedade (cf. II. Lampert, Wer “produziert” das Humanvermõgen einer Gesellschaft?, no livro-homenagem a Anton Rauscher, Die personale Sírukfur des geselíschadichen Lebens, Berlim, 1993, p. 121 ss.).

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À luz do aqui brevemente indicado, optamos por uni modelo de justiça recrialiva que “compreenda” o delito como dcsvalor do ato, do resultado e do autor e que pretenda “recriar” esse dano, essa ordem jurídica perturbada, olhando para o futuro.

As vitimas protagonistas cio processo

Dentro da totalidade do sistema penal, a privação da liberdade torna-se uma instituição com uma identidade específica, e o pessoal penitenciário é

reconhecido e valorizado como participante no projeto global de justiça penal. E uma inovação que se encontra em oposição à marginal ização

tradicional do cargo e do estatuto do funcionário penitenciário.

Tony Peters, Cárcclcs dc inonana (La Mision dei Servido Correcciona! deCanadá), San Sebastián, 1993, p. 94.

A justiça retribuliva implica um progresso, a respeito das sociedades primitivas (ou atuais, mas não integradas ou revolucio­nárias, ou terroristas), da vingança imediata e ilimitada, sem os “ impedimentos” que produzem as regras do procedimento penal (D. Szabo, p. 81). Procura evitar os excessos daquela reação in- controlada. Para lográ-lo, introduz o processo, que possibilita a re­flexão e a racionalização das “conseqüências” do delito, e sopesa na balança da justiça o “olho por olho, dente por dente” ; isto é, o quanto se deve castigar o delinqüente. Assim, o Modelo Retributi- vo expulsa a vingança, e, nesse momento, começa o ponto zero da justiça que venceu a Hybris, como afirma Ernst Bloch.

Mas esta nascente justiça mantém a disposição básica pri­mitiva de inimizade das vítimas (e de todos) contra o delin­qüente. O processo não elimina essa relação entre adversários; só a ritualiza. Por isso, conserva o “castigo”, isto é, o inflingir dor ao infrator. Despreza-se a vítima para que o Estado ocupe seu lugar, para que o direito penal se converta em um instrumento do poder.

Ao contrário, o processo da justiça restaurativa, embora man­tenha (talvez diminuído) o talante adverso ao delinqüente, introduz maior respeito por ele, e certa atmosfera de diálogo, de negociação, com o que, por uma parte, reaparecem (afortunadamente) as vítimas e, por outra, a pena perde algo de seu tom de ex pi ação e castigo para apresentar-se como sanção e, mais ainda, como pacto, tendente à restauração do “malefício”.

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Para a justiça recriativa, o processo adquire mais importância que nos outros dois modelos de justiça; supera o clima que pugna contra o delinqüente, pois a este se outorga o papel dialogante e colaborador. O processo é, antes tudo, o controle dinamizador das fases sucessivas de um fenômeno, isto é, do delito que ainda não alcançou sua meta, sua solução, seu Leistung, seu resultado criativo.

A luz das novas ciências do conhecimento e do estrutural is mo, criticam-se os tradicionais e atuais modelos de justiça criminal que pressupõem e fomentam uma solução de continuidade entre o delito e o processo, pois olvidam e desprezam as vítimas e vendem barato seu papel de protagonistas ao Estado, ao poder judicial. Na justiça recriativa, o processo carece de autonomia, provém do delito, é sua continuação natural (em certo sentido), é sua fase seguinte que - não por reação, senão por recriação - prepara (e advoga) a fase posterior: a sanção.

Assim como 110 delito se encontram três agentes (delinqüente, vítimas e sociedade), 110 processo encontram-se os mesmos, mas em uma nova ordem de prelação:

1-) As vítimas, não como nos atuais modelos processuais, senão para desenvolver seu papel central, em nada secundário, muito diferente do “convidado de pedra” . Existem casos (pois as pes­soas não são tão egoístas como alguns acreditam) em que as vítimas, impressionadas pelas sinceras expressões de arrepen­dimento reparador do vitimador, desejam contribuir eficaz­mente para sua repersonalização, chegando até a renunciar a algumas de suas devidas compensações e também a se oferecer para dar trabalho ao delinqüente (Cf. F. W. M. McElrea, “The Youth Court in New Zealand: a new model of justice”, // new model o f justice, Ed. Legal Research Foundation, 1993, p. 8).

2-) A sociedade, com e por seus representantes: as comunidades urbanas, o jurado, os juizes, etc. Mas estes últimos com uma missão nova, não para medir e pesar na balança para castigar ou restaurar, senão com critérios construtivos, construcfive evite- ria (cf. Unsdri, The role oj'the judge in comteniporaiy society, 1984, p. 12), para receber, conhecer e apreender o fato delitivo e transformá-lo cm direito, em justiça (da mihi jactw n, daho tibi ius).

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3L>) O delinqüente, como responsável principal do comportamento inicial, do delito, da omissão da ação devida, e como colabora­dor das construções seqüenciais, das respostas assistenciais às vítimas, como sujeitos, não como objetos que se restauram. Ao delinqüente se pode mostrar e demonstrar, à luz da filosofia de Jaspers e de Max Scheler, poucas coisas mais nobres que a reta assunção de um fracasso; e como assim chega a ser meu fra­casso, assim também meu arrependimento, seja intelectual, es­tético ou moral o motivo que o tenha determinado; tão meu, quando é sincero, que me faz renascer (cf. Lain Entralgo, Creer, esperar, amar, p. 223).

Nesses temas também os criminólogos nos ajudam a recordar as parábolas do bom samaritano e do filho pródigo (cf. Lain En­tralgo, Teoriay realidad de! olro, Madri, 1988, p. 568 ss.).

No encontro processual, como em todo encontro, segundo in­dica a etimologia comparada (Begegmmg, Encoxmter, rencontre), aparece (mais ou menos patente) algo contrário, que no sistema recriativo se supera pela atribuição de novos “papéis” para as víti­mas, para a sociedade e para o delinqüente. “Os outros” , os distin­tos, cessam (dão baixa) como adversários para se converterem em complementares, que recriarão a ordem social destroçada pelo de­lito de ontem, e construirão a ordem jurídico-social de amanhã.

As ciências criminológicas podem e devem mostrar que tanto a prevenção geral e especial como as penas e medidas alternativas devem girar ao redor da plena compensação às vitimas, em um sentido re criador in crescendo (cf. Unsdri, The role o f the judge in contemporary socie/y, Roma, 1984, p. 10, p. 48 ss.). Infelizmente, o Projeto de Lei Orgânica do Código Penal espanhol, do ano de 1992, desconhece essas doutrinas geralmente já admitidas, por exemplo, no Projeto de Código Penal polonês (cf. em sentido crítico e deses- perançoso os artigos de José Lu is de la Cuesta e de Santiago Mir Puig, no livro-homenagem ao prof. Dr. Juan dei Rosai, Política crimina! y reforma pena!, Madri, 1993, p. 319 ss., p. 843 ss.).

Este novo modelo do processo, como encontro triangular, tem notas comuns com o encontro do eu-criança, que não sabe falar, com o tu adulto, à luz da doutrina de Martin Buber, para buscar o surgimento, a criação do nós. Um de “nós” deve planificar e de­

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terminar a sanção (.sentencing), como se logrará a reconciliação, a recriação da ordem destroçada pelo roubo, pelo assassinato, pela violação, etc. Como do esterco podem brotar flores.

Traços fundamentais do novo modelo recriador

Na animosa rebelião contra o que de lacrimoso tem e seguirá tendo o mundo, e no melancólico gozo de tudo o que o faz e com nosso esforço possa fazer-lo delicioso, tem o homem seu destino e sua dignidade.

Pedro Lain Entralgo, Creer, esperar, amar, p. 275.

Continuando, esboço, telegraíicamente, as linhas fundamentais do Modelo de Justiça Recriadora que, inteligentemente desenvol­vidas, podem contribuir para uma convivência mais justa, mais pa­cífica e mais solidária.

1 ) 0 delito é o comportamento (do delinqüente e também de seus circunstantes) que causa dano à pessoa concreta e/ou à socie­dade.

2) A justiça recriadora concentra-se, mais do que na reação da pena (niahnn pctssioiüs propler walmn octionis), na compreen­são (compreender tudo é perdoar tudo) e na criação de uma nova ordem, de uma nova relação entre o(s) vitimador(es) e as vítimas.

3) E outorgado às vítimas o protagonismo no ifer processual do encontro dialogai para planejar, projetar (determinação da san­ção, senfencing) uma reconstrução (recriação) social da reali­dade perturbada pelo delito.

4) A sanção não é uma conseqüência ontológica natural. É uma construção social, uma criação não do nada, senão a partir da coisa danificada. A partir da ferida se cria uma cicatriz de valor positivo, olhando para o futuro.

5) A administração da justiça brota - cria-se - como resultado dos deveres cumpridos.

6 ) 0 delito é a porta do iceberg de uma situação injusta, à qual o delinqüente acrescenta a última parte (passo para o ato, dos es­pecialistas franceses), por seu ato “ livre” .

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7) Considera-se como tema principal a criação, a recriação da or­dem social futura, a partir do dano pretérito (não do nada; não “contra” o delinqüente).

8) A comunidade (que inclui também o delinqüente) como catali- sadora de um processo recriador a partir (motivado e favoreci­do por) do delito pretérito.

9) Vê-se o delinqüente, o “adversário”, como o complemento.10) Reconhecem-se as necessidades e os direitos da vítima, mas

também seus deveres, suas possíveis responsabilidades e também suas possíveis co-culpabilidades. Busca-se que o delinqüente assuma suas responsabilidades, mas também se reconhecem seus direitos, alguns talvez versus, melhor dito, em relação à vítima.

1.1) O dever do delinqüente, mas também da vítima e da sociedade, é reconhecer o dano causado por sua ação (de todos e de cada um) e comprometer-se a recriar a convivência futura entre os três co-autores (uns mais que outros, mas todos co-autores e co-recri adores).

12) O delinqüente tem responsabilidade na solução, mas também a vítima e a sociedade. Mais que solucionar um problema (delito) passado, trata-se de criar ou recriar uma convivência futura.

13) Observam-se e constatam-se o ato (não se julga nada), suas conseqüências e o autor (tríplice: delinqüente, vítima e socie­dade). Como não se julga, tampouco se denuncia, pois esta pa­lavra sofre um pré-julgamento pejorativo.

1 4 ) 0 delito explica-se e compreende-se (compreensão à luz das modernas ciências do conhecimento) integrado ao ritmo do cres­cimento, da história recriadora, que implica superar (e romper?) o sistema moral, social, econômico e político anterior.

15) 'rodos os homens e todas as mulheres são co-responsáveis (mais ou menos) por cada delito; e também são, por isso mesmo, co- criadores do futuro.

16) A resposta vê, busca (a partir do delito e de suas circunstâncias situacionais) recriar a convivência futura a partir dessa situação.

17) O estigma do delito é temporário, como todo o humano. Desa­parece com o tempo. A recriação futura, positiva, ocupa seu espa­ço, seu lugar.

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18) Procura-se, antes, e mais que a sanção, o arrependimento e o perdão, como também a reconciliação que supera os limites do jurídico.

19) A justiça (também a penal) emana do povo. Também devem colaborar especialistas em criminologia e em ciências inter e pluridisciplinares.

Como resumo desses 19 crilérios, e com relação às duas cos­mo visões da justiça penal indicadas no começo deste capítulo, po­demos formular o núcleo do nosso novo modelo, repetindo que é o novo, não é o retributivo nem o restaurativo, com modificações, que supõe ou exige uma nova maneira de pensar e de sentir: a jus- tiça penal recriadora conhece e respeita os Modelos Retributivo e Restaurativo, mas supera-os em todos os aspectos importantes. Principalmente na consideração do crime como comportamento omíssivo e desvalorizador do delinqüente (e também, em parte, da sociedade e, ainda, às vezes, das vítimas), e na remodelação do controle social como compromisso responsável dos três citados agentes com a visão constante à reconciliação.

Para concluir o que foi dito, recordemos, com Lain Entralgo (Creer,... p .179), que “todo ato criador - o mais genial ou o mais humilde, seja intelectual, técnica, artística ou moral a matéria da criação - torna mais homem ao que o realizou” .

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Capítulo 9

Da vitimoiogia à reforma do Código penal

Ainda hoje muitos e eminentes penalistas opinam que o Códi­go peno! é o código dos delinqüentes, mas não o código das víti­mas. Outros, ao contrário, opinam que já não cabe manter vigente um Código penal que se apóia na dogmática pela qual se possam entender e compreender a sanção e o delinqüente sem uma cons­tante e radical referência às vítimas. Estas são a outra face da única moeda que atualmente tem curso legal. Basta ler um livro de vili- mologia para ver que o delinqüente está, inseparável e consubstan- cialmente. relacionado com a vítima, mais que o corpo com sua sombra. Para os vitimólogos, a reparação (no novo sentido total, incluindo a mediação, a reconciliação, etc) pertence ao núcleo central da sanção penal, muito mais do que já se proclamava no início da década de setenta - por exemplo, A. Beristain, Medidas pena!es en ei derecho contemporâneo, p. 61 ss. .

Em poucas palavras, o Código penal do terceiro milênio deve ser o Código penal das vítimas (e a elas se deve referir com inovado­ras conseqüências de notável transcendência), não menos que o Código penai dos delinqüentes, pois se trata de duas realidades inseparáveis.

Não confundamos o sujeito passivo com as vítimas

O Código penal fala em alguns artigos da vítima (ou do ofen­dido), mas, sem dúvida, refere-se unicamente ao sujeito passivo da infração, tal como tradicionalmente entende a dogmática.

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192 Antonio Beristain

À luz da atual doutrina vitimológica, por vítima deve-se en­tender uni círculo de pessoas naturais e jurídicas mais amplo que o sujeito passivo da infração, incluindo-o, mas também suplantando-o. Vítimas são todas as pessoas naturais e jurídicas que, direta ou in­diretamente, sofrem um dano notável - não basta qualquer dano, pois de mini mis non curai praetor como conseqüência da infra­ção. Por exemplo, quando os membros do grupo terrorista ETA assassinam um funcionário - o médico — do cárcere de El Puerto de Santa Maria, depois de haver-lhe ameaçado por carta, naturalmente sua esposa e filhos são sujeitos passivos, vale dizer, vítimas diretas, em sentido restrito, do delito; mas também são vítimas indiretas e, em sentido amplo (mas verdadeiras vítimas desse delito), os ou­tros médicos dos cárceres espanhóis que nesses dias haviam rece­bido cartas similares do ETA ameaçando-lhes como ao médico assassinado.

Portanto, no novo Código penal há de se dar entrada a uma instituição nova e mais ampla que o sujeito passivo da infração (de contornos assistenciais, com outros direitos e outras obrigações): as vítimas.

A reparação no Código penal do século XÍX não é a do século XXI

A justiça restaurativa que explicamos e pedimos, no XI Con­gresso Internacional de Criminologia (Budapeste, agosto de 1993), a um grupo de 19 especialistas de diversos países europeus e ame­ricanos presididos por Tony Peters, José de la Cuesta e Ezzat Fattah pouco tem em comum com a justiça restaurativa-retributiva que pediam os canonistas espanhóis do Século do Ouro, ainda que as palavras fossem quase as mesmas.1 Nós hoje não pretendemos aquele “ restabelecer a ordem jurídica violada” que eles proclama­vam na Universidade de Salamanca, ainda que nossas formulações pareçam quase idênticas. Uma similar diferença temos de reconhe­cer entre a reparação civil ex delicio do século XIX e a reparação

Cf. A. Beristain. De leves penales y de Dios legislador. A lfa y omega deI control penal humano. Madri, Edersa. 1990, p. 25-52.

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NOVA CRIMINOLOGIA

Ninguém melhor que Eugênio Raul Zaffaroni, catedrático de Direito Penal e criminologista -

por concurso e provas de títulos - da Universidade de Buenos Aires, como autor do

prólogo. O professor Zaffaroni avaliza o livro como expressão libertária dos dogmatismos

e dos preconceitos.

O prólogo desvenda a orientação filosófica do livro de Beristain, que, entre outras virtudes,

se manifesta contra a Santa Inquisição do passado, bem como contra as modernas e

contemporâneas formas de heranças inquisitoriais reveladas ainda em muitos sistemas

positivos de Direito Penal e Processo Penal vigentes, seja na América Latina, seja em

outros continentes.

Cândido Furtado Maia Neto, promotor de Justiça no Estado do Paraná, é um dos legítimos

representantes de uma nova geração de penalistas envolvidos com a interpretação huma­

nista do sistema penal e preocupado com a sua necessária transformação. Além de

zeloso agente do Ministério Público - conhecendo e vivendo as ansiedades e os ideais da

carreira o Doutor Cândido Furtado é um dos transformadores dos meios e dos métodos

de um Direito Penal injusto e, conseqüentemente, nulo. Sem os discursos aliciantes de

certos arautos do abolicionismo do sistema, o jovem e vibrante criminalista está devotado

às grandes causas humanitárias que se movimentaram por intermédio do réu, da vítima e

dos demais protagonistas dos dramas e das tragédias da realidade. Especialista em

Direito Penitenciário e Criminologia, e com com formação acadêmica em vários centros

intelectuais da América Latina, o nome de Cândido Furtado Maia Neto vem se reunir,

muito positivamente, na tradução deste empreendimento editorial.

O tradutor da obra espanhola é um profissional do ramo e com grande sensibilidade para

captar e transmitir o pensamento vivo do catedrático do país vasco.

Rene Ariel Dotti

Professor Titular de Direito Penal

MB8MKS